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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25215: As nossas geografias emocionais (22): O antigo Hospital Militar Principal (HMP), Lisboa, Estrela


Fachada do Hospital Militar Principal,  Lisboa, â Estrela, s/d .  



Hospital Militar Principal de Lisboa 
(Igreja e antigo Convento de Nossa Senhora da Estrela)


Fonte: Adapt de Município de Lisboa


1. Quantos de nós passaram por aqui, pelo HMP, que não se resumia a este antigo edif´ciio conventual ?  Do complexo hospitalar da Estrela, fazai ainda parte o Anexo de Campolide... Algns andaram pelo HMP , em tratamento, recuperação e convalescença, um, dois ou até mais anos...  

Importa então relembrar a história do antigo Hospital Militar Principal (HMP) (que encerrou definitivamente em 2013) (*)... 

O edifício  (qeu vemos na foto) começou por ser,   originalmente,  um convento beneditino, fundado em 1572 e dedicado a Nª Sra. da Estrela. 

Em 1615, muito próximo deste, é fundado o Mosteiro de S. Bento da Saúde (no sítio onde é hoje o Palácio de São Bento) (**) . O primitivo convento da Estrela será, entretbato, transformado em colégio e casa de estudo da Ordem.

Em 1624 construiu-se no Convento das Janela Verdes, o Hospital Real Militar da Corte, mais tarde transferido para o colégio de Nossa Senhora da Estrela, passando a designar-se por Hospital Militar de Lisboa.

Com a Restauração e a guerra peninsular, a partir de 1640, desenvolve.se o Serviço de Saúde Militar e criam-se Hospitais de Guarnição.

O edifício da Estrela, tal como outras construções da cidade, fortemente abalado pelo terramoto de 1 de novemvro de 1755. Anos depois, em 1797, passa para as mãos do Estado, acolhendo um hospital militar que será utilizado por tropas auxiliares britânicas (ma também pelas tropas de Junot).

Em 1836, por parecer da 
Comissão de Saúde Militar, o  Hospital Militar Permanente instala-se definitivamente no edifício da Estrela.

Com a evolução dos tempos o Hospital foi alargando as suas instalações e em 1898 anexou-se a ala que dá para a Rua de S. Bernardo, para no ano seguinte alguns dos seus serviços serem instalados na "cerca" do Convento do Sagrado Coração de Jesus (Basílica da Estrela).

Em 1926, passa a designar-se Hospital Militar Principal. No ano seguinte, na "cerca",nas traseiras da Basílica da Estrela, será instalada a Escola do Serviço de Saúde Militar (ESSM)-

Posteriormente, com a abertura da Avenida Infante Santo, em 1950, ficou a referida "cerca" dividida ao meio: os pavilhões de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e o Laboratório de Análises Clínicas vão ficar no lado nascente (lado esquerdo da Infante Santo, quando se desce); o Bloco Operatório e o Pavilhão da Família Militar, construído na década de 1940, situam-se no lado poente (lado direito da Infante Santo, no sentido descendente) (***)

Sem entrar em detalhes, sobre a sua estrutura física e orgânica, que se foi alargando ao longo do tempo, o HMP (constituído por diversas áreas e diversos edificios, e com graves problemas de circulação "intra-hospitalar") vai ter um papel importante durante a guerra de África (1961/75). 
Faz parte das "geografias emocionais" de alguns de nós (****).

Em 1961, o Aquartelamento de Campolide deixou de ser ocupado pelo Regimento de Artilharia n.º 1, sendo aí instalado o Centro Ambulatório de Doentes e Convalescentes, anexo do HMP (conhecido como o Anexo de Campolide), face ao grande número de evacuados do Ultramar.

Em 18 de Outubro de 1973 foi inaugurado a Casa de Saúde da Família Militar, localizada na "cerca" do hospital, com 12 pisos.

Em 1991 procedeu-se à concentração hospitalar dos três corpos de edifícios dispostos em volta do Largo da Estrela, de forma a permitir a alienação do referido Anexo de Campolide que se tornou desnecessário.

Durante a década de 90 o Hospital responde aos desafios da medicina moderna efectuando obras e melhoramentos em diversas áreas. O Hospital Militar de Belém como hospital complementar, integra os seus serviços clínicos no funcionamento hospitalar global.

Em 2009, avançava-se com um projeto para a criação de um Hospital Único das Forças Armadas. Porém, o Hospital Militar da Estrela acabaria por fechar em 2013. O seu destino ficou incerto. 

Anos depois, em 2022, o antigo convento e depois hspital militar, adjacente ao Jardim da Estreka, reabriu portas como espaço cultural, com o nome “House of Neverless” , prometendo eventos, workshops e formações. Tem dois pisos dedicados ao teatro e um terceiro para a academia. 
 
Fontes: 
Adaptado de página do Exército > Hospital Militar Principal > Historial

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de fevereiro de  2024 > Guiné 61/74 - P25210: Os nossos seres, saberes e lazeres (616): Visita técnica no âmbito da minha Ordem Profissional, a OET (Ordem dos Engenheiros Técnicos), à chamada "Linha Circular" do Metro de Lisboa (Hélder Valério de Sousa)

(**)  Mosteiro de São da Saúde de Lisboa > Historial 

(...) O Mosteiro de São Bento da Saúde de Lisboa era masculino, e pertencia à Ordem e Congregação de São Bento.

Também designado por Mosteiro de São Bento da Saúde de Lisboa, Mosteiro de São Bento de Lisboa, Mosteiro de São Bento o Velho.

Em 1581, os monges beneditinos que estavam instalados no Mosteiro de Nossa Senhora da Estrela de Lisboa, decidiram construir um novo edifício, na quinta da Saúde, também em Lisboa.

Em 1598, foram iniciadas as obras, pelo Geral da Ordem Beneditina, frei Baltazar de Braga, segundo o projecto do arquitecto Baltazar Álvares.

Em 1615, a 8 de Novembro, a comunidade transferiu-se para a quinta da Saúde. A invocação do Mosteiro teve a sua origem nesta nova residência, o qual viria a ser designado por São Bento de Lisboa ou por São Bento da Saúde de Lisboa.

A partir de 1755, os monges foram obrigados a ceder uma parte das suas instalações para vários fins. De 1755 a 1856, e de 1769 a 1772, foi sede da Patriarcal de Lisboa. Em 1757, e nos anos seguintes, serviu de instalação à Academia Militar. Em 1796 e 1798, serviu de prisão de pessoas notáveis. Entre 1797 e 1801, serviu de instalação ao Batalhão de Gomes Freire de Andrade. Entre 1756 e 1990, acolheu o Arquivo da Torre do Tombo.

Em 1822, os monges tiveram de abandonar o mosteiro, indo para o Mosteiro de São Martinho de Tibães de onde regressaram em 1823.

Em 1833, abandonaram o edifício definitivamente quando este foi cedido para local de reunião das Cortes Constituintes.

Em 1834, no âmbito da "Reforma geral eclesiástica" empreendida pelo Ministro e Secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo Decreto de 30 de Maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respectivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo.

Os bens foram incorporados nos Próprios da Fazenda Nacional.

Localização / freguesia: Lapa (Lisboa, Lisboa) (...)


(***) Vd. artigo "Alterações na estrtutura do Hospital Militar Principal", do major Rui Manuel Pereira Fialho, publicado na Revista Militar N.º 2566 - Novembro de 2015, pp 909 - 918. (Disponível aqui em pdf: https://www.revistamilitar.pt/artigopdf/1064)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13923: Notas de leitura (652): “Quatro Rios e um Destino”, por Fernando Sousa, Chiado Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
É um livro, a vários tipos, raro. Raro pela confidência, raro pelo filtro que o autor se impõe quanto ao sujeito da memória: a infância, a recruta, a especialidade que culmina, praticamente, com a convocatória para a guerra.
Não se sabe porquê, desembarca em Luanda e é direcionado, de supetão, para a Guiné, viaja até Bedanda.
Não se perde em considerandos nem faz crónica da guerra, regista estimas e chega depois a hora do sinistro que o transfigurou, até hoje. Impressiona quando escreve sobre os guineenses, captou-lhes a ternura, o gosto pela música, a afabilidade.
Temos aqui um livro que é também um grito de revolta, é alguém que superou o pesadelo e não o esconde. É um livro raro, encontrou um caminho inesperado depois da agonia de se ver sem duas pernas, venceu o destino.

Um abraço do
Mário


Quatro rios e um destino

Beja Santos

“Quatro Rios e um Destino”, por Fernando Sousa, Chiado Editora, 2014, é um registo de vivências singular, onde se cruzam o enaltecimento de valores e o grito de protesto pelas desumanidades que experimentou no Anexo do Hospital Militar, após o grave sinistro que teve na Guiné.

O enaltecimento de valores arranca logo com a descrição da sua infância, um texto singelo, carregado de amor familiar e telúrico, tudo contado sem arrebiques, com o gosto de confidenciar:

“Aos sete anos, já acompanhava o meu pai na colocação de armadilhas para apanhar caça, sobretudo coelhos e perdizes, que por ali havia em abundância. Porque, naquela terra, longe de tudo, era importante aprender a sobreviver (…) Aos seis anos, já calcorreava todos os caminhos e veredas que conduziam às várias propriedades da família, tendo como companhia nestas andanças uma burra, que tudo levava e tudo trazia, e muitas vezes agarrado ao rabo dela, para a poder acompanhar naquelas caminhos pedregosos, repletos de altos e baixos”.

Lembra-se das férias que passou na colónia balnear infantil de O Século, Lisboa deslumbrou-o, foi cidade que o marcou para sempre. Salta destas recordações de infância para a sua entrada no RI 14, e passar de mancebo a instruendo militar, estávamos em Outubro de 1969. Não gostou das carecadas nem das outras praxes. O comandante de pelotão é tratado como ratazana de esgoto:

“Por pura vingança desmedida, procurava os sítios onde houvesse mais água e lama, dentro e fora

do quartel, para obrigar todos a rastejar e rebolar, até que ficassem completamente encharcados e cobertos de lama, para, de seguida, se rir e gozar. Todos nós passámos um sacrifício tremendo com aquele pulha”.

Em Janeiro de 1970, veio a caminho do RI 2. Em Março, é chamado
Fernando Sousa.
Entrou para a Tabanca Grande 
em 6/8/2014
a secretaria e informado quetinha sido mobilizado em rendição individual. Vai despedir-se dos seus a Bebeses, concelho de Penedono. Serão tempos dilacerantes, despede-se com um “até um dia destes”. Em Maio, está a caminho de Luanda, a viagem deixou-lhes as piores recordações. A experiência luandense também não foi muito feliz. É aqui que recebe guia de marcha com destino para a Guiné, paragem na ilha do Sal e depois Bissau.

Para ganhar uns cobres, desata a colorir fotografias a preto e branco. Mandam-no de viagem a Bambadinca, vai acompanhar material que foi metido num batelão. Durante a viagem ao longo do Geba, foi surpreendido por um instrumento musical que desconhecia, o korá:

“Fiquei na dúvida se seria uma cabaça redonda cortada ao meio, onde fixaram uma pele de cabra ou de outro animal para mim desconhecido. Numa das metades da dita cabaça, as cordas que serviam de fixação dessa mesma pele, da qual se repercutia o som, eram também tiras talvez desse ou outro animal, sabiamente cortadas e de forma harmoniosa fixas para manterem a pele principal devidamente esticada, onde tudo batia certo e estava perfeito, menos as cordas de produzir o som que eram fio de náilon habitualmente usado pelos pescadores, que prendiam na cabaça em algumas dessas tiras de pele ainda com pelos do animal, de forma inteligente, e no outro extremo, fixos na ponta de um bambu, como que feito à pressa, e mal conseguiam manter a tensão necessária para que o som produzido tivesse qualidade”.

Ia atento às belezas que avistava nas margens do Geba. Viu um crocodilo a apanhar sol e um pássaro às bicadas no meio dos dentes. Feita a descarga regressa a Bissau e dão-lhe como destino a CCAÇ 6, em Bedanda, ia atormentado e a viagem foi uma tormenta. Já conhecia dois rios, o Tejo e o Geba, agora vai a caminho do Cumbidjã, dali seguirão para o rio Ungauriuol, este com curvas muito apertadas e estreitas, em que os barcos quase roçavam no tarrafo.

Faz estimas, logo com o Furriel Ribeiro e o 1.º Cabo Leito, apreciou as qualidades do capitão Ayala Botto. Todas as suas descrições deste teatro de operações serão sincopadas, enxutas, fala dos seres humanos que o cativaram, caso do marido da lavadeira que o convidou para almoçar. Está polarizado os maus momentos que se seguem, aquela manhã igual a tantas outras manhãs, na encruzilhada entre o Cumbidjã e o Malamba, será ali que toda a sua vida se transfigurou, ao princípio não sentiu nada depois despertou no meio de chamas a arder:

“Ardia sobre o meu corpo retalhado, num buraco que a própria explosão cavou. Ali mesmo reconheci que já não era mais eu! Vejo que uma perna tinha pura e simplesmente desaparecido, restando dela farrapos de carne pendurados! Da outra, apenas via um osso completamente descarnado, espetado naquele chão ardido, e ao lado uma bota com um pé nela metido, pendurado por um tendão, agarrado àquele osso lambido, que, outrora, tinha feito parte integrante do meu corpo”.

Inicia-se o calvário dos tratamentos no Hospital Militar em Bissau. Ao ganhar consciência do sucedido, com todas aquelas dores como facas cravadas, amaldiçoa a sua sorte. Pede ao sargento de enfermaria para lhe pôr termo à vida. Tomba os frascos indispensáveis ao seu tratamento, é amarrado à cama. O 1.º Cabo Sousa chora copiosamente. Era um homem de fé, um homem que rezava, agora está enraivecido, aquele tempo marcou-o para sempre:

“Ainda hoje me dói o arrancar das ligaduras, das compressas, daquela carne dilacerada e queimada! O tormento de acordar de cada anestesia!”.

E passa a confrontar-se com as dores dos outros naquele espaço que ele designa por antecâmaras da morte. Um dia ganha coragem e escreve à família, carta tranquilizadora, levava 22 dias de sofrimento atroz. Suavizou-o a visita da mais velha das cinco mulheres do seu colega de Bedanda, que tanto estimava. Está impaciente para partir para Lisboa, esse dia acabou por chegar. E em Lisboa vai viver tempos terríficos. Odeia que lhe digam coisas como “Sabes meu filho, tu até tiveste muita sorte!”. Há uma atmosfera de tragédia ali à volta: “Era desgraçadamente ali que muitas namoradas, noivas e madrinhas de guerra sofriam a maior desilusão das suas vidas, ao encararem com o que restava das suas paixões, tornando seus sonhos em pesadelos!”.

Toda a sua escrita ressuma cólera não contida pelo que viu e viveu no Anexo do Hospital Militar Principal, lugar maldito, só ao fim de oito meses que cederam uma cadeira de rodas. Livro profusamente ilustrado, e escreve a legenda, estamos em 1972, vemo-lo passivo, desalentado, numa cadeira de rodas:

“A total decadência. O passar uma tormenta. O viveu num inferno. Um condenado. Um sobrevivente. Um nascido do nada. Um irreverente. Um inconformado. Um renascido para a luta. Mas sempre eu, consciente de mim, do que fui, do que era e do que teimosamente ambicionava ser”.

Aprende a outra dimensão da autonomia, a depender, com todas as suas forças de si mesmo, cria novas convicções. Volta a Bebeses, descobre que não tem ali lugar, refugia-se na cidade, transforma-se no homem que é hoje. Irá até cais de Alcântara para prestar homenagem a si mesmo, como sinal de que tinha regressado e estava vivo.

Hoje assume-se como não-crente, basta-lhe acreditar em si e em todos os homens de bem, confessa que terminou a última parte das suas recordações com dificuldade. Quer que o leitor não duvide dele: “Porque de verdade tudo isto que passei vos relato foi real. Foi mesmo assim”.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13905: Notas de leitura (651): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11567: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6): Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados

1. Mensagem de Armando Pires [ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70]

Data: 12 de Maio de 2013, 18:06

Assunto: Reenvio

Meu caro Luís Graça. Camarada.


Ontem, 11 de Maio, em Paredes, foi o almoço da minha companhia.

Palavra puxa palavra e fui buscar um meu portátil para, como imaginas, tirar dúvidas que a memória acentua. As conversas são como as cerejas, e "vejam lá como se entra e se fazem buscas no blogue do Luís Graça".

E veio-me de novo à ideia: "mas que raio se passará com a história que eu enviei no 26 de Abril"?

Dizia assim o texto do e-mail:  "Meu Caro Luís Graça. Camaradas Editores. Blog Amigo. Perdoa que tardiamente te felicite pelo teu nono aniversário. Leva-o à conta de prementes afazeres, que não de menos cuidado por quem, na sua ainda que curta existência, tem sabido ser o ombro disponível a acolher gente caturra, em acertos de contas com a memória.

Deixa-me recompensar-te da falha, remetendo para teu acervo o 6º episódio da série que acolhes como "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Não sei se aprecias o estilo, mas quero aproveitar para fazer homenagem ao Manuel Joaquim, ex-furriel miliciano da CCAÇ 1419, que numa solitária demonstração de despojamento intimista, connosco tem partilhado as suas Cartas de Amor e Guerra. Vai com abraços."

E seguia em anexo o texto que também aqui vai anexado. Vais desculpar, meu Caro Luís, mas cheira-me que o e-mail passou à peluda antes de cumprir o tempo de serviço.

Toma lá um abraço e não te zangues comigo. Armando Pires


2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6) >  Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados 

por Armando Pires


Raios te partam, Manel Jaquim, que as tuas Cartas de Amor e Guerra incendeiam-me a memória na razão directa do respeito que me provocam.

Começo pelo fim, em que sou mais breve, para dizer de quanta admiração sinto por essa cumplicidade entre ti e a Dionilde, tua mulher, nascida no tempo do amor e dos segredos, trazida pela vida fora, chegando hoje à comum aceitação da partilha dessas palavras escritas, tão intensas de paixão e raiva, que só os amantes sabem dizer.

Faz tempo que andava para te o dizer, para te escrever.

Chegou a hora, sacudido pela inspiração desse teu Tombe la Pluie (poste P11263, de 16 de março de 2013), versos que bem podias ter deixado ao cuidado do teu soldado Lavinas, aquele que se perdeu pelo cheiro à terra e aos amores de Bissorã, e por lá ficou em negócio de restauração, para que deles, os versos, me fizesse entrega, que boa figura me teriam dado fazer, como adiante saberás.

Daqueles tempos, desses tempos, não tenho uma carta que seja.  Perderam-se nos vendavais da vida. Delas resta a memória do que quiseram dizer.

O rapaz do SPM tinha muito pouco trabalho comigo. Eu que escolhi a escrita como modo de vida, era espaçado e breve nos parágrafos em que alinhava, “por cá vou indo bem, felizmente”.  (Ó minha mãe, a paixão das nossas palavras são segredos indizíveis)

Parti sem deixar alma à minha espera. Amizades, sim, romances, também, mas a vida em que cedo fui esculpido não comportava melancólicas saudades. Agarro-me a gestos e afectos para me sentir nos lugares onde quero estar.

Foi assim que lá na Guiné venci o tempo, protegido por objectos de virtude, talismãs, ícones ou fetiches, figuras a que quiseram atribuir poderes tão sobrenaturais, que fossem capazes de me proteger e trazer de volta, são e salvo.

E porque assim deve ter sido, porque não sendo crente quero crer que o tenha sido, continuaram pela vida fora ao meu lado, e aqui perduram, na que já disse chamar-se a minha caixa dos segredos (poste P10629, de 7 de novembro de 2012 ), e para dentro da qual gosto, de quando em vez, de olhar e sorrir.

Porque lá dentro estão, a Maria da Luz, de trouxa às costas para me acudir nas aflições, mais aquela rapariga sardenta da Nazaré, que me julgava um lobo do mar, vê lá tu, eu que enjoo só de o ver, está também a versão francesa de “Le Petit Prince” [, o Princepezinho, criação de Saint Exupéry], aquele rapazinho que a Anne-Marie, lá porque ele andava sempre de chache-nez ao pescoço, teimava que era parecido com o fadista que eu era, e o corno do Aleixo, que me foi dado pela Odete. 







Guiné > Região de Cacheu > Bula > 1969 > CCS/BCAÇ 2861 (Buila e Biossrã, 1969/71) > Relíquias, ícones, fétiches, e talismãs… e a Maria da Luz, a Sardenta, Le Petite Prince, o cinto do “Rapina” mais o corno do Aleixo...

Foto (e legenda): © Armando Pires (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG].



O Aleixo não era corno. O Aleixo tinha um corno que pertenceu a um toiro que numa praça de Espanha o ia varando num sitio que, vida fora, lhe faria imensa falta. Recuperou da colhida e o corno, que trouxe de lá para por atrás da porta do bar da Odete, para que dela e da casa desviasse o mau olhado.

A Odete, namorada do Aleixo, uma “balzaquiana” bem apessoada, que tinha um pequeno bar, já o disse, ali às Amoreiras, em Lisboa, frequentado por gente tão apessoada quanto ela, não sendo eu apessoado quanto eles, dedicava-me gosto e estima, porque eu tinha o que eles não tinham mas gostavam de ter tido: Voz e jeito para cantar o fado.

Sucede que aquele bar de muitas vezes passou a ser o bar de todas as vezes quando, terminado o curso de enfermeiro, no Hospital Militar Principal, fui colocado no seu Anexo, antigas instalações militares que ocupavam quase todo o quarteirão da Rua de Artilharia 1. Do Anexo ao bar da Odete não se corria mais de duzentos metros.

Naquela espécie de depósito de doentes em geral, fui metido em serviço na Medicina 3, onde cabia gente que se declarava demente para fugir à tropa, até tipos no seu mais perfeito juízo que apenas esperavam que viesse a funcionar a cunha que o sr. de patente, ou de posição, amigo do pai, metera ao médico da junta médica militar.

E havia, também, embora esporadicamente, uma outra clientela que fazia todo o meu enlevo. Eram os velhos veteranos da primeira guerra mundial, que esperavam pelo fim dos seus dias no Lar Militar de Runa, próximo de Torres Vedras, e ali iam recuperar dos achaques próprios da idade e, sobretudo, da tragédia em que os mandaram envolver-se.

Via e respeitava neles a figura do meu avô João, meu ídolo, boieiro nos campos do Ribatejo. Ninguém lhes tocava. Só eu cuidava deles. E as manhãs começavam com o banho em que, se não morriam afogados, quase morriam de riso com os disparates que eu lançava às suas inertes partes pudengas.

E havia ternura nos olhos quando, à hora da despedida, diziam, “obrigado, nosso cabo miliciano, e até qualquer dia”.

Ao lado do meu Serviço havia um outro que exigia forças mentais tão poderosas que quase se tornavam incompatíveis com as nossas imberbes e frágeis idades. O Serviço 5, onde os mutilados de guerra e paraplégicos cumpriam a “última etapa” da sua recuperação, antes de serem lançados para os braços de uma sociedade e de famílias a mais das vezes impreparadas para os receber.

À tarde, quando o sol iniciava o seu declínio para ocidente, sentava-me à porta com eles em conversas de amigos. À noite, no imenso espaço que era aquela espécie de parada do Anexo, à vez, um havia que me emprestava a sua cadeira de rodas para disputadas gincanas que tinham como prémio uma cervejinha no bar que fechava às dez.

Ganhava quase sempre um transmontano a quem uma mina anti-carro levara as duas pernas, conhecido pelo “Rapina”, porque depois de embalar a cadeira à força de pulso, fazia o percurso curvado para diante e de braços abertos, imitando o voo das águias que caçavam nos alcantilados do Marão.

Caramba, Manel, que lições de vida e humanidade eu ganhei naquele Anexo!

Às vezes, muitas vezes, eu saía com um deles, empurrando-lhe a cadeira até ao bar da Odete (é aqui que volta a entrar a Odete), que não só lhes franqueava a porta como nada lhes cobrava pelo jantar e, o melhor de tudo, lhes dava “à morte” companhia feminina até antes das seis, que era o prazo máximo combinado com o homem da porta de armas para nos deixar passar.

Em Setembro de 1968, após seis meses a prestar serviço no Anexo, já promovido por antiguidade a Furriel Miliciano, chegou a ordem de me apresentar em Chaves para formar Batalhão com destino à Guiné. Foi então, na hora da despedida, que a Odete me entregou o corno do Aleixo para que de mim afastasse o perigo, e o “Rapina” me desse o seu cinto militar porque já não precisava dele para segurar a farda.

Certa manhã de Abril de 1969, lá em Bula, foi à enfermaria ter comigo o rapaz do SPM.
- Furriel, tem aqui uma encomenda para si.

A letra firme, imensa e bem desenhada do endereço, bem que dispensava o selo para que eu reconhecesse a sua origem. Do norte de França, da Bretanha, da cidade costeira de Sainte-Marine, a Anne-Marie, minha namorada de então e minha muito amiga de hoje, enviava-me um novo livro.

Era uma biografia e um estudo sobre a obra poética de Léopold Sédar Senghor, de autoria de Armand Guibert, poeta ele também, que traduziu para francês obras do nosso Fernando Pessoa. Em dedicatória, a entre capa do livro recomendava que era “para ler nas noites azuis, nas noites sem guerra”.

Não esperei tanto. Sentei-me à porta da enfermaria e logo ali comecei a ler

La faiblesse du coeur est saint…
Ah! Tu crois que je ne l’ai pas aimée
Ma négresse blond d’huile de palme à la taille de plume
Cuisses de loutre en surprise et de neige du Kilimandjaro…



Dos lados da sala de operações surgiu o major Candeias. Fechei o livro entre o polegar e o dedo médio, deixando o indicador marcar a página onde seguia, e levantei-me para o cumprimentar.
- Então o que estás a ler, perguntou-me.

Exibi-lhe a capa e indiquei-lhe tratar-se de um poeta.
- Olha lá, rapaz, tu achas que isso são leituras para aqui?

Respondi-lhe: “ó meu major, poesia é para ler em qualquer lado”.

O Candeias fitou-me por brevíssimos segundos, fiquei sem saber se quis ou não quis dizer-me mais alguma coisa, se ficou a pensar se era eu que era parvo ou se o estava a fazer passar a ele por estúpido, e partiu sem resolver tão grande equação. Não sei por onde anda, meu major, mas talvez eu vá ainda a tempo de dizer-lhe que nem uma coisa nem outra.




Foi assim uma espécie de, “e se fosse à merda e me deixasse ler em paz?”. E pronto, Manel Jaquim, era aqui que eu precisava que tivesses deixado ao Lavinas o teu Tombe la Pluie, para que eu pudesse escrever à Anna-Marie e dizer-lhe

Tombe la pluie 
Et tu es si loin de moi
Tombe la pluie
Et mon couer s’habille de noir
….

Tombe la pluie
Et tu es si loin de moi.
Tombe la pluie
Oh, comme je voudrais te voir! 


Adeus, Manel Jaquim. Obrigado por esta oportunidade.

Até segunda-feira, lá no armazém da Amadora, onde teimamos em não esquecer o futuro daqueles que, lá nas bolanhas que deixámos, o não têm.
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11048: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (5): O dia em que a minha mala voou

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10793: Meu pai, meu velho, meu camarada (35b): José Baptista de Sousa (1904-1967), capitão médico-cirurgião, expedicionário, um 'anjo di céu', em São Vicente, fev 1942/ set 1944 - Parte II(Adriano Miranda Lima)



Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Baptista de Sousa recebendo o diploma do iate Morabeza. Foto cedida por Valdemar Pereira




Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Baptista de Sousa no hospital civil de S. Vicente. Foto cedida por Valdemar Pereira.


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Entrega solene do iate Morabeza a Baptista de Sousa. Foto cedida por Valdemar Pereira




Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Baptista de Sousa fundeando o Morabeza frente à Praia de Bote. Foto cedida por Valdemar Pereira.



1. Segunda (e última) parte do texto do nosso grã-tabanqueiro Adriano Lima, natural de Mindelo, São Vicente, cor inf na reforma, residente em Tomar  [, foto à direita] (*):

Dr. José Baptista de Sousa, um “anjo di céu” que pousou em S. Vicente 

Texto: Adriano Miranda Lima [, foto à esquerda]
Fotos: Valdemar Ferreira


(Continuação)

Mas o apreço pelo médico não resultou só do seu exercício profissional e da sua bondade. Suscitou admiração pública a sua coragem cívica e moral quando recusou escrever em atestados de óbito que a causa de muitas mortes não era outra senão a fome que desgraçadamente assolava as nossas ilhas, contrariando o que as autoridades oficiais do Regime impunham aos profissionais da Saúde sobre o assunto. Ao proceder desse modo, Baptista de Sousa agia apenas em conformidade com a sua consciência de homem e com os valores morais que estribam a ética e a deontologia da sua profissão, certamente indiferente às consequências em que poderia incorrer na sua carreira militar, e mesmo ao juízo que os seus pares mais conservadores ou timoratos poderiam fazer sobre o seu gesto desassombrado.

Mas não foi meramente circunstancial a atitude do médico. Ele era efectivamente um homem de espírito livre e dotado de vincada consciência política, como aliás viria a demonstrar em etapas futuras da sua vida. Como era de prever, a sua atitude de rebeldia contra a inverdade e a iniquidade viria a trazer-lhe alguns custos pessoais e atinentes à evolução justa da sua carreira militar. Excederia o âmbito desta narrativa fundamentar exaustivamente tudo o que pesquisei no âmbito do seu processo militar. É verdade que o juízo de quem analisa o conteúdo da sua folha de serviços funda-se mais na omissão do que na explicitude, busca-se mais nas entrelinhas do que na factologia do registo formal. É que no antigo regime havia formas dissimuladas de exercer a retaliação sobre alguém em termos profissionais, havendo o cuidado de minimizar a sua percepção exterior quando esse alguém era figura socialmente prestigiada.

No entanto, convém dizer não me parece que haja razões para pensar que a hierarquia militar local, na pessoa do Brigadeiro Comandante das Forças Expedicionárias, Augusto Martins Nogueira Soares, olhasse de soslaio para o êxito social do seu subordinado ou lhe retirasse apoio moral por qualquer razão. Os factos demonstram o contrário. O Brigadeiro atribuiu ao seu médico um muito expressivo louvor, que se pode considerar em perfeita sintonia com as homenagens que a sociedade civil lhe prestou:

“Louvo o capitão médico José Baptista de Sousa pela excepcional qualidade dos serviços prestados durante o período em que desempenhou o cargo de Chefe dos Serviços Cirúrgicos das Forças Expedicionárias de Cabo Verde. Como cirurgião muito hábil, permitiu a recuperação de muitos militares em situações desesperadas, e alguns lhe ficaram devendo seguramente a vida. Sempre pronto e solícito para todos, quer militares quer civis, a sua competência e a afabilidade do seu trato fizeram-no apreciar e estimar e o tornaram um elemento de valor no estreitamento das relações entre as Forças Expedicionárias e a população de Cabo Verde, que por várias maneiras lhe expressou a sua gratidão pelos valiosos e desinteressados serviços, em manifestações partidas de todas as classes sociais e das entidades oficiais da Colónia, dando assim um valioso exemplo no cumprimento dos seus deveres cívicos e militares.”

Além disso, veja-se, como é patente na fotografia [, à direita], que o Brigadeiro Comandante lidera a comitiva de despedida do seu subordinado, ladeando-o e acompanhando-o até ao cais da despedida, o que não é procedimento habitual numa Instituição que se pauta por rigidez protocolar. No rosto do Brigadeiro ia certamente estampada uma expressão de orgulho e satisfação por um oficial que prestigiara o Exército e a Nação com a sua conduta humana e profissional.

Mas o mesmo creio não poder dizer-se do Governador da Colónia, que, no âmbito das suas funções, não reconheceu pública e formalmente os serviços do médico, o que só poderia ter sido vertido em louvor oficial. E ele tinha sobejas razões para o fazer relativamente a um médico que pôs a sua ciência e o seu bisturi ao serviço dos hospitais civis, salvando muitas vidas. É caso para se dizer que a carta de alforria do Governador se prendia a uma lógica diferente da que pauta a Instituição Militar, sobretudo quando esta é servida por homens que sabem o que é a honra, a coragem, a lealdade e a camaradagem. Parece ter sido o caso do Brigadeiro Nogueira Soares, Comandante das Forças Expedicionárias.

Mas o que é realmente extraordinário é a expressividade das homenagens e manifestações de carinho que a sociedade civil mindelense prodigalizou a Baptista de Sousa. Se o louvor militar tem o valor formal que tem, maior é louvor que ele deve ter auscultado, sem precisar de estetoscópio, no coração do povo do Mindelo. Inúmeras homenagens públicas tinham sido dias antes da sua partida prestadas ao doutor Baptista de Sousa pela sociedade mindelense, quer por entidades oficiais quer privadas, como bem refere no seu louvor o Brigadeiro Nogueira Soares. Uma delas, de entre várias, mas esta de grande simbolismo, é a morna “Engenheiro Humano”, com música e letra de Jorge Monteiro, morna que continua a ser ouvida com emoção nos dias de hoje. [Vd. aqui, no You Tube, essa linda morna, na interpretação de Gardénia: Engenheiro Humano, Baptista Sousa]

 Outra homenagem foi a oferta de um pequeno iate ao Dr. Baptista de Sousa, construído nos estaleiros de S. Vicente, iate a que se deu o nome de “Morabeza”, custeado por subscrição pública na cidade, por iniciativa do conhecido industrial Manuel de Matos, dono da Fábrica Favorita. Todo o povo da cidade, rico, remediado ou pobre, contribuiu com pouco que fosse, mas a parte leonina do custo coube àquele industrial. Valdemar Pereira, para ilustrar a veemência do sentimento popular, refere que o seu tio Jom Bintim lhe contou que uma mulher do povo que cosia sacos ao pé da Alfândega teve estas significativas palavras: “cirê ta custá-me 3 testom; ma pa iate de senhor dator um ta dá 10.000 reis” (3).

Contou-me um tio meu que, no acto solene da entrega do iate, o doutor Adriano Duarte Silva, deputado por Cabo Verde, encerrou com estas exactas palavras a prelecção que proferiu: “…Quando estiverdes a velejar no Tejo, no Estoril ou em Cascais, Morabeza (nome do iate) vos fará lembrar este povo altaneiro que sabe amar e compreender aqueles que o amam e compreendem."

Mas os caminhos de um regime político ditatorial não coincidem com as veredas do coração humano. Infelizmente, Baptista de Sousa viria a sofrer as consequências de ter pisado o risco vermelho ao escrever nas certidões de óbito que a causa de algumas mortes em Cabo Verde era a fome. Viria a verificar-se, com efeito, uma sucessão de episódios futuros elucidativos do revanchismo institucional exercido sobre o médico, visando prejudicar ou no mínimo restringir as condições em que poderia dar uma expressão alargada à sua actividade profissional.

Por exemplo, em vez de ser colocado no Hospital Militar Principal, como pediu depois da missão em Cabo Verde, o que era mais que justo e oportuno, foi colocado no Regimento de Cavalaria da Guarda Nacional Republicana, situação mais compatível com o desempenho de um médico de clínica geral do que o de um reputado cirurgião, aí permanecendo quase um ano. É bem possível que Baptista de Sousa, fora do horário militar, tenha exercido cirurgia nos hospitais civis, para manter elevados os seus níveis de proficiência técnica.

Deixa de prestar serviço na Guarda Nacional Republicana em 1945, e a partir daí e até Março de 1947 é colocado no Hospital Militar Regional nº 3, em Tomar, e logo a seguir no Hospital Militar Regional nº 2, em Coimbra. Não se pode deixar de olhar com desconfiança para a sua colocação em hospitais militares regionais, órgãos do serviço de saúde militar onde não se realizam intervenções cirúrgicas importantes, estas só cabendo ao Hospital Militar Principal, para além do facto de essa situação o ter deixado fora da sua área de residência, Lisboa, onde naturalmente melhor se conjugavam os seus interesses de ordem profissional e académica.

É evidente que qualquer oficial médico, no posto de capitão, estava e está sujeito a colocações em qualquer estabelecimento do Serviço de Saúde Militar, e Baptista de Sousa não podia ser excepção. Contudo, estamos a falar de um cirurgião de alta craveira técnica e académica cujo mérito era unanimemente reconhecido. E note-se que o quadro permanente de oficiais médicos do Exército comportava nessa época 65 capitães e 32 tenentes, havendo assim razão para estranhar que um cirurgião como ele tenha sido objecto daquelas colocações, ainda mais depois de regressar de uma colónia onde honrou como ninguém a profissão médica e a instituição militar.

Como se não bastasse, mal refeito do que iniludivelmente fora uma tentativa de o prejudicar, Baptista de Sousa é “requisitado” para a longínqua Índia, para onde embarcou em 1947, destinado à Escola Médico-Cirúrgica de Goa.

Se, durante a minha pesquisa, alguma reserva intelectual poderia ter contido a extravasão da minha conclusão sobre a vitimização política do médico, ela desfez-se completamente quando, no fim do meu trabalho, a família do médico me confessou que ele era efectivamente um opositor declarado ao antigo Regime e, nessa condição, alvo de vigilância da PIDE, que não se desarmava de o procurar apanhar em flagrante em situação comprometedora. Disseram-me os familiares que nunca o conseguiram, pelo que a única possibilidade que se lhes oferecia era prejudicar veladamente a actividade e a ascensão normal da sua carreira. Daí que a nomeação para a Índia o tenha deixado transtornado não só por injustificável à luz das regras normais de nomeação de pessoal militar como por ter sido inoportuna e altamente prejudicial aos planos profissionais que tinha em mente.

Contudo, não se pode deixar de assinalar que na Índia Baptista de Sousa foi alvo de uma idolatria idêntica à que conheceu em S. Vicente. Baptista de Sousa viu os seus serviços na Índia altamente reconhecidos pelas instâncias governamentais e pela sociedade civil. Por portaria de 27 de Abril de 1950, é louvado pelo Governador-Geral do Estado da Índia, nos seguintes termos:

“ (...) Pelos relevantes serviços prestados neste Estado, pela muita competência, elevada dedicação e extremo interesse demonstrados no cumprimento dos seus deveres profissionais, honrando e prestigiando a ciência nacional e bem merecendo a gratidão de todos pela sua abnegação, sempre animada de sentimentos de bem servir, pelo que considero distintos os serviços prestados neste Estado pelo capitão médico Baptista de Sousa”.

As autoridades públicas e o povo da Índia, que o homenagearam de várias maneiras, moveram todos os esforços para evitar ou adiar a sua saída, mas Baptista de Sousa era natural de Lisboa, onde tinha a sua família, e por certo alimentava a expectativa de retomar a normalidade da sua carreira. Mas mais uma vez lhe deve ter calado fundo o reconhecimento e o apreço da sociedade civil pelo seu valor profissional e pela sua humanidade, dessa vez numa outra paragem do Império.

Só a partir de 1951 Baptista de Sousa é finalmente colocado no Hospital Militar Principal, onde se manteria até 1961. Durante esse período, frequentou o Curso de Promoção a Oficial Superior e mais tarde o de Comando e Direcção (destinado a promoção a oficial general), sendo promovido sucessivamente a major, tenente-coronel e coronel, preenchendo as vagas normais da carreira.

Enquanto tenente-coronel é nomeado subdirector desse Hospital. Promovido a coronel, seria previsível que um oficial do seu valor fosse nomeado director, mas tal não aconteceu, pelo que deixa o Hospital à data da sua promoção, em 1961, para ser colocado, para efeitos administrativos, no Conselho Fiscal dos Estabelecimentos Fabris do Exército, onde ocupa o cargo de vogal, embora continue a operar no Hospital Militar Principal. Refira-se que no Hospital Militar Principal ocupou, enquanto ali colocado, o cargo de Chefe da Clínica Cirúrgica, do mesmo passo que na vertente civil da sua vida profissional foi Chefe da Clínica Cirúrgica do Instituto de Oncologia Português [, IPO].

Baptista de Sousa passa à reserva em 1963, por motivos de saúde. Mas se estes eram formalmente impeditivos para efeitos militares não o eram para o exercício normal da sua função de cirurgião, pelo que continua a exercê-la tanto no Hospital Militar Principal como no Instituto Português de Oncologia.

A situação mais estabilizada conseguida pelo oficial médico a partir de 1951, uma vez colocado no Hospital Militar Principal, pode ter duas explicações plausíveis. Uma, é o pressuposto de que pagara o preço da sua afronta ao Regime, depois de passar por uma fase atribulada em que conheceu a instabilidade profissional e familiar. Outra, é a circunstância de que a partir do posto de major, ou mesmo de capitão antigo, se tornava problemática, se não mesmo impraticável, à luz dos quadros orgânicos, a sua colocação em outro órgão do Serviço de Saúde que não fosse o Hospital Militar Principal.

É durante o referido período que é louvado pelo Director do Serviço de Saúde (duas vezes) e pelo Director do Hospital Militar Principal. Além de ter sido condecorado com as medalhas de Mérito Militar de 3ª e 2ª classes (rotina normal no Exército), recebeu também a condecoração da Ordem Militar de Avis, esta no posto de tenente-coronel.

A partir de 1964, estando na reserva, Baptista de Sousa foi proposto e aceitou ser nomeado Consultor de Cirurgia da Direcção do Serviço de Saúde Militar, “em virtude de se tratar de um distinto oficial e cirurgião de grande categoria, e nesta qualidade apoiar o serviço de cirurgia do Hospital Militar Principal com os seus pareceres e eventualmente com a execução de intervenções cirúrgicas.”

O “Registo de Alterações” da vida militar do coronel Baptista de Sousa encerra em 1961, data em que deixa o serviço activo, e só reabre em 1967. Mas reabre, infelizmente, para logo encerrar em definitivo, pois é apenas para registar o seu óbito, ocorrido no seu domicílio, num domingo, dia 3 de Novembro do ano de 1967. Foi uma morte já aguardada porque passara ultimamente a padecer de uma doença que evoluía irreversivelmente, sem deixar qualquer réstia de esperança, como vim a saber, através das suas filhas, já depois de concluído este texto. Assim, súbita e friamente, diz-nos o documento oficial que o nosso “Engenheiro Humano” deixou a vida em 1967, aos 63 anos. A última página da sua vida foi virada, mas a vida de um justo é um livro sempre aberto e para lá do tempo. Santo Agostinho disse: “se semeias o amor em ti, só amor serão os frutos”. Por isso, Baptista de Sousa é um livro nunca encerrado, um livro onde devemos colher os frutos da semente que ele semeou.

No entanto, Baptista de Sousa não atingiu um mais alto patamar na vida militar porque era adverso ao Regime político então vigente. Seria perfeitamente normal que um oficial médico da sua categoria tivesse tido o cargo de director do Hospital Militar Principal e, em seguida, alcançado o posto mais alto na orgânica do Serviço de Saúde, o de brigadeiro. E faltou conceder-lhe no fim da carreira a condecoração com a medalha dos Serviços Distintos, como receberam outros oficiais contemporâneos, porventura mais fiéis ao Regime mas certamente menos qualificados que Baptista de Sousa.

A minha tese correu o risco de ser infundada por presumir propósitos deliberados onde apenas poderia haver simples coincidências administrativas, visto que apenas me limitei a analisar documentos oficiais, lendo nas entrelinhas. Mas o problema é que as coincidências me pareciam tão nítidas e tão incómodas que não resistiam à luz soalheira da transparência. E o meu instinto também me dizia que eu estava centrado no trilho da verdade. Porém, a dúvida só se manteve até ouvir directamente das filhas e genros de Baptista de Sousa a confirmação das suas convicções ideológicas e da sua animosidade ao antigo Regime.

O nosso “Engenheiro Humano”, o ser espiritual, uno e indivisível, é que está acima das conjecturas e especulações de quem, como eu, resolveu desenterrar da poeira dos arquivos o registo das coisas efémeras. Agora tudo repousa na memória e esta, felizmente, tem registos indeléveis. A “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” regista para a posteridade a notável figura do homem da ciência médica.




Cabo Verde > Hospital Baptista de Sousa em Mindelo, S. Vicente. Foto colhida na Net.


O “Hospital Baptista de Sousa”, inaugurado em S. Vicente pelo governo de Cabo Verde independente, é uma justa homenagem do povo cabo-verdiano, ligando-o para todo o sempre ao lugar onde salvou muitas vidas humanas. A morna “Engenheiro Humano”, singela expressão poética da gratidão cabo-verdiana, estou crente de que jamais sairá do nosso repertório musical e com ela a sua memória permanecerá sempre viva na população do Mindelo. E, por último, refira-se a rua com o seu nome, a rua José Baptista de Sousa, situada entre a rua Professor Santos Lucas e a avenida do Uruguaio, em Lisboa. Uma justiça que foi feita, segundo penso, pela toponímia portuguesa depois do 25 de Abril de 1974. A toponímia da liberdade.

Tomar, 30 de Novembro de 2012

Adriano Miranda Lima

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 Nota de AML:

(3) "O cirê [espécie de tabaco para introduzir na boca]  custa-me 3 tostões, mas para o iate do senhor Doutor dou 10 mil réis."

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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)


Lisboa > Hospital Militar Principal > 1968 > "Rigoroso", diz hoje o Armando Pires, na altura um aplicado "estudante" de enfermagem…


Foto (e legenda): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.


1. Segundo poste da série, dfe acordo com o texto enviado em 3 do corrente pelo Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)

Meu Caro Luís Graça, Camarada:

Com o atraso que as circunstâncias impuseram, mas que a atempada justificação há-de ter relevado, envio o segundo texto da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Com este relato, permite-me que queira homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Pimenta, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.


2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre. 


“…poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.” 


Carlos Vinhal, em comentário ao P4778 [, poste de 4 de agosto de 2009, em que foi apresentado à Tabanca Grande]


- Então doutor, o puto safa-se?

Não me respondeu. Limitou-se a olhar-me assim como quem diz “vamos ver”, e a dizer-me com um sorriso benevolente:
- Vá lá dormir que você está com cara de quem precisa de descansar.

Voltei-me e dei de caras com a mulher mandinga, sentada junto à porta da enfermaria. O cansaço deixara-lhe os olhos raiados de sangue, o rosto era todo ele a máscara do desespero. Só agora reparava que nunca lhe vira, em toda a noite, verter uma lágrima. Parecia perguntar-me, “onde está o meu filho?”, “vais-te embora e deixa-lo ficar aqui?”, “não me dizes nada?”, e eu procurei dizer sem saber o que dizer. Com um sorriso, talvez meio idiota talvez meio confiante, pedi-lhe que tivesse calma, que o filho estava vivo e que os doutores iam tratar dele para que o pudesse levar de volta a casa.

A mulher mandinga não percebeu uma palavra do que lhe disse mas deixei alguém para lhe traduzir.

Fora uma longa e terrível noite, aquela porque passámos.

Saí do Hospital Civil de Bissau, rua fora em direcção ao Grande Hotel onde o Santos, o furriel vagomestre que ficara a tratar dos assuntos do nosso Batalhão, recebera um pedido meu de ali reservar um quarto, sempre que via rádio lhe dissessem que eu vinha à cidade.

O cansaço não permitiu que despisse, sequer, o camuflado.  Deixei-me cair sobre a cama desfrutando da tremenda paz interior que sentia.

Conseguimos!... Saíra de Lisboa lançando a mim próprio um desafio. Não deixar que se perdesse uma vida até à chegada do socorro. Desafio tonto, arriscado e insensato, sem dúvida, mas resultado da brutal bofetada que a minha consciência levara, num certo fim de tarde, no Hospital Militar Principal.

Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.

Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.

Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.

Assim, longe da vista,  Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.

Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.

Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.

Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era,  levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3ª e 5ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.

Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?

Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.

À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.

Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.

E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.

Acabara o meu turno de entrar de serviço às urgências, ali pelas seis da tarde, quando chega, de ambulância, um jovem cadete da Academia Militar. Foi-lhe diagnosticada uma peritonite aguda e enviado de imediato para o bloco operatório. O sargento-enfermeiro de dia recebeu ordens do médico cirurgião para preparar os estagiários, afim de seguirem a intervenção.

Começa a cirurgia e nós a vermos. Subitamente, através daquela abertura que fizera no abdómen do doente, o médico retira algo com mão, olha para mim, que a curiosidade levara a ficar à frente, e pergunta:
- O que é isto?

O puto ignorante mas atrevido que eu era, responde sem balbuciar:
- É o fígado, senhor doutor.

Julguei perceber-lhe um esgar por detrás da máscara ao mesmo tempo que o ouvi gritar para não sei quem.
- Tirem-me imediatamente daqui estes gajos.

Eramos quatro estagiários. Fomos levados para um gabinete onde permanecemos, possuídos de um terror tal que nos impedia, sequer, de trocar uma palavra que fosse. Até que, uma eternidade depois, dentro de uma bata de um branco imaculado, onde o negro e dourado dos galões de major ganhavam ainda mais peso, chegou o cirurgião.

De pé e silêncio. Os traços tensos do seu rosto não deixavam margem para duvidar do que ali o levava.  O que nos disse sobre a nossa irresponsabilidade, só eu sei.  Enquanto perguntava se sabíamos o que de nós esperavam milhares de homens lá na guerra, procurava o adjectivo capaz de melhor ferir a nossa consciência.
- Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele?  Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?

Não perguntei, não soube e ainda não sei, se os meus três camaradas ali presentes eram tão ignorantes como eu ou se apenas levaram uma enorme piçada por minha culpa.  Sei que aquilo me deixou de rastos. Eu não sabia se alguma vez iria para o mato, mas aquelas palavras, tão duras, acabaram por fazer de mim um enfermeiro militar. Os meses seguintes passei-os de enfermaria em enfermaria, a ver, a perguntar e a aprender.

Até que chegou Setembro de 68. Foi-me entregue uma guia de marcha para Chaves, onde iria integrar um Batalhão de Caçadores com destino à Guiné. Foi nesse mesmo dia que me desafiei:
- Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.

Desafio tonto, arriscado e insensato. Sem dúvida.  Mas eu, aos vinte anos, queria lá saber disso.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 9 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8459: (Ex)citações (142): Em defesa do Hospital Militar Principal (Armando Pires, ex-Fur Mil Enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)

  1.  Comentário, de hoje,  do Armando Pires ao Poste P8455 (*) [ O nosso camarada Armando Pires foi Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70]


Conheci o Hospital Militar Principal, à Estrela, e o Anexo, na Rua de Artilharia Um, a Campolide, em dois momentos diferentes da minha carreira militar: primeiro como internado (Março a Maio de 67) e a seguir como enfermeiro (Junho/67 a Outubro/68).

 Em Outubro iniciei a formação do Batalhão  [BCAÇ 2861] e em Fevereiro parti para a Guiné. 

Vamos ao Hospital. 

(i) A Estrela [HMP], após o início da guerra, foi equipada  com o que de melhor havia e nela trabalhava obrigatoriamente a nata da classe médica portuguesa. 

(ii) O Anexo de Campolide funcionava como centro de recuperação para os mutilados, para os necessitados de apoio psiquiátrico e psicológico, também como linha de apoio a várias especialidades médicas da chamada "medicina geral", e ainda como "depósito de feridos ou doentes de guerra" em regime ambulatório PORQUE ERA PRECISO CRIAR VAGAS PARA OS CASOS MAIS GRAVES NO HOSPITAL PRINCIPAL. 

Sim, têm razão quase todos os comentários que aqui foram produzidos sobre o Anexo. Decrépito, sem dignididade hospitalar, refeitório de miserável qualidade alimentar e roupas militares próximo da indigência humana. 

Mas, atenção, o chamado serviço 6, no topo norte do Anexo, onde eram recebidos para convalescênça os mutilados, era um lugar à parte. DIGNO. E já agora o pessoal. Por favor, não confundir os militares que ali eram colocados em serviço de linha com o pessoal médico e enfermeiros.

Sim, de acordo, o Director era uma besta! 

E já agora, nada de exageros. Ali não eram despejados cadávares e feridos. Os mortos tinham uma capela enorme para os manter em ambiente de dignidade antes dos funerais. Os feridos iam sempre, em primeiro lugar, ao Hospital Principal. 

Muito, mas muito, haveria para dizer. Mas este é apenas o espaço de comentário e pareceu-me haver aqui algum exagero e alguma injustiça. Só isso. As minhas desculpas e o meu abraço camarada.

Armando Pires (**)
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Notas do editor:


(*) Vd.poste de 21 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8455: Memória dos lugares (156): Texas, o anexo do Hospital Militar Principal, na Rua da Artilharia Um, em Lisboa (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / António Tavares)

terça-feira, 21 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8455: Memória dos lugares (156): Texas, o anexo do Hospital Militar Principal, na Rua da Artilharia Um, em Lisboa (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / António Tavares)


Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > O Carlos Filipe, radiomontador, da CCS/BCAÇ    (Galomaro, 1972/74)  esteve internado 32 dias em Bissau, antes de ser evacuado para o Hospital Militar da Estrela em Lisboa, onde esteve 173 dias. Com hepatite C... (Embora luta contra outra doença, não infectiosa, mas não menos tramada...Daqui vai, para ele, um abraço camarigo de toda a Tabanca Grande, dando-lhe coragem e esperança).


Houve homens, camaradas nossos, como Carlos Rios, que lá passaram anos, por estes sítios, alguns tenebrosos como o Texas... Esperemos que nos cheguem, ao blogue, mais testemunhos destas dolorosas estadias no back office da guerra... Em relação ao Hospital Militar Principal, em Lisboa, na Estrela, quantos anexos afinal havia ? Campolide, Artilharia Um, Graça (*)...

Foto © Juvenal Amado(2008). Todos os direitos reservados.



1. Excertos de mensagens e comentários sobre o famigerado Anexo Texas, do Hospital Militar Principal (Estrela), sito na Rua Artilharia Um (**)... Tudo começou com o António Santos a contar como foi parar ao HMP, para fazer caixões de pinho, enquanto não o mandavam para a Guiné:


Carlos Rio
Ex-Furriel Mil
CCAÇ 1420
(Fulacunda, 1965/67)

(…) Fui dos que passou pelas instalações e sofri as piores atribulações [n]aquelas miseráveis e desumanas instalações, principalmente o anexo (Texas), do Hospital Militar Principal.

Ali passei seis anos com imensas operações, vindo a ficar estropiado, de 1966 a 72. O director era um déspota bem como a maioria do pessoal ligado àquilo que deveria ser o lenitivo para as misérias que nos atingiam mas que afinal se vinha a transformar como que um castigo por termos sido feridos. De tal maneira que já no Depósito de Indisponíveis, onde se encontrava o pessoal em tratamentos ambulatórios, termos sido metidos nas escalas de serviço, como se os doentes em tratamento estivessem numa Unidade.

Imagina um Oficial de dia quase maneta e eu próprio, já coxo, a fazer o içar da bandeira na porta de armas, vindo ao exterior a comandar a guarda e dar ordens militares para o caso. Fui um espectáculo macabro, eu só consigo andar com uma bengala. Calcula o ridículo.
No decrépito anexo não havia um espaço onde pudessemos ter um bocadinho de lazer, havendo apenas uma horrorosa cantina pequena para largas centenas de todo o tipo de doentes, cegos, amputados, loucos, etc...tudo á mistura. Não podiamos estar nas camas depois das nove horas nem sair para o exterior antes das catorze, exceptuando os acamados. Era-nos sugerido, quase obrigado, que não andássemos fardados. Enfim atribulações e peripécias dos pobres que eram arrancados às familias para servir alguém. 


Rogério Cardoso 
Ex-Fur Mil 
Cart 643, Águias Negras
(Bissorã, 1964/66)


(…) Também eu passei as passas do Algarve no chamado Texas, [na Rua da Artilharia 1]. Estive lá de Fevereiro de 1966 a meados de 1967.

De facto o Director era uma pessoa intragável, assim como muito do pessoal lá destacado. Voltando ao director, assisti uma vez, ele dar uma bofetada num 2º Sarg Enf por ele não ter chamado á atenção de um Fur Mil que estava deitado em cima da cama, pelo meio da manhã. O homem até chorou, pela humilhação sofrida. (…)

 (…) Estou lembrado de mais uma cena humilhante. Nós, sargentos, instalados no anexo Texas, frequentemente tíonhamos consultas no HMP Estrela, estou a falar no ano 1966. A deslocação era feita numa carrinha Mercedes, salvo erro de 18 lugares. Até aqui tudo bem, mas a nossa vestimenta era pior do que a de um recluso. Calças de cotim com dezenas de carimbos com uma estrela, com os dizeres HMP, camisa branca sem colarinho tipo moço de estrebaria, também com carimbos, casaco cinzento de golas largas (capote cortado a 3/4) e barrete branco de algodão, igual aos que os velhotes usavam para dormir no século XIX, além de sapatilhas brancas.A nossa vestimenta era mais do que ridícula, os reclusos eram uns "pipis" comparando. Era o tratamento a que os combatentes que tiveram azar, eram sujeitos. (…) 


Jorge Picado
Ex-Cap Mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885,
 Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72


(...) No Hospital, Anexo ou Texas, existente na Rua de Artilharia 1, tive as primeiras visões horríveis, do que me poderia esperar, qualquer que fosse o TO que me saísse na rifa. Isto aconteceu talvez nos finais de Setembro de 1969, quando estava a frequentar o CPC em Mafra. Aí funcionavam, não sei se outras, as consultas de Ortopedia, para onde fui encaminhado pelo Oficial Médico Mil da EPI, face aos problemas da coluna lombar de que já padecia.

Para chegar à zona das consultas tinha de percorrer vários corredores (ou seria só um muito comprido, mas dividido por várias portas?), atulhados com macas ocupadas por estropiados brancos e negros, meio ao "Deus dará". Da primeira vez fiquei meio "zonzo" com aquelas cenas e nas seguintes procurava chegar rapidamente ao local olhando par o ar...Quanto ao Cap Med do QP, chefe da Ortopedia, fiquei com as piores recordações, respondendo-lhe "torto" e chamando-lhe a atenção que não estava a falar para um analfabeto, mas sim para
um licenciado como ele, mas isso são outros contos. (...)






António Tavares
Ex-Fur Mil 
CCS/BCAÇ 2912
(Galomaro, 1970/72)

 Em Janeiro de 1969 estive internado no anexo do HMPrincipal, R Artilharia 1, onde vi e assisti a episódios sem classificação...Impossível a sua descrição.
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Notas do editor:


(*) Último poste da série > 8 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8243: Memória dos lugares (155): Bedanda 1972/73 - A Mulher, Menina, Bajuda de Bedanda (2) (António Teixeira)

(**) 18 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8438: (Ex)citações (141): Hospital Militar Principal: Sofri as piores atribulações naquelas miseráveis e desumanas instalações, principalmente o anexo, o Texas (Carlos Rios, ex-Fur Mil, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67)

sábado, 18 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8438: (Ex)citações (141): Hospital Militar Principal: Sofri as piores atribulações naquelas miseráveis e desumanas instalações, principalmente o anexo, o Texas (Carlos Rios, ex-Fur Mil, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67)

1. Comentário, com data de 16 do corrente,  do nosso leitor (e ex-camarada de armas no TO da Guiné) Carlos Rios, ao poste P3496 (*) [Não temos nenhuma foto deste camarada, que não pertence, mas poderá vir a pertencer, se ele assim o desejar, à nossa Tabanca Grande; em contrapartida publicamos, á direita, a foto de um camarada dele, e ao que parece, seu amigo, da CCAÇ 1420, o nosso querido camarigo Rui Alexandrino Ferreira, a quem saudamos e de quem não temos tido notícias boas da sua saúde; infelizmente, ele falhou este ano o nosso VI Encontro]:

Caro Camarada! [, Referência ao António Santos, autor do poste]:


É gratificante poder ir ao encontro das preocupações que demonstras. Aqui deixo o meu testemunho: fui dos que passou pelas instalações e sofri as piores atribulações que aquelas miseráveis e desumanas instalações, principalmente o anexo (Texas),  tinham. 


Ali passei seis anos com imensas operações, vindo a ficar estropiado de 66 a 72. O director era um déspota bem como a maioria do pessoal ligado àquilo que deveria ser o lenitivo para as miséris que nos atingiam mas que afinal se vinha a transformar como que um castigo por termos sido feridos. De tal maneira que já no Depósito de Indisponíveis, onde se encontrava o pessoal em tratamentos ambulatórios,  termos sido metidos nas escalas de serviço, como se os doentes em tratamento estivessem numa Unidade. 


Imagina um Oficial de dia quase maneta e eu próprio, já coxo,  a fazer o içar da bandeira na porta de armas, vindo ao exterior a comandar a guarda e dar ordens militares para o caso. Fui  um espectáculo macabro, eu só consigo andar com uma bengala. Calcula o ridículo. 


No decrépito anexo não havia um espaço onde pudessemos ter um bocadinho de lazer, havendo apenas uma horrorosa cantina pequena para largas centenas de todo o tipo de doentes, cegos, amputados, loucos, etc...tudo á mistura. Não podiamos estar nas camas depois das nove horas nem sair para o exterior antes das catorze, exceptuando os acamados. Era-nos sugerido, quase obrigado,  que não andássemos fardados. Enfim atribulações e peripécias dos pobres que eram arrancados às familias para servir alguém.


Carlos Rios (**)
Ex-Furriel Mil 
CCAÇ 1420
(Fulacunda, 1965/67)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3496: Hospital Militar Principal: Fazendo mini-caixões antes de ser mobilizado (António Santos)

(**) O nosso querido camarigo Manuel Joaquim refere-se ao Carlos Rios neste comentário ao poste de 26 de Abril de 2011  > Guiné 63/74 - P8166: 7º aniversário do nosso blogue: 23 de Abril de 2011 (21): Saúdo o núcleo permanente de colaboradores que vem mantendo absolutamente impecável este grande projecto (Rui Ferreira)


(...) Apoiado! Um grande abraço, Rui A. Ferreira, o "verdadeiro" comandante da CCaç 1420 no dizer de um seu ex-fur mil, o meu amigo (e teu) Carlos Rios, já que o comandante nominal não seria mais que isso, nominal. Força,camarada! Manuel Joaquim ( ex-fur mil CCaç 1419)  (...) 
Também no portal Ultramar Terraweb há uma referência ao Carlos [Luís Martins] Rios, Fur Mil Inf, da CCAÇ 1420 / BCAÇ 1857, "Cruz de Guerra, 1.ª Classe,  OE  12/IIIª/67, tomo IV, pág. 260".

(***) Último poste da série > 15 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8426: (Ex)citações (140): Vejo que os jovens estão atentos, pelo menos são mais jovens do que eu (António Dâmaso)