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terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23922: Notas de leitura (1537): Germano Almeida, prémio Camões (2018), filho de pai português e mãe cabo-verdiana, explica a origem mítica de Cabo Verde: uma criação divina, não por maldição... por distração (Luís Graça)


Cabo Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 11h11 >  Baía do Porto Grande e Monte Cara, ao fundo.

Foto (e legenda): © João Graça (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É publicamente conhecido o apoio político do escritor (e advogado) Germano Almeida ao MpD (Movimento para a Democracia), em 1991. Nas primeiras eleições livres, multipartidárias, foi eleito deputado da Assembleia Nacional. Depois foi nomeado procurador geral da República. Mas, passados vinte e tal anos, aceitaria, em 202o, ser mandatário do atual Presidente de República, José Maria Neves, sob a bandeira do PAICV.

Cabo Verde, um dos mais pequenos países do mundo, mas também o "país da morabeza", tem destas particularidades, e a sua vida político-partidária rege-se por padrões muito próprios, com os dois partidos alternando no poder. Não sabemos que marcas deixaram os 15 anos de regime do PAIGC (depois PAIVC), e nomeadamente nas relações pessoais e sociais.  Eu tinha amigos de um lado e do outro, mas nunca aprofundei o assunto. 

Sabemos isso, sim,  que o PAIGC (depois o PAICV) não teve, originalmente, em Cabo Verde, uma relação fácil com os intelectuais, e em especial os escritores.  Veja-se com como maltratou o Baltazar Lopes (1907-1998), o decano da literatura cabo-verdiano, um dos fundadores da revista "Claridade" (1936) e o o criador do fundacional "Chiquinhos" (1947) , que eu ainda hoje leio e releio.  A desconfiança também era mútua: o escritor e reitor do liceu Gil Eanes não gostava de Amílcar Cabral nem do seu PAIGC.(*)

De qualquer modo, em 1991, o Germano Almeida ainda não era a figura, nacional e consensual, que é hoje.  Nessa altura estava longe de ser um autor consagrado. O Prémio Camões ser-lhe-á tribuído, pelo conjunto da sua obre, em 2018. 

Como é sabido, o Prémio Camões é o maior galardão literário instituído nos países de expressão lusófonaa, criado justamente em 1988 pelos Governos de Portugal e do Brasil com vista a estreitar os laços culturais entre os vários países lusófonos e enriquecer o património literário e cultural da Língua Portuguesa. O valor monetário do prémio é presentemente de  cem mil euros, um dos mais elevados a nível dos prémios literários mundiais.
 
Mas nos anos 90, eu já li, se bem que por alto, as crónicas que o Germano Almeida publicava no jornal "Público". Dessas crónicas ele selecionou uma meia centena, e publicou, em 1998, as"Estórias Contadas", e que o consagraram como um exímio "contador de estórias". Mas é  também um bom "novelista": faremos referência, noutra altura, às "Estórias de Dentro de Casa" (1996), sem esquecer "A Ilha Fantástica" (

2. Fiquei fã do escritor pela maneira, muito pessoal, única, como ele fala de si, da "identidade cabo-verdiana", do quotidianu, e dos outros (incluindo, nós, os portugueses, os "mandrongos"...) . As três primeiras estórias do livro ("Cabo Verde e o centro do mundo", pág. 11; "Uma forma de identidade africana",  pág. 17; e "Uma perspectiva da identidade cabo-verdiana", pág. 25).

Gosto de um escritor que é capaz de saltar uma gargalhada, sem cair na alarvice, e dizer mal de si próprio e da sua gente. Usand0 de preferênica o humor subtil, a ironia fina, o registo pícaro... (Recorde-se que o escritor é filho de pai português e mãe cabo-verdiana

Veja-se, por exemplo, logo nesta primeira estória em que ele regresse às suas memórias de infância na ilha da Boavista e a propósito do epitáfio de uma jovem inglesa, morta aos 20 anos devido à epidemia de febre amarela, em 1845, a reelaboração da versão mítica sobre a origem do arquipélago natal: desabitadas até 1460, data da chegada dos colonizadores lusitanos àquele território, a existência das ilhas de Cabo Verde  só poderia ser atribuída a   uma simples distração do Criador (pp. 13/14):

(...) Conta-se que Deus já tinha acabado de fazer o mundo e distribuído as riquezas que deveriam alimentar os seus filhos que nele ia colocando, negros na África, brancos na Europa, amarelos nas Ásias e Américas, quando reparou nas suas mãos, ainda sujas de restos de barro. Sacudiu-se ao acaso no espaço, mas, pouco depois, viu pequenas ilhas brotando algures perto da África. (....)

Mas faltava gente e riqueza para para que essas fossem algum dia... terra de gente... O que Deus não contava é que os portugueses acabassem um dia por  aportar às ilhas e transformá-las em entreposto de escravos. Mais tarde,  o negócio deixou de ser rendoso, as ilhas foram entregues a donatários, mas já povoadas pelas mais desvairada gentes, de África e de Portugal... A a pequena grande distração divina  (mais do que uma maldição) confirmou-se: Cabo Verde continuou condenada à sua sorte, ao seu isolamemnto, às secas periódicas, à fome...

E aqui o escrit0r é subtilmente irónico, parodiando a teoria do luso-tropicalismo do Gilberto Freyre (1900-1987),  inicialmente rejeitada e só tardiamente adotada  pelo Estado Novo:

(...) Mas também é muito natural que Deus tivesse tido em vista um outro projeto bem mais complexo e de que de imediato não quis revelar aos seus colaboradores: criara um loboratório experimental de miscigenação de raças e culturas e ver o que dessa miscelânea poderia sair. E saiu o homem cabo-verdiano.  (...) (pág. 15).

Um país que conta, na diáspora com mais do dobro da sua população interna, poderia facilmente sofrer "efeitos erosivos catastróficos a nível cultural e de identidade". Mas, não, o cabo-verdiano continua  carregando consigo a sua cultura, vivendo nas setes partidas a cachupa, o grogue,  a morna" (pág,  15), isso explica, só por si, que a ideia (tonta) do projeto político de unidade  Guiné-Bissau / Cabo Verde, propugnada por Amílcar  Cabral, estava desde logo condenada ao fracasso...


3. Germano Almeida nasceu na ilha da Boa Vista em 1945. Fez o serviço militar em Angola, 1965, em Maquela do Zombo, província do Uíge,  foi lá que começou a escrever "A Ilha Fantástica" (1994), com memórias da sua infância. Licenciou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa, graças a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, Vive em São Vicente, no Mindelo, onde, desde 1979, exerce a profissão de advogado.

Publicou as primeiras estórias na revista "Ponto & Vírgula", assinadas com o pseudónimo de Romualdo Cruz. Essas estórias foram publicadas em 1994 com o título "A Ilha Fantástica", que, juntamente com "A Família Trago" (1998) recriam os anos de infância e o ambiente social e familiar na ilha da Boa Vista.

Mas o seu primeiro romance foi "O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo" (1989) que marca a" rutura com os tradicionais temas cabo-verdianos." Segundo Ana Cordeiro, responsável pela nota biográfica que vem na badana dos seus livros, "O Meu Poeta" (1990), Estórias de Dentro de Casa (1996), "A Morte do Meu Poeta" (1998", "As Memórias de Um Espírito" (2001) e "O Mar na Lajinha" (2004) formam o que se pode considerar "o ciclo mindelense da obra do autor".

Tem obras publicadas em mais de uma dúzia de países estrangeiros. O seu editor em Portugal é a editorial Caminho (Grupo Leya). (**)

(Continua)
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22679: Notas de leitura (1391): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (3) (Mário Beja Santos)

(**) Último poste da série > 26 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"


1. T
emos aqui falado pouco sobre Cabo Verde (467 referências), mesmo assim mais do que sobre Amílcar Cabral (389), muito pouco sobre o PAICV (7 referências) e muitíssimo mais sobre o PAIGC (1176).

 Embora não seja essa a nossa vocação enquanto blogue de antigos combatentes da Guiné (1961/74), faltam-nos depoimentos sobre os 15 anos em que o PAIGC (e depois o PAICV, mudança de sigla em janeiro de 1981) governou sozinho as ilhas, com recurso aos clássicos métodos totalitários (polícia política, censura, partido único, instrumentralziação das Forças Armadas, etc.). 

Muitos cabo-verdianos são extremamente críticos desse período totalitário, de má memória. Um dos homens que lutou pela democratização do país e pelo fim da hegemonia do PAIGC (e depois PAICV) é Daniel Santos.  

Foi jornalista no "Expresso das Ilhas" e tem-se agora dedicado à sua carreira académica. Em 2014 publicou "Amílcar Cabral: um outro olhar"(Lisboa, Chiado Editora, 2014, 604 pp), livro de que o Beja Santos fez, na devida altura, um detalhada recensão crítica (*). 


Antologia >  Expresso das Ilhas,15 de setembro de 2018 > 


Amílcar Cabral nasceu, faz esta quarta-feira, 94 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou por ser assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.

Daniel dos Santos, professor universitário, politólogo e investigador é o autor do último livro biográfico sobre o político natural de Bafatá: “Amílcar Cabral – Um outro olhar”, uma obra de investigação escrita ao longo de vários anos e lançada em 2014 e que procura desfazer as alegorias e fazer conhecer o homem, com os defeitos e as virtudes. É desse Amílcar Cabral que falamos nesta entrevista ao Expresso das Ilhas.


Porquê escrever sobre Amílcar Cabral?

Uma figura pública como Amílcar Cabral desperta a atenção de qualquer jornalista, investigador, politólogo, porque é um homem de múltipla dimensão que pode inspirar, nuns casos, desinspirar noutros, mas em comum os dois pontos de vista têm o interesse académico que a sua obra me suscitou desde há muitos anos. (...) 

É neste campo que me interessei, como académico, como investigador e também como cabo-verdiano por alguém cuja vida esteve ligada a Cabo Verde e teve, e tem, uma influência enorme nos cabo-verdianos.

E Cabo Verde já despertou realmente para o interesse sobre essa figura?


Em Cabo Verde ainda não despertamos bem para a importância de estudar Amílcar Cabral. Celebra-se, festeja-se, mas não se estuda. Não numa perspetiva de o julgar, mas na perspetiva de dar a conhecer o pensamento dele, o que fez de bom, o que fez de mau, no fundo, historiar numa perspetiva séria, independente e imparcial aquilo que ele fez e aquilo que ele não fez. Também me moveu a vontade de partilhar com os cabo-verdianos todo o arquivo, direto e indireto, que existe nos espólios portugueses.  (...) 

Quais foram as principais dificuldades enfrentadas?

Um mar de dificuldades. Por exemplo, para escrever este livro concentrei o meu quartel-general em minha casa, deslocando-me muitas vezes aos arquivos portugueses, quer os civis quer os militares. Não pedi apoio ao Estado e as dificuldades são as normais para quem queira estudar uma personalidade com a dimensão de Amílcar Cabral. Há sonegação de informação, há escassez de dados, há distorção de muitos documentos, há deturpação de alguns originais de Amílcar Cabral.  (...)

Escreveu que se fala muito do líder do PAIGC através de abstrações, de lendas, de alegorias, que muitas vezes escondem outros desígnios, principalmente o do poder. Porque há esta mistificação, em vez de uma análise factual que mostre que havia esse interesse pelo poder?

Obviamente que havia o interesse pelo poder. O PAIGC e Amílcar Cabral perceberam bem cedo que não se constrói uma organização sem mitos, sem fantasias. Agora, às vezes há a tentação, sobretudo em Cabo Verde e também na Guiné-Bissau, de esconder muitas verdades através de mitos. Porque não se contam histórias reais em vez de continuarmos com mitos hoje completamente desfeitos, sem razão de existência, que se no passado tiveram algum efeito agora já não têm, mas que escondem o desígnio de perpetuar o poder. O mais importante é desconstruir essas narrativas que não ajudam a história. 

(...)  À volta de Amílcar Cabral e do PAIGC há muitos mitos. No passado foram importantes, mas agora já não o são.

Por exemplo, o próprio ano de fundação do partido.

São vários: os acontecimentos de Pidjiguiti, o ano da fundação do PAIGC, o encontro com o Papa, a alegada participação de Amílcar Cabral na fundação do MPLA. Toda a aura à volta de Amílcar Cabral fez-se também de mitos, ele próprio ajudou a construí-la porque fazia também culto da personalidade. Fabricaram-se mitos para construir consciências, para produzir consentimento, com a finalidade de obter a adesão das pessoas ao ideário do partido que os promove. 

O PAIGC tinha um problema existencial grave, porque foi um dos últimos grupos independentistas que surgiram em Dakar. Já havia o MLG, havia a União Popular da Guiné, havia a UNGP, enfim, Dakar era o berço do nacionalismo guineense, mais do que do cabo-verdiano, e o PAIGC foi o último a ser criado e Amílcar Cabral foi um dos últimos a chegar. Portanto, havia um problema de anterioridade. O que faz Cabral? 

Cria o mito que o PAIGC tinha sido criado em 1956, quando na verdade tudo aponta para que ele nem estivesse na Guiné-Bissau nessa altura. Esses dados ainda não possuo, mas estou a continuar a busca para saber se, de facto, ele esteve na Guiné-Bissau na data a que se refere. Duvido, porque ando a consultar listas de navios, de pessoas que viajaram pela Guiné e ele não aparece. Agora, não tenho ainda certeza. Naquela altura viajava-se pouco de avião e Amílcar Cabral gostava muito de viajar de barco. Voltando à questão, esses mitos são como um chapéu, servem para defender uma criatura fictícia que se cria à volta de mitos. Toda a aura que se cria tem por objetivo proteger o homem, até dos pecados. Amílcar Cabral, profundo conhecedor da filosofia grega, basta ler os livros dele para ver que dominava a filosofia grega, percebeu a dimensão da mitologia na construção tanto do PAIGC como da sua própria imagem.

No fundo aprendeu com os melhores, com os próprios criadores das grandes mitologias.

Aprendeu com os melhores, claro. Nada melhor que ler os clássicos gregos, leia-se Amílcar Cabral, e ver-se-á que o homem teve engenho, arte e talento de construir à volta dele um conjunto de mitos, de alegorias, que o perpetuaram como o melhor dos melhores filhos da terra. Trata-se de uma conceção elitista e aristocrática que só se enquadra em movimentos totalitários como foi o PAIGC,

Referiu também da questão do Papa, que é uma das manobras políticas de Amílcar Cabral mais faladas, o que aconteceu afinal?

(...) Quando chegam a Roma, Amílcar Cabral dá uma conferência de imprensa, na véspera do encontro, na qual dizia que a visita seria um fracasso se o Papa não lhes desse uma audiência. Fizeram várias tentativas para ter essa audiência, que não passaram disso mesmo – de tentativas, e tecnicamente falando, o Papa não os recebeu em audiência. 

Sabendo isso, e pelo que me contou Tomás Medeiros, Amílcar Cabral engendra uma saída espetacular e airosa. Como o Papa recebia aos domingos os fiéis, eles puseram-se na fila como qualquer crente e chegaram lá a apresentaram-se ao Papa. O encontro não durou mais de sete ou oito minutos, entregaram ao Papa um dossier e deram logo uma conferência de imprensa que teve uma repercussão mundial. 

O governo português demorou a perceber o alcance do problema, demorou a responder e quando o fez, fê-lo de forma errada. Foi tentar pedir satisfações ao Papa, que nem sabia quem estava a receber. Aliás, ele diz isso, que recebeu um conjunto de crentes, que estavam na fila como os outros e aos quais não podia recusar receber. No fim, qual é a conclusão que se tira? Portugal transformou um acontecimento vulgar num incidente diplomático. (,,,)

(...)  Curioso que não há nenhuma foto para testemunhar o momento, nenhuma fotografia que ilustre aquela audiência. A única foto que existe mostra os três dirigentes a subir as escadas para irem colocar-se na fila dos fiéis. Portanto, o encontro, tecnicamente falando, não foi uma audiência, é mais um mito que se perpetua e que agora apenas serve interesses particulares. (...)

 
Ainda por falar em mitos, e é uma das questões que desconstrói também na sua obra, é que a ideia da independência da Guiné e Cabo Verde não nasceu com Cabral.

Tudo o que Cabral queria ser era um engenheiro e um poeta, a vida é que lhe trocou as voltas. E ele disse-o em várias intervenções, que o seu sonho era ser engenheiro para ajudar a mãe e um poeta.

 Quando ele chega à política, já era homem feito e sobretudo depois de ir a Angola. Foi em Angola que ele conviveu com nacionalistas convictos, com alta formação marxista e com quem aprendeu muito. Agora, a ideia da independência da Guiné-Bissau é antiga. Os povos guineenses sempre se opuseram fortemente à presença portuguesa. Por algum motivo, as guerras de pacificação duraram muitos anos, devido às revoltas permanentes na Guiné. 

E nessas guerras Portugal conheceu a maior derrota militar na Guiné-Bissau, não foi na guerra da independência. Quando Amílcar Cabral chega à Guiné, a ideia de independência era já muito grande e já tinha sido difundida largamente por outros movimentos muito antes da existência do PAIGC. Em Cabo Verde tivemos muitos intelectuais que, muito antes de Cabral, defendiam a independência de Cabo Verde perante o estado de abandono a que as autoridades portuguesas votavam as ilhas. É uma ideia muito anterior a Amílcar Cabral, só que Amílcar Cabral elegeu outras formas de levar avante a ideia da independência. Deu-lhe outra roupagem. 

 Quando estava a investigar, encontrou algo que o tenha surpreendido de forma particular?

Muitas coisas. Cruzando fontes, descobrimos coisas que Amílcar Cabral escreveu e coisas que o irmão, Luís Cabral escreveu que não batem certo, e isso chama a atenção de qualquer pessoa. Desde a transformação do PAI [Partido Africano da Independência, anterior ao PAIGC] ao PAIGC. Aristides Pereira dá uma versão, Amílcar Cabral dá outra e Luís Cabral apresenta uma terceira versão. 

O próprio processo de formação do PAIGC, dito em 56, é um mar de contradições, uns dizem que Amílcar Cabral apresentou o projeto de estatutos, outros dizem que não houve projeto de estatutos, apontam-se horas diferentes para o início da reunião e não há um registo factual do acontecimento, não há. Até o nome das pessoas presentes naquela reunião não bate certo. Há pessoas que dizem que são cinco, Amílcar Cabral num manuscrito fala em 15 fundadores do PAIGC, enfim muitas coisas não batiam certo. Sobre a morte de Amílcar Cabral, a quantidade de versões contraditórias que existem. Os guineenses dizem uma coisa, os cabo-verdianos dizem outra, a PIDE diz outras, as autoridades portuguesas têm outras versões.

No seu livro diz que o responsável foi o Sékou Touré [Ahmed Sékou Touré, líder político africano e presidente da República da Guiné de 1958 até sua morte em 1984].

Isso já nem se discute. Todas as fontes sérias se encaminham nessa direção. 

Voltando atrás, foram todos esses desencontros que me entusiasmaram, que era capaz de dar alguma coisa. E penso que deu alguma coisa (risos), pelo menos deu para escrever um livro, mas há muitas coisas mais a investigar. Por exemplo, a vida de Amílcar Cabral em Cabo Verde. Ao todo, Cabral viveu cá 11 anos, chegou com 10 anos, fez o ensino básico de uma forma relâmpago, em dois anos, depois foi para São Vicente onde estudou 7 anos e voltou à Praia onde trabalhou um ano como aspirante na Imprensa Nacional e foi para Portugal. 

Regressa em 49 de férias e só voltou a Cabo Verde na ida para a Guiné, o navio Império fez uma escala técnica no arquipélago, mas ele nem sequer saiu do barco. Isto para além de outros, o processo de criação do PAIGC, por exemplo, foi duro, duríssimo. Amílcar Cabral viu-se confrontado com problemas muito delicados, uns foram resolvidos de forma pacífica, outros usando a cultura de fuzilamento que o PAIGC criou no seu próprio seio. 

Tudo o que era passível de dissenso não era resolvido em diálogo democrático, era resolvido contra uma parede. Veja-se o próprio assassínio de Amílcar Cabral, o golpe de estado na Guiné-Bissau, todo o processo que se seguiu ao golpe de 1980 e os golpes de estado que se seguiram. Tudo isso é reflexo da vivência do PAIGC. Mais: pouco se sabe o que terá feito Cabral de 1955, ano em que saiu da Guiné por doença, a 1957. A historiografia do PAIGC diz que Cabral foi expulso da Guiné pelo governador Mello Alvim. É falso. É mais um mito. Felizmente, o próprio Luís Cabral encarregou-se de o desconstruir.

Pegando nesse contexto de violência que falou, as ditaduras consequentes à independência são também herança de Cabral?

Obviamente. O PAIGC na Guiné e o PAICV em Cabo Verde reclamam a herança de todo o pensamento de Amílcar Cabral. Da cabeça de Amílcar Cabral saiu a arquitetura ideológica e política para a formatação do Estado de Partido Único em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Isso não apresenta dúvidas a ninguém.

Com Amílcar Cabral ou sem o processo pós-independência 
não seria diferente?

Nada seria diferente. Repare, transpuseram a experiência da guerra na Guiné-Bissau para Cabo Verde. O que aconteceu aqui nada tem de estranho. O grande sonho de Cabral era formar um homem novo. Mas esse projeto do homem novo era culturalmente antítese do homem cabo-verdiano. 

Era um homem novo que só existia nos manuais do PAIGC e na cabeça do Amílcar Cabral e mais ninguém. Tanto mais que esse projeto falhou. Porquê? Porque esse projeto destituía e despojava o homem cabo-verdiano da sua cultura própria. Quando se fala da reafricanização do espírito,  isso é o quê para Cabo Verde? É tão estranho como falar da reeuropaização de Cabo Verde. Porque as bases que construíram Cabo Verde repartem-se pela Europa e por África. O conceito de reafricanização nasceu nas Antilhas, daí foi para Angola e acabou em Lisboa ligado aos demais movimentos de libertação. E a criação desse homem novo situava-se no quadro de um Partido Único, revolucionário e dirigente, no qual esse homem resultava do suicídio de classe em que pensava Amílcar Cabral. Mas nem Amílcar Cabral chegou a suicidar-se como classe, sempre foi um pequeno burguês revolucionário. O homem novo idealizado por Cabral era um projeto totalitário. 

Voltando à questão, o Partido Único após 75 resultou da conceção orgânica e monolítica do Estado e do poder de Amílcar Cabral, isso não é surpresa alguma. É indiscutível. Agora, o problema de Cabo Verde é que se partidarizou a figura de Amílcar Cabral. O PAICV não sabe celebrar Cabral sem o aprisionar. Sem o tornar uma figura partidária. No dia em que perceber isso, Cabral deixará de ser uma figura partidária. Cabral não é uma figura do Estado. As figuras do Estado estão todas estampadas na Constituição.

Ou seja, os cabo-verdianos têm primeiro de ser livres para poderem conhecer melhor Cabral. Ou melhor, têm de pedir a libertação de Cabral para o poderem estudar sem esses espartilhos partidários?

É capaz de ter razão. É uma pergunta profunda (risos). Enquanto estivermos a vender Cabral da forma que o PAICV o faz não se ajuda os cabo-verdianos. 

A primeira coisa a fazer é, de facto, libertar Cabral das muitas amarras e mostrá-lo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Cita-se Cabral por tudo e por nada, inclusive coisas que ele nunca disse. 

Ouço tantas coisas acerca dele, e isso resulta da leitura muito superficial que se faz do pensamento e da obra de Amílcar Cabral, que é muito rica. Não tem grandes novidades, é certo, mas é interessante que seja estudada. Não numa perspetiva de o julgar, mas numa perspetiva de o compreender melhor. 

Mas isso só se faz no dia em que a figura de Cabral for despartidarizada. E quem deve dar o primeiro sinal é o PAICV, que se apoderou da figura quando não o podia fazer. Basta perguntar a qualquer cabo-verdiano, seja de que partido for, por Amílcar Cabral que a resposta vai sempre num sentido: é um herói. Enquanto o PAICV continuar a aprisioná-lo não vamos longe. 

Inclusive, veja que se cria um dia para o recordar: o dia em que foi morto. Para mim, não faz sentido. Quando se mata uma pessoa, e da forma como o mataram, não se celebra esse dia como sendo o do Herói Nacional. Arranja-se outra data. É um dia triste. Quando se fala que não se estuda Cabral, é claro que não se estuda, ninguém tem pachorra de o estudar nesse contexto, só se for obrigado.

Mas mesmo os manuais obrigatórios não apresentam uma figura demasiado partidarizada?

Claro que sim. É sempre apresentado como o melhor dos melhores. Isto não faz sentido em Cabo Verde. Vamos apresentá-lo como homem, que fez coisas boas, que fez coisas más, que tem virtudes e tem defeitos, viveu uma época conturbada, fez o que tinha a fazer, pôr o homem no seu contexto. Tudo o que fez por Cabo Verde fê-lo a pensar nos cabo-verdianos, pelo menos penso que foi essa a intenção, pode não ter dado resultado, como não deram os 15 anos do Partido Único.

 Perguntar-se-á, hoje Cabo Verde é o país de Amílcar Cabral? Penso que Cabo Verde atualmente está nos antípodas daquilo que Cabral sonhou. Cabral sempre sonhou Cabo Verde guiado por um partido único, hoje temos uma democracia. Não chego ao ponto de dizer que Amílcar Cabral é inimigo da democracia, mas não estava nos seus planos a ideia de a implantar. 

Agora, se quisermos recolocar a centralidade de Amílcar Cabral, a primeira coisa a fazer é despartidariza-lo. Porque não é só Amílcar Cabral que entra nesse jogo, há muitos outros cabo-verdianos que deram um contributo enorme para a independência de Cabo Verde, muitos em diversas áreas de atividade que deram um contributo importante muito antes do 25 de Abril. Esses heróis não entram também na categoria social dos melhores filhos? 

Pela minha experiência, da leitura e da investigação que ando a fazer sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido que se discuta Cabral, o PAIGC, o PAICV, o MpD e todos os outros. Não no sentido de os julgar, mas no sentido de dar a conhecer a história.

E quando assim for, provavelmente Cabral será mais falado do que as duas ou três vezes por ano em que isso acontece atualmente?

Certamente. É um papel que as universidades podem representar, mas não sei por que motivo não o fazem. De qualquer forma, julgo importante que se recentre o debate. Vir com mitos, vender a imagem de um homem que não corresponde à verdade, aliás que falsifica a história, é errado. 

Em Cabo Verde é preciso discutir tudo. Não pode haver tabus em relação a nenhum facto político. A história não se faz por partes ou por capítulos. Vamos falar de tudo. Não é para condenar ninguém, é para conhecermos o passado, para melhor projetarmos o futuro e para acabar com o folclore que serve apenas para distorcer factos. E também para alimentar mitos que visam justificar o passado. (**)

[Fonte: Cabo Verde Info... Com a devida vénia, Seleção, revisão e fixação de texto / Negritos nos subtítulos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23535: (Ex)citações (413): o mito da invencibilidade do Batalhão de Comandos da Guiné, quebrado em Cumbamori, segundo a versão do meu irmão mais velho, o sold 'comando' Cissé Candé, da 3ª CCmds Africanos (Cherno Baldé, Bissau)

Guião do Batalhão de Comandos da Guiné (1972/74)


Ficha de unidade: Batalhão de Comandos da Guiné
Identificação: BCmds
Crndt: Maj Cav Cmd João de Almeida Bruno | Maj Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folgues | Maj Inf Cmd Florindo Eugénio Batista Morais
2º Crndt: Cap Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folques | Cap Inf Cmd João Batista Serra | Cap Cav Cmd Carlos Manuel Serpa de Matos Gomes | Cap Art Cmd José Castelo Glória Alves
Início: 2nov72 | Extinção: 7set74

Síntese da Actividade Operacional 

A unidade foi criada, a título provisório, em 2nov72, a fim de integrar as subunidades de Comandos da Metrópole em actuação na Guiné e também as CCmds Africanas, passando a superintender no seu emprego operacional e no seu apoio administrativo e logístico.

Em 1abr73, o BCmds foi criado a título definitivo, tendo a sua organização sido aprovada por despacho de 21fev73 do ministro do Exército.

Desenvolveu intensa actividade operacional, efectuando diversas operações independentes em áreas de intervenção do Comando-Chefe ou em coordenação com os batalhões dos diferentes sectores onde as suas forças foram utilizadas, nomeadamente nas regiões de:

  • Cantanhez (operação "Falcão Dourado", de 15 a 19jan73, e operação "Kangurú Indisposto", de 21 a 23 mar73); 
  • Morés (operação "Topázio Cantante", de 25 a 27jan73); 
  • Changalana-Sara (operação "Esmeralda Negra", de 13 a 16fev73); 
  • Morés e Cubonge (operação "Empresa Titânica'', de 27fev73 a 1mar73); 
  • Samoge-Guidage (operação "Ametista Real", em 20 e 21mai73); 
  • Caboiana (operação "Malaquite Utópica", de 21 a 22jul73 e operação "Gema Opalina", de 24 a 27set73); 
  • Choquernone (operação "Milho Verde/2", de 14 a 17fev74); 
  • Biambifoi (operação "Seara Encantada", de 22 a 26fev74):
  • Canquelifá (operação "Neve Gelada", de 21 a 23mar74), entre outras. 

As suas subunidades, em especial as metropolitanas, foram ainda atribuídas em reforço de outros batalhões, por períodos variáveis, para intervenção em operações específicas ou reforço continuado do  

Das operações efectuadas, refere-se especialmente a operação "Ametista Real", efectuada de 17 a 20mai73, em que, tendo sofrido 14 mortos e 25 feridos graves, provocou ao inimigo 67 mortos e muitos feridos, destruindo ainda:

  •  2 metralhadoras antiaéreas;
  • 22 depósitos de armamento e munições com:
  • 300 espingardas, 
  • 112 pistolas-metralhadoras, 
  • 100 metralhadores ligeiras, 
  • 11 morteiros,
  • 14 canhões sem recuo, 
  • 588 lança-granadas foguete, 
  • 21 rampas de foguetão 122, 
  • 1785 munições de armas pesadas, 
  • 53 foguetões de 122,
  • 905 minas 
  • e 50.000 munições de armas ligeiras.

Destacou-se também, pela oportunidade da intervenção e captura de 3 morteiros 120, 367 granadas de morteiro, 1 lança granadas foguete e 2 espingardas e 26 mortos causados ao inimigo, a acção sobre a base de fogos que atacava Canquelifá, em 21mar74.

Em 20ago74, as três subunidades de pessoal africano (1ª, 2ª e 3ª CCmds Africanos)  foram desarmadas, tendo passado os seus efectivos à disponibilidade. Em 7set74, o batalhão foi desactivado e exinto.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp.646/647.


1. Comentário de  Cherno Baldé (nosso colaborador permanente, assessor para as questões etno-linguísticas, economista, Bissau) ao poste P23523 (*)

Caros amigos,

A batalha de Cumbamori (OP Ametista Real, Samoge-Guidage,20-21 mar 1973) mudou a  a minha/nossa percepção sobre a guerra da Guiné e, sobre os Comandos (Africanos) em particular, pois de regresso à nossa aldeia, depois de participar nesse ataque, o soldado comando Cissé Candé (3ª CCmds Africanos), na qualidade de irmão mais velho, disse-nos que, definitivamente, para se ser um bom Comando, também, devia-se saber correr e bem. 

Segundo Cissé, em Cumbamori os Comandos atacaram com a máxima força e coragem, mas receberam uma resposta ainda mais violenta da parte dos guerrilheiros, surpreendidos em sua prória casa, onde até as árvores disparavam contra os invasores. 

No fim, sem munições de reserva, tiveram que fugir, sim isso mesmo, fugir, perseguidos pelos donos da casa, incluindo carros blindados do exército senegalês chamados em apoio da guerrilha. 

Esta foi a versão que ouvimos na altura.  com  estas palavras do Cissé,  nessa noite nos perturbou o sono e mudou  a nossa forma de ver e sentir a guerra à nossa volta e de olhar para os Comandos Africanos da Guiné que afinal também eram mortais como todos os outros soldados.

Até aquele dia, estavamos inocente e firmemente convictos de que um Comando era um militar invencivel em quaisquer circunstâncias e que nunca virava a cara à luta fosse ela qual fosse, tal era a nossa crença na força e coragem dos mesmos, independentemente da propaganda de um e doutro lado.

No regulado de Sancorla (minha terra), quando uma criança (de sexo masculino) chorava no colo da mãe, esta consolava-a com a promessa de que a entregaria para fazer parte dos bravos Comandos quando crescesse e fosse homem, a fim de combater pela defesa da sua terra.


"Comando quer Comida ? NÃO !"

"Comando quer Bajuda ? NÃO !"

"Comando quer Bianda ? NÃo !"

"Comando quer Guerra ? SIM !"

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé (**)

___________

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23512: Notas de leitura (1473): Eduardo Lourenço (1923-2020): afinal, quem são os portugueses, e o que significa ser português? (José Belo, Suécia)


Eduardo Lourenço (Almeida, 1923 - Lisboa, 2020).
Foto da Agência Lusa (2020). 
Cortesia de Wikimedia Commons


1. Mensagens do José Belo:

(1) Data - 6 ago 2022 11:31
Assunto - Talvez o menos estrangeirado

Caro Luís

O nosso Eduardo Lourenço soube, talvez melhor,  que muitos intelectuais contemporâneos, pôr o dedo na ferida quanto aos nossos grandiosos mitos lado a lado com profundos complexos.

Vou enviar-te um texto resultante de leitura muito atenta a alguns ensaios do mesmo

PS - Espero sinceramente que quanto às saúdes todos nós continuemos sem estar... ”piorzinhos”!

Um abraço, JBelo

(ii) Data - 6 ago 2022, 12h39

Assunto - Estrangeirados

Francamente que não sei se o tema, e texto, terá cabimento (ou interesse) para os seguidores do blogue. Os parâmetros são distintos.

A ser publicado fico grato se indicares uma data aproximada que possa permitir um debate… caso este venha a surgir.

A fins deste mês volto para Key West e, por lá,  os meus tempos dedicados à “com-puta-gem” perdem prioridade frente ao Sloppy Joe’s Bar.

Um abraço com votos, para ti e família, de Boas Férias! JBelo

 

"Lisboa é o sítio ideal para acreditar que as Caravelas continuam a existir" (Eduardo Lourenço). Foto: José Belo (2022).

2. Eduardo Lourenço:  “As palavras que definem uma Nação “ (*)

Um dos maiores intelectuais portugueses contemporâneos que, e segundo as suas palavras… ”se afastou do País para respirar liberdade”. (**)

Nascido na pequena aldeia de São Pedro do Rio Seco, passou longo período da sua vida no estrangeiro. 
Primeiro como professor na Alemanha e, posteriormente, como professor nas universidades francesas de Grenoble e Nice.

Regressou a Portugal no período final da sua vida.

O jornal “Le Monde” descreveu-o como um intelectual liberto da rigidez política das ideologias,  que soube sempre seguir o seu próprio caminho.

As suas obras mais conhecidas foram escritas nos anos setenta, antes, durante e depois da “revolução dos cravos“: Tempo e Poesia (1974); O Labirinto da Saudade (1978). Obras que o tornaram conhecido fora dos círculos literários e académicos.

Importante parte dos seus ensaios foram dedicados a Luís de Camões e a Fernando Pessoa.

No “Labirinto da Saudade“ afirma que a literatura histórica portuguesa se pode ler como uma busca de resposta às perguntas:
  • Quem são os portugueses?
  • O que significa ser-se português?
Com início em Camões, Eduardo Lourenço identifica todo um irrealismo que engloba o espírito português. Uma mistura de grandiosidades lado a lado com profundo complexo de inferioridade.

Segundo ele, a imagem histórica de Portugal não é resultante de observações baseadas em realidades. Resulta antes de sonhos político-ideológicos criados por uma minoria urbana, como referido pelo realismo de Eça de Queiroz. Uma aristocracia (e burguesia) endinheirada sempre com o pé no estribo do "Sud-Express", arrastando-se para uma Europa onde se produz a verdadeira cultura e o conhecimento.

A existência de um mítico “povo simples” torna o diálogo literário entre estes polos opostos num… monólogo literário limitativo.

É neste espaço (ou contradição) entre a “falta” e o “regresso” que, segundo ele, surge a palavra “saudade”.

Afirma também que, em Portugal, tanto o neo-realismo como o comunismo (verdadeiros polos opostos à ditadura do Estado Novo tanto nas artes como na política) se dedicaram ao mesmo tipo de “mitologia” no modo como integraram na sua visão mundial os mesmos clichês quanto ao “Povo simples”, em tudo semelhantes aos usados por intelectuais da Direita. Mitos que serviram, e servem, como conveniente “manta de cobertura “ sobre um tipo de fragilidade histórica.

Com Salazar, o patriotismo jacobino dos convulsionados 16 anos da Primeira República, transformou-se em nacionalismo exaltado. O Estado Novo, com o seu aparelho de propaganda desde a escola aos meios de comunicação, cria uma verdadeira “Disneylândia” de portugalidades feita.

Como poderá a cultura de um pequeno país, isolado num extremo europeu, manter a sua originalidade, usar de um pensamento crítico quando a análises do passado, manter vivas as suas tradições ao mesmo tempo que se abre perante o mundo?

Segundo Eduardo Lourenço é fundamental para Portugal... ser europeu!

Um abraço do JBelo

Adenda - Talvez o menos… estrangeirado!

Abandona o país em 1953, mas recusa a condição de exilado. É apenas emigrado.

“Como é que um homem nascido em São Pedro do Rio Seco, pode ser outra coisa que não português?” Não aceita ser estrangeirado:” Não, não aceito!... Fico furioso. Fico desesperado.”

O seu método é o “de olhar de dentro mesmo estando fora”. No "Labirinto da Saudade" escreve:

“Pensar Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e… procurando afastar a maldição do atraso.”

“…é a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal.

Não estamos sós no mundo, nunca o estivemos. A conversão cultural necessária passa por um olhar crítico sobre o que somos e o que fazemos.”

PS - E como Eduardo Lourenço escreveu: "Lisboa é sítio ideal para acreditar que as Caravelas continuam a existir"



José Belo, jurista, o nosso camarada luso-sueco, cidadão do mundo, membro da Tabanca Grande:

(i) tem repartido a sua vida agora entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e os EUA (Key West, Florida); 

(ii) foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia, recusando-se a jubilar-se do cargo: afinal todos os anos pela primavera, corre o boato de que a Tabanca da Lapónia morre para logo a seguir ressuscitar, como a Fénix Renascida; 

(iii) na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); 

(iv) é cap inf ref (mas poderia e deveria ser coronel, se ele tivesse tratado da papelada a tempo) do exército português; 

(v) durante anos alimentou, no nosso blogue, a série "Da Suécia com Saudade"; 

(vi) tem 226 referências no nosso blogue.
 ___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 8 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23506: Notas de leitura (1472): "Histórias da C. CAÇ. 2533" - Os belos testemunhos da gentes da CCAÇ 2533 (1) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. também postes de:

2 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21604: Manuscrito(s) (Luís Graça) (195): In Memoriam: Eduardo Lourenço (1923-2020), pensador maior da nossa história, da nossa cultura, da nossa identidade como povo

17 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)

domingo, 8 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20427: Da Suécia com saudade (62)... E agora também dos States, Florida, Key West... A catarse do Império... O lugar do Portugal de hoje, tanto na Europa como no mundo, é que deveria ser assunto de discussões acaloradas (José Belo)


Anúncio dos Cimentos Liz, no jormal "Acção Colonial - Jornal de Informação e Propaganda das Colónias". Número Comemorativo da Exposição Colonial do Porto, 1934. Diretor: Frederico Filipe. Fonte: Cortesia de Hemeroteca Digital, Câmara Municipal de Lisboa.

"A história da marca dos cimentos Liz inicia-se em Portugal, no ano de 1918, quando o empresário português Henrique Araújo de Sommer funda, na localidade de Maceira-Liz, em Portugal, a Empresa de Cimentos de Leiria.

"Nessa época, ter tecnologia para a fabricação do cimento era fundamental, por isso, a empresa investiu no que havia de mais moderno ao instalar os fornos horizontais rotativos. Em 1923, as obras da fábrica da Empresa de Cimentos de Leiria foram concluídas e a produção entrou em pleno funcionamento.

"O sucesso da empresa permitiu que o empresário António de Sommer Champalimaud expandisse, em 1942, a marca do cimentos Liz e instalasse fábricas e empreendimentos em Moçambique e Angola.

"Outro marco na história da marca Liz foi a instalação do maior forno de cimento do mundo, na Companhia de Cimentos Tejo, em Alhanda, em Portugal. Além disso, foram instalados 19 fornos de cimento nas sete fábricas do grupo que eram responsáveis por produzir sete milhões de toneladas de cimento por ano." 

Fonte: Cimentos Liz > Perfil > Nossa Marca.

1. Mensagem de José Belo:

(i) régulo da Tabanca da Lapónia, membro da Tabanca Grande, tem 135 referências no nosso blogue:

(ii) jurista, vive na Suécia há mais de 4 décadas, e onde constituiu família: continua a ter uma pontinha de orgulho nas suas velhas raízes portuguesas: "Com netos sueco-americanos, o sangue Lusitano vai-se diluindo cada vez mais. Mas, como dizem os Lusíadas... 'Se mais mundos houvera, lá chegara'...".

(iii) foi alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, cap inf ref;

(iv) reparte os dias do ano entre a Suécia, o círculo polar ártico,  e Key West, na Flórida, EUA, onde a família tem negócios.



De: Joseph Belo
Enviado: 6 de dezembro de 2019 14:35
Assunto: Catarse

Meu caro  neo-avô Luís:

Aqui segue um texto escrito como comentário mas aparentemente demasiado longo no contexto.
Fica à...opiniäo dos editores.(*)

Quando o "Mítico Império" é referido no blogue em termos menos ortodoxos (**),  surgem de imediato pontos de vista intempestivos. Intempestivos por desnecessários.

Mais näo se trata do que trocas de ideias e opiniöes entre camaradas que procuram analisar os assuntos,  apresentando autores com diferentes leituras dos mesmos.

As nossas geracöes foram educadas desde os primeiros bancos escolares na ideia, criada por iluminados intelectuais e historiadores do governo da ditadura, de um mítico império constituído unicamente por heróis universais, santos missionários, e comerciantes de honestidade virginal.b  O Infante D.Henrique será um bom exemplo da mitologia de entäo.

Esta bonita, mas menos verdadeira, visão do império foi fácil de incutir nos  n espíritos jovens das nossas gerações.

Mais tarde fomos aprendendo que os que se atreviam a outras leituras da História Oficial (!)......acabavam mal.

Este "acabar mal ", mesmo que näo abertamente consciencializado por muitos, acabou por criar a tal unidade "patrioteira" à volta de um assunto incriticável por.... sacro.

Quem se dê ao trabalho de aprofundar o que foi a expansão (e influência) do pequeno povo de Portugal pelo mundo de entäo, sentirá näo só orgulho pela extensão do mesmo como pelas raízes ainda hoje bem vivas em locais dos mais inesperados.

Ao mesmo tempo surge a curiosidade de se compreender como tal foi possível. Os erros cometidos nesta "gesta" do império foram certamente muitos e graves.. Mas näo se deve esquecer que deverão ser analisados com os "olhos" e valores da época,e não com os valores dados actualmente como correctos para situações täo díspares.

E a vinganca póstuma do "saloiísmo-iluminado" do período da ditadura está no facto de muitos de nós não terem até agora conseguido a tal, e täo saudável ,"catarsis" libertadora dos mitos....por definição... näo factuais.

Continua-se a olhar sempre para o que "teremos sido",  sem nunca desejar-se verdadeiramente olhar para o que "somos" hoje.

Um povo que se respeite,  deverá sentir orgulho na sua História,nos seus heróis,nos seus mortos.
A nossa História é de tal modo rica que näo necessita de mitos e falsidades criados por oportunistas patrioteiros para a "valorizar".

Mas, e ao orgulharmo-nos dos mortos,  näo se deverá também sentir orgulho nos vivos? O lugar do Portugal de hoje (!), tanto na Europa como no mundo, é que deveria ser assunto de discussões acaloradas. 

Os antigos? São factos já gravados nas pedras. Foram o que foram. Não serão leituras revisionistas da História que os vão alterar.

Um abraço do J. Belo


2. Significado de catarse (LG)

catarse | s. f.
ca·tar·se |z|
(grego kátharsis, -eós, purificação)

substantivo feminino

1. [Filosofia] Palavra pela qual Aristóteles designa a "purificação" sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramática.

2. [Psicanálise] Método psicanalítico que consiste em trazer à consciência recordações recalcadas.

3. [Psicanálise] Libertação de emoção ou sentimento que sofreu repressão.

4. [Medicina] Evacuação dos intestinos.

"catarse", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/catarse [consultado em 08-12-2019].
_______________

Notas do editor:

(*) Último poste da séruie 2 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20408: Da Suécia com saudade (61)... E agora também dos States, Florida, Key West... Carta aberta aos Editores e Camaradas da Tabanca Grande: o que todos (!) temos em comum é termos participado, cada um de seu modo e à sua maneira, na experiência incrível que foi a guerra da Guiné... Por favor, não caiamos na perigosa tentação de nos dividirmos em operacionais... e não operacionais (José Belo)

terça-feira, 1 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13354: Agenda cultural (330): Atenção, Viriatos, ao lançamento, no dia 9, às 17h30, no Salão Nobre da CM Lisboa, do livro inédito, "As Viríadas", a epopeia portuguesa setecentista escrita pelo médico Isaac Samuda (Lisboa,1681 - Londres, 1729)









1. Por mail de Manuel Curado, professor de filosofia da Universidade do Minho,  Braga,  chegou-nos este convite da Câmara Municipal de Lisboa, da Rede de Judiarias de Portugal e da Imprensa da Universidade de Coiimbra, para o lançamento do livro "As Viríadas do Doutor Samuda", edição crítica,  a cargo do prof dr Manuel Curado,  da epopeia setecentista,  inédita,  dos médicos judeo-portugueses Isaac Samuda  (Lisboa, 1681- Londres, 1729) e Jacob de Castro Sarmento (Bragança, 1691-Londres, 1762),

A sessão realizar-se-á  no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa, dia 9 (3ª feira), às 17h30.

2. Sobre a obra (que vem enriquecer a língua e a cultura portuguesas), ver  a seguir uma sinopse, transcrita, com a devida vénia, da página da Imprensa da Universidade de Coimbra [, negritos nossos]:



As Viríadas do Doutor Samuda
Autor: Manuel Curado
Língua: Portuguesa
ISBN: 978-989-26-0659-0
Editora: Imprensa da Universidade de Coimbra
Edição: 1.ª
Data: Maio 2014
Preço: 25 euros
Dimensões: 240 mm x 170 mm
N.º Páginas: 688

Uma epopeia portuguesa setecentista inédita, mas não ignorada, em décimas bem ritmadas, cujo autor, Isaac Samuda, é um dos judeus de talento que o fantasma da Inquisição chegou a aprisionar por um tempo e ameaçava persegui-lo de novo, pelo que teve de emigrar, é o livro que temos o gosto de aqui apresentar.

A obra era inédita, conforme dissemos, mas não se desconhecia a sua existência, porquanto várias publicações, entre as quais o Dicionário de Inocêncio, haviam falado dela. Tão-pouco o era a figura do seu herói, tantas vezes enaltecida ao longo dos séculos, nomeadamente na célebre epopeia de Brás Garcia Mascarenhas, Viriato Trágico, que é anterior a esta.

Do autor das Viríadas, Isaac Samuda, também se conheciam dados significativos, para além dos já mencionados: bacharel em Artes, estuda Medicina na Universidade de Coimbra, e, devido à sua origem judaica, é forçado a exilar-se; chega a Londres nos primeiros anos do século XVIII; aí efectua a mudança de nome, como era de rigor, e começa a exercer a sua profissão junto da colónia portuguesa. Dentro de poucos anos é admitido em duas instituições britânicas de grande prestígio: O Real Colégio de Médicos e a Real Sociedade de Londres (na qual foi o primeiro judeu a ser recebido).

Estes e muitos outros dados, incluindo a multiplicidade dos interesses científicos de Samuda, são cuidadosamente analisados pelo autor desta edição, Manuel Curado, professor de Filosofia da Universidade do Minho - Braga. Assim, não deixa de pôr em relevo a presença dos ecos das epopeias clássicas, como a intervenção dos deuses, a paixão de Viriato por Ormia, que Tântalo, um dos guerreiros lusitanos, também pretende.

Mas não esqueçamos que o poema está cheio da descrição de combates, da alegria dos banquetes, das exortações de Viriato aos seus companheiros de armas. Ao lado destes temas, surge a descrição de paisagens e monumentos (designadamente os de Évora), que põe em destaque a sensibilidade artística do poeta. 

Não menos evidente é o seu interesse pela Botânica, ao descrever com minúcia e saber as plantas e os seus frutos. São igualmente significativos os seus conhecimentos na área da Física. Para o provar basta ler a estrofe 40 do canto VI, onde se descrevem as alterações do rosto de Ormia, ao ouvir a declaração de amor de Tântalo. Manuel Curado observa: "Ao descrever a alteração da cor do rosto de Ormia" ele a comparava "a um prisma newtoniano que decompõe a luz". E, em nota, acrescenta ainda que Samuda fez mais duas alusões "ao prisma de Newton que decompõem a luz branca". Do saber filosófico que premeia toda a obra nem se torna necessário fazer menção.

Samuda não viveu o suficiente para completar a sua longa epopeia. Na estância 58 do canto XIII, Viriato acaba de celebrar mais uma vitória e de se coroar com ramos de azinheira. As estrofes seguintes (58-108) são já da autoria do seu grande amigo Jacob de Castro Sarmento, porquanto o tema se transformou na apologia de um Deus único e Verdadeiro. É um velho sírio que dá essa longa explicação, que Viriato agradece na estância com que finda o poema.

O destino do texto das Viríadas passou por muitos acidentes até se recuperarem duas cópias - as únicas que se conhecem até à data - que surpreendentemente estão guardadas em bibliotecas da América do Norte: uma na Thomas Fisher Library, na Universidade de Toronto, outra no Jewish Theological Seminary, em Nova Iorque.

É nesses dois exemplares, portanto, que se baseia a presente edição crítica. A riqueza e profundidade do trabalho executado por Manuel Curado, além de acrescentar mais uma epopeia à nossa Literatura, é um estudo profundo e seguro das Viríadas. Nele se evidencia o rigor e experiência que caracterizam os estudos deste investigador e professor.
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de junho de 2014 > ao Nober da CM LisboGuiné 63/74 - P13342: Agenda cultural (329): Lançamento do livro "Capitão de Abril", de Fernando Salgueiro Maia, apresentado pelo Cor Vasco Lourenço, dia 1 de Julho de 2014, pelas 18h30, na Associação 25 de Abril, Lisboa

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12568: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (29): O que os rapazes dos cachecóis precisam de saber: que o Eusébio foi um português muito especial, que ajudou a escrever uma página muito especial da história de Portugal, da Europa e de África...


1. Texto enviado, em 8 do corrente, pelo António Rosinha [, fur mil em Angola, 1961/62, foto à esquerda; topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979: ou, como ele gosta de dizer,colon, em Angola, de 1959 a 1974; cooperante na Guiné-Bissau, de 1979 a 1993; membro da nossa Tabanca Grande desde 29 de novembro de 2006]:


Assunto: De Gungunhana a Eusébio ou de Mouzinho de Albuquerque a Maurício Vieira de Brito e Tudela e os rapazes dos cachecóis


Tem gente que com um grão na asa dá-lhe para cantar, uns dá-lhe para o fado, outros coisas de Joselito e passodobles, e há um amigo meu que por tudo e por nada, após o café e bagaço saía-lhe o Kanimambo.

Um dia, ainda antes do café e do bagaço disse ao "jovem", na casa dos 50 que João Maria Tudela tinha morrido recentemente.

Quem é essa pessoa? Perguntou-me ele.

Claro que como antigo "cólon", quando cheira a colónias, lá tenho que explicar, as coisas que mais novos tiveram a sorte de não ter visto, e o meu amigo lá soube que cantava a música de um "cantor colonial" em Landim, patrício de Eusébio.

Penso que mudou de reportório após a minha explicação.

Claro que podemos gostar de ouvir música de Wagner sem saber sequer que essa pessoa existiu.

Isto vem a propósito de os "rapazes dos cachecóis", que tanto se manifestam, principalmente os do Estádio da Luz, se imaginarão as voltas que o mundo deu, para Eusébio ir parar a uma Selecção Nacional de um País europeu, e porque razão se discute se um simples futebolista deve ou não ir para o Panteão Nacional.


Penso que estes jovens dos cachecóis precisavam de uma explicação da parte dos mais velhos, porque também acho que estes jovens estão como o intérprete do Kanimambo, que cantava em Landim e não sabia quem era o Moçambicano João Maria Tudela, E PENSAM QUE Eusébio representou só futebol para a geração dele.

É que corremos o risco de enlouquecermos uma geração, se não ensinarmos os rapazes a olhar para Eusébio sem bola.

Que não é uma simples bola que leva Eusébio a poder morar eternamente em certos "condomínios".

Claro que não ficam mais felizes se souberem que Gungunhana era patrício de Eusébio, que veio de barco para Portugal a convite de Mouzinho de Albuquerque e não sabia jogar à bola e falava em Landim.

E também não ficarão mais felizes se souberem que foi um angolano, Maurício Vieira de Brito, que trouxe o Moçambicano e outros africanos para Portugal para jogarem à bola.

Também tem que se dizer à juventude dos cachecóis que aquilo que representa a figura de Eusébio não é consensual para todos os portugueses da geração do Eusébio.

Antes pelo contrário, temos que dizer aos jovens que tirando a bola, a lembrança de Eusébio divide alguns portugueses da sua geração, principalmente uns que eram mais europeístas, outros mais africanistas.

Os rapazes precisam saber tudo, principalmente que uma simples bola não é política, nem religião, portanto haverá algo mais representativo para os portugueses a acompanhar a imagem de Eusébio.

E também se tem que divulgar e explicar, porque na terra natal, Moçambique, não há uma manifestação oficial exuberante como em Portugal.

Talvez se os mais jovens tentarem compreender 
todos os motivos, razões e até contradições nas
origens de tanta admiração lusa pela figura de Eusébio, 
aí a "bola" não será tão pontapeada.


[Foto à esquerda: Outdoor da Câmara Municipal de Lisboa, com um "obrigado" ao Eusébio, Reproduzido, com a devida vénia, do sítio da CML]


Teremos que dizer ao pessoal mais novo, que Eusébio foi um português muito especial, que ajudou a escrever uma página muito especial da história de Portugal, da Europa e de África.

Uma página em que podem entrar com destaque, Gungunhana e Tudela, Maurício e também Adolfo Vieira de Brito, angolanos, presidentes dos encarnados

Cumprimentos,

Antº Rosinha
_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 31 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12527: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (28): A TAP e a Guiné-Bissau ou... a Guiné "TAPdependente"

domingo, 5 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12547: (In)citações (59): Homenagem a Eusébio da Silva Ferreira, o "pantera negra" (Lourenço Marques, 1942 - Lisboa, 2014)


1. Excerto do poste de 5 de agosto de 2009  > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

Cherno Baldé, aliás, dr. Cherno Baldé
(...) O Júllio era um garoto muito estimado entre os colegas do grupo de Sambaro Djau, bem constituído, duro que nem um pau esculpido e ágil como um animal selvagem. No futebol de salão era o mestre no drible de frente a frente. O seu nome verdadeiro era Abibo. Ficámos amigos logo a seguir ao nosso primeiro duelo. Os bons adversários respeitam-se mutuamente, não é?...


Ele trabalhava na caserna de um dos pelotões da companhia, uma construção em betão armado enterrada alguns metros debaixo do solo e onde se alojavam mais de 20 homens e que estava situada nos confins do aquartelamento. Nós, que éramos crianças e naturais da terra, na altura, não sentíamos o efeito do calor, mas muitos anos depois, quando me recoradava daqueles homens brancos metidos naquele buraco, mal conseguia imaginar o tamanho do sacrifício a que estavam sujeitos.

Equipa de futebol de cinco, Fajonquito,  já depois da
independência. Foto de Cherno Baldé.
Ele ficou a ser o Júlio e eu o Chico, nomes emprestados a dois técnicos africanos que tinham vindo a Fajonquito para efectuar a reparação de alguma avaria da rádio de transmissões do quartel. Desse dia para a frente passámos a constituir um duo infernal no futebol juvenil.

Para além da irreverência e alma de desportistas natos, unia-nos o gosto da aventura e a frequência do quartel o nosso palco de actuação predilecto. Ao contrário dos outros rapazes da mesma idade, tínhamos a particularidade de andar sempre de calções em saia, sem ligações entre as pernas, a violencia da prática de futebol e a vagabundagem constante não permitiam tanto aprumo e tambem éramos daqueles que raramente voltavam a casa para o habitual banho da tarde e a troca de roupas, a água lamacenta da bolanha para nós ja era suficiente mesmo se pareciamos mais com porcos de mato com a lama branca da bolanha a cobrir a maior parte do corpo e os olhos cor de tijolo.

Na altura toda a gente queria ser o Pelé ou o Eusébio, sobretudo este último que estava muito em voga. Mas nem tudo era assim tão simples, os mais fortes é que escolhiam primeiro, se o Sambaro era Eusébio, então tínhamos que contentar com outros nomes menos sonantes, o baixinho Simões, por exemplo, quem conhecia o Simões?

Para nós tudo o que era afro era melhor, isto enchia-nos de orgulho contrabalançando assim um pouco a superioridade evidente dos brancos que, mesmo sendo nossos amigos não deixavam de ser diferentes de nós, na verdade, esta fronteira racial nunca deixou de existir e de se manifestar no comportamento dos actores em cena, verificando-se uma espécie de invasão ou interpenetração de comportamentos estranhos, a cultura e educação tradicional de parte a parte e em especial dentro das nossas moranças que a insolência e incontinência dos soldados no baixo do escalão da hierarquia militar, e não só, agudizavam cada dia mais.

Equipa de futebol da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).
Foto de Arlindo Roda
Será que podia ser doutra forma?... Não se esqueçam, estamos no princípio dos anos 70
e já existe no ar uma certa africanizaçao dos espíritos e começa a apontar uma certa confrontação atiçada pelos desafios de futebol entre africanos (que ou são tropas auxiliares em preparação ou serviçais no quartel) contra soldados portugueses, que sempre terminavam em brigas, sem consequencias graves, de resto.

Nós ja tínhamos os nossos atletas preferidos entre os africanos, claro, mesmo se a vantagem era quase sempre do lado dos brancos mais fortes e exímios em jogadas rápidas e golpes traiçoeiros de bola parada. Quando havia briga, os brancos venciam na mesma. Não eram soldados preparados para a guerra?... Os africanos tomavam a sua desforra durante os bailes da noite, com ritmos de Angola e do Congo com a luz de vácuo meio apagada para apalpar, na escuridão, os corpos redondos e suados das bajudas nas coladeiras. (...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12459: (In)citações (58): Estradas da região de Tombali, Guiné-Bissau, 40 anos depois da independência: o espelho da Nação (AD - Acção para o Desenvolvimento)