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quarta-feira, 26 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24253: Historiografia da presença portuguesa em África (365): António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Não fosse o documento que o cônsul português em Dacar nos deixa sobre a comunidade cabo-verdiana e esta obra passava-nos literalmente ao lado já que é aqui que é a Guiné a razão nuclear destas leituras. Mas há observações curiosas que nos ajudam a compreender a importância estratégica do Senegal no império colonial francês da África Ocidental. Aliás, quando frequentei o Arquivo Histórico do BNU, rapidamente me apercebi que o Senegal era para a França uma pequena joia da Coroa, foram muitos os senegaleses que combateram nas trincheiras, o estatuto de cidadania francesa pesava no orgulho senegalês e não foi por acaso que a partir de Teixeira da Mota se instituiu na Guiné Portuguesa uma cooperação científica de grande valor com o IFAN, Instituto Francês da África Negra. António de Cértima escreveu em O Comércio da Guiné, homem convicto do regime de Salazar agiu para sufocar a Revolução Triunfante, a tentativa republicana de manter a Guiné fora da ditadura, o regime condecorou-o, prometeu escrever um livro sobre a Guiné, o que nunca aconteceu.

Um abraço do
Mário



António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920

Mário Beja Santos

António de Cértima foi diplomata, teve postos de cônsul no Cairo, Dacar e Sevilha, foi escritor e jornalista, já cinquentão pediu a reforma e passou a trabalhar na SACOR, teve longa vida (1894-1983), deixou obra prolífica, regista-se aqui o seu livro "Sortilégio Senegalês", publicado pela Livraria Tavares Martins – Porto, em 1947. Prometeu escrever sobre a Guiné, mas nunca o fez, conquanto tenha colaborado no jornal "O Comércio da Guiné", ter-se-á mesmo empenhado em fazer fracassar a Revolução Triunfante, uma tentativa de republicanos garantirem a Guiné fora do Estado Novo, foi então condecorado como igualmente virá a ser condecorado pelo Estado Francês. Aliás, este Sortilégio Senegalês é dedicado aos seus amigos franceses.

Trata-se de memórias avulsas onde não falta o “Expresso” do Sudão, inúmeras viagens dentro do território, reuniões sociais, há referências muito cultas e descrições abundantes sobre a atmosfera africana, é o seu olhar europeu que propende:

“Em Dacar, como em todas as cidades jovens e africanas, sente-se que uma vida tumultuosa circula, a agitar-lhe os flancos, a irromper das artérias, numa sede de futuro. Depois, a mão do homem parece ter posto aqui um desígnio ardente. Arrancada pelo génio empreendedor de Faidherbe aos penhascos alcantilados da chamada geograficamente quase ilha de Cabo Verde, onde há 70 anos apenas se destacava o ocre daquelas palhotas de pescadores lebús, Dacar encontra-se hoje em pleno desenvolvimento”.

Fala das etnias, dos antigos impérios que aqui se atravessaram, maravilha-se com o mar esmeralda, rende-se à adaptação dos franceses, à naturalidade com que transportam para aqui as normas da sua vida social, tem curiosidades de antropólogo e etnólogo, situa com rigor a importância de Dacar no contexto das oito colónias francesas na região (Mauritânia, Senegal, Sudão Francês, Níger, Guiné, Costa do Marfim, Alto-Volta e Daomé): 

"À parte os enclaves das possessões da Gâmbia, Guiné Portuguesa, Serra Leoa e Costa do Ouro, aqui temos, bordejando o Atlântico desde o Cabo Branco a Porto Novo, o imenso bloco da África Ocidental, oito vezes maior do que a França da Europa, parecendo desafiar o poderio dos antigos impérios do Gana e do Mali”.

Vai deambulando entre lugares e conversas, é moralista nas leituras, não lhe escapam as considerações éticas, procura a todo o transe distinguir a colónia do Senegal como um corpo à parte dentro do grupo de colónias francesas, apresenta-a como a mais evoluída, muito apegada à cidadania francesa. 

É exatamente aqui, penso eu, que o leitor questiona o porquê de trazer à baila uma obra memorial de um diplomata português no Senegal se ele se escusa terminantemente a falar da Guiné. Aí é que está a surpresa, o cônsul foi visitar a colónia portuguesa, que se acantona na parte alta da cidade de Dacar, por detrás do mercado indígena, e dá-nos informações extremamente úteis para se perceber o que irá acontecer no início da década de 1960 com esta colónia que revelará uma larguíssima indecisão face à ideologia do PAIGC.

Vejamos o que ele escreve:

“A colónia é numerosa: quase três mil. São todos cabo-verdianos, guardando ainda nos gestos vivos, desembaraçados, e na energia dos atos, qualquer coisa do clima viril da denominação em que se agrupam as suas ilhas natais. O cunho racial apresenta-se neles como um medalhão bem vincado. Homens e mulheres entregam-se às suas tarefas guiados por um fervor económico que só deve redundar em proveito da terra, da família, do lar. Temos vontade de perguntar: de que religião doméstica ou de que princípio de associação humana procedem estas regras morais de que os povoadores indígenas destas ilhas atlânticas obedecem com tanta porfia? O marinheiro ou moço do bordo que embarca nos portos da Praia ou S. Vicente com destino a todos os continentes do mundo, se por imprevisto da circunstância se encontra abandonado em qualquer escala das ilhas marítimas, o seu primeiro impulso é o de regressar imediatamente à sua ilha, ainda que escondido nos porões de qualquer cargueiro pirata. Belo exemplo de fidelidade à instituição familiar!

 Mulheres de bronze – assim chamam às raparigas de Cabo Verde os viajantes dos grandes transatlânticos que ali fazem escala, e não tanto pela cor, que na maior parte dos casos é de um moreno solar, mas sim pelo bem esculpido das formas. Os homens têm um nobre aspeto físico, e gestos onde se depara a dignidade e certo aprumo fidalgo dos primeiros donatários do arquipélago que mandou descobrir o Infante D. Henrique. São zelosos, cumpridores e de grande curiosidade e inteligência. Aos dois meses da sua chegada a Dacar falam já correntemente o francês. De Portugal conhecem tudo – até mesmo as estações de águas termais. Com os palhabotes ou faluas se dedicam ao pequeno comércio com o porto de Dacar, entre os carregamentos de laranjas e aguardente de cana chegam sempre alguns exemplares do Século e de outros jornais portugueses”.

E prossegue conversa com alguns destes homens culminando esta viagem ao mundo cabo-verdiano dizendo que Portugal lhes deve muito. Indiretamente o diplomata vai referindo as instituições sediadas em Dacar e começamos a perceber porque é que a capital do Senegal foi escolhida para sede de uma entidade científica que ainda hoje marca a vida do país independente o IFAN, então Instituto Francês da África Negra e a partir de 1966 designado por Instituto Fundamental da África Negra, foi possível a partir do governador Sarmento Rodrigues (1945-1949), manter uma cooperação científica ao mais alto nível, não só nas investigações referentes a descobrimentos e viagens nestas paragens da Senegâmbia, como estudos sobre a doença, a fauna e a flora e até a agricultura.

Pouco mais há a dizer da narrativa de António de Cértima das suas memórias senegalesas, relacionou-se com inúmeras pessoas, deslumbrou-se com a música negra. António de Cértima, joeirado pelo tempo, é reconhecidamente um autor secundário, muito formalista, certamente que atraído pelos padrões modernistas, culto, bom viajante, como irá revelar na sua viajem a Tombuctu, muito interessado pela Antropologia, nunca se cansando de exaltar a beleza negra, não sabemos se fala o esteta ou está marcado pela sensualidade, quando nos descreve assim:

“Nas minhas viagens do Atlântico ao Índico, das proximidades do lago Vitória ao Mediterrâneo, tenho surpreendido corpos de tanta finura e harmonia plástica, de tão acertadas proporções e incorrupta euritmia animal, que causariam inveja aos mais puros modelos gregos. Meus olhos não esquecerão jamais a graça e a candura, como nas formas nascentes, de tantos belos corpos escondidos nas luxúrias vegetais da selva, bailando sobre a lua das aldeias indígenas, circulando eretos e melodiosos como ânforas rituais”.

Do que igualmente retive desta saborosa leitura do seu olhar saltitante foi a descrição que fez sobre o naufrágio que ocorreu em 1816 da Fragata Méduse, encalhada nos bancos de Arguim e que está na base de um famoso quadro de Géricault, Radeau de la Méduse.

Resta dizer que a obra mais conhecida de António de Cértima tem o título "Epopeia Maldita", prende-se com as guerras travadas no norte de Moçambique na I Guerra Mundial, onde ele participou.


Jangada da Medusa, por Géricault, Museu do Louvre
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24235: Historiografia da presença portuguesa em África (364): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Por mão amiga tive acesso a este livro que surgiu no seguimento da exposição "O Museu Etnográfico Nacional: Trinta anos de História", inaugurada no Museu de Bissau em setembro de 2017. Tem imagens esclarecedoras do património que resistiu a várias depredações, espoliações e destruições. Recordo sempre o orgulho que senti no Museu Metropolitano de Nova Iorque quando numa vasta sala dedicada à Arte Africana li uma ficha de um colecionador famoso, da família Rockfeller, dizendo, com sincero entusiasmo, que tinha comprado peças artísticas das etnias Bijagó e Nalu e que as considerava do mais genial que lhe fora dado ver. Portugal possui igualmente um rico património da Arte Guineense, bom seria que se fizesse uma recolha de peças de valor indiscutível, elas estarão sempre associadas à presença portuguesa e à veneração que tal arte nos merece e merecerá.

Um abraço do
Mário



Conhecer o Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Não há ninguém que tenha feito comissão na Guiné que não conheça este edifício, no nosso tempo era Museu da Guiné e o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, reunia uma preciosa coleção de património etnográfico, o impulso inicial coube a Avelino Teixeira da Mota, então colaborador direto de Sarmento Rodrigues, e nas mesmas instalações funcionava o importantíssimo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa responsável pela publicação colonial mais relevante: o Boletim Cultural, ainda hoje incontornável. E havia uma biblioteca, nesse espaço ocorreram conferências que tiveram projeção. Com a independência, extraviou-se muita coisa, nos anos 1980 o museu foi transferido ali para os lados do INEP e em 2017 voltou ao edifício primitivo que já cumprira outras funções, como Ministério dos Negócios Estrangeiros e Direção-Geral da Cultura. Para comemorar o regresso, em 15 de setembro de 2017 foi inaugurada uma exposição intitulada “O Museu Etnográfico Nacional: 30 anos de História”, associaram-se diferentes parceiros, desde o Instituto Camões, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Embaixada de Espanha em Bissau, organismos da Universidade de Oxford e outros. O catálogo foi publicado em 2018 e permite ao leitor ficar com uma ideia do que é hoje o acervo museológico, depois das diferentes provações que terá sofrido, não esquecer que durante a guerra de 1998/1999 perderam-se objetos e muitos documentos, perdas tão irreparáveis que quando o visitei em 2010 e fiz entrega de um presente de todas as cartas da então Província da Guiné, na escala de 1 para 50 mil, o então Presidente do INEP, Dr. Mamadu Jao, agradeceu-me comovidamente, nada existia de tão substancial. Depois da guerra, houve tentativas de reparação, lembro a reconstituição de imensas imagens graças à Fundação Mário Soares, que deu origem à exposição “Raízes”, que então visitei no Bairro da Ajuda e que ainda hoje se pode adquirir na Fundação Mário Soares a preço simbólico. A exposição de 2017 revela o que se tem feito na digitalização de imagens e como se têm procurado superar os danos terríveis da guerra e dos esbulhos.

Este volume, com texto em português e castelhano mostra imagens do passado, havia um catálogo-inventário da secção de etnografia do Museu da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota estimulara muitas doações, fizeram-se estudos, a etnografia da Guiné apareceu em populações de grande difusão, lembro, a título de exemplo, A Arte Popular em Portugal, da Verbo, que teve a responsabilidade de orientação de Fernando Castro Pires de Lima, há muitos elementos etnográficos guineenses em Portugal, basta visitar a Sociedade de Geografia de Lisboa ou acompanhar as atividades do Museu Nacional de Etnologia. Há ainda documentos à venda, alguns deles preciosos, produzidos pela Junta de Investigações do Ultramar. Lembro que António Carreira produziu um belo trabalho sobre panaria cabo-verdiana e guineense e que Rogado Quintino é autor de uma obra etnográfica de valor indiscutível sobre a prática e utensilagem agrícola na Guiné, bem como Fernando Galhano publicou outra obra relevante intitulada Escultura e Objectos Decorados da Guiné Portuguesa no Museu Etnológico.

Este livro que acompanha a exposição de 2017 descreve trabalhos de pesquisa ao longo das últimas décadas e mostra imagens de grande importância sobre a escultura Nalu e Bijagó, como o pássaro Koni Nalu, a máscara Nimba, os espíritos Bijagós, a cabeça de vaca, obras representativas do que há de melhor na escultura guineense. Temos imagens da tecelagem, os famosos panos de pente, onde a etnia Manjaco ocupa um lugar à parte, imagens sobre aldeias, para podermos confrontar o habitat das diferentes etnias, como organizam as cozinhas, as dependências, como se processa a construção das casas, se possuem pinturas murais.

Lê-se nesta obra que os melhores tecelões são Papel e Manjaco, embora as peças comumente consideradas mais genuínas – por respeitarem toda a tecnologia tradicional, sejam da tecelagem Fula. “Os tingidos e sobretudo os panos Manjacos, com fios de várias cores que desenham padrões específicos, são adquiridos e acumulados pelas mulheres, para oferecer em funerais ou em intercâmbios matrimoniais. A produção de algodão, a cardagem e a fiação perderam importância na Guiné-Bissau após a destruição das variedades tradicionais provocada pela tentativa colonial de introduzir a cultura de algodão para exportação, que também falhou depois da independência. Hoje a maioria dos fios usados em tecelagem são importados e de fabrico industrial. O tingimento dos panos continua a ser praticado artesanalmente pelos Saracolé”.

O livro contempla o trabalho em ferro, as artes agrícolas, os instrumentos musicais onde primam os instrumentos de corda como a korá, os de percussão, caso do tambor falante e o xilofone designado por balafon, a cestaria e olaria, onde se distinguem magníficos trabalhos de balaios de palmeira de leque, os jogos de criança, a multiplicidade de manifestações religiosas que vão desde a “forquilha de alma” Manjaco, a edificação de mesquitas, as indumentárias cerimoniais. Em capítulo à parte releva-se a arte Nalu onde os objetos escultóricos aparecem em rituais e danças. Temos igualmente os lugares com paisagem e património, com destaque para a Fortaleza de Cacheu e há numerosos vestígios da presença militar portuguesa, ponho ênfase na lápide onde se escreveu: “A Ti, Deus único e Senhor da Terra, oferecemos estas gotas de suor que nos sobraram da luta pela Tua palavra eterna, soldados da CART 1613”.

Há igualmente uma secção que privilegia a cultura nacional, pois um Museu Nacional de Etnografia tem não só a missão de documentar a diversidade étnica de um país mas também de colaborar na consolidação da identidade nacional, as imagens de dança balética ou carnavalescas são elucidativas de um mundo pós-colonial. O livro encerra com a notícia do seminário de Museologia que se realizou em 1989 e mostra mais de 130 imagens de objetos do atual Museu Etnográfico.

Seria muito bom que um dia se pudesse expor na Guiné o acervo das coleções particulares e de diferentes museus portugueses. Não vi referidos os objetos de couro produzidos pela etnia Mandinga, lembro-me de ter comprado almofadas e vi à venda bainhas para espadas e outros artefactos. E recordo ter ido ao mercado de Bafatá adquirir ourivesaria, não vejo referência destes trabalhos no pós-independência. Deseja-se longa vida a este Museu Etnográfico e a mais intensa cooperação com Portugal, país que detém um património privilegiado.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Caminhamos para o fim da vida deste Conselho de Governo, que teve a faculdade de ser marcadamente consultivo mas onde houve o exercício deliberativo, os serviços do governador acabavam por ter em linha conta certas apreciações na análise da legislação, reconhecendo a pertinência das observações dos conselheiros. Enfatiza-se que faltam muitas atas, mesmo de muitos anos, fica-nos, no entanto, a sensação de que é possível ir tomando o pulso à evolução das mentalidades, estas atas são reconhecidamente úteis por muitas das observações que aqui se tecem, já chegámos ao mandato de Arnaldo Schulz, não se fala declaradamente da guerrilha, usa-se uma linguagem apaziguadora, "no quadro atual das dificuldades que a Província atravessa". Vou tentar ver se é possível encontrar toda esta documentação na Biblioteca Nacional, é um acervo auxiliar, mas inescapável, para quem pretende estudar a vida da Colónia, até à sua independência.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (8)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Insiste-se na advertência que os dois tomos existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm importantes lacunas, o que naturalmente dificulta a apreciação geral do percurso da instituição, sem prejuízo das tais tomadas de posição que nos ajudam a entender as preocupações do governador ou seu representante, os diretores e chefes de serviço da Administração e o conjunto de vogais representativos de interesses. Obviamente que é indispensável compulsar o que aqui se diz e se dá por deliberado com o constante no Boletim Oficial da Guiné e na imprensa. Depois de um longo período de ausência de Diogo de Mello e Alvim, segue-se a sua exoneração e a nomeação de Álvaro da Silva Tavares, que curiosamente, noutras funções, já pertencera a este Conselho de Governo. Em 14 de fevereiro de 1957, no período antes da ordem do dia, Mário Lima Wahnon, comerciante, dirige-se ao novo governador:
“Eu li no jornal da terra que esta visita de V. Ex.ª à região dos Fulas e Mandingas foi coroada de muito êxito. Entre as grandes manifestações da população há uma que eu soube com prazer: - é que pediram a V. Ex.ª a instituição de escolas primárias naquelas localidades. Neste Conselho há já alguns anos venho defendendo este ponto. A instrução pública não corresponde às necessidades da população. De facto, a grande população islamizada da Província não tem uma escola para aprender o português. É, pois, com muito gosto que peço a V. Ex.ª que seja considerada na medida do possível a instituição de escolas naquelas regiões”.

É novamente debatida a questão dos abonos a funcionários civis e militares, o padre Cruz do Amaral, em 20 de fevereiro, põe à votação uma mensagem sobre o significado profundo da visita de Isabel II a Portugal, dizendo que a Guiné comunga no mesmo entusiasmo por uma política que tem a sua consagração na velha aliança anglo-lusa; abrem-se mais créditos, desta vez para sustentas os preços das especialidades farmacêuticas, concedem-se bolsas de estudo, subsídio à autarquia de Bissau para o asfaltamento das ruas e abastecimento de água e energia elétrica à cidade e também crédito para equipamento hospitalar. O padre Cruz do Amaral aproveita o ensejo da visita de Álvaro Tavares à Costa do Ouro, agora Estado do Gana, onde se deslocara como Embaixador de Governo às festas da independência do país, para proferir o seguinte voto:
“À natural alegria de o vermos regressado a esta Província e ao seio deste Conselho, juntamos a satisfação de o sabermos investido daquelas altas e excecionais funções com que o Governo na Metrópole quis distinguir a pessoa de V. Ex.ª. Desde o dia 6 de março corrente que um país estruturalmente africano nasceu para a independência e liberdade. À volta do berço deste nascimento se reuniu a maior parte das nações do mundo. Mas nenhuma como Portugal tinha o direito de ali estar presente, pois fomos nós, os portugueses, os primeiros a levar àquelas paragens o lume vivo da civilização e os primeiros a erguer nas trevas do continente negro um fasto luz que ainda se não apagou.”

Todo o novo contexto de independências começa a ser objeto de ponderações e avisos, e no Conselho há sempre uma voz que empresta convicção ideológica ou tece advertências, oiça-se um comentário no momento exato em que a Guiné Conacri passou a ser um Estado independente, quem assim fala diz-se representante dos interesses da população indígena da Guiné:
“Felizmente para nós, portugueses, não temos problemas políticos a resolver nas nossas províncias ultramarinas, ao passo que os povos oriundos de grande parte dos territórios estrangeiros deste continente se encontram hoje sublevados contra os respetivos países dominadores, as populações do nosso Ultramar continuam vivendo em paz e sossego, com absoluta calma e na melhor harmonia. Isto só demonstra a justeza dos elevados princípios de ordem política, económica e social, que informam a nossa administração ultramarina e o caráter fundamentalmente humano e cristão da nossa ação civilizadora em África.
O atual clima político no continente africano impõe-nos o dever de estarmos atentos e enfrentar os acontecimentos sem hesitações e com a maior objetividade. Qualquer afrouxamento no ritmo da nossa ação administrativa no Ultramar poderia ser interpretado como um recuo. Nós não queremos que os demais povos africanos, sobretudo os dos territórios estrangeiros vizinhos dos nossos, que hoje são independentes ou gozam de plena autonomia administrativa, procurem diminuir-nos ou amesquinhar-nos com a acusação de sermos os próprios responsáveis pelo estado de atraso em que durante longo tempo vivemos em relação aos demais países africanos mais adiantados, e por isso mesmo devemos intensificar a nossa ação administrativa ultramarina promovendo medidas tendentes ao desenvolvimento económico e social dos nossos territórios africanos, assegurando aos indígenas um nível de vida mais elevado e criando-lhes um ambiente suscetível de concorrer para a satisfação das suas mais prementes necessidades morais e materiais.”


É pouquíssima a documentação existente referente ao mandato do Capitão-Tenente Peixoto Correia como Governador. Em 18 de junho de 1964, o Brigadeiro Arnaldo Schulz preside pela primeira vez ao Conselho, Mário Lima Wahnon é eleito vice-presidente, Teixeira da Mota torna-se o representante da Guiné no Conselho ultramarino. Prossegue naturalmente a rotina, caso do Regulamento da Assistência Médica e Medicamentosa do Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e da Indústria da Província da Guiné, abole-se a designação de Sindicato Nacional que passa para Caixa Sindical. O novo governador anuncia o início dos trabalhos na nova estrada asfaltada Mansoa-Mansabá, prevendo-se o seu prolongamento até o Gabu. O vogal Artur Augusto Silva tece considerações sobre o papel das Missões que tinham passado pela Guiné e destaca duas como bastante relevantes: a Missão de estudo e combate às tripanossomíases e a Missão geoidrográfica da Guiné.

Quando se trata de analisar o Orçamento para 1965, Schulz usa da maior prudência falando das verbas do Plano Intercalar de Fomento:
“Não podemos esquecer que as verbas do Plano de Fomento são obtidas através de empréstimos que é necessário pagar, bem como os respetivos juros, daí a necessidade de que o dinheiro empregue no fomento produza, pelo menos, o capital e os juros indispensáveis ao pagamento das prestações que nos são impostas. E como o desenvolvimento dos sucessivos planos de fomento implica novos empréstimos, aumenta progressivamente a nossa dívida e consequentemente o aumento do quantitativo das prestações a pagar; ou os investimentos dão o rendimento necessário à satisfação de tais encargos ou são as escassas receitas da Província a fazer-lhes face e caminharemos para uma asfixia financeira que não nos irá permitir fazer nada mais durante muitos anos”. E adverte mesmo que não se pode consentir que as verbas do Plano de Fomento tapem as lacunas existentes no Orçamento da Província, e deixa a recomendação que todos os serviços se devem esforçar por cobrar receitas por forma a dispor-se de maior verba. Ponto curioso é que esta apreciação virá a conhecer uma inversão radical com o seu sucessor, a quem aliás o Governo Central irá conceder meios que Arnaldo Schulz jamais obteve.

(continua)

Álvaro da Silva Tavares, Governador da Guiné (1956-1958)
António Augusto Peixoto Correia, Governador da Guiné (1959-1962)
Arnaldo Schulz, Governador da Guiné (1964-1968)
Bissau, Avenida Marginal
Balantas em festa, imagem da atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23853: Historiografia da presença portuguesa em África (346): Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que reconhecer o interesse deste questionário etnográfico proposto pelo capitão Velez Caroço ao governador da Guiné. Desconhecem-se as consequências, mas convém não esquecer que havia antecedentes quanto à obrigatoriedade de relatórios anuais emanados pela administração até Bolama, era um imperativo legal informar o governador sobre determinadas questões elementares de todas as regiões; Ricardo Sá Monteiro, o governador que antecedeu Sarmento Rodrigues procedeu em 1941 a uma reunião de administração em que formulou a exigência de se saber mais sobre os usos e costumes do indigenato. Mas não restam dúvidas que o capitão Velez Caroço se esmerou na procura de uma malha de inquérito que assegurasse um melhor conhecimento, de acordo com os conhecimentos etnográficos do seu tempo, muitos deles rapidamente ultrapassados, caso do conceito de raça.

Um abraço do
Mário



Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné

Mário Beja Santos

Encontram-se pelos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa diferentes relatórios enviados pelos chefes de posto e administradores de circunscrição para o governador da Guiné, logo nas primeiras décadas do século XX, tratava-se, aliás, de uma exigência legal, informar Bolama de tudo quanto se passava em qualquer dos lugares da colónia, havia mesmo preceitos para as informações ordem socioeconómica e cultural. Foi dentre deste vasto acervo que encontrei uma proposta de questionário etnográfico que saiu do punho do Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, familiar do antigo governador. A data do documento dirigido ao Governador Carvalho Viegas corresponde à sua publicação no Boletim Oficial da Colónia, 14 de maio de 1934. Atenda-se à importância que tem a carta que o Capitão Velez Caroço envia ao governador:
“Os factos e as características observadas na vida do indígena e na sua maneira de ser, e na necessidade absoluta e urgente de procurar metódica e progressivamente aproximá-lo da nossa civilização, com a garantia indispensável dos seus direitos, é verdade, mas tendendo sempre para um melhor e mais completo aperfeiçoamento, determinaram a conveniência de criar para ele uma ordem jurídica adaptada à sua mentalidade primitiva, às suas faculdades psíquicas, aos seus sentimentos e que se harmonize, tanto quanto possível, com o respeito pelos seus usos e costumes, cuja transformação se deve efetuar lenta e gradualmente, evitando assim possíveis perturbações que têm tanto de inúteis como de prejudiciais”.

Começa-se a perceber o móbil desta incursão etnográfica que o oficial do exército apresenta: conhecer as gentes para as encaminhar para um quadro civilizacional superior, para tanto é indispensável conhecer a fundo as mentalidades e garantir direitos a quem ainda não está no patamar de “civilizado” ou “assimilado”. Velez Caroço faz notar a singularidade do mosaico étnico, havia que conhecer a fundo os usos e costumes de todos para que essa codificação melhorasse a ação administrativa, daí o imperativo de conhecer com minúcia a vida material do indígena, a sua constituição moral, as práticas religiosas, etc. E adianta uma informação:
“Já em 1928 uma ordem emanada do governo da colónia mandava elaborar o questionário etnográfico cuja finalidade se fixava, naturalmente na absoluta necessidade da existência de uma codificação de usos e costumes, sobre a qual deveria assentar a legislação especial reguladora dos estatutos sociais dos indígenas”. Foram poucas as respostas que chegaram, vieram dos administradores de Canchungo e Mansoa e sobre as etnias Manjaca, Brame e Balanta. Tudo insuficiente, daí ele poder dizer que a ordem jurídica existente é falha e a ordem jurídica inadequada, como observa: “No cível e comercial, a ação da justiça é, vagamente, encerrada no respeito pelos usos e costumes das raças jurisdicionadas, com a resultante de confusões e atropelos produzidos por critérios diferentes na forma de provocar a evolução, se por transformação lenta, se por imposição abrupta de sistemas que se aproximem da definição do estado social perfeito. Um e outro estatuto, o civil e o criminal, carecem da unificação de diretrizes sobre que assente a ação da justiça. Obtido, como é de esperar, o interesse e a dedicação das autoridades administrativas, e de outras individualidades que podem e devem trazer à resolução do problema o concurso dos seus conhecimentos, disporemos dos elementos precisos à confeção dos Códigos Indígenas especiais de administração e justiça, tão necessários a uma perfeita ação civilizadora”.

A proposta de questionário abarca três temas: raças, dos direitos, comércio e indústria. Nas raças, visa-se conhecer a sua origem e história, a que raças pertencem os indígenas que habitam a região, hipóteses prováveis sobre a sua origem, conhecer a raça mais antiga; atender aos sinais e características de cada raça ou tribo, saber se praticam tatuagens ou cicatrizações, a que regras obedece a tatuagem, se há tatuagens próprias para as crianças púberes; na dimensão antropológica pretendia-se apurar qual o tipo físico e a cor, a forma geral dos crânios, se o cabelo quando cresce forma mechas separadas ou ganham uniformidade; pretendia-se apurar a índole da população: se é ativa, industriosa, pacifica ou de caráter guerreiro, se têm aversão ao trabalho e como a manifestam; passando para o campo da justiça pretende-se saber mais sobre o exercício e principio de autoridade dos indígenas: quais são as autoridades indígenas estabelecidas pelos seus usos e costumes, se existe régulo, qual a sua autoridade e poder, que homenagens prestam aos régulos e chefes, como os saúdam, como saúdam os velhos; havendo emigrações constantes na colónia, impunha-se saber se a população se considerava definitivamente fixada à terra, se aspira à mobilização e havia que perguntar se quando abandonavam determinada região o que transportavam consigo; o questionário inflete agora para a família, a sua constituição: se são polígamos ou se casam apenas com uma mulher; quais as formalidades e cerimónias do nascimento, quem assiste as parturientes, direitos dos irmãos e parentes, direitos dos filhos de segunda mãe, se o divórcio é aceite entre os indígenas, em que condições; como se fazem os enterros, que tipo de cerimoniais; procurar conhecer se os indígenas costumam fazer disposições dos seus bens e direitos ainda em vida ou se as heranças e sucessões produzem o seu efeito apenas após o seu falecimento; na questão da habitação, o inquérito propõe apurar em que idade constrói o indígena a sua casa e passa a ter domicílio próprio, e como é apreciada a ausência de um indígena na sua terra e na sua casa; pretende-se igualmente apurar a prática do poder paternal e a legitimidade dos filhos, como é que esse poder é exercido, como se reconhece a legitimidade dos filhos, se os pais são inteiramente responsáveis pela alimentação dos filhos, e até se pretende saber até que idade são os indígenas considerados menores ou se há diferenças segundo os sexos.

Todas estas matérias acima assinaladas pertencem ao tronco que o Capitão Velez Caroço designa por raças, segue-se agora o que ele designa “dos direitos”, e aqui formulam-se múltiplas questões que abordamos sinteticamente: como encaram os indígenas o direito de existência e qual o sentido da propriedade, se se dedicam ou não à caça e à pesca, se gostam de ter animais domésticos e quais os animais selvagens que abundam na região, como também se pretende saber quais as principais plantas que ali existem.

Vejamos agora o último acervo de matérias, designados por “comércio e indústria”: qual a característica do comércio indígena, pretende-se saber quais as indústrias privativas da raça na região, se os indígenas se dedicam e preferem a vida do mar, se aprendem artes e ofícios; quanto à saúde e higiene, intenta-se saber quais as medicinas indígenas, se existem curandeiros entre os indígenas; passa-se depois para a religião e superstição, pretende-se apurar quais os cultos, os ritos e se existem mitologias; falando das diversões, pretende-se saber a que distrações se entregam os indígenas; quanto à habitação, quais as formas das velhotas e os materiais empregados na sua construção; e temos aqui o último pacote de questões sobre “literatura e moral”: que dialetos se falam na região, quais as principais regras gramaticais, se existem provérbios, canções ou contos.

Esta é a essência de proposta de questionário etnográfico que seria enviado para os administradores de circunscrição, porventura outras autoridades, talvez missionários, personalidades de reconhecido mérito, etc. Se aqui destacamos a essência do que se pretendia apurar, importa reter o conceito de missão civilizadora, a incontestável preocupação em saber o quadro das mentalidades das diferentes etnias para não tratar uniformemente aquilo que não é uniforme. Estamos na década de 1930, pensava-se que existiam raças, recordo que em 1947 andou pela Guiné o professor Mendes Corrêa a medir crânios, alturas, desvio dos olhos, tamanho das orelhas, à procura de prognatismos e dolicocefalias, são hoje questões absurdas. E recordo igualmente que se dá um salto com os reconhecimentos etnográficos na década seguinte, Teixeira da Mota irá elaborar com base noutras pautas de rigor científico um questionário sobre a habitação na Guiné, ainda hoje um documento de leitura obrigatória, visava-se uma dimensão etnográfica, mas também havia subentendido o cuidado de melhorar as infraestruturas nessas tabancas. Mas isso é outra história, já não cabe nos comentários a este documento de referência que foi o questionário etnográfico de Velez Caroço.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Procurei nos Anais do Clube Militar Naval, no âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, artigos assinados por oficiais da Marinha. Encontrei um texto sobre a definição das fronteiras, a importante comunicação de Teixeira da Mota, logo em janeiro de 1946 dado como certo e seguro que Nuno Tristão fora frechado por Mandingas, mas na região do rio Gâmbia, aquela expedição não chegara a terras da Guiné; e por último uma apreciação muito desgostosa do Contra-Almirante Aprá que participara nas operações na península de Bissau em 1894 e que ficara consternado com a falta de preparativos do Governador, segundo Aprá perdera-se a oportunidade de ficar a dominar os povos residentes na península de Bissau.

Um abraço do
Mário



Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947)

Mário Beja Santos

Compulsando números antigos da prestigiada publicação "Anais do Clube Militar Naval", detive-me nos 76 e 77 anos da publicação, 1946 e 1947, respetivamente. Logo com o artigo intitulado "As Fronteiras", escrito pelo Capitão de Mar-e-Guerra Tancredo de Morais. O oficial começa por referir os limites que André Alvares de Almada, no seu Tratado Breve, tratado de 1594 propõe para a região da Senegâmbia, teoricamente território ocupado pelos portugueses: do rio Senegal à Serra Leoa. Ao tempo, esta Senegâmbia era uma espécie de morgadio de Cabo Verde. Os portugueses reconheciam a soberania dos régulos que lhes vendiam os escravos. A questão dos limites vai complicar-se com a chegada dos holandeses, que não encontraram qualquer resistência, que se estabeleceram em Arguim e depois na Goreia, ilha que ninguém defendia – aqui ficaram até 1677, data em que uma esquadra francesa os expulsou. Os ingleses estabeleceram-se na Serra Leoa, não houve qualquer reivindicação portuguesa. Os nossos diferendos diplomáticos serão com a Grã-Bretanha por causa da questão de Bolama e com a França quando esta procedeu a uma ocupação insidiosa do Casamansa. O autor dá-nos um resumo do envio de protestos para Paris e para o Senegal, a diplomacia francesa chegou ao descaro de informar que tinham sido os primeiros a chegar… Honório Pereira Barreto, sempre franco e leal, não deixou de descrever o que era a presença portuguesa em Ziguinchor: “Ziguinchor tinha 7 soldados, era defendida por uma paliçada e uma artilharia desmontada. Devia a sua conservação à família Carvalho Alvarenga. O seu comércio, que era importante, achava-se nas mãos dos franceses, depois que se havia estabelecido em Selho”.

O autor não deixa de chamar a atenção que a reação diplomática à ocupação britânica foi tíbia e insegura. Em vez de se apresentarem factos da ocupação desde o século XV, o mais que se pôde obter foram documentos que datavam do reinado de D. José. E menciona a sentença arbitral do presidente dos EUA, Ulysses Grant. As fronteiras definitivas vão surgir na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, mas os franceses ainda irão exigir, no processo de sucessivas retificações, mais algumas porções de terra.

Ainda em 1946, no número de março a abril, merece o devido relevo a referência à conferência que Teixeira da Mota proferiu em Bissau em 6 de janeiro desse ano, na abertura do V Centenário da Descoberta da Guiné. Com subtileza, o autor traça em longo preâmbulo considerações sobre a verdade em História, e a obrigação de ir desmantelando tabus e mitos. Era na época dado como assente que o primeiro descobridor que chegara a Guiné fora Nuno Tristão, aparece agora um oficial da Marinha, um jovem historiador, ainda por cima ajudante do Governador, a dizer que nada se passou assim. Descreve a descida progressiva da costa ocidental africana, a passagem do Cabo Bojador em 1434, no ano seguinte o mesmo Gil Eanes e Gonçalves Baldaia iniciaram a exploração da Mauritânia e chegaram a Angra dos Ruivos; e no ano seguinte o mesmo Baldaia foi ao Rio de Ouro e à Pedra da Galé. Seguem-se expedições em 1441 em que aparece pela primeira vez o nome de Nuno Tristão; em 1443 são descobertas as ilhas de Arguim e das Garças , foi um dado fundamental para o projeto henriquino, ergue-se em Arguim uma feitoria, tudo por causa do negócio do ouro; no ano seguinte, o cavaleiro-navegador Lançarote descobre mais ilhas, chegava-se à costa da Mauritânia, era a Terra dos Negros; em 1444, Diniz Dias avançava ao longo da costa dos Jalofos e descobria o Cabo Verde – os portugueses aproximavam-se das fontes do ouro. No Senegal e no Cabo Verde souberam pelos Jalofos que perto, para o sul, corria um largo rio, o rio Gâmbia, onde também abundava o ouro. Em 1446 larga do Algarve uma caravela capitaneada por Nuno Tristão, leva a bordo 30 homens. Chega ao Cabo dos Mastros, Nuno Tristão e os 30 homens embarcam em dois batéis, são cercados por canoas de indígenas e atingidos por flechas envenenadas, Nuno Tristão é uma das vítimas mortais. E Teixeira da Mota conclui: “Nuno Tristão não passou na realidade do Estuário Salum-Jumbas, que é propriamente um conjunto de braços de mar que se estende por algumas dezenas de milhas um pouco ao norte da foz do Gâmbia. Os indígenas que mataram Nuno Tristão eram Mandingas. Nuno Tristão não esteve, portanto, em 1446 em território atualmente português, mas traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio de uma das etnias que pululam a Guiné Portuguesa. Quis o destino que esse contacto se manifestasse da forma brutal que o caracteriza. Os poderosos imperadores do Mali, que lá muito para o Oriente, das margens do Níger, em Niani, sua capital, dirigiam os vastos domínios, ignoravam talvez a existência daquele chefe mandinga. Enquanto a grandeza mandinga entrava no ocaso levantava-se a portuguesa”.

Temos por último o artigo intitulado "A Companhia de Guerra da Marinha na Campanha da Guiné de 1944", aparece no 77.º ano, número de janeiro e fevereiro de 1947, assina A. Aprá, Contra-Almirante. Ele refere-se à companhia de guerra da Marinha que embarcou em Lisboa no transporte África, isto em fins de março de 1894, passou o mês de abril em Bissau apetrechar-se, havia que comprar chapéus de palha em Cabo Verde, fizeram-se a bordo polainas, bornais de lona e manteve-se a atividade física e os preparativos militares com exercícios diários no ilhéu do Rei. A Guiné era um distrito militar autónomo, quem iria conduzir as operações era o governador, o Coronel de Artilharia Vasconcelos e Sá. A coluna saiu de Bissau a 10 de maio, foram considerados importantes aspetos logísticos como o recrutamento de carregadores para transportar água e munições. O efetivo da companhia era 259 homens; tinha uma seção de metralhadoras com 25 praças e 1 oficial, 1 médico com 3 enfermeiros e 6 maqueiros, participava ainda uma seção de administração naval. E relata que tudo começou numa confusão na distribuição de cargas pelos carregadores, só se pôde partir às 8 da manhã, avançaram sobre Antim, fazendo fogo sobre o objetivo, só perto dele é que se verificou resistência, quando se chegou a Antim a povoação estava completamente vazia. Começou a falta de água, os rebeldes só apareciam dando tiros isolados. Depois das 2 da tarde chegou a ordem de retirar com as devidas precauções, esta companhia de guerra da Marinha veio acompanhada por uma companhia de Angola. Verificou-se uma enorme agitação porque os carregadores procederam a saque, isto quando havia punhetes para transportar, e o contingente militar acusava fadiga, e temia-se que os rebeldes atacassem a qualquer momento. Regressou-se ao acampamento de Antim depois de 7 horas de marcha, não havia a menor provisão de água e a refeição preparada era um autêntico desastre só no dia seguinte é que apareceu água e um rancho decente.

Aguardavam-se ordens para que esta companhia de Marinha saísse do Alto de Antim e avançasse sobre Antula. Houve troca de impressões sobre a ordem de marcha, à tarde veio ordem do governador dizendo que era tarde para começar a marcha sobre Antula e no dia seguinte chegava a notícia de que o mesmo governador considerava ser suficiente o castigo dado ao gentio; mais tarde regressou-se à praça de Bissau onde se embarcou no navio África. E o contra-almirante Aprá termina com uma apreciação altamente crítica:
“Assim terminou a campanha de 1894, mandada acabar por quem direito. Foi incompleto o serviço? Sim. Mas foi a primeira vez que uma força europeia de uma certa importância entrou em operações de guerra na Guiné. Nada estava preparado, não havia planos, organização, nem se pensou em abastecimentos.
Se tivesse havido um verdadeiro Estado-Maior, e serviços administrativos regulares, se tivesse havido um modesto serviço de transportes e não estivessem na mão de carregadores gentios que só marcham com as forças para matar, roubar e incendiar, enchendo-se de despojos e abandonando as nossas cargas, tenho o pressentimento que a companhia de Marinha que, no dia 10 de maio, tinha ganho um verdadeira ascendente sobre o gentio fugia apavorado com o nosso avanço, essa companhia sozinha tinha feito ocupação da ilha de Bissau. Do exposto se concluí que a coluna organizada em 1894 não foi encarregada da ocupação militar da ilha de Bissau, foi como diz o Governador e o Governo Central concordou, um castigo dado ao indígena pelos altos de selvajaria anteriormente praticados. É a este ponto que quero chegar, não pode considerar-se um desastre que em campanha me parece ser sinónimo de derrota”
.

E assim termina a colaboração alusiva ao V Centenário da Descoberta da Guiné nos Anais do Clube Militar Naval.


Uma bela fotografia de Andrea Wurzenberger captada na Guiné, com a devida vénia
Um comboio de embarcações comerciais no rio Geba
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23700: Historiografia da presença portuguesa em África (338): Viagens por alguns títulos do Boletim Geral das Colónias (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23634: Historiografia da presença portuguesa em África (335): As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Reiteradas vezes aqui se tem feito referência ao padre António Joaquim Dias, um franciscano que viveu 8 anos na Guiné e que deixou descrita a história das missões católicas na Guiné, foi o pioneiro, mais tarde distinguir-se-á o trabalho, que continua a ser referência essencial, do padre Henrique Pinto Rema, já aqui largamente citado. Faz-se sinopse de uma conferência proferida por este missionário franciscano em agosto de 1942, ele dá conta desse historial missionário e da obra que se começou a efetuar a partir de 1932, data marcante para o reinício da atividade missionária na Guiné, onde os franciscanos preponderavam e preponderam.

Um abraço do
Mário



As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se fala no missionário franciscano padre António Joaquim Dias [foto à direita], viveu na Guiné mais de 18 anos, e sobre ela escreveu abundantemente, no boletim mensal dos missionários franciscanos, como leitor recordará. No entanto, este sacerdote virá a destacar-se como investigador e historiador com nome de António Joaquim Dias Dinis, foi mesmo condecorado em 1961 com a Ordem do Infante pelos seus relevantes trabalhos. Não deixou de ter polémicas, como aquela que travou com Teixeira da Mota pela descoberta da Guiné.

Proferiu uma conferência sobre as missões católicas no curso de férias da Faculdade de Letras de Coimbra, em 20 de agosto de 1942, e o seu trabalho de marca científica será publicado na revista Biblo, volume XIX, 1943. Começa por referir que regressara há meses da Guiné após 8 anos consecutivos de atividade nas missões católicas. Dedicara-se ao estudo do passado da colónia, nomeadamente das suas missões, razão pela qual aceitara o convite para abordar este tema.

Não ilude verdade, diz serem bastante débeis os ecos da nossa atuação missionária na Costa da Guiné, do século XV ao século XX, não existiam ruínas nem vestígios do passado missionário. Dá ao auditório um vasto leque de informações, desde a geografia à etnografia. Apresenta-lhes uma definição de missões católicas: assistência e ação religiosa e civilizadoras, dos sacerdotes católicos e dos seus colaboradores leigos. E recorda que a Guiné Portuguesa é o território que pertence a Portugal desde que no século XVII principiou o cerceamento dos nossos vastos domínios. A delimitação da Guiné, a Terra dos Negros, principiava a norte na margem do rio Senegal, e faz então uma citação do Canto V d’Os Lusíadas, estrofe 102:
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente.


Cita documentos comprovativos sobre a finalidade religiosa dos Descobrimentos, lembrando que em 1455 o Infante D. Henrique entregara a espiritualidade da Guiné à Ordem de Cristo. Em 1462, o Papa Pio II, em breve dirigido a um bispo de Rubicão, nas Canárias, diz constar-lhe que ele andava empenhado em converter infiéis, moradores nas ilhas Canárias na província da Guiné, e que, em razão da pobreza da terra e dos habitantes, os presbíteros e clérigos seculares se recusavam a viver ali.

O conferencista destacou a atividade missionária de Frei Afonso de Bolano, nomeado pelo Papa Xisto IV, em 1472, Núncio Apostólico para a conversão dos infiéis, a viverem em Granada, Guiné, África e ilhas do Atlântico. Tal nomeação gerou polémica com os superiores das Ordens Religiosas, e a decisão acabou por ser revogada. No entanto, Xisto IV outorgou em 1475 que Frei Afonso Bolano recrutasse 16 religiosos da família franciscana nas províncias de Portugal, Santiago de Compostela, Castela e Aragão. Esta missionação revelou-se ineficaz, por várias causas: isolamento em que viviam os visionários; clima mortífero; o islamismo tudo fazia para dificultar a atividade missionária; antipática e até a hostilidade do indígena para com o europeu, em razão da escravatura. E observa: “Não me parece que a Missão tenha findado por menos zelo dos obreiros; mas sim por motivos idênticos aos que tornaram improfícuas as expedições dos missionários dominicanos a Benim e ao Senegal em 1487 e 1488, respetivamente”.

Foram depois chamados os Jesuítas para fundar um colégio em Cabo Verde e missionário na Guiné. Os Jesuítas enviaram os padres Baltasar Barreira, Manuel de Barros e Manuel Fernandes e o irmão leigo Pedro Fernandes. Barreira apresentou o seu programa ao Provincial dos Jesuítas: tratava-se de uma missão para examinar as condições da região e sugere que ela se mantenha no maior segredo. O padre Baltasar Barreira partiu de Santiago em dezembro de 1604, aportou em Guinala, no rio Grande de Buba, e daqui desceu para a Serra Leoa. Na sede em Lisboa dos Jesuítas, em São Roque, deu-se uma inflexão estratégica, ofereceram-se padres para Angola, pois considerou-se que Cabo Verde era insalubre para ter um seminário. Aconteceu que não foi concedido a Companhia de Jesus o exclusivo da missionação de Angola, foi nomeado para Bispo de Angola e Congo um dominicano. Então os Jesuítas fundaram uma missão na Serra de Leoa, foi aqui que Baltasar Barreira e Manuel Álvares encetaram atividade missionária. O rei Filipe, em 1608, mantinha os Jesuítas em Cabo Verde e ordenava visitas à Guiné. Em Cabo Verde fundar-se-ia uma casa professa. Dificultava-se a ida de padres para a Guiné alegando que faziam falta em Cabo Verde. Em 1642, os Jesuítas abandonaram definitivamente Cabo Verde e Guiné.

Escreve o autor: “É digno de censura a teimosa dos reis castelhanos, que, por via do colégio e por coisas de somenos importância, impediu a missão missionária na Costa da Guiné, precisamente quando ela ali era mais necessária”. E regressaram então os franciscanos.
Aos poucos, a presença estrangeira cresceu na Costa da Guiné. Houve projetos de introduzir Capuchinos Italianos, mas não se concretizou. Os franciscanos chegaram a Cabo Verde em janeiro de 1657. Desembarcaram em Cacheu dois padres, em 1660. Principiaram a sua atividade na etnia Banhum e passaram a Farim, seguiram para os Cassangas e depois o Casamansa. E chegaram a Bissau onde os cristãos estavam abandonados e a igreja paroquial encerrada.

Foram criadas, nas décadas seguintes, hospícios em Cacheu, Bissau e Geba. O primeiro bispo de Cabo Verde que visitou Guiné foi D. Frei Vitoriano do Porto, e por duas vezes. O autor traça um martirológico missionário impressionante. As ordens religiosas entraram em franca decadência em finais do século XVIII. Deu depois a extinção das Ordens, em 1834, foi golpe mortal na região, as cristandades definharam. O renascimento deu-se em 1932, com a reabertura da missionação: renasceram as antigas paróquias de Bissau, Bolama, Cacheu e Geba. “Na Missão Central de Bula, nas escolas missionárias de Bissau, Có, Pelundo, Churo, Cacheu, Geba, Bor, e no asilo-creche de Bor, as futuras gerações aprendem a amar a Deus”.

Asilo da Infância Desvalida de Bor, em 1939
Em Geba reabilita-se uma Igreja
Imagens da missão franciscana na Cumura, na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23616: Historiografia da presença portuguesa em África (334): Personalidades e olhares sobre a Guiné que poucos recordam ou conhecem (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23566: Notas de leitura (1482): Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É evidente que me senti atraído por este número da revista dirigida por Adriano Nogueira, o que João Tendeiro escreveu sobre a Guiné é relevante, ele procede a um esforço Hercúlio para sinalizar uma literatura escrita por colonos brancos e cabo-verdianos. O livro que maior circulação tinha, durante gerações, era a "Mariasinha em África", de Fernanda de Castro, recomposto de edição em edição, até se tornar politicamente correto, deixando o autóctone ser tratado como um bom selvagem. A figura principal deste período terá sido Fausto Duarte. Mas o que fundamentalmente me atraiu nesta revista, e não escondo a minha grande surpresa, foi encontrar uma referência minuciosa ao I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, que se realizou na Sorbonne entre 19 e 22 de setembro de 1956, onde esteve seguramente Mário Pinto de Andrade e ainda maior surpresa encontrar na íntegra a mensagem de Sékou Touré ao congresso seguinte que se realizou em Roma, uma arma assentada ao colonialismo português. Como foi possível publicar este libelo acusatório numa revista do regime, não deixa de nos assombrar. Por tal razão, em próxima oportunidade, iremos referir o que Sékou Touré mandou na sua mensagem, certamente saída do punho de um intelectual do seu círculo privado.

Um abraço do
Mário



Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Estudos Ultramarinos era a publicação do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, tinha como diretor Adriano Moreira. No seu n.º 3, de 1959, publica-se um artigo de João Tendeiro intitulado “Aspetos Marginais da Literatura na Guiné Portuguesa”. Recorde-se que Leopoldo Amado é autor de um excelente trabalho sobre a literatura do período colonial na Guiné (https://vdocuments.site/literatura-colonial-guineense.html).

O quem nos sugere João Tendeiro? Maior clareza não pode haver: “A Guiné não nos deu até agora um escritor nativo. No campo da ficção, as poucas obras de fundo têm sido escritas por europeus ou cabo-verdianos. É o caso dos romances e contos de Fausto Duarte e de vários contos esporádicos de Alexandre Barbosa, F. Rodrigues Barragão e outros, publicados no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa". Mário Pinto de Andrade, se quis inserir, na sua "Antologia da Poesia Negra", uma produção poética representativa da Guiné, teve de recorrer a um poema de um jovem cabo-verdiano, Terêncio Casimiro Anahory Silva”. Segundo o censo de 1950, frente à Guiné Portuguesa, o português era falado por 1157 indígenas analfabetos e escrito por 1153. João Tendeiro procura explicações edulcoradas para justificar este buraco negro, como numa colónia portuguesa não havia literatura portuguesa escrita por autóctones: “Um dos fatores primordiais da ausência de uma expressão escrita nos meios nativos consiste nas possibilidades reduzidas de que estes dispõem para alcançar um nível intelectual compatível com a sua realização, segundo os padrões universais da arte literária. António Carreira procede a uma outra apreciação, dizendo que as comunidades africanas possuem na vertente da educação uma estrutura muito sua, todo o fio da educação utiliza a transmissão por via oral”. Os europeus, escreve ele, ao contatar intensamente com estas comunidades com o objetivo de as orientar, educar e instruir, têm de enfrentar os inevitáveis problemas inerentes ao choque de culturas diferentes. "A grande massa nativa continua ainda a reger-se pelo regime jurídico aplicável à situação legal de indígena”. Também se faz o reconhecimento de que o islamismo se fazia acompanhar da difusão da escrita árabe. Viriato Tadeu, no volume "Contos do Caramô", bem como os contos publicados por António Carreira, Amadeu Nogueira, A. Cunha Taborda e A. Gomes Pereira no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa" fazem-se ressaltar a literatura oral, os provérbios e as poesias declamadas de diferentes etnias guineenses.

Vê-se que João Tendeiro leu atentamente todos os números publicados do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. E dá o crioulo como língua veicular pouco suscetível de atrair os guineenses para usá-la literariamente, fazendo o seguinte comentário: “O crioulo enferma de todas as caraterísticas das linguagens faladas e sem grafia independente. Quer dizer: quando transposto para a escrita fica subordinado ao idioma escrito da região. Não existe uma correspondência entre o crioulo e a ortografia portuguesa”. E vai mais longe: “Os crioulos portugueses escritos – seja o da Guiné, sejam os das diversas ilhas de Cabo Verde – não constituem entidades filológicas independentes mas sim transcrições dialetais fonéticas, em termos de português”. E contextualiza o uso do crioulo pelas camadas civilizadas e assimiladas: “Na Guiné, com exceção de alguns núcleos de origem, ascendência ou influência cabo-verdiana, localizados particularmente em Cacheu, Bolama, Bissau e Geba, o crioulo desempenha apenas o papel de linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre as diferentes tribos”. E procede a uma sentença quanto aos limites do crioulo: “Do ponto de vista da escrita, é tão estéril como o são as línguas nativas sem representação figurativa dos fonemas”.

E traça comparações com Cabo Verde:
“Enquanto em Cabo Verde o crioulo assumiu o caráter de uma linguagem substituta dos idiomas nativos primitivos, enfeudada à língua portuguesa oficial, na Guiné reveste apenas o aspeto secundário de língua aprendida, desempenhando entre as populações locais um papel semelhante ao dos idiomas utilizados nas relações internacionais entre os povos civilizados”. E o seu acervo de considerações dirige-se a questões relacionadas com a pacificação de Teixeira Pinto: “De todos os povos nativos, a tribo Papel foi a que durante mais tempo se opôs à preponderância dos brancos na Guiné. Os Papéis conseguiram durante anos e anos manter em cheque as forças empenhadas em subjugá-los. Porém, em 1915, as colunas comandadas por Teixeira Pinto irromperam pelas regiões de Safim e do Biombo e impuseram-lhes uma derrota decisiva. A queda, após esta derrota, pode dizer-se que foi vertical. A tribo altiva de outrora deu lugar a uma gente fraca e sem vontade”.

Mudando de agulha, João Tendeiro volta-se para a educação. “Nos termos do Acordo Missionário e do Estatuto Missionário, o ensino dos indígenas é feito na Guiné pelas missões católicas, em escolas de ensino primário rudimentar, cabendo ao Estado a educação dos elementos civilizados. Com a criação, em 1949, do Colégio-Liceu de Bissau, aumentaram as possibilidades de educação dos portugueses residentes na Guiné. Trata-se, no entanto, de uma iniciativa recente e cujos frutos, pelo menos no campo da literatura, ainda não surgiram, se bem que vários estudantes guineenses frequentem universidades na metrópole. Simultaneamente, deu-se mais um passo para a ascensão dos indígenas à cidadania, uma vez que nos termos de legislação de 1946 se consideram como cidadãos portugueses, para todos os efeitos, os indivíduos de raça negra, ou dela descendentes, que possuam, como habilitações literárias mínimas, o 1º ciclo dos liceus ou estudos equivalentes”.

Para além deste trabalho missionário, o autor não deixa de evidenciar a importância do ensino corânico. E cita Teixeira da Mota que refere que em 1951-1952 havia na Guiné 436 escolas corânicas para cerca de 45 escolas das missões católicas, estas com 1044 alunos. Obviamente que o ensino era feito em árabe, com as contingências do uso das línguas locais. Fosse como fosse, os islamizados da Guiné nutriam grande respeito pelos missionários:
“Não têm qualquer hesitação em mandar os filhos às escolas onde eles lecionam. Mas, ao menor intento de catequese, ao mais pequeno sinal de que o espírito da criança se está interessando pela religião dos brancos – logo se ergue uma barreira a isolá-lo e a afastá-lo de tal influência”.

E tudo vai culminar com uma nota picante, a aflorar o mito imperial:
“O problema do ensino dos nativos apresenta-se na Guiné Portuguesa revestido de duas tendências antagónicas. Numa, que representa o ponto de vista tradicionalista fundamentado na noção de superioridade europeia, as populações nativas devem ser educadas num regime de segregação completa dos civilizados; se se trata de mestiços, instáveis por complexo constitucional, na sua recente interfusão de sangues díspares – em que um transmite as hereditárias aquisições multiseculares dos brancos e o outro o primitivo intonso e rude dos negros; se se trata desses mesmos negros, de índole comunitária, estrutura mental pré-lógica, vida imemorial estagnada ou em regresso, marcada por signos e estigmas de diversas estirpes, divergentes da do civilizado branco. A segunda, encaradas pelos defensores do primeiro ponto de vista como própria de idealistas sem o sentido das diferenças psicofisiológicas e sociais entre pretos, mestiços e brancos, proclama um programa em bases semelhantes para o europeu e para o nativo, a quem o ensino rudimentar e elementar colocou em condições de frequentar as mesmas escolas que os brancos”.

Seriam estas as duas tendências. Mas Sarmento Rodrigues impôs a língua portuguesa para todos, sem discriminação.

Ficamos a saber que não havia literatura portuguesa escrita por guineenses e que o ensino dera um verdadeiro salto na segunda metade da década de 1940, irá gradualmente crescer o número daquele que irão falar fluentemente português. E como se vê hoje, os escritores da Guiné-Bissau exprimem-se sem rebuço na língua portuguesa e no seu crioulo.


Mariasinha em África, ilustração de Sarah Affonso
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23565: Notas de leitura (1481): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte III: O Tala Djaló, cmdt do Pel Mil 143 e depois fur grad 'comando' da 1ª CCmds Africana, que virá a ser fuziladdo em Conacri, na sequência da Op Mar Verde

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Há algo de assombroso no percurso curricular de Graça Falcão, um condecorado com a Torre e Espada que irá ver o seu nome bem maltratado, no campo dos negócios, das relações políticas e sociais, pouca gente merecerá tanta hostilidade na Guiné como ele. Está ligado a um grande desastre no Morés, de onde escapou por uma unha negra. Como responsável pelo presídio de Farim, elaborou duas cartas topográficas que, assegura António Carreira no estudo que aqui é referenciado, é um documento memorável e indispensável para estudar aprofundadamente as rotas da expansão da islamização na Guiné.

Um abraço do
Mário



Graça Falcão, uma das figuras mais espantosas que passaram pela Guiné

Beja Santos

Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016. Tivesse eu condições e metia-me a estudar algumas figuras de traços mirabolantes ou com elevada carga enigmática: Graça Falcão, Marques Geraldes, Rafael Barbosa ou Osvaldo Vieira. Graça Falcão, alferes, é transferido de Angola para a Guiné em abril de 1892, em cumprimento de uma medida disciplinar determinada pelo Governador-geral de Angola. Alferes da Bateria de Artilharia de Montanha, é graduado em tenente a 1 de maio de 1894 e em 23 de maio é nomeado Comandante do Presídio de Farim. Será nessas funções que elaborará duas cartas topográficas (1894-1897), com alto significado, pois dão alguma compreensão à expansão do islamismo no rio Farim, António Carreira publicará um estudo alusivo, aqui se fará referência. Em abril de 1895, a pedido dos Balantas de Barro, Graça Falcão vai a esta localidade, solo que nunca tinha sido pisado por autoridade alguma portuguesa, deixa a bandeira e lavra o competente auto de vassalagem. Em 22 de setembro de 1896 é Cavaleiro da Torre e Espada pelos serviços prestados ao reaver três embarcações em poder dos gentios do Biombo e da ilha de Jata. Será louvado por Portaria Régia pelo bom resultado de uma expedição ao Oio. Em 1897, dá-se uma desastrada incursão de Graça Falcão no Oio, ele andara por aqui no ano anterior. O Tenente Herculano da Cunha relatará as peripécias como Graça Falcão conseguiu escapar vivo, andou sozinho fugitivo, embora Herculano da Cunha, nos seus relatórios, o desse por morto. Irá ressuscitar, abandona a vida militar, entrega-se a negócios, suscita ódios, são histórias dignas do mais vibrante romance de aventuras. Encontrei correspondência do responsável do BNU na Guiné considerando-o homem de mau caráter e mau pagador. Postos estes episódios de uma carreira mirabolante, vamos ao documento de António Carreira.

Ele começa por afirmar que a Guiné esteve sempre sujeita à influência dos movimentos desencadeados pelos dirigentes islâmicos, tanto do Futa-Toro como do Firdu e do Futa-Djaló. E faz uma resenha histórica:
“A luta travada em África pelos povos islamizados com vista à submissão dos animistas à doutrina do Alcorão data de há cerca de nove séculos. Nesse decurso de tempo, conheceu fases de progresso, de estagnação ou mesmo de retrocesso, e fases de grande e espetacular progresso.
Sabe-se com segurança que os povos de Sonin e de Mandé atingiram a área da nossa Guiné nos séculos XIII ou XIV. Admite-se como certo que estes dois grandes grupos, ao fixarem-se no Alto Geba (no Cabo, N’Gabu ou N’Gabu-El, como era então conhecido) e no Brasso (ou Berassu), eram, ainda, na sua totalidade, animistas.

No início do século XVIII, nesta área, só existia um culto: o animista. Os povos que o seguiam estavam distribuídos da seguinte forma:
1.º Nas duas margens do Casamansa: Felupes, Baiotes, Banhuns, Cassangas e Balantas (os atuais Diolás dos Franceses), Soninqués, Mandés e Fulacundas (os nossos Fulas-Forros);
2.º No Futa-Djaló: a) Os denominados Djaló-Nkas, os mestiços de Mandés, sobretudo Sossos; b) Os descendentes de camadas de origem peul ou pulô, que em data imprecisa, mas por volta de 1500-1511, invadiram o Futa. Os parentes mais próximos destes Pulis existiam em estado de relativa pureza étnica na primeira vintena deste século no Ferlo e no Futa-Toro, mas, tal como os de Futa-Djaló, muitos ainda inteiramente animistas”
.

A islamização acentuou-se no Futa-Toro, e encontrou sérias resistências no Futa-Djaló. Houve lutas terríveis que duraram até ao final do século XVIII ou mesmo no início do XIX. Foram dados como submetidos e dominados os animistas do Futa-Djaló e então os Fulas dividiram o território numa espécie de províncias religiosas. António Carreira disserta sobre esta organização religiosa e o seu controlo. E diz mais adiante que em cerca de 1900 se deu a penetração do Casamansa, na Guiné Portuguesa e no Futa-Djaló de Marabus procedentes da Mauritânia. A expansão islâmica espalhou-se por uma boa parte da colónia. “O Boé, designadamente a povoação de Dandum, passou a ser um dos principais refúgios dos familiares e partidários de Alfá Iaia. Muitos deles encaminharam-se, através da nossa Guiné, para o Casamansa e Gâmbia”. Estava consumada a islamização da região Leste e também de Farim.

Carreira, que publica este trabalho em 1963, recorda que percorrera as duas margens do rio Farim a pé há mais de quarenta anos, fizera ali vários recenseamentos fiscais. Nessa época, os Balantas só em mínima parte se tinham deixado mandinguizar, ou seja, islamizar. E é muito interessante o que escreve a seguir:
“Em outro trabalho já publicado tive a oportunidade de esclarecer que a designação Balanta-Mané deriva da junção do etnónimo Balanta do apelido, de origem mandinga, Mané. Parece que foram os cristãos que o difundiram com o intuito de individualizar os Balantas integrados na cultura Mandinga e para não se confundirem com os que se conservavam apegados às tradições próprias do grupo. Como o apelido Mané era o mais generalizado no setor Mandinga confinante com os Balantas, estes, quase em massa, mal se mandinguizavam, adotavam-no espontaneamente como segundo nome. Portanto, o sinal mais concludente da integração do Balanta na cultura Mandinga era o uso deste apelido”.

Depois de ter feito referência às confrarias islâmicas do Senegal e do Futa-Djaló e a sua influência no território da colónia, alude ao estudo da difusão do islamismo entre os povos da Guiné. Diz que falta documentação adequada. E é então que informa que Teixeira da Mota lhe facultara duas cartas topográficas da região de Farim elaboradas pelo oficial do Exército Jaime Augusto da Graça Falcão. Diz que o conheceu e o apreciou e que estes documentos revelam esboços topográficos que dão uma imagem bastante exata do que era, então, a distribuição da população pelas duas margens do rio Farim. Segue-se uma enumeração exaustiva e interpretativa dos dois mapas e conclui vaticinando que este modesto subsídio sirva para despertar a ideia da elaboração de um estudo sistemático do processo da islamização das gentes da Guiné.

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23460: Nota de leitura (1468): “A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial”, por Fátima da Cruz Rodrigues, na revista Ler História, n.º 65 de 2013 (Mário Beja Santos)