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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26516: Notas de leitura (1774): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: A sua colaboração num livro de arromba, Orlando Ribeiro em 1947, na Guiné (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Momentos há em que tiro da estante este livro que tem para mim um incalculável valor só para consultar a transcrição da agenda de Orlando Ribeiro. Mas tenho que fazer jus à importância do trabalho desenvolvido por Philip Havik e Suzanne Daveau, tem logo à partida o inegável mérito de nos lembrar que há um conjunto importante de informações relevantes sobre sociedades e paisagens africanas que se conserva inédito em arquivos portugueses. Mérito pela forma como contextualizaram a organização desta missão, como explicam a estrutura do conteúdo do caderno (onde Orlando Ribeiro guardou o seu trabalho de campo) e para além da publicação numa revista, anos depois, a obra tem igualmente muita importância pelos anexos e o acervo fotográfico. Estou absolutamente seguro quando digo que se trata de um livro de arromba, indispensável a quem queira conhecer e estudar este momento tão exaltante do período colonial, correspondente à governação de Sarmento Rodrigues.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
A sua colaboração num livro de arromba, Orlando Ribeiro em 1947, na Guiné (2)


Mário Beja Santos

Desta obra já aqui falei no blogue e fiz um outro texto que publiquei num livro online. Philip Havik, conjuntamente com a viúva do professor Orlando Ribeiro, trouxeram a público um documento portentoso, demonstrativo do poder de olhar do mais conhecido e célebre geógrafo português que contribuiu para o conhecimento da Geografia no Ultramar, nos anos 1940. Havik e a viúva de Orlando Ribeiro, Suzanne Daveau, organizaram o documento, com as notas e os desenhos do caderno de campo que aparece reproduzido no livro, bem como as fotografias que o geógrafo tirou durante as suas estadias na Guiné, em 1947.

Os organizadores desvelam a essência do modo de trabalhar, observar e escrever do consagrado geógrafo:

“Os temas preferidos da investigação foram o povoamento, a economia e os modos de vida rurais, aos quais muitas notas geomorfológicas e climáticas são subordinadas. A importância que sempre deu âs relações com disciplinas próximas, como a agronomia, a etnologia ou a história, perpassa nestas notas.”

E explicam os organizadores como tudo começou:

“A Missão de Geografia na Guiné insere-se nas atividades promovidas pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, fundada em 1936, e que a partir de 1951 se passará a chamar Junta de Investigações do Ultramar. Orlando Ribeiro acabava então de solicitar uma missão de estudos a Cabo Verde, mas decidiu aproveitar a oportunidade de ir conhecer e estudar a Guiné. Com efeito, a segunda Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, a decorrer em Bissau, encontrava-se em preparação. Decidiu-se juntar este conhecido cientista que iria dirigir uma Missão de Geografia. O reconhecimento geral da colónia seria feito em conjunto por Carrington da Costa, o seu ajudante Décio Thadeu e Orlando Ribeiro, para se aproveitar o melhor possível os recursos disponíveis. O essencial do que se sabe, hoje ainda, da geologia da Guiné resulta principalmente daquelas missões.”

Havia, é certo, já trabalhos científicos preliminares, caso da Carta da Colónia da Guiné, em 1933, atuava a Missão Geo-Hidrográfica, havia estudos etnográficos que eram animados pelo então tenente Teixeira da Mota. Os autores recordam que o governador da Guiné era o comandante Sarmento Rodrigues, Avelino Teixeira da Mota dava impulso a uma plêiade de colaboradores locais. 

Fora criado em Bissau um Centro de Estudos (1945) e um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota dirigiu um Inquérito Etnográfico, uma obra de referência. A ajuda de Teixeira da Mota e de funcionários coloniais revelou-se muito importante para a missão de Orlando Ribeiro. Decorria na época uma investigação sobre a habitação indígena, que serviu também de oportuno pano de fundo da missão. Mais tarde, um jovem sociólogo formado pela Escola Superior Colonial, Francisco Tenreiro, iria publicar um estudo sobre as “Populações Nativas da Guiné”, que contou com o inquérito etnográfico de 1946 e com o material recolhido por Orlando Ribeiro durante a sua missão.

Orlando Ribeiro não percorreu toda a Guiné, embora tenha viajado centenas de quilómetros pela rede de estradas de terra batida não conseguiu visitar a parte Sul da província, mas o geógrafo chegou até às solitárias colinas do Boé. Como escrevem os organizadores, as observações e experienciais pessoais feitas no terreno tornaram-se, atualmente, parte integrante das teses de doutoramento em Antropologia, a sua publicação, noutras disciplinas como a Geografa, não era regra, nem o é ainda hoje. Observam os coordenadores:

“É importante ponderar em que medida o caderno agora publicado reflete as observações realizadas pelo autor durante esta curta missão. A preparação da sua edição deparou com várias dificuldades. O autor teve raramente o cuidado de datar exatamente os seus apontamentos e de registar imediatamente as numerosas fotografias que foi recolhendo. Tornou-se, portanto, necessário reconstituir o melhor possível o desenrolar da investigação, com a ajuda de uma pequena agenda de bolso, de um caderninho de fazer as contas, também irregularmente preenchido. (…) O caderno contém essencialmente – além de alguns cortes topográficos e geológicos, cuidadosamente levantados – plantas pormenorizadas de casas rurais e inquéritos realizados junto de camponeses ou colonos, sobre as suas atividades, recursos e modos de vida.”

Nestas notas introdutórias, os coordenadores também têm o cuidado de mencionar o conjunto de monografias que se publicaram na época e posteriormente e dão um amplo esclarecimento sobre o significado da missão na Guiné de Orlando Ribeiro. Dá-se igualmente conta da organização do caderno, explana-se sobre as características geomorfológicos e pedológicas da Guiné, as fases da missão e como se plasmam as duas partes do caderno.

Segue-se a transcrição do caderno que, confesso, põe à prova o grau apurado deste intelectual, senão mesmo a prova provada de um raríssimo poder de análise, ainda por cima de um geógrafo que pisava pela primeira vez aquele terreno. Segue-se a reprodução do artigo que Orlando Ribeiro publicou em 1950 sobre esta missão de geografia na publicação Anais, da Junta de Investigações Coloniais do Ministério das Colónias. Há parágrafos que são bem elucidativos da têmpera deste geógrafo e do seu humanismo:

“Procurei entrar em contacto com as populações e informar-me dos seus modos de vida e economia. A época era má, visto que as culturas se fazem quase só durante o tempo das chuvas. Vi ainda lavrar algumas bolanhas e recolhi uma coleção de instrumentos gentílicos usados no amanho de terra (…) Qualquer trabalho de geografia carece de base cartográfica. A colónia possui apenas um mapa de reconhecimento na escala de 1:500 000, cheio de imperfeições, lacunas e erros. As necessidades da colónia e da investigação científica tornam urgente a publicação de um mapa mais exato, com o relevo figurado e em maior escala.”

Descreve os objetivos do trabalho, faz uma súmula de resultados científicos, o seu capítulo sobre a colonização é de inegável interesse, merece reflexão o que este investigar escreveu em meados do século XX:

“A Guiné não é uma colónia de povoamento. Sejam quais forem os atrativos do desenvolvimento recente da capital e outras vilas proporcionem aos europeus, sem embargo da exceção velhos colonos que gozaram sempre de saúde e robustez, o clima é pouco propício aos brancos. O paludismo grassa com intensidade, principalmente na época das chuvas; as formosíssimas ilhas de Pecixe e Jata são grandes focos de doença do sono espalhada mais ou menos por toda a colónia, assim como a lepra, a disenteria amibiana, a ancilostomíase, etc. Saneou-se parte dos arredores de Bissau, mas é impossível sanear as bolanhas do litoral que são uma das grandes fontes de riqueza da Guiné pela cultura do arroz. A temperatura é elevada e torna-se molesta e depressiva, principalmente no interior, pior ainda quando no tempo das chuvas se lhes junta uma humidade sempre alta. 

"Salvo durante umas breves horas da manhã ou à tarde estão vedados aos brancos o trabalho agrícola e a longa exposição ao Sol. Onde principalmente se vê quanto esta terra é imprópria para o europeu é no aspeto pálido e enfezado que as crianças normalmente robustas adquirem ao fim de pouco tempo de permanência. O branco vem para se demorar uns anos que os azares da vida podem alongar, mas nunca com o espírito de fixar-se; a família fica muito longe ou passa largas temporadas noutro clima. Lentamente o homem isolado, ruído pela melancolia, abandona-se à sedução das belezas locais e às vezes uma prole batizada pode fixá-lo a este solo hostil.”

Por último, esta edição preparada por Philip Havik e Suzanne Daveau recolhe importantes imagens de áreas portuárias, trabalhos agrícolas, palmares, moranças, cenas de mercado, gentes de todas as idades e há uma imagem para a qual ele guardou sempre um grande sentimento, a fotografia em que ele aparece com o seu companheiro guineense de toda a missão, Talibé. Os coordenadores juntam materiais de apoio como glossário e bibliografia.

Não se pode estudar na Guiné deste tempo sem ler este livro admirável, é mesmo de leitura obrigatória.

Orlando Ribeiro
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Notas do editor:

Vd. post de 14 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26504: Notas de leitura (1773): "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Era para mim um imperativo regressar a um ensaio de altíssima qualidade sobre uma questão que se tornará crucial para entender os termos em que os representantes portugueses assinaram em Paris a convenção luso-francesa, em 12 de maio de 1886. Maria Luísa Esteves dá conta do rol de adversidades que pesaram na ténue presença portuguesa na Guiné ao longo de séculos, confinada a fortaleza-feitorias, o assalto persistente de franceses, ingleses e holandeses para tomarem posições e quando se chegou à Restauração estávamos reduzidos a uma Senegâmbia portuguesa que em termos de litoral se aproximava às fronteiras de hoje, porque no interior aventuravámo-nos no interior até Geba, e pouco mais. E é muito agradável recordar o trabalho incansável de Honório Pereira Barreto, um dos pais da Guiné-Bissau, lamentavelmente ignorado nos dias de hoje. O último texto será dedicado aos termos da convenção luso-francesa e às sucessivas etapas da delimitação das fronteiras, processo só concluído na década de 1930.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Continuando o histórico sobre a presença portuguesa na região, a autora recorda que ao porto de Bissau afluíam os produtos e os escravos vindos das regiões do rio Geba e de outros pontos. Vai surgir a primeira fortaleza. O governador Veríssimo Carvalho da Costa obteve do régulo de Bissau licença para a construção da fortaleza, iniciou-se em 1687. Para fazer face às despesas da construção, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, no início de 1690, e estabeleceu-se a capitania-mor em Bissau em 1692. Mas o tempo não soprava de feição a favor da Guiné. O governo, ofuscado pelo brilho das riquezas do Brasil, deixava o porto de Bissau à mercê da ambição dos franceses. D. José I imprimiu um novo rumo à política ultramarina, seguiu para a Guiné a nau Nossa Senhora da Estrela e mais três navios, levavam homens e apetrechos para construir uma nova fortaleza. E a exploração da costa da Guiné foi dada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão, com obrigação de acabar as obras da fortaleza.

Em 1783, uma nova empresa vai tomar a responsabilidade do comércio, denomina-se Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde, durou pouco, foi dissolvida em 1786. É neste contexto que a autora recorre a uma caracterização feita por Teixeira da Mota como síntese do sistema económico: “Durante séculos, pontificou a ‘economia de resgate’, com feitorias e fortalezas para a proteger. O sistema de trocas constava em contas, vidros, objetos metálicos, panos e álcool trocados por escravos, marfim e oiro. Havia produtos da Europa ou das ilhas de Cabo Verde e faziam-se trocas com o comércio regional: nozes de cola, ferro e até arroz da Serra Leoa por escravos do Cacheu e do Gâmbia.” Ao findar o século XVIII, Portugal possuía espalhados pela costa da Guiné centros de tráfico negreiro com as suas feitorias-fortaleza.

Mas numa atmosfera de tanta adversidade, evitou-se a formação de mais núcleos e assim os pontos mais importantes eram Cacheu, Bissau, Geba, Ziguinchor e Farim. Este era o panorama da Guiné. E se lhe juntarmos a existência de feitorias inglesas e francesas e o contrabando feito pelos barcos americanos, temos a visão completa desta colónia ao findar o século XVIII, é um quadro de decadência que se irá agravar com a repercussão no Ultramar das lutas fratricidas (que culminarão com o fim do absolutismo miguelista).

Franceses e ingleses procuram expulsar os portugueses da região, recorde-se a ocupação de Bolama pelos ingleses. Nem a França nem a Inglaterra respeitavam os direitos de Portugal à Guiné e apenas consideravam sob a sua autoridade os pontos onde exista força militar. Este quadro sociopolítico-económico fica desenhado com o fim da escravatura.

A autora projeta agora a sua reflexão para a “luta” pela posse do Casamansa. Até 1828, volta a recordar-se, os centros de povoamento sobre domínio português eram pouquíssimos: Bissau, Geba, ilha de Bolama, Cacheu, Fá, Farim, Ziguinchor, Bolor e Bolola (Buba). Os franceses penetraram no rio Casamansa em 1828, procede-se à compra de território ao régulo de Borin, na margem esquerda do Casamansa. Nesse mesmo ano, um negociante francês instala-se na Ilha dos Mosquitos ou de Carabane, na embocadura do Casamansa. A diplomacia portuguesa reage em Paris, protesto inútil, as usurpações irão continuar.

Honório Pereira Barreto distingue-se pela perspicaz e contumaz política de compras do território para Portugal. Em 1836, por via diplomática, chega a informação que os franceses estavam a organizar companhias para irem estabelecer feitorias na Guiné, acima de Ziguinchor, e que tencionavam enviar tropa para fazerem frente a qualquer ação dos portugueses. No ano seguinte, os franceses instalam-se na ponta de Jemberém, e, mais tarde, na aldeia mandinga de Selho. Honório Pereira Barreto protesta junto das autoridades francesas, envia cartas ao governador em Cabo Verde. Aspeto curioso, em 1838, D. Maria II ordena a Honório Pereira Barreto a construção de dois forte, um no mesmo braço do rio onde os franceses em 1828 tinham fundado um estabelecimento, e outro acima de Selho. Era uma medida de grande alcance, mas não vieram os meios financeiros necessários.

No meio de trocas diplomáticas sulfúreas, com as autoridades francesas a fazer ouvidos de mercador, a diplomacia francesa monta uma fantasia: que desde o século XVI está presente no Senegal, que há mais de dois séculos que exerce direitos de posse, comércio e soberania desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Chega-se ao desplante de dizer e escrever que os normandos tinham chegado à Guiné antes dos portugueses. E segue-se um período em que não há correspondência entre Lisboa e Paris. Depois, veio a reação de Lisboa com a enumeração exaustiva das razões históricas da presença portuguesa na chamada Senegâmbia, Paris não responde a estas notas. É neste contexto completamente desfavorável que o Visconde de Santarém enviou, em 1841, uma cópia da sua Memoria sobre a prioridade dos Descubrimentos dos Portugueses na costa d’Africa occidental, acrescentando-lhe alguns capítulos no ano seguinte. O embaixador em Paris, Visconde da Carreira, reforça a argumentação invocada pelo Visconde de Santarém com documentos existentes no Museu Britânico, todos eles elucidativos que monarcas franceses, ingleses e espanhóis aceitavam inequivocamente a soberania portuguesa na região. Os políticos franceses resistem, tergiversem, demoram a responder, Carreira continua na sua luta sem se dar por vencido e continua a enviar notas a expor ao governo francês as razões de Portugal. Não obtém resposta. O ponto curioso da artimanha usada pelos políticos franceses, quando recebiam o embaixador português, era a de assegurar-lhe que o governo de Paris não pretendia a soberania nem a exclusividade do comércio de costa. Por mais argumentos válidos que Lisboa apresentasse, por mais fortes que fossem as suas razões, nada abalava nem desviava o caminho que fora traçado pela ambição da França, que, como a Inglaterra, procurava alargar a sua influência sobre regiões que não lhe pertenciam, nunca atendendo a direitos históricos. Era o começo de uma nova política comercial (imperial) em que predominava o princípio da ocupação efetiva que virá a ser consagrado na conferência de Berlim.

Voltemos a Honório Pereira Barreto. Enquanto se está a dar este combate diplomático, o governador, quase na sombra e sem alarde, procura por meio de convenções com chefes indígenas Banhuns e Felupes, trazer novos territórios para a Coroa, à volta de Ziguinchor. Entre 1844 e 1845, firma em seu nome pessoal e à sua custa doze contratos de compra de terrenos. Em 11 de abril de 1844 foram celebrados contratos entre ele e os naturais de Jagubel e Afinhame.

Mas a este tempo já se vive numa atmosfera de tensões na região do Casamansa, assim vai acontecer em Selho e Jagubel, procuram-se todos os expedientes para impedir o comércio nesta área do Casamansa. A autora descreve ao detalhe a ação deste notável governador, os tratados celebrados com os chefes gentílicos que asseguravam que aos portugueses cabia o exclusivo direito de fazerem estabelecimentos e alfândegas e que a navegação e o comércio estrangeiro ficavam sujeitos à fiscalização portuguesa. De igual modo, é meticulosa a apresentar a ação portuguesa na Guiné, dado conta dos diferentes incidentes graves no Casamansa (o caso da ponta de Adiana, o caso Laglaise, o incidente de M’Bering). E assim, nos vamos encaminhando para os termos da convenção de 12 de maio de 1886, e por último teremos as sucessivas fases para determinar as fronteiras da Guiné.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de outubro de 2024 > lGuiné 61/74 - P26036: Notas de leitura (1734): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente a existência de Bissau como capital do distrito da Guiné em 1835. Rebusquei em autores da época, como Lopes de Lima, em historiadores como Veríssimo Serrão, nenhuma referência a Bissau capital, ainda por cima no ano seguinte ao fim da guerra civil. Mas os factos documentais comprovam a nomeação. Bastou-me ler a indispensável Memória de Honório Pereira Barreto que diz verdades com punhos, que fala de um governador que não governa, de uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de condições e a um quadro administrativo caótico, e tudo o mais que se recolhe neste artigo, acrescendo que Cacheu não se conformou com a criação da capital em Bissau e viveu-se no enigmático território guineense com dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu durante cerca de 10 anos. Esta é a verdade dos factos, tenho que agradecer a Philip Havik a iluminação que trouxe para esta questão que era dada como inexistente.

Um abraço do
Mário



Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941

Mário Beja Santos

Até recentemente, dava como certo e seguro de que a Guiné portuguesa jamais tivera capital até ser desafetada de Cabo Verde, o que ocorreu em 1879. Ao longo dessa década resolvera-se a questão de Bolama, houvera o dramático desastre de Bolor, Lisboa tomou a decisão de dar autonomia a um território que não possuía fronteiras precisas, a Carta Constitucional não referia a Guiné, mas mencionava Cacheu e Bissau, porque havia o sobe e desce de Praças, Presídios e Feitorias. Num livro respeitante aos cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, um dos coordenadores, um investigador com créditos firmados, Philip J. Havik, assumiu que Bissau obtivera o estatuto de capital em 1835. Escrevi para o blogue um artigo “Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941?”, vasculhei em obras da época qualquer referência à capital, nada encontrei até que se me deparou um despacho do Visconde Sá da Bandeira datado de 29 de abril de 1858 referindo Bissau como a capital da Guiné portuguesa e residência do respetivo governador, erguendo a povoação à categoria de vila com a denominação de vila de Bissau.

Estava armada a confusão, e na altura desafiei um conjunto de investigadores a pronunciarem-se sobre a questão. Philip Havik respondeu, e do modo seguinte:
“As reformas feitas na sequência da revolução liberal em Portugal foram decididas de aplicar a reorganização administrativa por decreto de 16 de maio de 1832 à Guiné em 1834, criando uma Prefeitura de Cabo Verde e a Guiné. Por conseguinte, o distrito da Guiné transformou-se numa comarca, ainda dependente de Cabo Verde, com a sua sede em Bissau, governado por um Subprefeito. Isto foi feito através do decreto de 30 de agosto de 1835. Bissau serviu como capital da Guiné até que se tornou uma província independente com um governo autónomo em 1879, com capital em Bolama através da lei de 18 de março de 1879.”

E o investigador recomendava referências na obra de João Barreto, A História da Guiné (1418-1918), Lisboa, 1938, e no artigo de Arnaldo Brasão, A Vida Administrativa da Colónia da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, volume II, n.º 7, 1947. Não posso esconder a minha surpresa, eu tinha lido a importante obra de Lopes de Lima, de 1844, e não se mencionava qualquer capital em Bissau. Um artigo publicado por Teixeira da Mota e Fausto Duarte sobre as efemérides da Guiné portuguesa referia a criação da comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, mas nada se mencionava sobre a capital, uma comarca é só reorganização administrativa, vinha na sequência do ambicioso projeto de Mouzinho da Silveira de alterar em profundidade a administração do território, gerando municípios, comarcas e entidades apropriadas da administração, desde a justiça à atividade aduaneira. Lendo a História de Portugal de Veríssimo Serrão, encontrei a referência à criação do lugar do governador da Guiné, com residência em Bissau.

Impunha-se, pois, apurar a densidade e a operacionalidade desta capital de que desconhecia qualquer referência. Procurei um verdadeiro tira-teimas, Honório Pereira Barreto e a sua Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar, Lisboa, 1843. Lendo este importantíssimo texto, constata-se que o território desta Senegâmbia tinha uma dimensão fluida, a presença portuguesa era submetida a uma permanente hostilidade e os recursos escassíssimos, como Barreto logo abre a sua introdução: “Se nesta província houvesse um Boletim de Governo aonde se estampasse os ofícios e relatórios das diversas autoridades, não me veria obrigado a escrever esta Memória, cuja matéria é tão superior a minhas forças; porque então apareceria em público o verdadeiro estado destas Possessões.” É um discurso sempre franco, duro e doloroso: “Vive-se em Senegâmbia portuguesa sem segurança alguma; a todos os momentos seus habitantes são vexados pelo gentio, fere-se e assassina-se impunemente, e em Lisboa lê-se no Diário do Governo que as Possessões Portuguesa, nesta parte, estão em ordem, e vão florescendo.”

E a sua narrativa não esconde a inexistência de poder político, da vida das instituições, enfim, o caos reina por toda a parte: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas Possessões há um governador e comandante; mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições, e, por consequência, quais são os seus deveres: só tratam de seus negócios, pois são negociantes. Não há lei administrativa (nem outra) que vigore, e por isso é suprida pela vontade dos governadores. A vontade deles faz a lei; o capricho executa; as paixões julgam; os rogos dos Gentios, dos amigos fazem minorar, e perdoar as penas.”

É facto que falando do concelho de Bissau, Barreto dirá que é composto da Praça de Bissau, capital do governo, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei. E apresenta Bissau deste modo: “É uma Praça situada na ilha deste nome, e construída segundo o sistema de Vauban; mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados, e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quarto da tropa está quase a cair, e por isso a maior parte dos soldados moram em palhosas; o indecente quartel dos oficiais aonde chove como na rua; o arruinado armazém do governo; e a pequena e destelhada capela com invocação de S. José, que é o orago da praça. O governador mora no quartel dos oficiais em uns quartos pequenos e ridículos.” Há, pois, uma capital do distrito da Guiné portuguesa, da Guiné não se conhece bem a configuração e a importância da capital é dada pelo governador que anda a comprar parcelas do território de diferentes régulos, e em todas as direções. É vila, por despacho do Visconde Sá da Bandeira, será cidade em 1914 e terá mesmo o seu primeiro plano de urbanização concebido pelo engenheiro Guedes Quinhones; o governador Vellez Caroço dar-lhe-á em 1923 o seu primeiro foral.

Philip Havik refere João Barreto e Arnaldo Brasão. Para mim, continua a ser um mistério a data de 1835. João Barreto refere que em 1851 o Governador-geral de Cabo Verde, Fortunato José Barreiros, tomara a iniciativa de unificar o governo da Guiné fixando a sua sede na vila de Bissau e escreve que a partir de 1852 deixou de existir o governo autónomo de Cacheu, passando a existir um distrito único com sede em Bissau. Alegou o governador ter tomado esta resolução para dar unidade à ação governativa. Era nomeado interinamente governador da costa da Guiné (já ouvimos falar de Possessões, de Senegâmbia e de Guiné portuguesa…) o Tenente-Coronel Alois Dziezaski com algumas competências do governador-geral. Bissau é capital do Distrito da Guiné portuguesa.

Arnaldo Brasão, no seu artigo, chama a atenção para a Guiné constituída como uma unidade administrativa, em 1834, com atribuições conferidas por legislação de 1835, referindo igualmente o papel do governador, a quem ficavam sujeitos todos os serviços públicos. “Os governos inferiores, presídios, estabelecimentos marítimos ou do interior, formavam governos subalternos que se regulavam pelo que estava determinado para o governo das praças do reino.”

As lutas entre absolutistas e liberais refletiram-se nas colónias, e adianta Arnaldo Brasão: “Cacheu, que fora o primeiro núcleo de colonização e de povoamento não poderia conformar-se com uma situação de subalternidade em relação a Bissau, que passar a ser a capital desde 1835, e por isso solicitou a sua separação que o governo cartista se apressou a satisfazer em março de 1842, passando desde então o território guineense a ser constituído por dois distritos, mas subordinados ainda ao governo de Cabo-Verde. Esta situação durou perto de 10 anos, porque em setembro de 1851 procede-se à unificação administrativa, sendo escolhido novamente Bissau para sede do governo.”

Considero totalmente corretas as observações expendidas pelo investigador Philip J. Havik, em 1835 Bissau tornou-se a capital de distrito de um território com dimensões indefinidas e dentro de um quadro que um lídimo protagonista da época, Honório Pereira Barreto, mostrou que se tratava de uma capital de ficção. Um governador sem governo, uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de comodidades e cercada por populações hostis.

Dou como esclarecida a existência de uma capital de ficção, numa província de ficção, que passou a uma realidade depois do sobressalto de Bolama e com contornes definidos depois de a França nos ter subtraído o Casamansa, as fronteiras ficaram parcialmente definidas em 12 de maio de 1886, o governador da Guiné terá a sua capital em Bolama.


Monumento a Honório Pereira Barreto, em Bissau, em tempos coloniais
O que resta da Bolama dos tempos áureos
Um pormenor da fortaleza de S. José da Amura na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
A questão é muito interessante mas não vislumbro documentação que sustente a existência de Bissau como capital da Guiné portuguesa, será efetivamente capital em 1941. A colónia não dispunha de superfície antes da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, como colónia era uma ficção territorial, tinha praças, feitorias e presídios, nunca encontrei qualquer documento que tratasse Bissau como capital. E depois temos toda aquela documentação da segunda metade do século XIX, caso de Travassos Valdez, onde se mostra Bissau como uma praça e uma povoação entregue a degredados, muitas vezes revoltando-se contra o governador e prendendo-o, sujeita a uma permanente hostilidade. Que capital era esta, podem ajudar-me a esclarecer a questão?

Um abraço do
Mário



Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão

Mário Beja Santos

Tenho como dado assente que a Guiné portuguesa jamais teve capital até 1879. É uma questão de lógica, a região dependia do governador de Cabo Verde e da Guiné, com a monarquia constitucional, a referência à Guiné como território não existe na Constituição, somente se menciona a existência da povoação de Cacheu e da Praça de Guerra de S. José de Bissau. É nisto que ao ler os cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, resultado da sua viagem à Guiné em 1947, que considero documento científico de leitura obrigatória, a edição foi coordenada por Philip J. Havik e Suzanne Daveau, investigadores experimentados, Edições Húmus, 2010, encontro na página 60 a seguinte nota:
“As origens de Bissau remontam ao século XVI, mas somente em 1692 é elevada a capitania. Com a construção da fortaleza no último quartel do século XVIII, Bissau começa a ultrapassar Cacheu – que foi um dos primeiros e principais portos na costa da Guiné – como entreposto comercial. A partir de 1835, Bissau obtém o estatuto de capital (em 1855 é criado o município) até 1879.”

Comecei a pesquisar no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, número especial de outubro de 1947, há um título Efemérides da Guiné portuguesa, que tem por autores Teixeira da Mota, Fausto Duarte e outros, e procurei o que tinha acontecido em 1835. Em 30 de agosto é promulgado um decreto pelo Governo de Lisboa criando a Comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, sujeita à prefeitura de Cabo Verde, nada mais. Consultei depois o n.º 32 da revista Ultramar, 1968, todo ele dedicado à Guiné e onde consta do historiador António Alberto Banha de Andrade um longo artigo intitulado História breve da Guiné portuguesa. O autor menciona a remodelação administrativa de 16 de maio de 1832. Na Guiné passou a haver uma subprefeitura em Bissau, ficando o Subprefeito com funções de intermediário entre a população e o Prefeito, colocando-se em 1834 a sede da administração em Bissau, nesse ano Honório Pereira Barreto foi nomeado provedor de Cacheu, não há qualquer referência a Bissau como capital.

Bom, o melhor era dirigir-me a um alfobre de documentação, a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Comecei por ler a obra Ensaios sobre a statistica das possessões portuguezas, por José Joaquim Lopes de Lima, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844. Sendo obra de referência e dedicada à Rainha, seria inevitável aludir a elementos essenciais. Pois o que encontrei no capítulo X, dedicado à Guiné de Cabo Verde, são digressões históricas da nossa presença na região e menção aos estabelecimentos existentes: praça de Cacheu, presídio de Farim, presídio de Ziguinchor, presídio de Bolor, praça de guerra de S. José de Bissau (esta apresentada como reduto quadrangular de boa cantaria, flanqueada por quatro baluartes, dentro da praça havia quartel para o governador), Ilhéu do Rei, Geba, ilha de Bolama e ilha das Galinhas. Estranhíssimo não se falar em capital, havia somente governador em Bissau como responsável da praça, desde finais do século XVIII.

Outra fonte consultada foi a História de Portugal, de Joaquim Veríssimo Serrão, Editorial Verbo, 1986, dois volumes. No volume VIII, referente a 1832-1851, refere o autor: “A reforma de 1832 mantinha a Comarca da Guiné na dependência ultramarina de Cabo Verde, criando uma Subprefeitura em Bissau e uma provedoria em Cacheu. O governador Manuel António Martins tomou medidas de proteção para com a Guiné, fazendo um novo regulamento para a alfândega e criando um hospital militar dirigido por uma comissão a que presidiu Honório Pereira Barreto.” No volume IX, alusivo ao período 1851-1890, observa o historiador: “Uma das primeiras medidas da Regeneração, no tocante à Guiné, foi a de criar um lugar de governador para todas as parcelas da mesma região, o qual ficaria sujeito ao governador-geral de Cabo Verde. Aquele funcionário teria residência em Bissau, cabendo-lhe também visitar a praça de Cacheu duas vezes por ano. O governador tinha igualmente poderes militares.” E depois faz-se uma alusão ao Visconde Sá da Bandeira: “A Sá da Bandeira se deve a elevação de Bissau a vila por considerar que a povoação tinha já um número suficiente de habitantes para dispor de instituições municipais. Justificava-se ainda a medida por ser a capital da Guiné portuguesa e a residência do respetivo governador.” Aonde o Visconde de Sá da Bandeira foi encontrar a capital da Guiné não se sabe, mas que o visconde refere a capital vem no Diário do Governo de 2 de maio de 1858.

A primeira referência a uma capital em documento autenticado com o nome do rei vem no suplemento ao n.º 15 do Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Cabo Verde, de 17 de abril de 1879, que reza o seguinte: “Dom Luíz, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, etc., fazemos saber a todos os nosso subditos, que as côrtes gerais decretaram e nós queremos a lei seguinte: art.1. – o território da Guiné portuguesa formará uma província independente de outra qualquer província portuguesa, terá a sua séde na ilha de Bolama.”

Isto o que consegui apurar na Biblioteca da Sociedade de Geografia, graças à total disponibilidade da sua bibliotecária. Mantém-se o mistério da data de 1835 para a capital de Bissau que os historiadores daquela época e posteriores jamais mencionam. Os coordenadores do trabalho de Orlando Ribeiro também não invocam a fonte. Chegou a vez de se submeter a questão a historiadores que possam ajudar a desenvencilhar este enigma de Bissau como capital como Bolama. Desconheço a fonte informativa do Visconde Sá da Bandeira, não será de estranhar que ele confunda o governador da Praça de S. José de Bissau como instalado numa capital. Acresce que nós temos relatos como o do governador Carlos Pereira, o primeiro nomeado com a implantação da República, que alude ao completo estado de degradação em que se encontrava a fortaleza e o povoado até ao Pidjiquiti, tudo numa imundície e desmazelo intoleráveis, uma estranhíssima capital permanentemente fustigada pelas hostilidades dos régulos da ilha, o quadro de Bissau estava cercado de muros altos para se proteger de permanentes agressões. Como é que era possível falar-se de Bissau como capital, somente mencionada esta como existente em 1835 e invocada com tal título em 1858, sem nenhum documento comprovativo, e, em completo contradição com o facto de que só perto da sua desvinculação de Cabo Verde nem o estatuto de distrito autónomo tinha.

É a questão que deixamos aos historiadores, oxalá possam clarificar este imbróglio, já que documentos históricos comprovativos de Bissau como capital só temos estas duas referências sem alusão a fontes. Vamos esperar.


Carta hidrográfica da Guiné portuguesa, 1844, anexo da importantíssima obra de Lopes de Lima
Referência de Sá da Bandeira a Bissau como capital da Guiné portuguesa, 1858
Fortaleza de Cacheu, imagem do século XIX
Imagem ao monumento do esforço da raça, havia quem lhe chamasse monumento à Maria da Fonte
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Nota do editor

Último post da série de 10 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25365: Historiografia da presença portuguesa em África (418): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24253: Historiografia da presença portuguesa em África (365): António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Não fosse o documento que o cônsul português em Dacar nos deixa sobre a comunidade cabo-verdiana e esta obra passava-nos literalmente ao lado já que é aqui que é a Guiné a razão nuclear destas leituras. Mas há observações curiosas que nos ajudam a compreender a importância estratégica do Senegal no império colonial francês da África Ocidental. Aliás, quando frequentei o Arquivo Histórico do BNU, rapidamente me apercebi que o Senegal era para a França uma pequena joia da Coroa, foram muitos os senegaleses que combateram nas trincheiras, o estatuto de cidadania francesa pesava no orgulho senegalês e não foi por acaso que a partir de Teixeira da Mota se instituiu na Guiné Portuguesa uma cooperação científica de grande valor com o IFAN, Instituto Francês da África Negra. António de Cértima escreveu em O Comércio da Guiné, homem convicto do regime de Salazar agiu para sufocar a Revolução Triunfante, a tentativa republicana de manter a Guiné fora da ditadura, o regime condecorou-o, prometeu escrever um livro sobre a Guiné, o que nunca aconteceu.

Um abraço do
Mário



António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920

Mário Beja Santos

António de Cértima foi diplomata, teve postos de cônsul no Cairo, Dacar e Sevilha, foi escritor e jornalista, já cinquentão pediu a reforma e passou a trabalhar na SACOR, teve longa vida (1894-1983), deixou obra prolífica, regista-se aqui o seu livro "Sortilégio Senegalês", publicado pela Livraria Tavares Martins – Porto, em 1947. Prometeu escrever sobre a Guiné, mas nunca o fez, conquanto tenha colaborado no jornal "O Comércio da Guiné", ter-se-á mesmo empenhado em fazer fracassar a Revolução Triunfante, uma tentativa de republicanos garantirem a Guiné fora do Estado Novo, foi então condecorado como igualmente virá a ser condecorado pelo Estado Francês. Aliás, este Sortilégio Senegalês é dedicado aos seus amigos franceses.

Trata-se de memórias avulsas onde não falta o “Expresso” do Sudão, inúmeras viagens dentro do território, reuniões sociais, há referências muito cultas e descrições abundantes sobre a atmosfera africana, é o seu olhar europeu que propende:

“Em Dacar, como em todas as cidades jovens e africanas, sente-se que uma vida tumultuosa circula, a agitar-lhe os flancos, a irromper das artérias, numa sede de futuro. Depois, a mão do homem parece ter posto aqui um desígnio ardente. Arrancada pelo génio empreendedor de Faidherbe aos penhascos alcantilados da chamada geograficamente quase ilha de Cabo Verde, onde há 70 anos apenas se destacava o ocre daquelas palhotas de pescadores lebús, Dacar encontra-se hoje em pleno desenvolvimento”.

Fala das etnias, dos antigos impérios que aqui se atravessaram, maravilha-se com o mar esmeralda, rende-se à adaptação dos franceses, à naturalidade com que transportam para aqui as normas da sua vida social, tem curiosidades de antropólogo e etnólogo, situa com rigor a importância de Dacar no contexto das oito colónias francesas na região (Mauritânia, Senegal, Sudão Francês, Níger, Guiné, Costa do Marfim, Alto-Volta e Daomé): 

"À parte os enclaves das possessões da Gâmbia, Guiné Portuguesa, Serra Leoa e Costa do Ouro, aqui temos, bordejando o Atlântico desde o Cabo Branco a Porto Novo, o imenso bloco da África Ocidental, oito vezes maior do que a França da Europa, parecendo desafiar o poderio dos antigos impérios do Gana e do Mali”.

Vai deambulando entre lugares e conversas, é moralista nas leituras, não lhe escapam as considerações éticas, procura a todo o transe distinguir a colónia do Senegal como um corpo à parte dentro do grupo de colónias francesas, apresenta-a como a mais evoluída, muito apegada à cidadania francesa. 

É exatamente aqui, penso eu, que o leitor questiona o porquê de trazer à baila uma obra memorial de um diplomata português no Senegal se ele se escusa terminantemente a falar da Guiné. Aí é que está a surpresa, o cônsul foi visitar a colónia portuguesa, que se acantona na parte alta da cidade de Dacar, por detrás do mercado indígena, e dá-nos informações extremamente úteis para se perceber o que irá acontecer no início da década de 1960 com esta colónia que revelará uma larguíssima indecisão face à ideologia do PAIGC.

Vejamos o que ele escreve:

“A colónia é numerosa: quase três mil. São todos cabo-verdianos, guardando ainda nos gestos vivos, desembaraçados, e na energia dos atos, qualquer coisa do clima viril da denominação em que se agrupam as suas ilhas natais. O cunho racial apresenta-se neles como um medalhão bem vincado. Homens e mulheres entregam-se às suas tarefas guiados por um fervor económico que só deve redundar em proveito da terra, da família, do lar. Temos vontade de perguntar: de que religião doméstica ou de que princípio de associação humana procedem estas regras morais de que os povoadores indígenas destas ilhas atlânticas obedecem com tanta porfia? O marinheiro ou moço do bordo que embarca nos portos da Praia ou S. Vicente com destino a todos os continentes do mundo, se por imprevisto da circunstância se encontra abandonado em qualquer escala das ilhas marítimas, o seu primeiro impulso é o de regressar imediatamente à sua ilha, ainda que escondido nos porões de qualquer cargueiro pirata. Belo exemplo de fidelidade à instituição familiar!

 Mulheres de bronze – assim chamam às raparigas de Cabo Verde os viajantes dos grandes transatlânticos que ali fazem escala, e não tanto pela cor, que na maior parte dos casos é de um moreno solar, mas sim pelo bem esculpido das formas. Os homens têm um nobre aspeto físico, e gestos onde se depara a dignidade e certo aprumo fidalgo dos primeiros donatários do arquipélago que mandou descobrir o Infante D. Henrique. São zelosos, cumpridores e de grande curiosidade e inteligência. Aos dois meses da sua chegada a Dacar falam já correntemente o francês. De Portugal conhecem tudo – até mesmo as estações de águas termais. Com os palhabotes ou faluas se dedicam ao pequeno comércio com o porto de Dacar, entre os carregamentos de laranjas e aguardente de cana chegam sempre alguns exemplares do Século e de outros jornais portugueses”.

E prossegue conversa com alguns destes homens culminando esta viagem ao mundo cabo-verdiano dizendo que Portugal lhes deve muito. Indiretamente o diplomata vai referindo as instituições sediadas em Dacar e começamos a perceber porque é que a capital do Senegal foi escolhida para sede de uma entidade científica que ainda hoje marca a vida do país independente o IFAN, então Instituto Francês da África Negra e a partir de 1966 designado por Instituto Fundamental da África Negra, foi possível a partir do governador Sarmento Rodrigues (1945-1949), manter uma cooperação científica ao mais alto nível, não só nas investigações referentes a descobrimentos e viagens nestas paragens da Senegâmbia, como estudos sobre a doença, a fauna e a flora e até a agricultura.

Pouco mais há a dizer da narrativa de António de Cértima das suas memórias senegalesas, relacionou-se com inúmeras pessoas, deslumbrou-se com a música negra. António de Cértima, joeirado pelo tempo, é reconhecidamente um autor secundário, muito formalista, certamente que atraído pelos padrões modernistas, culto, bom viajante, como irá revelar na sua viajem a Tombuctu, muito interessado pela Antropologia, nunca se cansando de exaltar a beleza negra, não sabemos se fala o esteta ou está marcado pela sensualidade, quando nos descreve assim:

“Nas minhas viagens do Atlântico ao Índico, das proximidades do lago Vitória ao Mediterrâneo, tenho surpreendido corpos de tanta finura e harmonia plástica, de tão acertadas proporções e incorrupta euritmia animal, que causariam inveja aos mais puros modelos gregos. Meus olhos não esquecerão jamais a graça e a candura, como nas formas nascentes, de tantos belos corpos escondidos nas luxúrias vegetais da selva, bailando sobre a lua das aldeias indígenas, circulando eretos e melodiosos como ânforas rituais”.

Do que igualmente retive desta saborosa leitura do seu olhar saltitante foi a descrição que fez sobre o naufrágio que ocorreu em 1816 da Fragata Méduse, encalhada nos bancos de Arguim e que está na base de um famoso quadro de Géricault, Radeau de la Méduse.

Resta dizer que a obra mais conhecida de António de Cértima tem o título "Epopeia Maldita", prende-se com as guerras travadas no norte de Moçambique na I Guerra Mundial, onde ele participou.


Jangada da Medusa, por Géricault, Museu do Louvre
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24235: Historiografia da presença portuguesa em África (364): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Por mão amiga tive acesso a este livro que surgiu no seguimento da exposição "O Museu Etnográfico Nacional: Trinta anos de História", inaugurada no Museu de Bissau em setembro de 2017. Tem imagens esclarecedoras do património que resistiu a várias depredações, espoliações e destruições. Recordo sempre o orgulho que senti no Museu Metropolitano de Nova Iorque quando numa vasta sala dedicada à Arte Africana li uma ficha de um colecionador famoso, da família Rockfeller, dizendo, com sincero entusiasmo, que tinha comprado peças artísticas das etnias Bijagó e Nalu e que as considerava do mais genial que lhe fora dado ver. Portugal possui igualmente um rico património da Arte Guineense, bom seria que se fizesse uma recolha de peças de valor indiscutível, elas estarão sempre associadas à presença portuguesa e à veneração que tal arte nos merece e merecerá.

Um abraço do
Mário



Conhecer o Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Não há ninguém que tenha feito comissão na Guiné que não conheça este edifício, no nosso tempo era Museu da Guiné e o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, reunia uma preciosa coleção de património etnográfico, o impulso inicial coube a Avelino Teixeira da Mota, então colaborador direto de Sarmento Rodrigues, e nas mesmas instalações funcionava o importantíssimo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa responsável pela publicação colonial mais relevante: o Boletim Cultural, ainda hoje incontornável. E havia uma biblioteca, nesse espaço ocorreram conferências que tiveram projeção. Com a independência, extraviou-se muita coisa, nos anos 1980 o museu foi transferido ali para os lados do INEP e em 2017 voltou ao edifício primitivo que já cumprira outras funções, como Ministério dos Negócios Estrangeiros e Direção-Geral da Cultura. Para comemorar o regresso, em 15 de setembro de 2017 foi inaugurada uma exposição intitulada “O Museu Etnográfico Nacional: 30 anos de História”, associaram-se diferentes parceiros, desde o Instituto Camões, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Embaixada de Espanha em Bissau, organismos da Universidade de Oxford e outros. O catálogo foi publicado em 2018 e permite ao leitor ficar com uma ideia do que é hoje o acervo museológico, depois das diferentes provações que terá sofrido, não esquecer que durante a guerra de 1998/1999 perderam-se objetos e muitos documentos, perdas tão irreparáveis que quando o visitei em 2010 e fiz entrega de um presente de todas as cartas da então Província da Guiné, na escala de 1 para 50 mil, o então Presidente do INEP, Dr. Mamadu Jao, agradeceu-me comovidamente, nada existia de tão substancial. Depois da guerra, houve tentativas de reparação, lembro a reconstituição de imensas imagens graças à Fundação Mário Soares, que deu origem à exposição “Raízes”, que então visitei no Bairro da Ajuda e que ainda hoje se pode adquirir na Fundação Mário Soares a preço simbólico. A exposição de 2017 revela o que se tem feito na digitalização de imagens e como se têm procurado superar os danos terríveis da guerra e dos esbulhos.

Este volume, com texto em português e castelhano mostra imagens do passado, havia um catálogo-inventário da secção de etnografia do Museu da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota estimulara muitas doações, fizeram-se estudos, a etnografia da Guiné apareceu em populações de grande difusão, lembro, a título de exemplo, A Arte Popular em Portugal, da Verbo, que teve a responsabilidade de orientação de Fernando Castro Pires de Lima, há muitos elementos etnográficos guineenses em Portugal, basta visitar a Sociedade de Geografia de Lisboa ou acompanhar as atividades do Museu Nacional de Etnologia. Há ainda documentos à venda, alguns deles preciosos, produzidos pela Junta de Investigações do Ultramar. Lembro que António Carreira produziu um belo trabalho sobre panaria cabo-verdiana e guineense e que Rogado Quintino é autor de uma obra etnográfica de valor indiscutível sobre a prática e utensilagem agrícola na Guiné, bem como Fernando Galhano publicou outra obra relevante intitulada Escultura e Objectos Decorados da Guiné Portuguesa no Museu Etnológico.

Este livro que acompanha a exposição de 2017 descreve trabalhos de pesquisa ao longo das últimas décadas e mostra imagens de grande importância sobre a escultura Nalu e Bijagó, como o pássaro Koni Nalu, a máscara Nimba, os espíritos Bijagós, a cabeça de vaca, obras representativas do que há de melhor na escultura guineense. Temos imagens da tecelagem, os famosos panos de pente, onde a etnia Manjaco ocupa um lugar à parte, imagens sobre aldeias, para podermos confrontar o habitat das diferentes etnias, como organizam as cozinhas, as dependências, como se processa a construção das casas, se possuem pinturas murais.

Lê-se nesta obra que os melhores tecelões são Papel e Manjaco, embora as peças comumente consideradas mais genuínas – por respeitarem toda a tecnologia tradicional, sejam da tecelagem Fula. “Os tingidos e sobretudo os panos Manjacos, com fios de várias cores que desenham padrões específicos, são adquiridos e acumulados pelas mulheres, para oferecer em funerais ou em intercâmbios matrimoniais. A produção de algodão, a cardagem e a fiação perderam importância na Guiné-Bissau após a destruição das variedades tradicionais provocada pela tentativa colonial de introduzir a cultura de algodão para exportação, que também falhou depois da independência. Hoje a maioria dos fios usados em tecelagem são importados e de fabrico industrial. O tingimento dos panos continua a ser praticado artesanalmente pelos Saracolé”.

O livro contempla o trabalho em ferro, as artes agrícolas, os instrumentos musicais onde primam os instrumentos de corda como a korá, os de percussão, caso do tambor falante e o xilofone designado por balafon, a cestaria e olaria, onde se distinguem magníficos trabalhos de balaios de palmeira de leque, os jogos de criança, a multiplicidade de manifestações religiosas que vão desde a “forquilha de alma” Manjaco, a edificação de mesquitas, as indumentárias cerimoniais. Em capítulo à parte releva-se a arte Nalu onde os objetos escultóricos aparecem em rituais e danças. Temos igualmente os lugares com paisagem e património, com destaque para a Fortaleza de Cacheu e há numerosos vestígios da presença militar portuguesa, ponho ênfase na lápide onde se escreveu: “A Ti, Deus único e Senhor da Terra, oferecemos estas gotas de suor que nos sobraram da luta pela Tua palavra eterna, soldados da CART 1613”.

Há igualmente uma secção que privilegia a cultura nacional, pois um Museu Nacional de Etnografia tem não só a missão de documentar a diversidade étnica de um país mas também de colaborar na consolidação da identidade nacional, as imagens de dança balética ou carnavalescas são elucidativas de um mundo pós-colonial. O livro encerra com a notícia do seminário de Museologia que se realizou em 1989 e mostra mais de 130 imagens de objetos do atual Museu Etnográfico.

Seria muito bom que um dia se pudesse expor na Guiné o acervo das coleções particulares e de diferentes museus portugueses. Não vi referidos os objetos de couro produzidos pela etnia Mandinga, lembro-me de ter comprado almofadas e vi à venda bainhas para espadas e outros artefactos. E recordo ter ido ao mercado de Bafatá adquirir ourivesaria, não vejo referência destes trabalhos no pós-independência. Deseja-se longa vida a este Museu Etnográfico e a mais intensa cooperação com Portugal, país que detém um património privilegiado.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Caminhamos para o fim da vida deste Conselho de Governo, que teve a faculdade de ser marcadamente consultivo mas onde houve o exercício deliberativo, os serviços do governador acabavam por ter em linha conta certas apreciações na análise da legislação, reconhecendo a pertinência das observações dos conselheiros. Enfatiza-se que faltam muitas atas, mesmo de muitos anos, fica-nos, no entanto, a sensação de que é possível ir tomando o pulso à evolução das mentalidades, estas atas são reconhecidamente úteis por muitas das observações que aqui se tecem, já chegámos ao mandato de Arnaldo Schulz, não se fala declaradamente da guerrilha, usa-se uma linguagem apaziguadora, "no quadro atual das dificuldades que a Província atravessa". Vou tentar ver se é possível encontrar toda esta documentação na Biblioteca Nacional, é um acervo auxiliar, mas inescapável, para quem pretende estudar a vida da Colónia, até à sua independência.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (8)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Insiste-se na advertência que os dois tomos existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm importantes lacunas, o que naturalmente dificulta a apreciação geral do percurso da instituição, sem prejuízo das tais tomadas de posição que nos ajudam a entender as preocupações do governador ou seu representante, os diretores e chefes de serviço da Administração e o conjunto de vogais representativos de interesses. Obviamente que é indispensável compulsar o que aqui se diz e se dá por deliberado com o constante no Boletim Oficial da Guiné e na imprensa. Depois de um longo período de ausência de Diogo de Mello e Alvim, segue-se a sua exoneração e a nomeação de Álvaro da Silva Tavares, que curiosamente, noutras funções, já pertencera a este Conselho de Governo. Em 14 de fevereiro de 1957, no período antes da ordem do dia, Mário Lima Wahnon, comerciante, dirige-se ao novo governador:
“Eu li no jornal da terra que esta visita de V. Ex.ª à região dos Fulas e Mandingas foi coroada de muito êxito. Entre as grandes manifestações da população há uma que eu soube com prazer: - é que pediram a V. Ex.ª a instituição de escolas primárias naquelas localidades. Neste Conselho há já alguns anos venho defendendo este ponto. A instrução pública não corresponde às necessidades da população. De facto, a grande população islamizada da Província não tem uma escola para aprender o português. É, pois, com muito gosto que peço a V. Ex.ª que seja considerada na medida do possível a instituição de escolas naquelas regiões”.

É novamente debatida a questão dos abonos a funcionários civis e militares, o padre Cruz do Amaral, em 20 de fevereiro, põe à votação uma mensagem sobre o significado profundo da visita de Isabel II a Portugal, dizendo que a Guiné comunga no mesmo entusiasmo por uma política que tem a sua consagração na velha aliança anglo-lusa; abrem-se mais créditos, desta vez para sustentas os preços das especialidades farmacêuticas, concedem-se bolsas de estudo, subsídio à autarquia de Bissau para o asfaltamento das ruas e abastecimento de água e energia elétrica à cidade e também crédito para equipamento hospitalar. O padre Cruz do Amaral aproveita o ensejo da visita de Álvaro Tavares à Costa do Ouro, agora Estado do Gana, onde se deslocara como Embaixador de Governo às festas da independência do país, para proferir o seguinte voto:
“À natural alegria de o vermos regressado a esta Província e ao seio deste Conselho, juntamos a satisfação de o sabermos investido daquelas altas e excecionais funções com que o Governo na Metrópole quis distinguir a pessoa de V. Ex.ª. Desde o dia 6 de março corrente que um país estruturalmente africano nasceu para a independência e liberdade. À volta do berço deste nascimento se reuniu a maior parte das nações do mundo. Mas nenhuma como Portugal tinha o direito de ali estar presente, pois fomos nós, os portugueses, os primeiros a levar àquelas paragens o lume vivo da civilização e os primeiros a erguer nas trevas do continente negro um fasto luz que ainda se não apagou.”

Todo o novo contexto de independências começa a ser objeto de ponderações e avisos, e no Conselho há sempre uma voz que empresta convicção ideológica ou tece advertências, oiça-se um comentário no momento exato em que a Guiné Conacri passou a ser um Estado independente, quem assim fala diz-se representante dos interesses da população indígena da Guiné:
“Felizmente para nós, portugueses, não temos problemas políticos a resolver nas nossas províncias ultramarinas, ao passo que os povos oriundos de grande parte dos territórios estrangeiros deste continente se encontram hoje sublevados contra os respetivos países dominadores, as populações do nosso Ultramar continuam vivendo em paz e sossego, com absoluta calma e na melhor harmonia. Isto só demonstra a justeza dos elevados princípios de ordem política, económica e social, que informam a nossa administração ultramarina e o caráter fundamentalmente humano e cristão da nossa ação civilizadora em África.
O atual clima político no continente africano impõe-nos o dever de estarmos atentos e enfrentar os acontecimentos sem hesitações e com a maior objetividade. Qualquer afrouxamento no ritmo da nossa ação administrativa no Ultramar poderia ser interpretado como um recuo. Nós não queremos que os demais povos africanos, sobretudo os dos territórios estrangeiros vizinhos dos nossos, que hoje são independentes ou gozam de plena autonomia administrativa, procurem diminuir-nos ou amesquinhar-nos com a acusação de sermos os próprios responsáveis pelo estado de atraso em que durante longo tempo vivemos em relação aos demais países africanos mais adiantados, e por isso mesmo devemos intensificar a nossa ação administrativa ultramarina promovendo medidas tendentes ao desenvolvimento económico e social dos nossos territórios africanos, assegurando aos indígenas um nível de vida mais elevado e criando-lhes um ambiente suscetível de concorrer para a satisfação das suas mais prementes necessidades morais e materiais.”


É pouquíssima a documentação existente referente ao mandato do Capitão-Tenente Peixoto Correia como Governador. Em 18 de junho de 1964, o Brigadeiro Arnaldo Schulz preside pela primeira vez ao Conselho, Mário Lima Wahnon é eleito vice-presidente, Teixeira da Mota torna-se o representante da Guiné no Conselho ultramarino. Prossegue naturalmente a rotina, caso do Regulamento da Assistência Médica e Medicamentosa do Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e da Indústria da Província da Guiné, abole-se a designação de Sindicato Nacional que passa para Caixa Sindical. O novo governador anuncia o início dos trabalhos na nova estrada asfaltada Mansoa-Mansabá, prevendo-se o seu prolongamento até o Gabu. O vogal Artur Augusto Silva tece considerações sobre o papel das Missões que tinham passado pela Guiné e destaca duas como bastante relevantes: a Missão de estudo e combate às tripanossomíases e a Missão geoidrográfica da Guiné.

Quando se trata de analisar o Orçamento para 1965, Schulz usa da maior prudência falando das verbas do Plano Intercalar de Fomento:
“Não podemos esquecer que as verbas do Plano de Fomento são obtidas através de empréstimos que é necessário pagar, bem como os respetivos juros, daí a necessidade de que o dinheiro empregue no fomento produza, pelo menos, o capital e os juros indispensáveis ao pagamento das prestações que nos são impostas. E como o desenvolvimento dos sucessivos planos de fomento implica novos empréstimos, aumenta progressivamente a nossa dívida e consequentemente o aumento do quantitativo das prestações a pagar; ou os investimentos dão o rendimento necessário à satisfação de tais encargos ou são as escassas receitas da Província a fazer-lhes face e caminharemos para uma asfixia financeira que não nos irá permitir fazer nada mais durante muitos anos”. E adverte mesmo que não se pode consentir que as verbas do Plano de Fomento tapem as lacunas existentes no Orçamento da Província, e deixa a recomendação que todos os serviços se devem esforçar por cobrar receitas por forma a dispor-se de maior verba. Ponto curioso é que esta apreciação virá a conhecer uma inversão radical com o seu sucessor, a quem aliás o Governo Central irá conceder meios que Arnaldo Schulz jamais obteve.

(continua)

Álvaro da Silva Tavares, Governador da Guiné (1956-1958)
António Augusto Peixoto Correia, Governador da Guiné (1959-1962)
Arnaldo Schulz, Governador da Guiné (1964-1968)
Bissau, Avenida Marginal
Balantas em festa, imagem da atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)