1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:
Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.
É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio.
Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.
Um abraço do
Mário
Grande polémica (1):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai
Mário Beja Santos
O papel da Liga Guineense e a sua extinção continua envolto em mistério. Tendo denunciado as atrocidades e roubos perpetrados por Abdul Indjai e os seus auxiliares ao serviço da chamada Campanha de Pacificação da ilha de Bissau, em 1915, sabe-se que alguns dos seus dirigentes foram presos, que um governador da Guiné entendeu haver motivos para o desaparecimento da Liga e entretanto um conhecido escritor e publicista nascido em Cabo Verde, Luís Loff de Vasconcelos, escreveu no ano seguinte uma demolidora catilinária que intitulou A defesa das vítimas da guerra de Bissau, o extermínio da Guiné, editado pela Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1916.
O documento pode ser consultado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Como é óbvio, dar-se-á depois direito ao contraditório, e para tal usar-se-á a obra de Armando Tavares da Silva.
O escritor cabo-verdiano dirige-se ao Ministro das Colónias, ao Governador da Guiné, Andrade Sequeira, à justiça portuguesa e ao povo português, e logo desembainha a espada:
“É triste dizê-lo, mas a Guiné Portuguesa esteve durante longos meses no domínio de uma ditadura feroz e de um temor indiscritível. Desde 1914, até à chegada do atual governador, Andrade Sequeira, não se respirava livremente nesta colónia. A Guiné era um teatro de guerra, mas não uma colónia habitável. Deu-se a invasão das hostes guerreiras de Abdul Indjai, arvorado em chefe dos irregulares e poderoso auxiliar das nossas reduzidíssimas forças militares regulares, comandadas pelo Chefe de Estado Maior, sob a razão ostensiva de se focar rebeliões que não existiam senão na fantasia e no cérebro doentio e ardente de alguns megalómanos, e ainda sob o fundamento da resistência dos indígenas em pagar o imposto de palhota.
Abdul Indjai aproveitou-se dessas incursões militares; as importantes presas de guerra eram para ele e seus guerreiros, recrutados aqui e acolá, compostos da pior gente de todas as raças da Guiné. Era uma quadrilha de bandidos, assolando e saqueando o território ocupado por outras tribos, mascarados e disfarçados em auxiliares das nossas forças!
Quadrilha aguerrida, composta também de muitos Torancas (indígenas da colónia francesa) profissionais da guerra e do saque. Abdul Indjai recorreu a um ardil: declarou-se que os Papéis não acudiam ao apelo da civilização, à subordinação ao governo, à entrega de armas e ao pagamento do imposto de palhota e que, portanto, estavam em estado de rebelião, a que era indispensável pôr termo”.
Loff de Vasconcelos (na foto à direita) elabora a minuta de agravo, apresenta a relação dos acusados como autores e chefes do incitamento à chamada rebelião dos Papéis de Bissau, e prossegue a sua perlengada:
“A história das operações militares dirigidas contra os indígenas da ilha de Bissau, em maio de 1915, é fácil fazer-se e mais fácil ainda de compreender-se. Pela portaria de 13 de maio de 1915, do governador Oliveira Duque, foi imposto aos indígenas da ilha de Bissau a entrega de armas e o pagamento do imposto de palhota. Atribuiu-se que fizeram desacatos e não permitiram no arrolamento, desrespeitando a nossa soberania, pelo que foi determinado a criação de uma coluna de operações para submeter os indígenas rebeldes de Bissau".
Ora, diz Loff de Vasconcelos, as coisas passaram-se de modo muito diferente. Os Papéis pegaram em armas, não por espírito de rebelião, mas porque suspeitavam que Abdul Indjai conspirava contra eles, intrigando-os com as autoridades da colónia, interessava-lhes provocar a guerra para saquear. Abdul foi o chefe de guerra, à frente de 1500 irregulares, incluindo 200 cavaleiros.
Não se enganaram na suspeita; enganaram-se, porém, na vitória que esperavam alcançar contra esse temível e temido inimigo da sua raça e a derrota sofrida custou-lhe tudo o que tinham em gado e mantimentos, foi parar às mãos da gente de Abdul. Deu-se este absurdo: uma das razões da guerra foi a recusa do pagamento de imposto de palhota. Ora, tendo-lhes sido confiscados os bens perderam os recursos – os meios prejudicaram os fins.
Esta guerra fez-se não para servir os interesses da colónia mas pura e simplesmente e com a anuência inqualificável do Governador Oliveira Duque para vingar a morte do seu filho.
E Loff Vasconcelos traça-nos o retrato de Abdul Indjai: é um emigrado de Ziguinchor, foi para Cacheu e Costa de Baixo, fez comércio e conseguiu ser um pequeno cliente da Casa Alemã Soller, ia pagando os calotes com as cabeças de gado que foi apresando na guerra aos Balantas e no Oio. Descreve episódios de negócios frustrados, vivia em Geba quando ocorreu que os Oincas não quiseram satisfazer o pagamento do imposto de palhota, ele então ofereceu-se para recolher o imposto, levou homens armados, nem tudo correu bem, conseguiu escapar milagrosamente. Na região de Geba roubava, pilhava e atacava caravanas. O comandante de Geba deu-lhe voz de prisão, Abdul foi levado para Bissau e deportado para São Tomé pelo governador Oliveira Muzanty. Em São Tomé foi perdoado pelo príncipe real Luís Filipe.
Loff de Vasconcelos acrescenta ainda outros dados biográficos que ele considera eloquentes. Em 11 de maio de 1915, dois dias antes da declaração de guerra de Bissau, Abdul era investido no cargo de régulo do Oio – falamos de um homem que tinha sido deportado para São Tomé em 1906 como inconveniente à tranquilidade da província e cujas tropelias chegaram a ameaçar as nossas boas relações com as autoridades estrangeiras vizinhas.
Em 3 de junho de 1915, Teixeira Pinto e a força maioritariamente constituída pelos auxiliares e regulares invadiu as populações de Antim, Bandim e Antula. Seguiu-se carnificina e fuga; todo o rico e extenso território habitado pelos Papéis está hoje na maior desolação e miséria. Calcula-se que cerca de cinco mil cabeças de gado vacum foram apresados pelos irregulares. E Loff de Vasconcelos assegura que a maioria da população civilizada da Guiné foi contrária a esta guerra. E segue-se a parte jurídica.
Logo a declaração do prisioneiro de guerra, António Gomes, que dissera que a rebeldia do gentio Papel e dos Grumetes em não prestar obediência ao Governo se devia aos Grumetes Grandes que pertenciam à Liga Guineense – é este o único depoimento concreto em todo o monstruoso processo, em que foram inquiridas 45 testemunhas.
Ora um prisioneiro de guerra que se presume estar em estado de coação, o seu testemunho não tem valor jurídico. Foram proferidas acusações gravíssimas à Liga Guineense. Loff mostra carta de Teixeira Pinto com data de 9 de março de 1913 em que se exalta a página brilhante escrita pelos Grumetes de Bissau para a consolidação da soberania portuguesa, aludindo ao castigo infligido a Balantas e Felupes em 1912. E Loff diz que o governo se aproveitou dos serviços da Liga Guineense para seus fins, sempre que deles carecia chamando-lhes prestimosa Liga, segue-se a petição de queixa e participação contra o capitão Teixeira Pinto e Abdul Indjai, vem o rol dos queixosos acusados de instigadores da revolta dos Papéis de Bissau, e Loff argumenta:
“Como poderiam os agravantes estar implicados num crime de rebelião se eles sempre se esforçaram para evitar essa desastrosa guerra de Bissau como provam alguns documentos? Não cabe na mente de nenhum cérebro regularmente organizado e regulamentado a suposição de que os agravantes poderiam ter tido a vaidade de instigar essa guerra?
Era ao agravante António Teixeira, um velho respeitável, caráter pacífico e concentrado, exemplaríssimo chefe de família, amigo dos portugueses e comerciante abastado, a quem poderia convir a guerra de Bissau?
Era Augusto Domingos da Costa, antigo empregado e tesoureiro de alfândega, louvado pela coragem e sangue-frio com que resistiu às ameaças dos gentios que em grande número assaltaram o Posto de Arame, que teria interesse na revolta dos Papéis?
Era Gomes Barbosa, Alvarenga, Robalo, Gomes e Lopes, prestimosos cidadãos, que têm prestado relevantes serviços a esta colónia, que desejariam a rebelião dos Papéis e a guerra de Bissau?
Certamente que não. Todos eles tinham interesse no contrário, como sempre manifestaram. O culpado é quase sempre aquele a quem o delito aproveita. Procurem-se os verdadeiros culpados, hão de encontrá-los – que não os agravantes. Os hoje acusados poderão converter-se amanhã em acusadores”.
Para Loff de Vasconcelos, a declaração do estado de sítio e organização da coluna para submeter os chamados rebeldes de Bissau não era mais do que a continuação do plano de guerra de 1913. Mas os tempos tinham mudado. Em maio de 1915, uma grande parte das povoações de Bissau já tinha começado a pagar o imposto de palhota e os régulos pediam insistentemente ao governo para não lhes fazer a guerra e se não pagavam mais foi porque lhes diziam que quem não pagasse teria a visita de Abdul Indjai.
Era público e notório que a Liga Guineense se opunha tenazmente à guerra. Depois de descrever a calamidade em que ficara a ilha de Bissau, Loff junta à lista dos testemunhos dos atos de barbaridade praticados e vai acusar diretamente Teixeira Pinto. Ele era comandante das operações militares, organizou um inquérito na povoação de Bissau e na vila de Bolama, levantando de motu proprio autos de investigação, procedendo a buscas e apreensões, requisitando e ordenando capturas de pessoas não militares, usurpando as funções de agentes da polícia judiciária militar. Mandou prender os queixosos, deixando de cumprir, mesmo que tivesse competência legal para o fazer, os preceitos correlativos do Código do Processo Criminal Militar.
É este o escopo essencial do documento elaborado por Loff Vasconcelos. Convém agora ouvir argumentação que se opõe e na sua sequência damos a palavra à argumentação utilizada por Armando Tavares da Silva na sua obra Presença Portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926.
(continua)
João Teixeira Pinto
Abdul Indjai
____________
Nota do editor
Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)