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quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26259: Operação Grande Empresa, a reocupação do Cantanhez e a criação do COP 4, a partir de 12 de dezembro de 1972 - Parte IV: Um dos santuários do PAIGC (1966-1972)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Madina do Cantanhez, perto da "barraca" (acampamento) Osvaldo Vieira (que eu visitei em 2 de março de 2008) > 10 de Dezembro de 2009 > 7h32 >  A silhueta de um "dari" (chimpanzé) descendo uma árvore ... 

Este grande símio (o mais aparentado, do ponto de vista genético, ao ser humano) é muito difícil de observar e fotografar... Contrariamente a outros primatas que existem no Parque, ainda com relativa abundância como o macaco fidalgo ("fatango", em crioulo). O Cantanhez ainda era, em 2009, uma das últimas florestas primárias do planeta. É imperioso que os guineenses e todos nós as saibamos proteger e salvar. O João Graça que esteve cinco dias como médico, voluntário,  em Iemberém (a nossa antiga "Jemberém"), teve o privilégio de observar "in loco"  um chimpanzé do Cantanhez (depois de se levantar muito cedo e caminhar um bom par de horas, com um guia). Outro habitat do "dari é o Boé (agora ameaçado com a prospeção e eventual exploração da bauxite, entregue a uma empresa chinesa).

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Farim do Cantanhez > 9 de Dezembro de 2009 > 17h06 >  Resto de mangas de um ou mais "daris"...

Com mais de 100 mil hectares (mil quilómetros quadrados), este parque é muito importante, segundo o IBAP - Instituto da Biodiversidade e das Areas Protegidas, com sede em Bissau:

"Grande diversidade da fauna e da flora com a existência de várias florestas húmidas onde se destacam sobretudo as essências raras e únicas, tais como: copaifera, salicaunda, 'pau' miseria, mampataz, 'pau' de veludo, tagarra, faroba de 'lala' e outras. Ainda alberga diferentes espécies de fauna (elefante, búfalo, baca branco, sim-sim, chimpanzé, macaco fidalgo, porco de mato), entre outros: é reconhecido por WCMC como um dos 9 sitios importantes do ponto do vista da bioiversidade. Cantanhez é igualmente uma das 200 eco-regiões mais importantes do mundo identificadas pela WWF."

Fotos (e legendas): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Península de Cubucaré / Cantanhez > Carta de Cacine (1960) (Escala 1/50 mil)  > Durante 6 anos, de 1966 a finais de 1972, o Cantanhez foi um "santuário" do PAIGC. O único destacamento das NT era Cabedu (parte do setor S3, Catió) (e Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine). Depois da Op Grande Empresa (dez 72 / jun 73), vão ser instalados aquartelamentos das NT em Jemberém, Cafine, Cafal, Cadique, e outros (que este excerto do mapa não mostra, como Caboxanque, Chugué e Combumba)  (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Antes da Op Grande Empresa (*), houve outras operações de envergadura, com tropas terrestres, marinha e força aérea... Mas a verdade é que o PAIGC encontrou na península de Cubucaré condições ideais para construir um dos seus santuários, no interior da Guiné... 

Sabemos que a reivindiação de 2/3 de áreas libertadas foi sempre "show-off" do Amílcar Cabral para impressionar os seus financiadores externos e fornecedores de armas, bem como reforçar a "moral" da sua tropa, militantes e simpatizantes... Nunca correspondeu à verdade... Não havia recanto da Guiné onde a tropa portuguesa não pudesse chegar, com maior ou menor dificuldade... 

Isso não nos impede de reconhecer, também por mor da verdade, que  o Cantanhez , o Oio e o Boé foram três santuários do PAIGC: o primeiro , de 1966 a 1972, o segundo, durante toda a guerra, o terceiro. depois do abandono de Béli,  Madina do Boé e Cheche, em 6 de fevereiro de 1969... 

Mas a população que lá podia viver no Cantanhez era, afinal,relativamente  escassa: no final da Op Grande Empresa, as NT  conseguiram recuperar não mais do que 3,5 mil habitantes, sobretudo  mulheres, velhos e crianças, que foram "reordenadas"...

No ReI Ac Psic n° 4/72 (citado, pela CECA, 2015, pág. 186), e no que diz respeioto à "População", escreve-se:

(...) "O aspeto mais significativo no período foi a recuperação de cerca de 3.500 elementos da população balanta em Caboxanque e Cadique que após a implantação das NT naqueles locais, franca e abertamente, se acolheram à nossa proteção, colaborando na construção dos aldeamentos locais imediatamente iniciados.

"Esta atitude, manifestada por uma população há anos sob controlo IN, para além de revelar um fraco índice de contaminação subversiva, confirma o quadro de desequilíbrio psicológico a nosso favor vindo há muito manifestar-se pela generalidade da população controlada pelo inimigo em consequência dum cansaço de guerra, pesadas exigências do Partido e precárias condições da vida no 'mato'. " (...)

Onde estavam, afinal,  os  trezentos e tal mil habitantes  da Guiné, que o PAIGC controlaria nos tais 2/3 do "território libertado" ? 

Na altura,em 1970,  a Guiné tinha c. de 595 mil   habitantes; na melhor das hipóteses, o PAIGC controlava, direta ou indiretamente,  dentro e fora do território, 15% a 20% da população, incluindo a população refugiada dos dois países vizinhos, o Senegal e a Guiné-Conacri.

Recorde-se aqui os números apurados pelo jornalista do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues,  em meados de 1972, aquando da sua visita à Guiné em missão de reportagem, a convite pessoal de Spinola:

(i) "Bissau afirma controlar 487 448 habitantes (foram os que se deixaram recensear em 1970)",

(ii)  "mantendo-se outros 27 174 em 'zonas de duplo controle' ".

(iii) "no Senegal vivem 60 000 refugiados, e na Guiné (Conacri) 20 000, segundo informa o Comando-Chefe, apoiando-se em  dados da Comissão de Refugiados da ONU";

(iv) "a ser assim, 89,5 por cento dos guinéus viveriam no interior do TO (teatro de operações) e 82 por cento do total estariam sob controle português."

(v) "numa população que em 1970 era de 594 622 habitantes";

(vi) "os dois mil combatentes que (...) actuam dentro das fronteiras, manobram a partir das 'zonas sob duplo controle' (...), situadas ao longo do corredor florestal e particularmente nas proximidades de Bissorã / Mansabá / Canjambari, confluência do Geba/Corubal, e sobretudo na zona ao sul do rio Buba, à volta de Catió".

(vii) "outra zona 'quente' situa-se perto do Cacheu, junto ao rio do mesmo nome, alastrando pelas florestas ao norte do Bachile e do Pelundo";

(viii) "calculam-.se em 7 000 os combatentes do PAIGC atuando a partir de 25 bases da fronteira senegalesa e de 8 da República da Guiné, incluindo aqueles que se encontram dentro do TO" (**)


2.Reveja-se, aqui, em síntese, o que foi, no sector Sul 3 (S3), a Op Safari, em 3 e 4 de janeiro de 1966:
 
(...) "Teve como finalidade, aniquilar e destruir os grupos inimigos e as suas instalações localizadas nas regiões do Cantanhez, entre os rios Ualche e Macobum, particularmente as de Calaque, Cafine e Cafal. 

"Executaram a operação forças da CCaç 728, 763(-), 1423, 1424 e 1427(-), CPara, 4 DFE, 5° e 6° Pel / BAC (4 obuses), com apoio aéreo e apoio naval.

"As NT atacaram a 'Base Central', a sul do cruzamento de Cafal, tendo-a destruído.

Em Missida Jauiá foi assaltado um acampamento; o lN sofreu 1 morto e 1 prisioneiro, tendo-lhe sido apreendidas I metralhadora pesada e outra ligeira, 1 espingarda, 1 carabina e 1 pistola metralhadora, além de outras baixas não confirmadas. Foi apreendida documentação diversa. Foram destruídas grandes quantidades de arroz e de gado.

"As NT sofreram 4 mortos e 14 feridos."

 Comentário à Op Safira (Fonte: Relatório de Comando do CTIG n'º 1/66, pp. 109-110):.

(...) "Ressalta no período, pela sua importância, quanto a efetivos empenhados, meios de apoio de fogos, apoio aéreo e naval, pela duração e pelo prazo e, especialmente, pelo valor atribuído ao lN na zona de ação escolhida, a operação 'Safari'.

O Cantanhez é uma área de densa arborização e difícil acesso às NT, onde o lN mantém uma liberdade de ação quase absoluta, sofrendo apenas esporádicas ações de flagelações da FA, Artilharia e de curtas incursões por elementos combatentes.

"A Op Safari teve o condão de levar a essa área importantes efectivos das NT, que percorreram distâncias apreciáveis, causando ao lN baixas e danos materiais que não estão, ainda hoje, avaliados. As NT permaneceram na zona de ação durante a noite de 4/5 de janeiro, período que era considerado crítico, sem que o lN tivesse comprometido a sua segurança. 

"Desta operação colheram-se bons ensinamentos para futuras ações na mesma área e verificou-se a viabilidade de ali se levarem a efeito ações de desgaste do lN. "(...)

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014), pp.  387/388 (Negritos nossos) (Com a devida vénia...).


3. Da leitura do livro da CECA,  6.º Volume (Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa, 2015), abrangendo o período de 1967 a 1970, vai-se percebendo que para o então Com-Chefe, gen Schulz, o Cantanhez é um osso duro de roer e não há condições para uma grande contra-ofensiva das NT... Vem o Spínola, em meados de 1968, e só quatro anos e meio depois (!), é que é possível planear e executar a Op Grande Empresa.

Temos de recuar no tempo, ao princípio da luta armada  (ou início da subversão, como diziam as autoridades portuguesas) para perceber por que razão só muito tardiamente as NT conseguiram pôr algumas bandeirinhas no mapa do Cantanhez: Jemberém, Cafine,Cafal,Cadique, Caboxanque, Chugué e Cobumba...


Vídeo nº 1  (4' 52 ''): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. 

Alojado em: You Tube >Nhabijoes



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira, nas proximidades de Madina do Cantanhez, na picada entre Iemberém e Cabedu > Simpósio Internacional de Guiledje > Domingo, de manhã, 2 de março de 2008 > Visita guiada e animada por antigos guerrilheiros e população local, ao Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira (*) > 


Neste vídeo (nº 1), um dos homens grandes da região conta como foram "os primórdios da luta"...  Era de etnia nalu, a  "dona  do chão". Chamava-se 
Mussá Camará  (e irá morrer uns meses mais tarde).

Entrou no mato, como ele diz, logo em 1962. Ou seja: passou à clandestinidade, depois de aderir ao PAIGC. 

Estava convencido que a designação deste acampamento ("Osvaldo Vieira") não tinha nada a ver com a verdade fática, histórica, que seria apenas uma homenagem, póstuma, a um dos heróis (não de todo consensual...) do PAIGC, cujos restos mortais repousam na Amura, a antiga fortaleza colonial de Bissau transformada em panteão nacional.. Mas não, o  Osvaldo Vieira atuou no Oio (Frente norte), mas também ao que parece no Cantanhez (Frente sul). 

Abramos aqui um parênteses, para dizer que já em 2008 eu tinha dúvidas (eu e outros participantes portugueses no Simpósio) sobre o seu papel no complô contra Amílcar Cabral de que resultara o seu miserável assassinato em 20 de janeiro de 1973.  Osvaldo Vieira e o executante do crime, o Inocência Cani,  eram próximos e críticos do líder histórico e da tese da unidade Guiné-Cabo Verde. Mesmo assim foi dado o seu nome ao Aeroporto Internacional de Bissau. Também tinha relações de parentesco com 'Nino' Vieira. De qualquer modo, repousam lado a lado no panteão nacional, ele e o Cabral, o " pai da Pátria".

Mas voltando ao vídeo (nº 1): o antigo guerrilheiro  fala num crioulo difícil. O Pepito vai traduzindo. Vê-se que nem sempre percebe o antigo guerrilheiro...

"Éramos só sete nessa altura. O comandante do grupo era o José Condição. Ficámos no mato de Caboxanque, aqui perto. Numa barraca, parecida com esta"... 

E a narrativa continua: Até que chegou à região de Tombali o Capitão Curto.  Esse Cap Curto ficou com a fama de mandar cortar cabeças. .. No filme-documentário "As Duas Faces da Guerra", de Flora Gomes e Diana Andringa, um dos entrevistados, antigo combatente do PAIGC, também evoca esse  Cap Curto... A crer no depoimento do antigo guerrilheiro, o Cap Curto cortava as cabeça dos seus prisioneiros e, depois ia apresentá-las às mães das vítimas, nas suas tabancas... (o que nos parece macabro e fantasioso demais).

Enfim, não tive, no Cantanhez, oportunidade de confirmar esta história nem saber mais pormenores sobre eventuais métodos de trabalho sujo, resultantes da colaboração entre Exército, PIDE, polícia administrativa, etc., nos "anos de chumbo" que antecederam a guerra... 

Também não achei apropriado o momento, que era de festa e de reconciliação, para falar deste e de doutros homens que, a ser verdade o que deles se contava,  não podem ser tomados como representativos do exército português, e muito menos dos militares portugueses que fizeram a guerra, entre 1963 e 1974... Mas é importante ouvir as diferentes narrativas da guerra, que ajudam a compor o "puzzle" das histórias de um lado e do outro...

Na mesma altura apareceu o 'Nino' Vieira. O tal Cap Curto cercou Darsalame, entrou aos tiros na tabanca, mandou toda a gente pôr as mãos na cabeça… (Esta história já parece bater certo com outras que temos ouvido da atução do cap José Curto, cmdt da  CCAÇ 153, e carrasco do comandante do PAIGC, Vitorino Costa, formada na academia chinesa de Nanquim.) 

Das cinco da tarde às cinco da manhã, a aldeia esteve cercada e as pessoas foram interrogadas… O 'Nino' ficou muito preocupado e quis saber o que se passava. Reuniu os camaradas, entre eles o "Mão de Ferro", com a missão de ir a Darsalame saber o que se estava a passar e tentar ajudar o povo. Não deixou ir o José Condição. Foi também nessa altura que o grupo, que tinha aumentado, já não cabia em Caboxanque. 

“Este mato é pequeno. Não vamos ficar aqui, disse eu… E foi então que fomos para o mato de Cantomboi” (um dos catorze atuais matos do Canhanez)…


 

Vídeo nº 2 (0' 55''): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijões


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira, nas proximidades de Madina do Cantanhez, na picada entre Iemberém e Cabedu > Simpósio Internacional de Guiledje > Domingo, de manhã, 2 de março de 2008 > Visita guiada e animada por antigos guerrilheiros e população local, ao Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira (*) 


"Cabral fala sábi"...A memória de Cabral (que, dizem, conheceu bem a região de Tombali, como engenheiro agrónomo, antes de se ter tornado o fundador e o líder histórico do PAIGC) bem como as marcas da luta de guerrilha estão ainda bem vivas entre as mulheres e os homens do Cantanhez... Uma das mulheres, presentes nesta visita, canta uma das canções revolucionárias da época, dando vivas à Guiné e ao... Partido (vídeo nº 2).

 Mas será que alguma vez  elas o viram ao vivo  a a cores por estas paragens  durante a "guerra de libertação" ?  Duvido.  

Contrariamente ao ' Nino', o Cabral nunca foi um comandante no terreno, não era um "cabra-matcho"  como os guineenses gostavam. Era um bom teórico, estratega, político, diplomata ( e poderia ter sido um grande estadista, ou não ?)... Mas nunca foi um com-chefe, um general,  como o Spinola,  próximo dos seus homens no mato, na guerra.  


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira, nas proximidades de Madina do Cantanhez, na picada entre Iemberém e Cabedu > Simpósio Internacional de Guileje > Domingo, de manhã, 2 de março de 2008 > Visita guiada e animada por antigos guerrilheiros e população local, ao Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira (***) 

"A unidade foi a melhor arma nos momentos difíceis dos camaradas" - pode ler-se num pequeno monumento, tosco, de cimento, encimado pela estrela negra, erguido na antiga barraca da guerrilha, o acampamento "Osvaldo Vieira" (agora reconstituído)... 

Testemunho do passado, recado para o presente, pensa a Alice que, como muitos portugueses e portuguesas, não fazia a mínima ideia das reais condições do terreno (e do clima) onde se operava a guerrilha e a contra-guerrilha na Guiné.... São florestas-galeria onde mal entra o sol...

Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

O que pensarão estes miúdos ? Quais são os seus sonhos ? Para onde estão a olhar ? O que serão daqui a 15/20 anos ? O que sabem da luta pela independência, levada a cabo pelos seus avós ? Quem serão hoje os seus ídolos, os seus heróis ? E estas mulheres grandes ? Que recordações têm da luta armada ? E da dor, do sofrimento e da tragédia que foi toda aquela guerra estúpida e inútil ? Qual é a sua situação hoje, do ponto de vista social, económico e sanitário ? O que poderão ainda esperar do futuro ?

Foto nº 3 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje> Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Sabotagem ? Provocação ?... Não, é apenas uma camisola do craque do Manchester United e da Selecção Nacional de Futebol de Portugal, Cristiano Ronaldo, um "herói' do mundo global e mediatizado de hoje... 


Foto nº 4 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

À esquerda, o prof  Luís Moita  (1939-2023) e o Paulo Santiago seguem com atenção, desvelo e carinho, o inédito espectáculo de representação teatral que nos ofereceram, a todos, os antigos guerrilheiros e a população local do Cantanhez...

Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)


Um dos antigos "combatentes da liberdade da pátria", um antigo comandante,  explica, em crioulo (com tradução para português, feita pelo Pepito) como é que os guerrilheiros do PAIGC se apoiavam em (e articulavam com) a população local...

Com um brilhozinho nos olhos, fala das 3 fases da organização político-militar do PAIGG...  (Á esquerda, sentados, e de máquina fotográfica em punho, o Paulo Santiago e o Silvério Lobo.)


Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

... Tem um papel, sabe ler...  Insiste em afirmar, perante os convidados estrangeiros, que aqui nunca se lutou com o povo português, mas sim contra o colonialismo de Salazar e de Caetano de acordo com a retórica do Partido.

Fotos nº 7 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um verdadeira lição, ao vivo, de história, de antropologia, de ciência política, de arte da guerra, de gestão, de humor, de humanidade, de sobrevivência, de dignidade, de amizade, de esperança no futuro... 

Fotos nº 8 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Osvaldo Vieira, de origem cabo-verdiana,  foi dos que morreu justamente na reta final, a um mês do fim das hostilidades...   Os antigos guerrilheiros do Cantanhez também quiseram dar a esta 'barraca'  (acampamento temporário) o seu nome... 

Segundo me dirá o Manecas Santos outro lendário combatente do PAIGC, o homem dos Strela,  o Osvaldo nunca terá andado muito pelo sul... Fico na dúvida se o nosso homem esteve realmente aqui, neste sítio... Mas, para o caso, também não interessa. Os seus antigos camaradas tentaram, de maneira didática, simples, autêntica, reconstruir as condições em que se vivia e lutava durante os difíceis tempos da luta de libertação... (E tiveram que limpar aquele mato!)

Não sei se alguma vez foi identificado, atacado e destruído pelas NT este acampamento... Sabe-se que, desde 1966 até finais de 1972  as NT não ousaram penetrar, a pé, no coração do Cantanhez, com o claro objetivo da sua reocupação. No final do consulado de Spínola, aí sim, vai haver uma grande contra-ofensiva contra este santuário do PAIGC, a Op Grande Empresa.

O Pepito garantiu-me,  uns meses mais tarde, desfazendo as minhas dúvidas,, que  "o Osvaldo foi um combatente que viveu naquela 'barraca' (acampamento) e fez dela ponto de partida para numerosas acções de guerrilha".

Além disso, "as estórias dele naquele local são mais do que muitas, algumas até divertidas: quando lhe dava a sede, mandava um dos seus guerrilheiros comprar vinho no Quartel de Cacine. Uma vez o mesmo saboreado e estalada a língua de satisfação, recostava-se e dizia: ' 
Um dia ainda vamos chorar a partida dos portugueses, nunca mais beberemos bom vinho'  "… (Se calhar dizia "água de Lisboa", como os meus soldados, que não bebiam...)

Foto nº 9 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um grupo de antigos guerrilheiros encenaram a sua atuação no tempo da guerra... Ei-los aqui vestidos de caqui e gorro, e empenhando imitações de madeira da famigerada Kalashnikov... Pertenciam ao Exército, já na 3ª fase da luta...

Foto nº 10 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Nalguns casos recorreu-se mesmo a restos de armas que ficaram por ali, como por exemplo o cano do temível LGFog RGP-7....


Foto nº 11 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

O grande terror dos guerrilheiros e da população do Cantanhez não eram os paraquedistas, ou o helicanhão, mas sim os Fiat, os aviões a jacto da Força Aérea Portuguesa... O aparecimento dos mísseis terra-ar Strela vieram dar outra confiança e ânimo aos homens do PAIGC...

Foto nº  12 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

 O papel das mulheres na guerrilha foi aqui ilustrado, exemplificado, exaltado...

Foto nº  13 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

As mulheres do Cantanhez exemplificaram como cozinhavam no mato, sem fazer fumo, iludindo a observação aérea das NT... Os combatentes tinham apenas direito a uma refeição por dia... Ainda hoje será difícil comparar a sua à nossa fome... Nas unidades de quadrícula ou nas operações no mato, o tuga sonhava com comida e sobretudo com bebida... Muita, fresca.

Foto nº  14 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um grupo de mulheres, camufladas com folhas de arbustos, mostrando como se deviam agachar e esconder quando no céu se ouvia o baralho de aeronaves...

Foto nº 15 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Atores, figurantes, assistência... Nos bastidores ou no palco.... As mulheres são parte fundamental da luta do povo da Guiné, ontem como hoje: pela paz, pela liberdade, pela democracia, pelo desenvolvimento, pelo direito à história....

Os tempos hoje são outros... As populações do Cantanhez, e nomeadamente as que apoiaram abertamente a luta de libertação (os nalus e os balantas), parecem assumir o seu passado, com orgulho, com dignidade, sem arrogância, sem ódio....

Claro que a narrativa é heróica... Em dia de festa, e para mais à frente de estrangeiros (e alguns antigos inimigos) não houve ocasião para se lembrar a violência que também se abateu do lado dos " libertadores", sobre a população mais vulneráveis, as crianças, as bajudas, os adolescentes, as mulheres, os idosos...que tinham de alimentar a guerrilha, garantir grande parte da logística, cultivar as bolanhas, sofrer as prepotências dos comandantes e comissários políticos, etc. 

Foto nº 16 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Uma guerra de libertação (ou subversiva, como diziam as nossas chefias militares...) não se faz sem as mulheres, como a antiga enfermeira do PAIGC, Francisca Quessangue, que participou na batalha de Guileje....

Francisca, uma mulher doce e tranquila... E no entanto  tinha todas as razões para ter ódio no seu coração: o pai foi morto, com três tiros, friamente, por tropas africanas, por se recusar a denunciar os camaradas da guerrilha do PAIGC... Uma tia dela que estava grávida e que assistiu, aterrorizada, a esta cena, escondida por detrás de uma árvore, teve um aborto espontâneo. 

O pai da Francisca era papel, da região de Bissau. Viveu no mato, onde ela cresceu. Tinha responsabilidades políticas, não era combatente. A Francisca estudou enfermagem na ex-União Soviética. Estava num hospital de retaguarda, na fronteira, aquando do ataque a Guileje. Hoje é enfermeira no Hospital Regional do Gabu. 

Foi uma das oradoras do Simpósio. Fez uma comunicação sobre os aspectos sanitário-logísticos do PAIGC no assalto ao quartel de Guileje, no dia 6 de março. (...)

Foto nº 17 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um antigo comandante da guerrilha conduziu-nos, a mim, ao cor art ref Nuno Rubim, o "capitão-fula",  e a esposa, ao longo de uma das linhas de fuga que partiam do centro do acampamento, em plena floresta do Cantanhez, até ao tarrafo... Fortemente apoiados pelos nalus e pelos balantas, o PAIGC movia-se como peixe dentro de água nesta floresta-galeria, um emaralhado de lianas e vegetação perene, com árvores de alto porte, centenárias, uma amostra ainda riquíssima do que resta das florestas primárias do planeta...

Foto nº 18 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Paisagem de tarrafo...na maré vazia.


Foto nº 19 > 
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

De acordo com as coordenadas do GPS do N  caor art ref Nuno Rubim (1938-2023), tiradas no centro da clareira onde decorreu a cerimónia, este sítio fica a 11º 12' 46" N - 15º 03' 10" W, ou seja, à esquerda da picada que vai de Iemberém (antiga Jemberém) para Cadique (a oeste) e Cabedu (a sudoeste), nas proximidades de Madina do Cantanhez, entre Iemberém e Cachamba Sosso (vd. infografia, ao alto do poste)... 

Uma das linhas de fuga do acampamento, que ficava numa pequena elevação, ia dar diretamente ao Rio Bomane, afluente do Rio Chaquebante, este por sua vez afluente do Rio Cacine, desaguando justamente frente a Cacine, perto de Cananime (onde iríamos almoçar nesse domingo).

Foto nº 20 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...) 

À entrada para o acampamento Osvaldo Vieira, junto a poucos quilómetros de Imberém, a sul... Na foto, a Alice Carneiro com o antigo guerrilheiro Dauda Cassamá, sob o olhar do catalão Josep Sánchez Cervelló, professor universitário em Tarragona, especialista em história sobre o 25 de Abril e a descolonização portuguesa...


Foto nº 21 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um grupo de jovens, rapazes e raparigas, que cantaram o Hino da Guiné-Bissau no início da cerimónia ... O que será feito deles, hoje (2024) ?

Foto nº 22 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

O Pepito, nosso anfitrião (infelizmente iria desaparecer 4 anos depois, deixando órfão a sua ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, e fazendo falta a este povo e que ele tanto adorava) ,  aqui servindo de tradutor (do crioulo para o português)... Foi o génio organizativo e a alma deste Simpósio Internacional, que juntou os "inimigos de ontem" (faltaram apenas os cabo-verdianos, que ainda tinham um ódio de estimação ao 'Nino' Vieira e vice-versa)...

Concentraram-se, neste antigo acampamento do exército do PAIGC, naquela manhã de domingo, dia 2 de março, algumas centenas de pessoas, entre comitiva (participantes do Simpósio Internacional de Guileje, nacionais e estrangeiros) e população local...


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > d7 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26242: Operação Grande Empresa, a reocupação do Cantanhez e a criação do COP 4, a partir de 12 de dezembro de 1972 - Parte III: Dois amargos Natais, em Caboxanque (1972) e Cadique (1973) (Rui Pedro Silva, ex-cap mil, CCAV 8352, Caboxanque, 1972/74), 14 de março de 2024

(**) Vd. poste de 3 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23224: A nossa guerra em números (16): A "força africana" em 1972: mais de 20 mil homens em armas, segundo o enviado especial do "Diário de Lisboa" ao CTIG
 
(***) Vd. postes de:

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24034: Notas de leitura (1549): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Assim se chega ao fim deste primeiro volume, em 1964 o PAIGC dá sinal de vida às suas armas antiaéreas no Cantanhez, as forças portuguesas respondem com operações de bombardeamento e depois com forças (Operação Resgate, Operação Mercúrio, Operação Safari). 1965 será um ano sem perdas para a FAP, mas a guerra alastrou, o PAIGC consolidou-se no sul, no Morés, donde se dissemina até ao norte e ao Geba, está bem implantado no Corubal. Vamos agora esperar pelo segundo volume, assim que os autores tiverem a amabilidade de nos facultar. Bastava ler este volume I para perceber como muita gente que anda a escrever sobre a Guiné e a afirmar impudicamente que a governação Schulz foi atrabiliária, para se ver a ignorância que por aí vai, nem as memórias de José Krus Abecasis tiveram a oportunidade de ler.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Percorremos já um longo percurso (esta recensão já abrangeu mais de metade da obra), os investigadores socorrem-se de um processo diacrónico, atravessam toda a cronologia de acontecimentos internacionais e nacionais que se prendem com o fenómeno da descolonização africana e como este afetou a Guiné; depois, dão-nos o quadro dos meios aéreos existentes, no início da década de 1960 e a sua evolução até ao desencadear da guerra, a adaptação de infraestruturas (nomeadamente Bissalanca, Cufar e Gabu), o aperfeiçoamento na formação dos pilotos, etc. Seguiu-se uma descrição sobre os comportamentos militares dos primeiros comandantes-chefes e as aquisições efetuadas, designadamente na Europa Ocidental. Por fim, abordou-se a Operação Tridente, começa agora o período da governação Schulz. Pela narrativa destes autores, revela-se à puridade a ideia feita de que Schulz não tinha estratégia adequada para querer contrariar a ofensiva guerrilheira, adotou um modelo de disseminação da quadrícula que era totalmente partilhado por outros potências coloniais a enfrentar a insurgência, e, obviamente, apercebendo-se da natureza do terreno, teria de apostar no apoio aéreo e na capacidade dos bombardeamentos. E os autores explicam claramente as dificuldades surgidas com as aeronaves. Vamos continuar esse relato e acompanhar o período da governação Schulz, e procurar entender a natureza da resposta do PAIGC.

Em meados de 1964, o PAIGC dotara-se de armas de defesa aérea de 12,7 mm, entre elas o DShK ou “Degtyarov-Shpagina de grande calibre”, conseguiu danificar 42 aviões durantes os primeiros oito meses de 1964, foi a frota T-6 que sofreu o maior dano. A intensa atividade antiaérea do PAIGC continuou no ano seguinte. E à medida que o armamento do sistema antiaéreo se tornava mais eficaz, o PAIGC criou equipas de armas que poderiam agir de forma independente ou ligar-se a formações maiores para grandes operações. No início de 1965, o PAIGC tinha reorganizado a sua ala militar regular, as FARP, constituíram-se grupos autónomos de 17-25 combatentes cada, dois grupos formavam um bigrupo que se iria tornar a formação tática padrão das FARP. Cada bigrupo poderia ser reforçado com elementos da defesa aérea ou outras armas empregando morteiros, RPGs, canhões sem recuo, entre outros. Essas forças locais eram importantes para manter uma aparência de soberania do PAIGC nas chamadas zonas libertadas, um pilar fundamental do seu programa político.

O primeiro teste sério à capacidade do PAIGC blindar território “libertado” de ataque aéreo ocorreu na Península do Cantanhez. Em 6 de dezembro de 1965, um C-47 recebe uma autêntica barragem de fogo antiaéreo enquanto sobrevoava o sul da Guiné à noite e a uma altitude de 5000 pés. De acordo com os relatórios da operação, sugeria-se que o PAIGC tinha usado armamento antiaéreo mais pesado, seriam os canhões antiaéreos ZPU de 14,5 mm, era uma metralhadora com alcance de quase uma milha podendo fazer fogo até 4500 pés, o cano podia disparar 600 tiros por minuto. Como observou Krus Abecasis, o inimigo tinha escalado e procurava desafiar o domínio aéreo da Força Aérea, o incidente sobre o Cantanhez exigiu a ativação de uma estratégia, a Força Aérea ia responder ao desafio. Foram preparados planos para tal contingência e em 10 de dezembro Schulz aprovou a proposta de Abecasis para a Operação Resgate, nome escolhido com a intensão de restaurar a nossa liberdade de ação nos céus da Guiné. Schulz e Abecasis esperavam provocar estas equipas do sistema antiaéreo do PAIGC no Cantanhez, puseram em campo toda a gama da capacidade ofensiva: 2 C-47, 12 T-6, 3 Do-27, 2 helicópteros Alouette III e 2 P2V-5 (os Neptune chegaram a Bissalanca vindo das Ilha do Sal a 12 de dezembro trazendo consigo bombas de 325 kg para uso na operação). A Operação Resgate foi desencadeada a 17 de dezembro, um C-47 aproximou-se das posições antiaéreas à altitude de 400 pés, levava apagadas as suas luzes de navegação, atuava como isca, era um barulho destinado a provocar uma reação violenta dos sistemas antiaéreos, expondo as suas posições; atrás desta aeronave seguia outro C-47 que ia iluminar esses locais, a sua missão era identificar os alvos com mais precisão e simultaneamente atrapalhar a visão noturna dos artilheiros, este C-47 também vinha carregado de bombas de fragmentação de 50 kg e latas de napalm de 60 litros. A aeronave isca atraiu o fogo esperado, foram lançados flashes de magnésio e o primeiro bombardeiro Neptune chegou à área alvo dois minutos depois lançando bombas; os Neptunes despejaram as suas munições nos 50 minutos seguintes. Apesar da ferocidade do assalto, os artilheiros antiaéreos das FARP iam vomitando estilhaços de grande calibre contra os nossos aviões, como descreveu Krus Abecasis. Esta primeira onda de ataque foi seguida por mais três em dezembro a 18 de dezembro, completaram a primeira noite da Operação Resgate.

Ao amanhecer, os T-6 começaram a fazer o reconhecimento, a verificar como se processava a infiltração e o abastecimento das FARP, quais as rotas que levavam àquela península. Na avaliação de resultados da primeira noite, o comandante da ZACVG concluiu que houvera êxito na missão, tinham sido descarregadas 30 toneladas de bombas nas posições do PAIGC.

A punição recomeçou duas noites depois, a 19 e 20 de dezembro, as aeronaves da FAP lançaram a segunda série de ataques na região do Cantanhez. Observou-se logo um declínio acentuado no fogo antiaéreo, presumivelmente devido aos danos causados durante a primeira noite da Operação Resgate. A FAP não perdeu nenhuma aeronave durante estes dias de operação, embora dois T-6 tenham sido atingidos no dia 19 e um P2V-5 ficou ligeiramente danificado pelas defesas antiaéreas durante a noite final da operação. Até ao fim do ano fizeram-se voos noturnos para avaliar os resultados, e havia o intuito de preparar uma operação conjunta para expulsar em definitivo o PAIGC do Cantanhez. Embora os sistemas antiaéreos do PAIGC estivessem piados, as FARP continuavam numa total liberdade de movimento naquela península densamente florestada e frequentemente inundada. Na sequência da Operação Resgate ocorreu a Operação Safari em 3 e 4 de janeiro de 1966, envolvendo paraquedistas e fuzileiros, fizeram vários desembarques simultâneos na Península de Cantanhez. Apesar de alguns sucessos iniciais, incluindo a destruição do que se considerou uma bases central das FARP, as forças portuguesas encontraram uma forte oposição e foram obrigadas a retirar-se. Retornou-se ao Cantanhez dois meses e meio depois, as forças portuguesas desembarcaram com a proteção de aeronaves, era a Operação Mercúrio, em 19 de março de 1966; pela primeira vez, alguns DO-27 foram utilizados para atacar, empregando granadas de mão como bombas de fragmentação improvisadas – um método não isento de riscos para o avião e a tripulação. A Operação Mercúrio foi considerada um sucesso tático, não encontrado resistência da guerrilha e não houve vítimas do lado português a assinalar.

Noutro lugar desta volátil Região Sul, em 1 de agosto de 1966, a ZACVG lançou a Operação Ribalta, com a duração de três dias, abarcando a fronteira sudeste com a República da Guiné, operação que foi precedida por bombardeamento noturno, procuraram afetar unidades guerrilheiras que flagelavam os destacamentos de Beli e Madina do Boé. A operação foi um êxito, os guerrilheiros sofreram 60 mortos e o remanescente das unidades de guerrilha teve de fugir.

Atenuou-se, mas não se destruiu esta dinâmica do PAIGC. Ao longo de 1966, a região sul iria permanecer como o teatro de guerra mais ativo, o PAIGC consolidava o seu controle em zonas pouco povoadas de florestas, pântanos e mato. As FARP também aumentaram a sua presença e atividades no noroeste da Guiné ao longo da fronteira com o Senegal, explorando a escassez de forças portuguesas na área. As FARP estavam bem instaladas na região do Morés e dali partiam operações para todo o oeste. No leste, o PAIGC encontrou forte resistência por parte da população Fula dominante, mas conseguiu estabelecer uma presença disruptiva no setor, fazia-o mediante forças que se infiltravam na fronteira e que depois regressavam aos seus santuários da Guiné-Conacri.

Felizmente para a ZACVG, 1965 foi um ano relativamente bem-sucedido, não se perdeu nenhuma aeronave desde dezembro de 1964. Um dos oficiais superiores que trabalhavam com Schulz, o Tenente-Coronel Castelo Branco descreveu os problemas que estavam a ser enfrentados pelas tropas portuguesas em carta enviada ao Comandante-Chefe: insuficiência de recursos em tropas, veículos, aeronaves e pilotos; a guerrilha estava profundamente entrincheirada no sul da Guiné. O tenente-coronel considerava que o Governo teria de se comprometer mais com uma guerra em grande escala que queria reconquistar a região e as gentes, e escrevia: “Em suma, o inimigo colocou a mão no nosso pescoço, como um bom lutador de judo, e estamos com imensa dificuldade de sair desta posição.” Ora, para grande desconforto da ZACVG, deu-se a retirada do F-86, as funções de apoio de fogo iam ser centradas nos velhos T-6. As FARP aumentavam a frequência da sua presença e as forças terrestres mostravam dificuldade em responder com oportunidade célere às atividades da guerrilha.

As iniciativas diplomáticas desenvolvidas por Lisboa junto de Paris e Bona tiveram sucesso, conseguia-se contornar o embargo de armas norte-americano, adquirindo aeronaves pelos parceiros europeus. Estava iminente a entrada em cena dos Fiat G.91 da República Federal Alemã e a entrega dos helicópteros Alouette III, o que trouxe algum otimismo tanto a Schulz como a Abecasis, supunha-se que estas aeronaves iriam trazer novas capacidades e fazer pender a balança graças a uma fase qualitativamente nova da guerra aérea, na Guiné Portuguesa.

Fim do volume I.


Um caça Fiat G.91
Uma metralhadora antiaérea Degtyarev de 12,7 mm
Guerrilheiros do PAIGC com uma arma antiaérea ZPU-4 de 14,5 mm
Metralhadora pesada ZPU-4.

OBS: - As quatro imagens acima apresentadas foram retiradas do trabalho de José Matos intitulado “A GUERRA DAS ANTIAÉREAS NA GUINÉ (1965/1970)”, com a devida vénia
Quadro da penetração do PAIGC em meados de 1966 (Matthew M. Hurley)
Quadro que reporta as perdas em combates e acidentes de aeronaves na Guiné (1962-1966)
F-86 destruído em 31 de maio de 1963, na sequência de um bombardeamento que correu mal (Arquivo Histórico da Força Aérea)
À atenção do leitor: estes dois volumes de memórias de José Krus Abecasis continuam a ser leitura fundamental para análise do comportamento da FAP na Guiné, neste período
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Notas do editor

Vd. Postes anteriores de:

6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

13 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)

20 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23998: Notas de leitura (1545): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (13) (Mário Beja Santos)
e
27 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24015: Notas de leitura (1547): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (14) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)