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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25149: O Nosso Blogue como fonte de informação e conhecimento (104): O Coronel Nuno Varela Rubim e o CEMAR (Centro de Estudos do Mar)

Cor Nuno Rubim (1938-2023). Foto de Luís Graça (2006)


No dia 30 de Janeiro de 2024, recebemos uma mensagem do Centro de Estudos do Mar Centro de Estudos do Mar e das Navegações Luís de Albuquerque (CEMAR), lembrando a importância e a coragem do trabalho científico do nosso ilustre camarada, Cor Nuno Rubim, falecido no dia de Natal de 2023. Aqui fica a sua transcrição:

De: INFORMAR

Assunto: O coronel Nuno Varela Rubim e o CEMAR: "coragem científica"…
Data: 30 de janeiro de 2024, 23:55:11 WET
Para: mail@cemar.pt


"(…) Desde há muito que se tem feito, em Portugal e no estrangeiro, uma apologia do Infante D. Henrique que consideramos "hiper-inflacionada". Naturalmente que a sua acção foi importante, mas para nós não ultrapassou o quadro mercantil, participando também em algumas acções no Norte de África, cujos méritos se nos afiguram muito duvidosos. Por contraste, a figura do Infante D. Pedro, o motor da modernidade de Portugal, cujas ideias não conseguiram infelizmente vingar, é praticamente ignorada. Muitos poucos historiadores se deram ao trabalho de tentar restabelecer a verdade. Nos últimos tempos só Alfredo Pinheiro Marques teve a coragem científica, pois é assim que eu defino a sua atitude, de rebater as teorias anquilosadas dos "velhos do Restelo". Porque, é preciso dizê-lo, que alguns poucos deles ainda sobrevivem e continuam a querer "ditar" as leis pelas quais a historiografia portuguesa se deve reger! E na maioria das vezes com total cobertura institucional… Coube ao "Príncipe Perfeito" tentar repôr o país na devida senda do progresso. E ainda o conseguiu em vida… Pinheiro Marques também explicou muito bem a conjuntura então verificada no seu livro sobre D. João II (…)

COR. NUNO VARELA RUBIM, A Organização e as Operações Militares Portuguesas no Oriente (1490-1580), vol. I, Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar, 2012, p. 112

Como historiador, o Coronel de Artilharia, 'Comando', Nuno Varela Rubim foi o nosso melhor especialista da história da Artilharia Antiga, e dedicou-se também a outras várias áreas da Armaria em geral, e da organização e operações militares nos séculos XV-XX. Teve, sobretudo, um interesse muito especial, e competente dedicação, à história do "Príncipe Perfeito", o Príncipe e Rei Dom João II "próprio e verdadeiro coração da República" (nomeadamente à sua invenção do tiro naval rasante), à arquitectura naval, e às fortificações marítimas costeiras (em que estudou a Torre de Belém e outras fortificações do estuário do Tejo, as do Sado, etc.). Tudo isso com uma perspectiva histórica crítica e independente.

Desde a sua passagem à reforma, dedicou-se à investigação histórica, por conta própria, ainda que não tendo para isso apoios significativos, heroicamente suportando os seus próprios custos de investigação e de publicação das suas obras. Exactamente como nós também estávamos a fazer, desde há muito.

Apesar dessas dificuldades, foi Director de Investigação no Museu Militar de Lisboa, exerceu funções de docência na Academia Militar, na Universidade de Lisboa, etc. (de facto, exerceu-as em toda a espécie de escolas, desde escolas universitárias até humildes escolas primárias e profissionais). Publicou na "Revista de Artilharia" e em outras revistas militares. Organizou exposições e instalações museológicas de grande significado e qualidade (Museu da Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas, Artilharia da Fragata Dom Fernando II e Glória, Artilharia do Forte de Oitavos em Cascais, etc.). Deu-nos a honra de, na Figueira da Foz, ter sido um dos membros do Conselho Consultivo e Científico do nosso Centro de Estudos do Mar e das Navegações Luís de Albuquerque (CEMAR), desde Novembro de 2012.

A sua foi uma visão muito crítica da História de Portugal, recusando e enfrentando — com a mesma coragem e frontalidade com que outrora havia desenvolvido a sua acção militar na Guiné — todos os mitos e mentiras políticas que, desde há muito, reinam e pontificam na historiografia portuguesa, oficiados por tanta pantomineirice universitária e académica, e sempre perpetuando e trombeteando os rituais, os cultos e as liturgias dos "Descobrimentos" e do Infante Dom Henrique, etc..

Por isso esse investigador de História Militar chegou ao contacto, na Figueira da Foz, com o Centro de Estudos do Mar (CEMAR) e com Alfredo Pinheiro Marques, o autor de "A Maldição da Memória…", e assim estabelecemos um diálogo futuro, o qual infelizmente não pôde desenvolver-se tanto quanto quereríamos, devido às dificuldades com que, sempre, ambas as partes nos debatemos, para trazer alguma verdade e alguma utilidade à historiografia portuguesa e à História de Portugal.

O grande projecto de Nuno Rubim era o da publicação integral dos cinco volumes da sua grande obra A Organização e as Operações Militares Portuguesas no Oriente 1498-1580, da qual, nos dias da sua vida, ainda conseguiu publicar os primeiros dois volumes, o primeiro em 2012, sobre "Geografia e Viagens", com a chancela da Comissão Portuguesa de História Militar, e o segundo em 2013, sobre "Navios e Embarcações", já numa editora privada (e, na verdade, heroicamente suportado pelo próprio autor).

E, infelizmente, ficaram por editar os volumes seguintes.

No primeiro volume (quando ainda nem sequer conhecia pessoalmente Alfredo Pinheiro Marques e o CEMAR) havia escrito: 

"(…) Desde há muito que se tem feito, em Portugal e no estrangeiro, uma apologia do Infante D. Henrique que consideramos "hiper-inflacionada". Naturalmente que a sua acção foi importante, mas para nós não ultrapassou o quadro mercantil, participando também em algumas acções no Norte de África, cujos méritos se nos afiguram muito duvidosos. Por contraste, a figura do Infante D. Pedro, o motor da modernidade de Portugal, cujas ideias não conseguiram infelizmente vingar, é praticamente ignorada. Muitos poucos historiadores se deram ao trabalho de tentar restabelecer a verdade. Nos últimos tempos só Alfredo Pinheiro Marques teve a coragem científica, pois é assim que eu defino a sua atitude, de rebater as teorias anquilosadas dos "velhos do Restelo". Porque, é preciso dizê-lo, que alguns poucos deles ainda sobrevivem e continuam a querer "ditar" as leis pelas quais a historiografia portuguesa se deve reger! E na maioria das vezes com total cobertura institucional… Coube ao "Príncipe Perfeito" tentar repôr o país na devida senda do progresso. E ainda o conseguiu em vida… Pinheiro Marques também explicou muito bem a conjuntura então verificada no seu livro sobre D. João II (…)

(NUNO VARELA RUBIM, A Organização e as Operações Militares Portuguesas no Oriente - 1490-1580, vol. I, Lisboa, 2012, p. 112).

Para a publicação do segundo volume trocámos correspondência, e pela parte do CEMAR demos alguma colaboração com vista à organização dessa sua edição, compartilhando a experiência que tínhamos de edições "heróicas", nesses termos (pagas por nós próprios…)… Também nós, então, em 2012, estávamos já na situação de dificuldade material para conseguirmos continuar a editar livros tradicionais, em papel e tinta, impressos, e pagos, em tipografia, como havíamos feito desde 1995, durante dezassete anos (1995-2012)… 

Esse seu segundo volume já veio a ser editado por uma editora privada (Falcata Editores), suportado pelo próprio autor. E a edição dos volumes seguintes constatamos que já não foi possível. Assim foi deixada por publicar uma obra notável e meritória, e restou um espólio inédito que se faz votos de que possa ser salvo e preservado para o Futuro, para que possa chegar aos vindouros, e iluminar esse Futuro. O Exército Português tem disso obrigação, e fazemos votos de que a cumpra.

A correspondência que então trocámos com Nuno Rubim, a partir de 2012, reflecte estas dificuldades, mutuamente sentidas, para se conseguir fazer e publicar trabalho válido e útil (e desinteressado), num país e num mundo em que o que constatamos que existe é, sempre e cada vez mais, sobretudo, ignorância e oportunismo, e dissipação de dinheiro público. E em que, por isso, aquilo que cada vez mais se pode sentir é indignação e revolta por essa miséria e por essa vergonha. Alguma dessa correspondência merece ser aqui transcrita, e continuar a ser divulgada para o futuro.

Em 19.07.2013 Alfredo Pinheiro Marques escreveu: 

"Meu caro Coronel Nuno Rubim, e querido Amigo: Num momento importante, como este, em que vejo que o meu caro e Exº. Amigo, contra ventos e marés (com coragem, e com teimosia, e com brio, e com amor...) teimou, e teimou mesmo… e -- mesmo pagando do seu bolso…! (tal como eu próprio tenho vindo a fazer, desde há muitos anos...), -- conseguiu que fosse mesmo editado, e saísse dos prelos, para o público, o segundo volume, sobre "Navios e Embarcações", da sua grande obra "A Organização e as Operações Militares Portuguesas no Oriente", daqui lhe envio imediatamente um grande abraço de solidariedade, e de felicitações. Este é um exemplo -- é mais um exemplo, da sua parte (e... quantos mais exemplos o meu Exº. e querido Amigo já não deu, na História e na historiografia de Portugal…? -- um exemplo, enfrentando, e lutando, contra esta situação em que todos nós nos encontramos, no meio deste descalabro e desta vergonha em que tudo isto veio a cair (no meio desta miséria e desta anedota trágica daquilo que é hoje em dia considerado como sendo a "comunidade científica historiográfica portuguesa", bizantinamente instalada no "dolcefarniente" das entidades públicas e universitárias, gastando em ordenados e em congressos e em vaidades e em insignificâncias doutorais, pseudo-eruditas e incompetentes, os últimos dinheiros públicos de um país infelizmente falido, mendigo, e de mendigos). Aceite um grande abraço, deste seu amigo Alfredo Pinheiro Marques".

Nuno Varela Rubim respondeu, nesse mesmo dia: 

"Muito obrigado pelas suas considerações amigas. Pode ter a certeza que continuarei a "lutar" pelos propósitos que afinal nos animam a nós dois: dar a conhecer aquilo que os "soi disant" "sábios" deste pobre país não conseguem produzir porque não estudam e não estão para trabalhar, apenas copiam, sentados que estão a comer à borla nas manjedouras do estado ... Grande abraço. Nuno Rubim".

Em 27.07.2013 o Centro de Estudos do Mar (CEMAR), numa sua nota de informação publicamente divulgada, acerca desse livro, escreveu: 

"(…) Os trabalhos históricos do Coronel Nuno José Varela Rubim (o especialista da História da Artilharia, e de outras matérias da História Militar Portuguesa) são de uma superior qualidade e utilidade, e só num país tão desgraçado como aquele em que, infelizmente, se tornou Portugal é que é possível que as obras de um investigador como este (o nosso melhor especialista, na sua própria área científica!), tenham que andar a ser meritória (e heroicamente…) pagas em grande medida pelo próprio Autor (!) (para, assim, apesar de tudo, poderem sair para a luz do dia…!), enquanto tantos e tantos dinheiros públicos, desde há tantos e tantos anos, andam a ser dissipados, e deitados à rua, para pagar tantas e tantas pantomineirices bizantinas e pós-modernas, ditas "culturais" e "científicas", ou "artísticas", só porque são "universitárias" e "académicas" e utilizadas para o "regular funcionamento das instituições" (mas cuja epocalidade e insignificância, na verdade, estão à vista de toda a gente… e de que o futuro só vai rir…). (…)".

Em 31.07.2013, numa mensagem pessoal, Alfredo Pinheiro Marques escreveu: 

"(…) Muitos e muitos parabéns pelo seu livro (e agradecimentos pela oferta). Recebi-o, hoje, de manhã… e, neste momento, já o tenho quase todo lido…! (tive que parar, pois já me doem os olhos, de os usar ininterruptamente…). Quando a leitura é verdadeiramente interessante, é assim que eu funciono. O meu caro Amigo está de parabéns, por tudo, e só é pena é que neste desgraçado país tenhamos que andar assim, com o nosso próprio esforço, e sem os meios que vemos, à nossa volta, a ser dissipados, miseravelmente, sempre pelos mesmos, do costume, que nada sabem, e nada de bom e de útil vão nunca fazer. (…)".

Em 27.04.2022, numa última mensagem que lhe enviámos, escrevemos: 

(…) saber como vai, e de conversarmos também sobre as formas possíveis de divulgarmos e chamarmos a atenção para a importância dos seus trabalhos históricos sobre a artilharia, as tapeçarias de Pastrana, etc., e assim contribuirmos para ajudarmos a divulgá-los e fazê-los chegar ao futuro, bem acima, e fora, desta miserável "comunidade científica" que reina mediocremente em Portugal, sempre enredada nas encenações do respectivo teatrinho corporativo, e incapaz de dar valor às obras e às pessoas que verdadeiramente o têm. (…).

A proximidade, o intercâmbio e o diálogo com o Cor Art 
Com Nuno José Varela Rubim, e a sua presença no nosso Conselho Consultivo e Científico, são algo de que o Centro de Estudos do Mar (CEMAR) e o seu director se orgulham, e que consideramos como das satisfações mais honrosas e saborosas que tivemos ao longo destas décadas. E só lamentamos não ter podido desenvolver mais (também devido às nossas próprias dificuldades, que se foram sempre avolumando, devido às censuras e silenciamentos que contra nós foram sempre também sendo movidas).

Em 1995 o livro de Alfredo Pinheiro Marques "A Maldição da Memória do Infante Dom Pedro e as Origens dos Descobrimentos Portugueses", nas suas páginas iniciais, teve uma dedicatória em que se afirmou que ele era dedicado, também, e sobretudo, 

"Aos combatentes de todas as guerras ultramarinas portuguesas, particularmente as que, como as marroquinas e as africanas, se arrastaram para além de toda a razoabilidade, sem sentido e sem horizontes, desligadas da população, impostas pelas conveniências mesquinhas de elites anacrónicas, justificadas e legitimadas pelos historiadores ao serviço do Poder".

Pode, portanto, dizer-se, com inteira propriedade, que esse livro foi, sobretudo, então, desde logo (embora ainda não o conhecessemos…) oferecido e dedicado a Nuno Varela Rubim.

A menção acerca de Alfredo Pinheiro Marques que, depois, esse oficial do Exército Português deixou escrita no seu livro de 2012 "A Organização e as Operações Militares Portuguesas…", tem, desde então, sido considerada pelo autor de "A Maldição da Memória…" como uma das mais honrosas da sua carreira historiográfica, ao longo de quarenta anos.

E o sentimento e a apreciação são mútuos: "coragem científica" foi a do oficial do Exército Português Nuno Varela Rubim, na historiografia portuguesa.

"HISTÓRIA, MEMÓRIA E EXEMPLO DO PASSADO, PARA LIBERTAÇÃO DO FUTURO"

"(…) Ser ignorante do Passado é como ser uma criança para sempre (…)”… [ Marco Túlio Cícero, 106 a.C - 43 a.C ]

"(…) Que os homens não aprendem muito com as lições da História é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar (…)”… [ Aldous Huxley, 1959 ]

https://www.youtube.com/user/CentroEstudosDoMar

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24745:Manuscrito(s) (Luís Graça) (237): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte IV: 10 anos de impunidade

 

Capa  do livro de José Manuel de Castro - José do Telhado-  Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il.  (Tipografia Guerra, Viseu). 


Índice do livro supracitado, de José Manuel de Castro - José do Telhado-  Vida e aventura, a realidade. a tradição popular (...)

1. José Manuel de Castro Pinto (n. 1941, Vidago, Chaves) tem sido um dos autortes contemporâneos que, na esteira de Camilo Castelo Branco   [“Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleção "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 54")]  e de Eduardo Noronha [ José do Telhado: romance baseado sobre factos históricos. 4ª ed. Porto: Editorial Domingos Barreiros, 1983, 399 pp. (1ª ed., Porto, 1923) ]   tem contribuido para reforçar o mito do Zé do Telhado, "repartidor público", que roubava aos ricos para dar aos pobres... 

José Manuel Castro Pinto é autor também de "O Robin dos Bosques Português? Vida e Aventura ?" (Plátano Editora, 2002, 256 pp.) e ainda "José do Telhado - Volume 2: culpado e inocente" (Plátano Editora, 2003, 288 pp.), duas obras obras que ainda não lemos.

Da primeira obra  ("O Robin dos Bosques Português? Vida e Aventura ?") recorremos à sinopse, constante do portal Wook (com a devida vénia): 


(...) "Esta obra sobre o mais célebre salteador português surge após anos de pesquisa, consultando documentos no Arquivo Distrital do Porto, no Tribunal da Relação do Porto e na Biblioteca Nacional. O Autor deslocou-se recentemente, por várias vezes, ao local dos acontecimentos, na região dos vales do Tâmega e Sousa: Amarante, Marco, Penafiel, Lousada, Felgueiras e Paredes.

O José do Telhado fez muitos assaltos, mas também ajudava muita gente pobre e era por vezes protegido mesmo por casas ricas. Tudo isto, que se situa num campo social e revelador da pobreza existente, incomodava muito os governantes e os grandes senhores.

Para todos os leitores, é interessante verificar como o José do Telhado organizou a sua quadrilha e como executou cada assalto. Finalmente, foi julgado, mas o processo do julgamento desapareceu quase logo a seguir, o que criou grandes suspeitas quanto ao modo como esse julgamento se fez.

Em Malange, Angola, onde se encontrava degredado, foi negociante de borracha, cera e sobretudo marfim, tendo mesmo servido de elo de ligação entre as autoridades portuguesas e os sobas negros.

Quando faleceu, os negros construíram uma espécie de mausoléu na sua sepultura e, muitos anos depois, ainda lhe faziam romagens de veneração tal foi a sua fama de homem severo mas bondoso e sempre pronto a ajudar os mais necessitados. O livro inclui muitas fotografias, algumas inéditas, desde fotografias antigas da época, e outras actuais, além de certidões de nascimento e casamento." (..)

2. No seu primeiro livro sobre o Zé do Telhado, edição de autor (1980), José Manuel de Castro [Pinto] lamenta a escassez da documentação sobre o José Teixeira da Silva (1816-1875). Nos seus trabalhos sobre esta personagem, controversa mas histórica,  ele socorre-se de três fontes: (i) "as informações de testemunhas oculares"  transmitidas pelos  livros e jornais; (ii) os arquivos judiciais; e iii) a tradição oral. 

O autor é crítico em relação às duas, e nomeadamente ao seu processo judicial  (ele foi julgado no tribunal do Marco de Canaveses, e a documentação está  arquivado no museus da antigo Tribunal da Relação do Porto). 

A partir da tradição e da documentação existente, reconstroi alguns dos principais episódios da vida de Zé do Telhado como salteador, chefe de um bando que, durante uma década (1849-1859) atuou impunemente no Norte do Pais, nomeadamente nos distritos do Porto, de Braga e de Vila Real, no Minho, Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes, nas faldas do Marão.

Viveu numa das épocas mais conturbadas e violentas da nossa história, com diversas guerras civis na sequência das invasões francesas e da fusão da corte para o Brasil, em 1807,  da revolução liberal de 1820 e da difícil consolidação da monarquia constitucional, até à Regeneração  (1851-1890).

 Aqui vão 20 episódios da vida do Zé do Telhado que o José Manuel de Castro [Pinto] recriou:

(i) Custódio, o "Boca Negro", chefe de um bando de que o Zé do Telhado se tornará o sucessor e líder incontestado (pp. 14-21);

(ii) assalto à Casa de Cadeade, do dr. António Fabrício, freguesia de Santa Marinha do Zêzere, Baião, concelho do Porto  (pp. 22-33);

(iii) uma noite de invernia, arredoeres de Santa Marta de Penaguião, distrito de Vila Real, s/d (pp. 34-45);

(iv) assalto à Casa de Carrapatelo, de D. Ana Vitória de Vasconcelos, freguesia de Penha Longa, concelho de Marco de Canaveses, distrito do Porto, 8 de janeirode 1852 (pp. 46-64);

(v) "o cruzeiro das partilhas", na serra de Montedeiras, freguesia de Penha Longa, concelho de Marco de Canaveses, distrito do Porto, na noite de 8 de janeiro de 1852 (pp. 65-71);

(vi) assalto no lugar de Paradela, à Casa de Domingos Camelo, freguesia de Fervença. concelho de Celorico de Basto, distrito de Braga, abril de 1852 (pp. 72-76);

(vii) a morte do "Avarento" (um dos elementos do bando), na Eira dos Mouros (lapso do autor: a Eira dos Mouros é na serra de Montedeiras), freguesia de Santa Cristina de Figueiró, concelho de Amarante, distrito do Porto,  12 de maio de 1852 (pp. 77-83);

(viii) "uma  ceia com conta paga", estalagem do Torrão, concelho do Marco de Canaveses, distrito do Porto, em viagem para a terra natal (em Ribeira de Pena) do negociante e armador Bernardo José Machado, dono da barca "Oliveira"  (pp. 84-90);

(ix) o galego sovina e o rabequista pobre, estradas de Barcelos e Braga, distrito de Braga, s/d (pp. 91-97);

(x) o barbeiro gabarola e a feira do Pico, Pico e Vila Verde, concelho de Vila Verde,  distrito de Braga, s/d (pp. 96-107);

(xi) "um salvo-conduto milagroso", arredores de Santa Marat de Penaguião, distrito de Vila Real, s/d. (pp. 108-114);

(xii) cercado em casa de Manuel Teixeira, Sardoal, freguesia de Mancelos, concelho de Amarante, noite de 16/17 de março de 1857 (pp. 115-125);

(xiii) cercado em sua própria casa, Castelões de Recezinh0s, concelho de Penafiel, distrito do Porto, s/d (pp. 126-131);

(xiv) "a denúncia do esconderijo", s/l, s/d (pp. 132-136);

(xv) "duelo de morte com o Zé Pequeno" (seu rival no bando e denunciante), Lixa, concelho de Felgueiras, distrito do Porto ( pp. 137-144);

(xvi) assalto à Casa de Senra, de D. Ana Ricardina, freguesia de Aião, concelho de Felgueiras, distrito do Porto, 23 de fevereiro de 1859 (pp. 145-150);

(xvii) "o batismo do pobre", dias depois do assalto à Casa de Senra, s/d. (pp. 151-156);

(xviii) assalto â Casa de Sequeiros, do Padre Albino, freguesia de Unhão, concelho de Felgueiras, distrito do Porto, março de 1859 (pp. 157-165);

(xix) o assalto a um pobre lavrador, no dia seguinte ao asssalto à Casa de Sequeiros (pp. 166-169);

(xx) "entregue esta burra ao dono!" , feira de Vila Meã, sede do julgado de Santa Cruz de Riba Tâmega, distrito do Porto, s/d (pp. 170-174).

Camilo Castelo Branco, companheiro de cárcere do Zé do Telhado, e seu confidente, diz, no seu estilo inconfundível, que o "Torre e Espada",  o herou patuleia que se tornou fora-da-lei,   se estreou "(...)  na noite de 12 de dezembro de 1849, salteando de surpresa uma casa de Macieira [Paredes] , que tinha nomeada de rica em dinheiro velho. O proprietário. Maciel da Costa,, foi ferido, e  arrastado para confessar onde tinha a saca das peças, ao mesmo tempo que o criado, seu único doméstico, gemia amarrado de mãos para as costas, pedindo a Deus que terminasse depressa o inventário dos haveres de seu amo. (...) Era valioso o tesouro do lavrador, e a repartição foi equitativa  (op. cit., pp. 91/92).

Zé do Telhado, ainda segundo o Camilo,  teria começado, como fora-da-lei, no bando do irmão, Joaquim do Telhado, que "mantinha nessa época as tradições da família, saindo à estrada, com um séquito de populares foragidos à perseguição política"  contra setembristas e miguelistas, os dois grandes vencidos da guerra da Patuleia (outubro de 1846 / junho de 1847). 

Em fins de 1849 e princípios de 1851, Zé do Telhado foi obrigado a refugiar-se no Brasil. Embarcou, "com passaporte" (sic),  na barca "Oliveira", propriedade do comerciante  Bernado José Machado. E foi na mesma barca, atracada na Ribeira do Porto,  que, dez anos depois, em 1859, tentou de novo voltar ao Brasil, mas agora como passageiro clandestino. Denunciado, acabou por ser  preso, julgado e condenado ao desterro em Angola (onde morreu em 1875,  e onde ainda hoje é recordado).

Considerado o inimigo público nº 1 na sua época,  para a sua detenção foi decisiva a ação do fundador e administrador do concelho  de Marco de Canaveses, Adriano José  de Carvalho e Melo (1825-1894), na altura, em 1859, comissário da polícia do Porto. 

(Continua)
________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores: 

19 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24674: Manuscrito(s) (Luís Graça) (232): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte III

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24681: Blogues da nossa blogosfera (183): "Portugal e o passado", de Fernando Magro (1936-2023): a "revolta da Maria da Fonte" (1846)


"Maria da Fonte", por Roque Gameiro (Quadros da História de Portugal, 1917). Imagem do domínio público, cortesia de Wikimedia Commons


1. O nosso camarada Fernando Valente (Magro), que acaba de falecer aos 87 anos (*), tinha um blogue, "Portugal e o Passsado", onde publicou, entre 2011 e 2014, duas dezenas de pequenos textos sobre alguns temas da História de Portugal, que lhe eram caros.

Outro dos seus blogues tinha por título "Histórias da vida real", publicado em 2016. Tem 21 postes ou postagens.

É nossa intenção ir repescar um ou outro texto, até como homenagem ao nosso camarada.  São blogues da nossa blogosfera (**). 

Já tive ocasião de lhe deixar um comentário, no poste que a nossa Tabanca Grande lhe dedicou ontem,  e que começa por ser dirigido ao Anílio Magro, o primeiro dos Magro a integrar o nosso blogue (*)

(...) Abílio, pela tua mão chegou-nos, à Tabanca Grande, o teu 'mano velho', o Fernando, e outro dos mais novos, o Álvaro. Nenhuma família portuguesa conseguiu meter 'três manos', e para mais 'Magro', na tertúlia dos bravos da Guiné... E que chegarnm a estar juntos no CTIG!... E mais: nenhuma família portuguesa, como a dos Magro, conseguiu esta proeza de ter seis (!) filhos ao serviço da Pátria, ao tempo da guerra do ultramar, colonial ou de África (como se quiser), entre 1961 e 1974.

É, pois, com grande tristeza que eu recebo, de ti, através do blogue, a notícia de que o 'mano velho' Fernando deixou a Terra da Alegria.

Não o cheguei a conhecer pessoalmente, mas li os seus escritos, os seus postes, um dos seus livros... Para ti, para os restantes manos, para a viúva, filhos e demais família vai a minha solidariedade na dor...

A morte é sempre uma perda irreparável. Resta-nos ao menos a consolação de que o Fernando ficará no 'panteão' dos amigos e camaradas da Guiné... Não aspiramos à eternidade como os deuses e os heróis (que para os gregos ascendiam ao estatuto de semideuses). Simplesmente procuramos que os nossos antigos camaradas, que connosco fizeram a guerra e a paz, não sejam esquecidos... Afinal, morrer é sobretudo ficar enterrado na vala comum do esquecimento. Queremos continuar a lembrar e a honrar a memória do Fernando! (...)


Os dois blogues acima referidos foram mantidos graças á ajuda (informática ) do seu neto Manuel Gonçalo Gomes de Almeida Pinho Valente, na altura estudante universitário, a quem dirigimos também os nossos votos  de pesar pela perda do seu querido avô.


2- Blogues da Nossa Blogosfera > 
Portugal e o passado, de Fernando Magro > sábado, 28 de junho de 2014  >A Revolta da Maria da Fonte (**)

Foi chamada assim a rebelião que eclodiu no Minho, em Abril de 1846, durante o governo de Costa Cabral, no tempo da Rainha D. Maria II.

Começou por ser uma pequena arruaça de mulheres que tinha por cabecilha Maria da Fonte, uma rapariga da aldeia de Fonte Arcada, pertencente ao concelho de Póvoa de Lanhoso, no Minho.

Esta arruaça teve como causa, ou pretexto, a não aceitação das leis de Costa Cabral que proibiam os enterros nas igrejas.

A primeira manifestação verificou-se em 19 de Março de 1846 quando um grupo de mulheres armadas de chuços e foices, na aldeia de Santo André de Frades, concelho de Póvoa de Lanhoso, obrigou o pároco a dar sepultura dentro da igreja ao corpo de uma mulher que ia a enterrar.

Os tumultos prosseguiram e no mês seguinte alastraram por todo o Minho e Trás-os-Montes, começando a tomar uma feição de luta de guerrilhas e de movimento miguelista perante a intervenção de uma força de infantaria vinda de Braga.

Costa Cabral pediu às câmaras poderes extraordinários para restabelecer a ordem. Esses poderes - suspensão de garantias, lei marcial - foram concedidos apesar da oposição de muitos deputados. Costa Cabral enviou então para o Norte, como comissário do governo, seu irmão José, ao tempo ministro da Justiça, para sufocar a rebelião.

As medidas que este tomou mais excitaram os ânimos e acenderam a revolta. Em Vila Real surge a primeira Junta Provincial revoltosa, presidida pelo morgado Mateus, logo seguida de outras espalhadas por todo Norte, pelas Beiras e até pela Estremadura. Também em Santarém se organiza uma Junta, presidida por Manuel Passos, ao mesmo tempo que o visconde de Vinhais que comandava a divisão miliciana de Trás-os-Montes,  se coloca ao lado dos revoltosos.

José Costa Cabral vê-se obrigado a regressar a Lisboa. Perante tão grave alastramento do movimento revolucionário, o Duque da Terceira, presidente do Ministério, convocou uma reunião do gabinete a que presidiu a própria Rainha, aí declarando que não tinha força suficiente para debelar a revolta e propondo, como único meio de lhe pôr cobro, a imediata demissão do Ministério. Perante a gravidade da situação, apesar da protecção que sempre dispensara a Costa Cabral, a Rainha concordou.

O movimento saíra pois vencedor e os irmãos Cabral, vencidos, emigraram para Espanha.

Nesse tempo era compositor residente no Teatro Nacional de S. Carlos o maestro Ângelo Frondoni. Ocupava esse lugar por concurso público,  tendo sido preferido entre outros concorrentes, dos quais constava um nome que foi mais tarde reconhecido mundialmente: Giuseppe Verdi.

Ângelo Frondoni, entusiasmado com a revolta das mulheres, encabeçada pela Maria da Fonte Arcada, compôs a música vibrante do Hino da Maria da Fonte, também conhecido por Hino do Minho, hino que ultrapassou as barreiras do tempo por ser considerada uma obra- prima entre as composições do seu género, sendo ainda nos tempos actuais muitas vezes executada por orquestras sinfónicas.

Publicada por Fernando Magro à(s) 15:12

(Seleção, revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação deste poste no nosso blogue: LG)
 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de setembro de 2023 >  Guiné 61/74 - P24678: In Memoriam (486): Fernando de Pinho Valente Magro (10/05/1936 - 18/09/2023), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Bissau, 1970/72) (Abílio Magro)

(**) Últmo poste da série > 10 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24383: Blogues da nossa blogosfera (182): Uma "mulher de armas", a holandesa Noraly (nome de guerra, "Itchy Boots") que, com a sua especial Honda CRF 300 L Rally, acaba de atravessar a Guiné-Bissau

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24674: Manuscrito(s) (Luís Graça) (232): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte III: de herói patuleia a perseguido e fora-da-lei



Capa e contracapa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")


1. Aos 19 anos, por volta de 1836/37, José Teixeira da Silva (nascido em 22 de junho de 1818, no concelho de Penafiel), vai cumprir o serviço militar, no regimento de lanceiros nº 2, os "Lanceiros da Rainha", na Ajuda, em Lisboa. (*)

 Eis, a seguir,  como o Camilo Castelo Branco, a partir das confidências do Zé do Telhado na prisão do Tribunal da Relação do Porto (por volta de 1860/61), relata a sua vida na tropa e depois a sua participação na “Revolta dos Marechais” em julho de 1837, e mais tarde, em 1846/47 na revolta da “Maria da Fonte” (primavera de 1846) e na guerra da “Patuleia (novembro de 1846/junho de 1847). No primeiro caso, indo integrado nas forças do duque de Saldanha (que estava do lado dos “cartistas”) e no segundo caso como ordenança do general Sá da Bandeira, "setembrista", que tinha tomado o partido da Junta do Porto. 

Em 15 de novembro de 1846, num combate de Valpaços, Trás-os-Montes, José Teixeira da Silva (por alcunha, "Zé do Telhado") ganha por atos de excecional bravura a condecoração da Torre e Espada, grau de cavaleiro.  

Aos 19 anos, o Zé do Telhado trabalhava, como "capador" ou "castrador",  com o tio materno, no concelho vizinho de Lousada, e pretendia casar-se com a sua prima, Ana Lentina  de Campos, já órfã de mãe. O Camilo diz que este tio era de origem francesa, facto que está por comprovar. O pai da moça recusou-lhe a pretensão. Desgostoso, o rapaz alista-se no exército.

(…) Foi o moço para Lisboa, e jurou bandeira no segundo Regimento de Lanceiros, denominado o da Rainha [Dona Maria II] . A esbelta figura de José Teixeira era o encanto dos oficiais. Nenhum camarada caía tão airoso na sela, nem meneava mais garboso a lança. O cavalo entendia-lhe o mais ligeiro tremor de pernas, e enfeitava-se orgulhoso do possante e galhardo moço, que lhe embridava os ímpetos para realçar-lhe as soberbas graças.

Na conhecida revolta dos Marechais, em 1837 [1] saiu José Teixeira na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou quem era nos combates do Chão da Feira [2] e Ruivães [3]

“Lá ouvi” − me dizia ele – “a cantiga das primeiras balas e algumas me queimaram o cabelo, e vinham dizer-me ao ouvido que estivesse sossegado. O barão de Setúbal [4]  disse-me uma vez que choviam balas; e eu mostrei-lhe a lança, e disse: “Cá está o guarda-chuva, meu general; deixe chover!”.

Não esqueceu o valente Schwalback 
[4] o afoito gracejo, quando a derrota lhe desordenava as filas. Como, em remate de luta, tivesse de emigrar para Espanha, o barão de Setúbal levou consigo, como sua ordenança, José do Telhado.

Fez-se a Convenção de Chaves [5] a tempo que o lanceiro recebia a Carta da sua prima, chamando-o a toda a pressa para se casarem com o consentimento do pai. Requereu o soldado a baixa, e obteve-a do barão de Vilar de Turpin, comandante da Terceira Divisão Militar. Recebeu o francês [seu tio materno e futuro sogro, que vivia na Lousada] em braços paternais e dotou a filha com abundantes bens para mediania aldeã. (…)

Seguiu-se a revolução popular de 1846 [5]. A populaça carecia de um chefe, e rejeitava os ilustres caudilhos, que saíram de suas casas nobres a especular com o braço do povo. Conclamaram à uma José Teixeira, e quase forçaram a comandá-los.

O chefe, conhecendo-se obscuro de mais para aceitar a responsabilidade e prestígio de cabecilha guerrilheiro, convenceu os seus amigos da precisão de se ajuntarem, sob outro chefe, às legiões populares que confluíam para a cidade heróica [o Porto].

Entrou José do Telhado ao serviço de Junta [do Porto] na arma de cavalaria. Comprou cavalo, e fardou se à sua custa a todo o primor. Repartia do seu dinheiro com os camaradas carecidos, e recebia as migalhas do cofre da Junta para valer aos que de sua casa nada tinham.

José Teixeira empenhou-se grandemente para satisfazer o que em parte era capricho e em parte largueza de alma.

Acompanhou a expedição a Valpaços, e foi dado como ordenança ao senhor visconde de Sá da Bandeira. As proezas cometidas nessa temerosa e mal sortida batalha, estão escritas na condecoração de Torre-e-Espada que o general, por sua própria mão, lhe apresilhou na farda.

Fora o caso que do cômoro duma ribanceira alguns soldados do regimento traidor [leais aos Cabrais] apontavam as armas ao general, conturbado pela fumaça das descargas, José Teixeira arranca do cavalo a toda a brida, toma as rédeas do cavalo do general, e obrigou a assaltar um valado. Mal deram o saldo, passaram as balas poucas polegadas acima da cabeça de ambos.

A este tempo três soldados de cavalaria avançaram desapoderados sobre o visconde de Sá. José Teixeira embarga-lhes a arremetida, desarma o primeiro de um golpe, fere mortalmente o segundo, e persegue o terceiro, que fugia, até lhe arrancar a vida pelas costas.

Quando voltou da fação, já o general tinha suspensa a medalha, que o valente recebeu com mais delicadeza que entusiasmo de honras.

Feito com o convênio de Gramido, José Teixeira arrancou as divisas de sargento e foi para casa, onde o esperavam a saudosa e atribulada mulher com os seus cinco filhos.

Como se disse, a casa estava onerada de dívidas, os credores perseguiam-no e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam disfarces para o 

afligirem. (…)

(Excertos: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862), pp. 87-91. Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor LG:

[1] De 12 de julho até 7 de outubro de 1837

[2] Chão da Feira: perto da Batalha (28 de agosto de 1837)

[3] Ruiváes, Chaves (15 de setembro de 1837)

[4] João Schwalbach (1774-1847), barão de Setúbal

[5] Maria da Fonte e Patuleia (1846/47)
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Nota do editor:

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24667: Manuscrito(s) (Luís Graça) (231): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte II: o carrasco, Adriano de José de Carvalho e Melo, fundador e administrador do Marco de Canaveses


José do Telhado (1818-1875)... (A partir de uma foto da época)



Capa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862).



1. Zé do Telhado (Penafiel, 1818-Malanje, Angola, 1875) já nada diz hoje à geração atual dos nossos filhos e netos. Mas é capaz de dizer a alguns de nós (sobretudo os nascidos e/ou criados no Norte, ou pelo menos Entre Douro e Minho) e sobretudo à geração dos nossos pais, que vieram ao mundo nas décadas de 1910 e 1920. (*)


O meu sogro, José Carneiro, por exemplo, nascido em 1911, e natural da região do Vale do Tâmega, do concelho de Marco de Canaveses, falava-me ainda, em meados dos anos 70, vinte anos antes de morrer, da lenda do Zé do Telhado, que “roubava aos ricos para dar aos pobres”. E essa lenda transmitiu-a aos filhos.

Acontece que este verão pus-me a ler a autobiografia romanceada do Camilo Castelo Branco, as “Memórias do Cárcere”, em dois volumes, na 8ª edição, 1966. E por aí cheguei ao retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico,  que ele traçou do seu companheiro de infortúnio (mas também "guarda-costas"), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto.

No prefácio à 2ª edição (Porto, 1864), Camilo conta-nos que esta obra foi escrita em 40 dias, e nela reuniu mais de 3 dezenas de “historietas”, centradas no submundo do crime da época, ali bem representado na cadeia da Relação do Porto. Mais de 30 páginas (cap. XXVI, pp. 84-107) são dedicadas ao Zé do Telhado. 

Camilo, acusado de adultério, na iminência de ser preso, e por conselho de amigos, saiu do Porto, andando “fugido à justiça” cerca de 6 meses, escondendo-se aqui e acolá em casa de familiares, admiradores e amigos: primeiro um mês, nas águas furtadas da casa do amigo portuense Custódio José Vieira, e depois três meses na Quinta do Ermo, em Fafe, do mais tarde tristemente célebre José Cardoso Vieira de Castro (1837-1872), condenado por homícidio da sua jovem esposa brasileira, e desterrado para Angola, um crime passional que deu brado na época, em Portugal e no Brasil.

No seu estilo inconfundível, Camilo descreve a partida da “diligência” para a Régua nestes termos sarcásticos:

(…) “Me embarquei na ‘diligência’ que partia, mais duvidosa do seu destino, para a Régua, do que a nau de Cristóvão Colombo para o novo mundo” (CCB, 1966, pág.14).

Cansado da “clandestinidade”, Camilo acaba por entrar na prisão em 1 de outubro de 1860. O
 Zé do Telhado já lá estava, nessa altura. Viria a ser condenado, por sentença transitada em julgado, no Tribunal Judicial do Marco de Canavases, a pena de desterro em África, em 27 de abril de 1861… Tinha sido preso em 31 de março de 1859 quando tentava fugir para o Brasil, ficando então  detido nos calabouços da Relação.

Já agora, e como curiosidade, o Camilo nunca explicita, talvez por pudor, hipocrisia social ou mero calculismo (ele vivia exclusivamente da escrita, foi o primeir0 escritor português a 'profissionalizar-se"), a razão da sua detenção durante um ano, e muito menos menciona o nome da sua companheira, Ana Plácido (que era casada, contra a sua vontade, com um  comerciante rico, o "brasileiro" Pinheiro Alves, e que estava igualmente detida, por adultério, na ala feminina).

No sítio do Museu Judiciário do Tribunal da Relação do Porto, pode  saber-se algo mais sobre este homem,  Zé do Telhado, que entrou para a história não tanto como militar e guerrilheiro, condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada (por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira, em 1846, na revolta da Maria da Fonte, a que se seguiu a guerra da Patuleia) mas sobretudo pela sua alcunha, a sua fama, as suas façanhas em data p
osterior, como “bandido social” ou “bandido-herói”, que acabaria por morrer desterrado em Angola.


O Processo (1859-1861)

(…) Chefe de uma quadrilha de salteadores, Zé do Telhado deve a sua fama lendária de roubar aos ricos para dar aos pobres – uma espécie de Robin dos Bosques português. O escritor Camilo Castelo Branco presta-lhe homenagem nas “Memórias do Cárcere” (com quem esteve preso na Cadeia da Relação do Porto e de quem se tornou amigo).

Foi preso em 1859, julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida. Embora a pena tenha sido comutada posteriormente para 15 anos de degredo, Zé do Telhado acabaria por falecer em Angola.(…)


E mais se pode ler no sítio do referido museu virtual:

Processo de Querela contra o réu José Teixeira da Silva (Zé do Telhado):

(…) Libelo acusatório por diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com princípio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos. E ainda autoria e chefia de associação de malfeitores e tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais. É condenado a trabalhos públicos por toda a vida no Ultramar e ao pagamento das custas.

O processo iniciou-se em 30 de Maio de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado por sentença do juiz António Pereira Ferraz, de 27 de Abril de 1861, na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pela Relação do Porto, substituindo apenas a expressão “costa ocidental de África”, por “Ultramar”.

Por acórdão da mesma Relação de 11 de Agosto de 1865,  foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a África Ocidental, a contar desde a data do Decreto de 28 de Setembro de 1863.(…)


O réu acabou por ser condenado por “diversos crimes [cometidos] com violência”, comprovados em tribunal, e absolvido de outros:

  • tentativa de roubo, com começo de execução, em casa de António Fabrício Lopes Monteiro, de Santa Marinha do Zêzere, comarca de Baião [em 27 de novembro de 1952];
  • homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Dª Ana Victória de Abreu e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião [erro: trata-se de Marco de Canaveses], e roubo na casa da referida senhora (Casa de Carrapatelo) de objetos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em doze contos de reis, não sabendo ao certo quanto era, porque o dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar [crimes estes ocorridos em 8 de janeiro de 1852];
  • roubo [cometido em março de 1859] em casa do Padre Albino José Teixeira [em Sequeiros, freguesia de] Unhão, comarca de Felgueiras, no valor de um conto e quatro centos mil reis em dinheiro e ainda objetos de prata e outro;
  • outro homicídio na pessoa de um correligionário [o “Avarento”], ferido num confronto com as autoridades [na Eira dos Mouros, serra de Montedeiras, em 22 de maio de 1852, e levado para uma estalagem, na freguesia de Santa Catarina, concelho de Felgueiras, o Zé do Telhado lhe deu um tiro de misericórida];
  • para além de outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino [para o Brasil] sem passaporte e com violação dos regulamentos policiais.

(...) “A sua qualidade de chefe é que o tornou responsável pelo homicídio do Carrapatelo, pois o autor material foi um capanga que abateu o criado quando este tentou reagir, num momento em que o caudilho ainda nem entrara na residência. “ (…).

Foi brilhante a sua defesa, para mais a título gracioso, pelo advogado portuense, Marcelino de Matos, amigo e defensor do Camilo. 


Contexto histórico, político e militar:

Continuando a citar a mesma fonte:

(…) "A ação do Zé do Telhado, alcunha de José Teixeira da Silva, integra-se no fenómeno organizativo de grupos de assaltantes que tem a sua génese, de formação espontânea, durante as invasões francesas.

"Perante a total falta de reação do exército português à entrada dos napoleónicos, grupos de populares procuram quebrar a total impunidade dos invasores. Esses grupos, meras milícias populares, entretanto com experiência guerrilheira acumulada, foram aproveitados na guerra civil liberal por forças políticas e militares em campo: os “corcundas” (absolutistas) e os “malhados” (liberais).

"Terminada a guerra, ficou o gosto e o proveito da guerrilha por conta própria: é o João Brandão, é o Remexido, é o Zé do Telhado. Este atingira, ao serviço liberal, a glória, com a atribuição da Torre e Espada. Finda a guerra pretendeu um emprego no Depósito do Tabaco, no Porto. Não conseguiu.

Usava evoluída assinatura, com o último apelido abreviado (S.a), curioso indício de cultura acima da vulgaridade.” (…)



Marco de Canaveses, concelho criado em 1852

O Marco de Canaveses foi elevado a concelho, em 1852, por ação, direta ou indireta de dois homens, contemporâneas e vizinhos, o administrador Adriano José de Carvalho e Melo (1825-1894) e... o Zé do Telhado (1816-1875), nascidos na mesma região, berço fecundo de gente nobre e ilustre,  o Vale do Tâmega, o primeiro, e o Vale do Sousa, o segundo.

Em 1809, ainda não existia a cidade do Marco de Canaveses, muito menos o concelho, apenas a pequena vila medieval de Canaveses, sobranceira ao rio Tâmega, na margem esquerda, e por onde passava a estrada real Porto-Régua. A ponte medieval era do tempo de Dona Mafalda, esposa de Dom Afonso Henriques.

E foi essa ponte que os habitantes locais demoliram parcialmente na tentativa de impedir o trânsito das tropas do marechal Soult, que comandava o exército napoleónico,  na sequència da segunda invasão francesa (de 3 de fevereiro a 12 maio de 1809). 

Os invasores não transpuseram o Tâmega em Canaveses, fizeram-no mais a montante, em Amarante. Menos conhecida dos portugueses é a bravura posta na defesa da ponte de Canaveses contra os invasores, que está bem patente num relato de um soldado francês:

"O General Caulaincourt, que nos comandava, pretendeu apoderar-se de Canaveses a fim de não deixar inimigos entre si e o Porto. Formou um destacamento de 500 cavalos e marchámos para Canaveses; não encontrámos ninguém até à nossa chegada a uma altura que domina a povoação: aí avistámos a alguma distância bandos de 15 a 20 paisanos que aparentavam não esperar senão o sinal para nos atacarem. Vestidos de negro ou de cor sombria, entre rochedos acinzentados, tinham o ar de fantasmas devotados à nossa perseguição e que nos vinham acusar da infelicidade do seu país: seguiam de longe os nossos movimentos e paravam quando nós fazíamos alto (...).

"Após duas horas de um combate muito vivo no qual tivemos 80 homens feridos todos pela frente, o destacamento regressou às alturas onde lutámos com os habitantes que nos tinham atacado de todos os lados, desde que a luta se tinha desencadeado sobre a ponte. (...) 

"Operámos uma retirada sobre Penafiel, conduzindo os feridos. Fomos perseguidos até aos nossos bivaques por uma multidão de paisanos que pareciam sair da terra ou tombar das nuvens, desde que nos afastássemos um pouco." (citado por Nayles, M. de (1817). - "Memoires sur da Guerre d'Espagne pendante les années 1808, 1809 e 1811". Paris: [s.n.]. In: Wikipedia > Marco de Canaveses)

Acrescente-se que o concelho do Marco de Canaveses, juridicamente falando, só existe desde 31 de março de 1852, dois meses e tal depois do assalto à Casa do Carrapatelo:

(i) em 1836, a vila de Canaveses e o concelho de Tuías unem-se ao concelho de Soalhães, formando o concelho do Marco de Soalhães; era seu administrador Adriano José de Carvalho e Melo (que será mais tarde comissário da Polícia no Porto e Governador Civil do Distrito de Bragança);

(ii) em 1852, há uma nova união, a dos dos concelhos de Benviver (a que pertencia Candoz, Fandinhães e a serra de Montedeiras...) e Marco de Soalhães, dando-se assim início ao processo de fundação do atual concelho de Marco de Canaveses.  

(iii) recorde-se que,  a 7 de janeiro de 1852, o  Zé do Telhado e o seu bando  preparam-se junto à capela românica de Fandinhães, na vertente norte da serra de Montedeiras, para levar a caso o audacioso assalto à Casa do Carrapatelo;

(iv) o alarme social provocado por este assalto (onde houve um homicídio) levou o administrador Adriano José de Carvalho e Melo, deputado e administrador do concelho de Soalhães, a mover uma "luta de vida ou de morte" contra o Zé do Telhado, mas só iria conseguir prendê-lo nove anos depois, em 31 de março de 1859;

(v) citando a Wikipedia, "a lei não permitia à justiça de uma comarca entrar noutra, sem autorização do seu administrador", e foi por causa desse impecilho burocrático que o Adriano de José de Carvalho e Melo vai mover mundos e fundos para poder criar-se o concelho do Marco de Canaveses (um grande concelho reunindo em si os vários concelhos e comarcas vizinhos, de menor dimensão e importância);

(vi) em 31 de março de 1852, a rainha D. Maria II assina o decreto que cria o concelho de Marco de Canaveses (que passa a integrar os concelhos de Benviver, Canaveses, Soalhães, Portocarreiro, parte dos de Gouveia e Santa Cruz de Riba Tâmega);

Os marcoenses podem estar gratos, hoje, ao Adriano José de Carvalho e Melo (que nasceu e morreu em Tuías, na Casa da Picota) pelo seu papel como pai-fundador do seu concelho, mas não podem ignorar que, de algum modo, o "fora-da-lei" Zé do Telhado  também faz parte desta história...

A avaliar pelos poucos livros (apenas três) que encontrei na biblioteca municipal local, quer-me parecer que o homem também anda por aqui muito esquecido... Claro que não seria caso para ter direito a um busto de bronze, no jardim municipal, como o Adriano José de Carvalho e Melo, mas, bolas, na altura o alegado "bandido social", nascido no concelho vizinho de Penafiel e casado na Lousada, também ajudou a pôr o Marco de Canaveses no mapa... 

Ingratidão,  mesquinhez, tacanhez dos portugueses? Já o Camilio dizia, em 1862, nas suas "Memórias do Cárcere";

(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)

(…) “Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo” (pág. 84)
 
(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste anterior: 14 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24649: Manuscrito(s) (Luís Graça) (229): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte I: a lenda que eu ouvi contar ainda em 1976, em Candoz

(*ª) Vd. poste anterior da série: 7 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24664: Manuscrito(s) (Luís Graça) (230): Há minas... e minas

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24649: Manuscrito(s) (Luís Graça) (229): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte I: a lenda que eu ouvi contar ainda em 1976, em Candoz


Capa do livro de Eduardo Noronha - José 
 do Telhado: romance baseado sobre
factos históricos.
4ª ed. Porto: Editorial Domingos Barreiros, 1983, 399 pp.
 (1ª ed., Porto, 1923)



1. Ouvi a “lenda” do Zé do Telhado já tarde, cem anos depois da sua morte, quando pelo casamento comecei a vir ao Norte e a frequentar a Casa de Candoz.

A minha mulher é vizinha do lugar, Carrapatelo, onde ocorreu o assalto planeado e executado pelo Zé do Telhado e o seu bando, porventura o mais tristemente famoso (e o mais rendoso) do seu historial: o assalto, em 8/1/1852, à Casa do Carrapatelo, situada na atual freguesia de Penha Longa, concelho do Marco de Canaveses.

Candoz e Carrapatelo, embora pertencentes a freguesias diferentes, são dois lugares muito próximos, ficam a escassos quilómetros um do outro. De Candoz vê-se grande parte da albufeira da barragem do Carrapatelo, a Pala (que pertence ao concelho de  Baião), a ponte que liga as duas margens, bem como o Porto Antigo e a serra de Montemuro (já na margem esquerda, concelho de Cinfães), mas não a Casa do Carrapatelo, que fica na margem direita do rio Douro, um pouco mais a  sudoeste de Candoz, a jusante, nas faldas da serra de Montedeiras. Em suma, temos a serra a separar-nos. De Fandinhães, aldeia serrana de origem visigótica,  é a mãe da Alice. Fica entre o Carrapatelo  e Candoz.

Recordo-me do meu sogro, José Carneiro (1911-1996), me ter falado da figura lendária do Zé do Telhado e desse famigerado assalto (que acabou por ser a perdição do seu autor, anos mais tarde, em 1859, altura em que finalmente foi preso, ). A casa, um solar, que ainda hoje existe, remonta, o seu corpo mais antigo, ao início do séc. XVIII, é um belo exemplar da arquitetura barroca duriense. (Infelizmente muitas destas antigas casas fidalgas na região estão em decadência ou à venda ou foram transformadas em alojamento local: já não há serviçais, criados e rendeiros para as sustentarem como no tempo da outra senhora.)

 Pertencia então a Dona Ana Vitória de Abreu e Vasconcelos, viúva, de 39 anos, que acabara de perder, no início desse ano de 1852, o seu pai, o velho fidalgo José Joaquim de Abreu e Lemos, sargento-mor das milícias do julgado de Bem Viver (um antigo concelho, com sede em Feira Nova, a que pertencia Candoz e Fandinhães  e que deu lugar, entre outros, ao concelho do Marco de Canaveses, no início dos anos de 1850).

E retive a explicação que o meu sogro me deu, socorrendo-se da tradição popular: “Telhado era alcunha”, ele punha-se à escuta das conversas dos pobres, no “telhado de colmo” dos casebres… para nos dias seguintes vir-lhes acudir com algum socorro em géneros ou dinheiro… 

E assim se criou a lenda do “Robin dos Bosques português que roubava aos ricos para dar aos pobres”… numa época em que Portugal estava bem longe de ser "o país de brandos costumes". e que teve, de resto, em Camilo Castelo Branco um dos seus grandes exorcistas.

Devo acrescentar que o meu sogro, proprietário agrícola, ramadeiro (construtor de ramadas) e agente de alguns casas vitivinícolas da região (como o Borges & Irmão,  de Amarante, por exemplo) nunca leu na vida o Camilo Castelo Branco (nem muito menos viu nenhum filme sobre o célebre salteador) mas era um homem com algum capital de relações sociais, e um dos primeiros a ter rádio em casa, a par do telefone.

Há pouca evidência histórica (isto é, devidamente documentada) que permita sustentar a tese do “banditismo social”: é verdade que o Zé do Telhado roubava aos ricos, mas não há provas suficientes que permitam caracterizá-lo como um “repartidor público” (como alegadamente ele dizia frente às suas vítimas e aos seus cúmplices) (Castro, 1980, pp. 30-33).

Muito do mito do “Robin dos Bosques português” é uma construção social do romantismo ou ultrarromantismo, com destaque para o papel do novelista Camilo Castelo Branco (que o “eternizou” nas páginas do seu livro “Memórias do Cárcere” , Porto,  1862, 1a. ed.).

A imprensa da época, nomeadamente nortenha, e depois o cinema, já no século XX, fizeram o resto (há pelo menos dois filmes, baseados na vida, romanceada, do Zé do Telhado; um, de Rino Lupo, de 1929, ainda no tempo do cinema mudo; e outro, de 1945, realizado por Armando de Miranda, com exteriores filmados aqui perto de Candoz, na Serra de Montedeiras, e protagonizado pelo ator Virgílio Teixeira, no papel principal: disponível no You Tube, em versão integral, aqui, com a duração de cerca 86 minutos).

De qualquer modo, não podemos menosprezar a “vox populi”: a tradição popular, nomeadamente no Norte do país, acabou por frazer chegar até nós o registo (oral e depois passado a escrito) de muitas  das suas "façanhas", onde se misturam a realidade e a ficção, e que alimentaram não sí a imprensa como alguma literatura posterior ao Camilo (Noronha, 1983, 1ª ed., 1923; Castro, 1980, por  exemplo).

Comecemos por um resumo da “história de vida” daquele que é considerado o maior salteador do séc. XIX, à frente de uma lista onde estão outros homens que, atuando à margem da lei, chefiaram grupos de guerrilha e depois bandos de salteadores, e causaram alarme e terror no seu tempo. 

Talvez o Remexido (1796-1838), algarvio, guerrilheiro miguelista, lhe tenha levado a palma em ferocidade, seguramente em crimes de sangue (pelos quais foi julgado, condenado à morte e fuzilado em 1838). Ou João Brandão (1825-1880), outro “Torre e Espada”, como o Zé do Telhado, que espalhou o terror pelas Beiras, e foi igualmente deportado para Angola, região do Bié. 

Aliás,  nesta época a justiça portuguesa já não desterrava os proscritos sociais para o interior das Beiras como na idade Média mas para as colónias de África. Camilo Castelo Branco,  em 1860/61, conheceu muitos homens ( e algumas mulheres) que aguardavam nas "enxovias" da cadeia da Relação do Porto a sua partida para Lisboa para depois aí embarcarem  para o desterro em África: homocidas,  parricidas, infanticídio,  ladrões, moedeiros falsos, etc.

No sítio do Museu Judiciári0o do Tribunal da Relação do Porto pode ler-se sobre Zé do Telhado e o seu processo judicial (3 volumes) o seguinte:

(…) “José Teixeira da Silva nasceu a 22 de junho de 1818 no lugar de Telhado, Castelões – Penafiel. Aos 14 anos vai viver com um tio em Caíde de Rei, Lousada, vindo a casar aos 27 anos com a prima Ana Lentina de Campos, com quem teve 5 filhos.”

E sem entrar em grandes pormenores, acrescenta-se:

(…) “Seguiu carreira militar onde se evidenciou, chegando mesmo a obter a mais alta condecoração portuguesa: a “Ordem de Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito”. Contudo, o seu envolvimento no lado derrotado da revolta da “Maria da Fonte” (1846) levou a que fosse expulso do exército.

”Desempregado, acaba por se envolver com foras-da-lei, chefiando uma quadrilha responsável por vários assaltos na região de Baião, Celorico de Basto, Fafe, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Santa Cruz de Riba Tâmega...

“Preso na Cadeia da Relação do Porto em 1859, é julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida, pena esta que foi comutada pelo Tribunal da Relação do Porto para 15 anos de degredo.

“Partindo para o degredo em África, veio a instalar-se em Malange, onde viveu até à sua morte, aos 57 anos, como reconhecido negociante e estimado pela população local. Aí casou novamente, tendo 3 filhos desse casamento.

“Na aldeia de Xissa, município de Mucari, onde foi sepultado, foi erguido um mausoléu em sua homenagem que, até hoje, é objeto de interesse.” (…)



De "Lanceiro da Rainha" (1835)  a "Torre e Espada" (1846)

Camilo é o primeiro (ou um dos primeiros) a escrever-lhe uma curta biografia (ou melhor, "hagiografia"), de 3 dezenas de páginas, a partir das suas confidências na prisão  (Castelo-Branco, 1996a, pp. 83-117).

Camilo põe o seu companheiro de prisão (e depois guarda-costas) a nascer em 1816, o que faz mais sentido. Aos 14 anos, ou seja, em 1830, em plena guerra civil, vai para , a Sobreira, freguesia de São Pedro de Caíde de Rei, concelho da Lousada, para junto do seu tio, aprender o ofício de castrador. Ao fim de cinco anos, alista-se na tropa e faz o juramento de bandeira numa unidade de cavalaria, o regimento de Lanceiros 2, conhecidos como os “Lanceiros da Rainha”, na calçada da Ajuda, em Lisboa.

Esta decisão pode ter sido motivada por um desgosto amoroso: pretendia-se casar com a sua prima materna Ana Leontina, de Lousada, mas o pai recusa-lhe a mão da filha, alegadamente por o rapaz não ser um bom partido (impedimento esse, entretanto, levantado por altura da “convenção de Chaves”, diz o Camilo, op. cit, pág. 88).

Zé do Telhada casa-se, portanto, já depois da “revolta dos marechais” (julho de 1837), mas antes da “revolta da Maria da Fonte” (primavera de 1846), acontecimentos em que participa como militar.

 Tudo indica que se tenha casado  no 2º semestre de 1837, aos 21 anos ( e não aos 27) aureolado pela fama de bravo “lanceiro da Rainha”.

A Convenção de Chaves, celebrada a 20 de Setembro de 1837 e assinada a 7 de Outubro de 1837, selou oficialmente o fim da chamada Revolta dos Marechais, a revolta de 1837 que opôs cartistas (mais à direita, diríamos hoje) aos setembristas (ala esquerda do liberalismo de 1820). Os primeiros pretendiam restaurar a Carta Constitucional de 1826. Os segundos defendiam a Constituição de 1822.

Os cartistas não tiveram a sorte das armas pelo seu lado. Após vários episódios bélicos em Chaves, são definitivamente derrotados no combate de Ruivães, a 18 de setembro, obrigando muitos dos seus homens a refugiarem-se na Galiza. Os Lanceiros da Rainha eram cartistas. O lanceiro José Teixeira da Silva seguia na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou a sua bravura nos combates de Chão da Feira e Ruivães (Castelo-Branco, pp. 87/88; Noronha, 1983., pp. 53 e ss.).

Na retirada, o barão de Setúbal, general Schwalbach, de origem alemã,   levou, como seu ordenança, o Zé do Telhado. E foi nessa altura que este obteve uma licença para ir à terra casar-se (licença passada pelo barão de Turpin, chefe da 3ª divisão militar,  no Porto). 

A Convenção de Chaves, no dia 20, põe fim à guerra civil: as tropas sublevadas rendem-se e ficam à disposição do governo setembrista. Há uma amnistia mas os chefes da revolta (marechal Saldanha, duque da Terceira, duque de Palmela, José da Silva Carvalho e Mouzinho de Albuquerque) são forçados a abandonar o país.

Não é, contudo, na “revolta dos marechais” que o Zé do Telhado ganha a sua "Torre e Espada", mas sim nove  anos depois, a 15 de novembro de 1846, por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira (como veremos num próximo poste).

Recorde-se que  a Maria da Fonte, também conhecida por Revolta do Minho, foi uma sublevação popular ocorrida na primavera de 1846 contra o governo cartista, presidido por António Bernardo da Costa Cabral, e que reuniu forças dos extremos do espectro politico-ideológico da epoca: setembristas e legitimistase ou migué listas, além do Zé Povinho, sem partido, mas arregimentado mas  sobretudo revoltado contra as leis da saúde,  a reforma fiscal e a nova lei do serviço militar dos Cabrais  (que tinham o respaldo da rainha dona Maria II).

Seguiu-se mais um cruel período de guerra civil, a Patuleia, de oito meses, a partir de outubro de 1846,  até que a Convenção de Gramido, em junho de 1847, põe termo a mais este  período negro do nossa história. 

Zé do Telhado, agora "sargento patuleia" (alinhou desta vez com os chefes militares setembristas),   ficou do lado dos vencidos. E é a sua desgraça. A família cai na pobreza. Perseguido pelos inimigos políticos e os credores, acaba por se tornar "o chefe de uma associação de malfeitores", conforme consta do seu libelo acusatório, a par de "diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com principio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos, a par de (...) tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais." 

Muito do que se tem publicado sobre ele é "hagiográfico". Falta-nos uma  biografia séria do homem, do militar, do herói,   do guerrilheiro , do cidadão, do bandido e do desterrado.

(Continua)


Capa  do livro de José Manuel de Castro - José do Telhado-  Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il.  (Tipografia Guerra, 
Viseu)

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24415: Notas de leitura (1591): "História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva; Temas e Debates, 2020 - Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Neste novo olhar da História Global, entendeu-se que este caso de exploração económica pluricontinental que se encetou com o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes, iria marcar um comportamento do poder régio durante séculos. Mesmo desconhecendo-se o teor do contrato, Fernão Gomes ficou com uma enorme responsabilidade, que terá cumprido, explorou cerca de 3 mil quilómetros de costa, chegou até ao atual Gabão. Contrato que enfatiza para além das iniciativas da Coroa a iniciativa privada nunca foi arredada a participar na exploração económica do Império, era tudo uma questão de oportunidade, a monarquia tanto podia explorá-los diretamente por meio de oficiais régios, como cedê-los a privados por meio de contratos de arrendamento. E o de Fernão Gomes foi o primeiro de uma longa série, expediente jurídico que se revelou essencial não só na captação de rendimentos para a monarquia mas também para que esta se alinhasse, ao longo de séculos com os particulares.

Um abraço do
Mário



Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468

Mário Beja Santos

"História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, Temas e Debates, 2020, é seguramente um dos acontecimentos editoriais do ano transato, na medida em que rompe com o velho paradigma da escala local e nacional e tece uma abordagem inovadora do que se pode entender por História Global de Portugal, as permanentes interações que conduziram à identidade que temos e à globalização em que nos inserimos. Como os diretores nos explicam:
“Anteriormente, através dos velhos manuais escolares, que refletiam o que se produzia nas academias, aprendia-se a conhecer a história de um país. Adotava-se uma perspetiva iminentemente nacional, centrada no Estado-nação. Cada nação era o umbigo do mundo, sendo o resto uma paisagem necessariamente secundária e ignorada, ou um campo de projeção das vanglórias nacionais. Além da Pátria, existia um conjunto de países com os quais se estabeleciam relações de cooperação, transação, influência, domínio, conflito, separação, negação ou, nalguns casos, acolhimento. A história era conhecida de forma bipolar, dualista: existíamos nós e os outros (…) À luz das tendências da história global, os países, as regiões, as cidades e as aldeias já não são considerados espaços fechados nas suas fronteiras, antes devem ser perspetivados como plataformas territoriais tomadas na extensíssima duração do processo de humanização”.

E ao longo de largas dezenas de textos vários especialistas ocupam-se de longos períodos da Pré-História e História de Portugal tomando conta desse trânsito de trocas bem anteriores à chamada Era dos Descobrimentos, o povoamento das nossas regiões atlânticas, a passagem do Bojador e o que significou em termos de globalização o monopólio da Guiné. Como escreve a autora do referido trabalho, D. Afonso V concedeu, em novembro de 1469, por um período de cinco anos, o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes. O monopólio excluía o comércio da feitoria de Arguim (em território da atual Mauritânia). O monarca terá exigido a Fernão Gomes que explorasse anualmente cem léguas do litoral africano para lá da Serra Leoa, limite meridional das navegações henriquinas. Conhecemos esses aspetos através do historiador João de Barros, cerca de 80 anos depois, o texto do acordo não chegou aos nossos dias. A data atribuída do contrato será junho de 1468. O arrendamento terminou em 1474, depois de ter sido prorrogado por um ano. Enquanto vigorou, caravelas armadas por Fernão Gomes exploraram cerca de 3000 quilómetros da costa, tendo descoberto todo o litoral setentrional do golfo da Guiné, até ao atual Gabão.

Este contrato de arrendamento do comércio da costa da Guiné obviamente que suscitou debates em torno do papel da monarquia nas navegações do Atlântico Sul. Houve quem o visse como expressão do desinteresse do monarca, seria um contrato monopolista que permitiria à Coroa concentrar recursos financeiros na persecução das conquistas em Marrocos, deixando à iniciativa privada as navegações e a atividade mercantil na costa da Guiné. Mas há outras leituras que lembram o facto de a monarquia não ter voltado a doar o exclusivo da navegação do comércio da Guiné que integrara a casa do Infante D. Henrique. D. Afonso V foi o responsável pela constituição da Casa da Guiné, em Lisboa, no ano de 1463. Para uma certa historiografia, Fernão Gomes seria o exemplo paradigmático de interesses mercantis pela costa ocidental africana, por oposição às conquistas militares de Marrocos. Era como se a atenção da nobreza estivesse polarizada em Marrocos e outros setores da sociedade portuguesa se tivesse mobilizado na abertura de novas rotas e na comercialização de novos produtos. Mas há mais dados que contribuem para um novo olhar. Fernão Gomes exerceu o cargo de recebedor dos escravos da Guiné, para o qual fora nomeado em 1455, ofício que não só lhe deu acesso privilegiado à informação sobre o comércio da região como terá permitido a sua inserção em redes de negócio. Como não se conhece o contrato, ignora-se se a iniciativa se deveu à monarquia ou ao próprio Fernão Gomes. Para além do exclusivo, Fernão Gomes recebeu ainda o privilégio de isenção de pagamento de direitos alfandegários de todos os bens que os seus navios trouxessem da Guiné, com exceção da malagueta, monopólio régio, mas que mais tarde acabaria por ser cedido a Fernão Gomes, por 100 mil reis anuais.

Se se pensar que o Papado, através da bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, excluía toda e qualquer navegação na Guiné sem licença expressa do rei de Portugal, pode compreender-se que a Coroa via este regime como o mar que lhe pertencia exclusivamente, fundado na prioridade da descoberta, na evangelização dos gentios e na Guerra Santa movida contra os infiéis. Só que este privilégio foi contestado por outras potências e rapidamente todo o Litoral desta vasta Senegâmbia de então passou a ser percorrido por uma forte concorrência. A despeito desta, manteve-se formalmente o exclusivo da navegação e do comércio nos senhorios ultramarinos – Índia, Brasil, Guiné, Costa da Malagueta, Mina, Angola, Ilhas de Cabo Verde e de São Tomé, a Coroa cedia aos vassalos este exclusivo consoante as áreas geográficas do Império.

Neste exclusivo imperial, como igualmente observa a autora, a monarquia reservou para si a distribuição de certos bens. Foram os casos da malagueta africana, do ouro da Mina e do pau-brasil no Atlântico. Também o comércio dos escravos foi exclusivo da monarquia até 1659. Mas o que fica também esclarecido é que a iniciativa privada nunca esteve arredada da possibilidade de participar na exploração económica do Império, tanto na navegação e no comércio como na distribuição de bens monopolizados. E a autora conclui que o acordo estabelecido com Fernão Gomes foi tão-só o primeiro de uma longa série de arrendamentos contratados com particulares. No quadro da exploração do Império, este expediente jurídico mostrou-se crucial, não só na captação de rendimentos para a monarquia, mas também no alinhamento de interesses com os particulares.

Carta Corográfica da Guiné Portuguesa, 1862, Biblioteca Nacional, com a devida vénia
Retirado do trabalho Tecnologias geoespaciais na demarcação da fronteira da Guiné-Bissau, por Maria do Carmo Nunes, Fernando Lagos Costa, Ana Raquel Melo e Ana Maria Morgado, publicado nas Atas das I Jornadas Lusófonas de Ciências e Tecnologias de Informação Geográfica, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, com a devida vénia
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, Praça dos Heróis Nacionais, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24403: Notas de leitura (1590): "O Cântico das Costureiras - Crónicas D'Uma Vida Adiada - Guiné 1964 - 1965", por Gonçalo Inocentes; Modocromia Edições, 2020 - As Peregrinações de Gonçalo Inocentes, zombeteiras e resilientes (Mário Beja Santos)