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domingo, 31 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27171: Felizmente ainda há verão em 2025 (28): A "política de terra queimada": a guerra peninsular (1807-1814) e a guerra colonial no CTIG (1963/74) - Parte I




Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca ) > Subsector de Xime >Madina Colhido > Fevereiro de 1970 > Sinais de queimadas (das NT ou do IN)... Proporcionavam a criação de clareiras onde era mais fácil os nossos helicópteros pousar...Como foi o caso do dia 9 de Fevereiro de 1970: 

(i) por volta das 5 e tal da manhã, o 1º cabo Galvão, da 3º Gr Comb / CCAÇ 12, ficou ferido  (torceu um pé) na cambança do Rio Buruntoni (havia uma tosca ponte feita pelo IN  de troncos de árvores);

 (ii) ás 13h00 as NT sofreram uma violenta emboscada em Gundagué Beafada, de que  resultariam uma série de baixas entre as NT (CART 2520, Pel CAç Nat 63 e CCAÇ 12), incluindo o 1º cabo Galvão que ia nesse momento em padiola improvisada e foi alvejado a tiro;

 (iii) a helievacuação dos feridos deu-se já em Madina Colhido  (um local de trágica memória e o fotógrafo estava lá...):

 (iv) em dezembro de 1975 seriam fuzilados, neste local,  pelo PAIGC ( no poder)  alguns antigos militares que haviam combatido  ao nosso lado, incluindo o nosso antigo soldado arvorado, futa-fula, o gigante Abibo Jau, do 1o. Gr Comb (que entretanto  ingressara em 1973/74 na CCAÇ 21);

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.




Arlindo Teixeira Roda: ex-fur mil at inf, 3º Pelotão, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71); o melhor fotógrafo da CCAÇ 12 e de Bambadinca, juntamente com o Humberto Reis;  no passado 25 de janeiro de 2025 em Coimbra, foi-lhe atribuída a designação de Presidente Emérito da Federação Portuguesa de Damas, tendo em conta a sua ação na criação da Federação e, também, a condução do organismo nos últimos 12 anos. 




1.  Felizmente que ainda há verão em 2025... 

Felizmente que  a Tabanca Grande também tem (e mantém) a sua "universidade sénior de verão"...

 Felizmente que a gente ainda vai tendo paciência, tempo e pachorra para ir blogando, escrevendo, lendo, comentando o nosso blogue (que fará 22 anos de existência em 23 de abril de 2026, se lá chegar, se lá chegarmos com vida e saúde)...

 Felizmente que o meu camarada da CCAÇ 2590 /  CCAÇ 12 (fomos juntos no T/T Niassa em 24/5/69 e regressamos juntos no T/T Uige em 17/3/71), o Arlindo Roda, natural de Pousos,Leiria, deu sinais de vida, ao fim de mais de 30 anos (!), telefonando-me na sexta feira passada... (Vive em Setúbal, reformado de professor do ensino técnico, desde os...57 anos!).

A propósito de "fogos florestais" (*)...

Na Guiné-Bissau, antes da guerra colonial, era tradicional fazerem-se grandes queimadas no tempo seco. Era uma prática generalizada para se obter novas terra e pastagens, se bem que à custa da destruição da floresta e da degração dos solos.

Durante a guerra colonial, até 1974, ambos os combatentes (PAIGC e Exército Português), recorreram a política de "terra queimada": 

  • os bombardeamentos e o fogo posto (no capim) causavam incêndios, de maior ou menor proporção, abrindo vastas clareiras na savana arbustiva;
  • uso de balas  incendiárias nos ataques às nossas tabancas (fulas);
  • por sua vez, o abate indiscriminado de gado e a destruição dos "stocks" de arroz e outros víveres foram uma forma de usar a "fome" contra o IN na guerra de contrassubversão;
  • um exemplo da política de terra queimada foi a Op Lança Afiada (Sector L1, Bambadinca, 8-18 de março de 1969), comandada pelo cor inf Hélio Felgas (mais tarde, maj - gen, ref., 1920-2008 
 Iremos, na segunda parte deste poste, falar da alegada  "política de terra queimada" na Guiné, exemplificada pela Op Lança Afiada... 

De qualquer modo, há outros exemplos históricos do recurso à "política da terra queimada", como estratégia militar para devastar territórios, privando o inimigo de recursos  (alimentos,  abrigo...).


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Batalha do Buçaço (1810). Gravura da época.
Fonte: Arquivo Histórico-
Milityar | Wikipedia

2. Para não irmos mais longe, cite-se o caso da guerra peninsular (1807-1814): durante as invasões napoleónicas, as tropas luso-britâncias aplicaram a política de terra queimada para atrasar o avanço das tropas francesas e privá-las de recursos alimentares.

A política de terra queimada envolveu a evacuação das populações, e a destruição de searas, pomares,  moinhos, pontões , casas e e demais bens que não podiam ser transportados. 

Essa tática foi utilizada especialmente durante a terceira invasão francesa (1810-1811), comandada por Massena, após a batalha do Buçaco (27 de setembro de 1810)  e durante o avanço e recuo para as Linhas de Torres Vedras. 

Tanto as  tropas luso-britânicas como a guerrilha portuguesa também recorriam à destruição de gado, alimentos e outros víveres para causar fome e dificultar a subsistência dos invasores.


(i) A dupla estratégia de Wellington: As Linhas de Torres e a política de "Terra Queimada" que puseram fim às invasões napoleónicas

Durante a terceira e última invasão francesa de Portugal, em 1810, o General Arthur Wellesley, futuro Duque de Wellington, engendrou uma brilhante e implacável estratégia defensiva que se revelaria decisiva para a derrota e  expulsão das tropas napoleónicas. 

Esta estratégia assentava em dois pilares fundamentais e interdependentes: 

  • a construção das monumentais e secretas Linhas de Torres Vedras;
  • a aplicação de uma rigorosa política de terra queimada.


As Linhas  deTores. Fonte: Wikipedia





Longe de serem uma mera barreira física, as Linhas de Torres Vedras eram um complexo e sofisticado sistema defensivo que se estendia por dezenas de quilómetros, desde o Tejo até ao Oceano Atlântico, protegendo a capital, Lisboa.

(ii) As Linhas de Torres Vedras: uma fortaleza impenetrável

A sua construção, iniciada em segredo em novembro de 1809, um ano antes da chegada do exército francês, foi uma obra de engenharia militar, genial,  sem precedentes.

O sistema era composto por três linhas defensivas principais, aproveitando as elevações naturais do terreno. Eram constituídas por uma rede de mais de 150 fortes, redutos, postos de artilharia (mais de 6 centenas de bocas de fogo), estradas militares e outros obstáculos, guarnecidos por dezenas de milhares de soldados portugueses e britânicos (cerca de 40 mil)  

A primeira linha, a mais exterior e fortemente fortificada, foi concebida para deter o avanço inicial do inimigo. 

A segunda linha oferecia uma posição de recuo, enquanto a terceira, mais próxima de Lisboa, visava proteger uma eventual evacuação das tropas britânicas por mar, um cenário que Wellington sempre considerou.

O grande trunfo das Linhas de Torres residia no facto de serem praticamente desconhecidas do exército invasor, comandado pelo Marechal André Massena. E mesmo dos seus construtores (cada um  só conhecia a sua seção, ou local; quem tinha a visão do conjunto era o próprio Wellington e o seu engenheiro militar, o coronel Richard Fletcher.

Ao chegar às suas imediações, em outubro de 1810, após a Batalha do Buçaco, Massena deparou-se com uma barreira formidável e inesperada, que se revelaria intransponível.

(Imagem à direita: Arthur Wellesley (1769-1852), 1º duque de Welington. Fonte: Wukipedia)


(iii) A política de Terra Queimada: a fome como arma...de dois gumes


Complementar à defesa estática proporcionada pelas Linhas de Torres, Wellington implementou uma brutal, mas eficaz, política de terra queimada. 

À medida que o exército anglo-luso se retirava estrategicamente para o refúgio das Linhas, foi dada ordem para que a população civil abandonasse as suas terras, levando consigo todos os bens e gado que conseguisse transportar.

Tudo o que não podia ser levado era sistematicamente destruído: colheitas foram queimadas, moinhos desmantelados, pontes derrubadas e celeiros esvaziados. 

O objetivo era criar um vasto deserto à frente das Linhas, privando o exército francês de qualquer meio de subsistência. A proclamação de Wellington foi clara: nada deveria ser deixado para trás que pudesse ser utilizado pelo inimigo.

Esta política teve consequências devastadoras para a população portuguesa, que sofreu enormes privações, fome e doenças. (No entanto, do ponto de vista militar, foi um golpe de mestre:  o exército de Massena, que dependia da requisição de mantimentos no terreno para se abastecer, viu-se rapidamente a braços com uma crise logística insustentável.)


(iv) O desfecho da invasão: a vitória da estratégia das Linhas de Torres e da  "política de terra queimada"

Enquanto o exército anglo-luso se encontrava seguro e bem abastecido dentro das Linhas, com o porto de Lisboa a garantir o fornecimento contínuo de homens e provisões, as forças francesas definhavam do lado de fora. 

Durante meses, Massena manteve as suas tropas (3 exércitos, 65 mil homens) em frente às Linhas, na esperança de que Wellington saísse para uma batalha em campo aberto, o que nunca aconteceu.

A fome, as doenças e o constante assédio por parte das milícias portuguesas foram dizimando o exército francês. Sem esperança de receber reforços ou mantimentos e confrontado com a aproximação do inverno, Massena foi forçado a ordenar a retirada em março de 1811.

 A perseguição movida pelas tropas de Wellington transformou a retirada francesa num pesadelo e num desastre, culminando na sua expulsão definitiva de Portugal.

A combinação genial das Linhas de Torres Vedras com a política de terra queimada demonstrou a visão estratégica de Wellington e a resiliência do povo português. 

Esta dupla abordagem não só salvou Portugal da ocupação napoleónica (e partilha do território, que seria dividido em três partes), como também marcou um ponto de viragem na Guerra Peninsular, contribuindo decisivamente para o eventual colapso do império de Napoleão Bonaparte.

Claro, há o reverso da medalha: resultou em enormes sofrimentos para a população portuguesa, incluindo assassinatos e maus-tratos, ruína agrícola, saques e incêndios em cidades, vilas e aldeias. 

Muitas aldeias foram evacuadas e transformadas em territórios desérticos, levando à fome,  a epidemias e à escalada dos preços dos géneros alimentícios. O sacrifício da terra queimada, embora essencial para travar os franceses, empobreceu grandemente o país, justificando-se pelo objetivo de proteger a independência nacional.

(v) Um rasto de morte e  desolação

As Invasões Napoleónicas, que assolaram Portugal entre 1807 e 1814, deixaram um profundo rasto de morte e destruição.

É  extremamente difícil apurar o número exato de vítimas, as estimativas apontam para uma perda demográfica significativa, que terá ultrapassado as 200 mil  pessoas, podendo mesmo aproximar-se das 300.000, entre civis e militares.

Este valor representa uma quebra demográfica considerável para um país que, no início do século XIX, contava com uma população total de aproximadamente 2,9 a 3 milhões de habitantes. (E que só duplicaria 100 anos depois, 6 milhões em 1910.)

A contagem precisa das vítimas é dificultada pela natureza do conflito, que não se limitou a batalhas campais. A fome, as epidemias e os massacres perpetrados sobre a população civil foram responsáveis pela grande maioria das mortes. 

A terceira invasão, liderada pelo marechal Massena em 1810-1811, é consensualmente considerada a mais brutal e devastadora para os portugueses.

No início do século XIX, a população portuguesa rondava os 3 milhões de pessoas;

  • dados mais específicos indicam que em 1801 a população era de 2.931.930 habitantes;
  • durante o período das invasões, nomeadamente em 1811, registou-se uma diminuição para 2.876.602 habitantes, um reflexo direto do impacto da guerra, da fome e das doenças na demografia do país.

As múltiplas ( e interligadas) causas da elevada morbimortalidade  

  • Ações militares: as batalhas, escaramuças e cercos ao longo dos sete anos de conflito resultaram num número significativo de baixas militares, tanto do exército regular como das milícias e ordenanças que se opunham aos invasores; as tropas regulares portuguesas (cerca de 20 a 30 mil homens mobilizados) sofreram baixas consideráveis: os números variam, mas as estimativas apontam para  em 10 a 15 mil mortos em combate ou por doença, sem contar desertores e incapacitados.

  • Massacres e violência sobre civis: as tropas francesas (Junot, Soult e Massena), e por vezes também as aliadas, cometeram diversas atrocidades contra a população civil; vilas e aldeias foram pilhadas e queimadas, e os seus habitantes massacrados; a violência fazia parte da tática de intimidação e retaliação contra a resistência popular; há relatos contemporâneos que falam em dezenas de milhares de civis mortos diretamente (talvez 40 a 60 mil ao longo das campanhas.

  • Fome generalizada: a política de "terra queimada", adotada tanto pelas tropas em retirada como pela resistência para dificultar o avanço inimigo, levou à destruição de colheitas e à requisição forçada de alimentos; o episódio mais devastador foi a política de terra queimada durante a 3.ª Invasão (1810-11): populações inteiras do norte e centro foram obrigadas a abandonar casas e colheitas para dificultar a progressão de Masséna.

  • Epidemias:  a subnutrição, as más condições de saúde e higiene, a deslocação de populações, a concentração de refugiados e tropas criaram o ambiente ideal para a propagação de doenças como o tifo, a disenteria e a varíola, que ceifaram milhares de vidas.
Vários historiadores (como Oliveira Martins) falam que Portugal terá perdido perto de 300 mil pessoas no total das invasões.

A combinação destes fatores resultou numa catástrofe demográfica que marcou profundamente a sociedade portuguesa. A perda de vidas, aliada à destruição de infraestruturas e à desorganização social e  económica, deixou o país exaurido e contribuiu para a instabilidade política e social que se seguiu ao fim do conflito.

A perda de quase um décimo da sua população  (cerca de 300 mil num total de 3 milhões em 1801), num período de sete anos (1807/14) representou uma catástrofe demográfica de enormes proporções para Portugal e marcou um dos períodos mais mortíferos da sua história.

Com a fuga da corte para o Brasil (donde só regressará em 1821), as invasões napoleónicas e a crescente influência inglesa na vida política nacional, assiste-se, por outro aldo, à destruição do incipiente desenvolvimento do capitalismo industrial em Portugal, iniciado em meados do séc XVIII, sobretudo com o pombalismo.

A política de terra queimada (sobretudo na 3ª invasão, 1810/11) ficou marcada na memória popular portuguesa, especialmente nas regiões centro e norte do país, como uma das mais severas provações já enfrentadas pela população civil. Foram relatados casos extremos de devastação onde até estradas e casas foram destruídas para impedir o acesso dos franceses a qualquer recurso útil.

A expressão "ir p'ró maneta" vem dessa época. O "maneta" era a alcunha do Louis Henri Loison (1771-1816): perdera um braço num episódio de caça, foi  talvez  o mais sanguinário e rapace dos generais franceses de Napoleão, participou nas três invasões franceses (facto a comprovar)... 

O seu nome inspirava terror e horror, pela sua crueldade e pela forma como torturava e executava os prisioneiros, e especialmente os guerrilheiros portugueses.

Em resumo, a política de terra queimada (a par das Linhas de Torres) foi um dos instrumentos mais importantes na resistência às invasões francesas em Portugal, com consequências profundas para o território e para o povo português. (**)

(Continua)

(Pesquisa: LG | Assistente de IA / Gemini, Perplexity, ChatGPT)

(Para saber mais: Centro de Interpretação das Linhas de Torres | CM Sobral de Monte Agraço)

(Revisão / Fixação de texto, negritos, itálicos, subtítulos: LG)

Quinta de Candoz, 31 de agosto de 2025, 18:00

____________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. comentários de António Rosinha e Fernando Ribeiro. Poste de 30 de agosto de 2025 Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (9): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas

(...) António Rosinha:

(...) "Eram os tempos da sardinha para 3 (ou 4), e em que não havia incêndios, embora houvesse piromaníacos e incendiários como haverá sempre, mas os resíduos das florestas eram poucos para aquecer as lareiras e defumar os enchidos.

sábado, 30 de agosto de 2025 às 12:27:00 WEST

(...) Fernando Ribeiro:

(...)  Antº Rosinha, em Portugal sempre existiram incêndios e sempre existirão, porque são uma forma de a Natureza se renovar. Não há volta a dar-lhe. O que não existia, era tantos eucaliptos e tantos pinheiros bravos, que ardem como palha, nem tanto despovoamento do interior. Em 1966, concretamente, morreram 25 militares no combate a um incêndio ocorrido na serra de Sintra. (...)

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27098: Facebook...ando (92): João de Melo, ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351 (1972/74): um "Tigre de Cumbijã", de corpo e alma - Parte IX: Praça Che Guevara (antiga Praça Honório Barreto)

Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Av Domingos Ramos (via Praça dos Mártires)

Foto nº 1A > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Av Domingos Ramos (via Praça dos Mártires) > Hotel K / Hotel Kalliste, restaurante  e esplanada

Foto nº 2> Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Rua Eduardo Mondlane (via Rua Osvaldo Vieira) 


Foto nº 2A > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Rua Eduardo Mondlane (via Rua Osvaldo Vieira) > Restaurante Chinês Bar Bayana


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Rua Eduardo Mondlane (via Av Amílcar Cabral)



Foto nº 3A  e 3B > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Rua Eduardo Mondlane (via Av Amílcar Cabral) > Centre Culturel Franco bissau guinéen (Centrro Cultural Franco-bissau-guineense)


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Av Domingos Ramos  (via Av  Francisco Mendes) > 


Foto nº 4A > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara / Av Domingos Ramos  (via Av  Francisco Mendes) > Farmácia



Foto nº 5 e 5A > Guiné-Bissau > Bissau > Praça Che Guevara  > Efígie e placa: "Praça Ernesto Guevara, 'Che' "


Foto nº 6 > Guiné-Bissau >  Região do Cacheu > Cacheu > Fortaleza do Cacheu > Parte da antiga estátua do Honório Barreto, uma figura da história da Guiné-Bissau, vista pelo partido independentista como um "simbolo do esclavagismo e da opressão colonial" e liminarmente rejeitado e diabolizado: a sua estátua foi apeada e parcialmente destruída, o liceu que tinha o seu nome foi "rebatizado" (subtituído por uma das figuras do pan-africanismo),  enfim, como sempre, "deitou-se fora a água do banho com a criancinha"...  

A história é sempre um parto violento... Cabe agora aos historiadores (e aos guineenses) "redescobrir" o Honório Barreto na sua complexidade e no contexto do seu tempo, reconhecendo-o como uma importante e paradoxal figura da proto-história da Guiné-Bissau. Ele também faz parte do processo de nascimento da nação...

Fotos (e legendas): © João de Melo (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Bissau > s/d [c 19690/70] > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe). Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)

Agora a Praça chama-se Che Guevara (vd. mapa do Google)... e o antigo Hotel Portugal agora é o Hotel Kalliste (vd. foto nº 1). A estátua do Honório Barreto foi derrubada e levada (o que restou)  para a fortaleza do Cacheu (Foto nº 6).



João Melo (ou João Reis de Melo), ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74):

(i) é profissional de seguros, vive em  Alquerubim,  Albergaria-a-Velha;

(ii) viaja regularmente, desde 2017, para a Guiné-Bissau, em "turismo de saudade e de solidariedade" (em que distribui material pelas escolas de Cumbijã, e apoia também, mais recentemente, o clube de futebol local);

(iii) regressou há pouco mais de 2 meses  da sua viagem deste ano de 2025;

(iv) tem página no Facebook (João Reis Melo);

(vi) tem mais de duas dezenas e meia de referências no nosso blogue para o qual entrou em 1 de março de 2009.

1. Na sua viagem, em maio passado, de Bissau a Cumbijã, no sul, na região de Tombali, o nosso grão-tabanqueiro João Melo, passou por várias das nossas geografias emocionais... E fotografou esses lugares (Bissau, Quinhamel, Bula, Susana, Cacheu, Bambadinca, Saltinho, Buba, Mampatá, Cumbijã...).

 Temos procurado, com a sua autorização, fazer uma seleção das suas melhores imagens. Ele tornou-se um grande conhecedor e um excelente cicerone da atual Guiné-Bissau. 

2. Excerto da página do Facebook do João Reis Melo, postagem de 25 de julho de 2025, 15:29

“Retalhos de uma passagem pela Guiné-Bissau:

"A antiga Praça Honório Barreto em Bissau, atual Praça Ernesto Guevara “Ché”, é uma praça com rotunda uniforme e quatro vias perfeitamente delineadas que são o resultado do cruzamento das Avenida Domingos Ramos e a Rua Eduardo Mondlane.

"Quando foi desenhada, atribuiram-lhe o nome   de Honório Barreto, e lhe foi ali erigido um monumento em sua homenagem,  uma estátua em bronze construída em 1958 e que,  hoje, está depositada na Fortaleza de Cacheu. No antigo pedestal, restaurado ou reaproveitado,  foi colocada uma efígie do 'Che' Guevara e uma placa com o seu nome (Ernesto Guevara, 'Che').

"Honório Pereira Barreto (1813-1859), filho de pai cabo-verdiano e mãe guineense, nasceu na fortaleza de Cacheu, onde o pai estava como capitão-mor, atingindo depois os mais altos cargos da antiga província ultramarina portuguesa e falecendo na fortaleza de São José de Amura, em Bissau, onde estava como capitão-mor.

Apresento-vos fotos de minha autoria da mesma praça tiradas em maio passado."

(Revisão / fixação de texto: LG)

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (36): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II










Exposição > “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades”


Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, Belém,
30 out 2024 / 2 nov 2025 (*)



1. Continuamos a visitar esta exposição, que pode ser vista até 2 de novembro de 2025. E que requer "tempo, vagar e distanciamento crítico"... Merece pelo menos duas visitas. 

O seu objetivo é "pedagógico e didático", reune a colaboração de 3 dezenas de especialistas mas não deixa de ter o cunho muito pessoal e profissional da sua curadora, Isabel Castro Henriques (n. 1946) (*).


Painel I
Recorde-se que a exposição é organizada pelo CEsA Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento (do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, ISEG/UL)  e pelo Museu Nacional de Etnologia,  e integra as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.

É uma pena que a exposição não possa chegar a todo o lado... E,  tal como foi concebida, não pode mesmo, por incorporar valiosos artefactos culturais, alguns deles produzidos em territórios que foram colonizados por Portugal ...e que hoje fazem parte das coleções do Museu Nacional de Etnologia (criado em 1965 pelo nosso grande antropólogo Jorge Dias). (Acrescente-se que essas peças foram legitimamente adquiridas na sequência de projetos de investigação científica.)

Feita esta introdução, prosseguimos a visita ao primeiro painel (*) que é  dedicado ao tema "Estamos em África Há 500 Anos" (tema, recorrente, da propaganda que veio da Monarquia Constitucional ao Estado Novo, passando pela República, e que chegou aos nossos dias).

Toda a exposição se propõe confrontrar-nos (e  ajudar a confrontarmo-nos) com os "mitos e realidades" da presença portuguesa em África e com o nosso próprio imaginário.





"Cronologia das campanhas de ocupação e resistências africanas"


  • 1885/87: Ocupação portuguesa do distrito do Congo (Angola), incluindo o enclave de Cabinda  e a margem esquerda do rio (atribuídas a Portugal na sequência da conferência de Berlim);
  • 1886: Definição da fronteira da Guiné;
  • 1898/1902: Ações militares portugueses contra populações revoltadas  do centro de Moçambique (costa de Maganja, Angónia, Macanga e Barué);
  • 1902: Revolta dos Ovimbundo do planalto central angolano;
  • 1904/1915: Esforço militar português no sul de Angola e resistências africanas (Nhaneca, Cuamata, Cuanhama e Herero);
  • 1907/1914: Ações de efetivação do domínio português no litoral norte, no centro e centro-leste de Angola e resistências africanas (Bacongo, Dembo, Quissama, Ganguela, Quioco);
  • 1908/1912: Operações portuguesas e resistências africanas (Ajaua, Maconde,Macua) no norte de Moçambique;
  • 1908/1915: Operações portuguesas e resistências africanas na Guiné (Bijagó, Balanta, Mandinga, Manjaco,Papel, Grumete, Felupe);
  • 1914/1918: Primeira Guerra Mundial;
  • 1914/1920: Intensificação das operações militares portuguesas e efetivação da ocupação territorial contra as resistências africanas em Angola, Guiné e Moçambique;
  • 1915: Ocupação portuguesa do planalto dos Macondes (Moçambique);
  • 1917/1918: Revolta dos Barué (Zambézia, Moçambique);
  • 1920: Secas, fomes e epidemias (Angola);
  • 1926: Última ação militar contra os Quioco, no nordeste de Angola;
  • 1936: Últimas ações militares na Guiné e dominação do território.





Aprisionamento de Gungunhana por Mousinho de Albuquerque em Chaimite, em 28 de dezembro de 1895. Pintura de Morais Carvalho, Museu Militar, foto de Salvador Amaro.



(Imagens obtidas da exposição "in situ",  sem flash, com a devida vénia, e aqui reproduzidas com propósito meramente informativo...)

(Seleção, fotos e  fixação de texto: LG)


(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26456: Os 50 Anos do 25 de Abril (35): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte I

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'




Documento real de José I de Portugal (1714 - 1777) que declara: "Aos Cristãos Novos privilegio, per que El Rey lhe concede, que se possam ir pera onde quiserem, com outras mais graças nele conteúdas". (A distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi abolida por lei do Marquês de Pombal, de 25 de Maio de 1773)

Fonte: Wikimedia Commons  (Com a devida vénia...)

 

Contos com mural ao fundo > O Judeu 

por Luís Graça (*)


O seu nome era Esaú. O pai, Jacó. E o avô era só conhecido pelo apelido da família paterna,  Abraúl. 

Estávamos no início dos anos 20 do século passado. Esaú nascera no início do reinado do senhor dom Carlos, logo a seguir ao Ultimato Britânico. Nesse tempo já não havia a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Ou, pelo menos, esbatera-se muito, desde o Marquês de Pombal. A Inquisição acabara há 100 anos, com a revolução liberal,  ou seja, há quatro gerações atrás. Acabará a Inquisição, mas não a mentalidade inquisitorial...

De facto,  tinham ficado os preconceitos contra os judeus portugueses e os seus descendentes, pelo menos entre as classes mais baixas. Ainda se ouvia, em noite de temporal, o povo praguejar: "Até parece que morreu um judeu!".  E, em casa, admoestavam-se as crianças quando faziam... "judiarias".

A família Abraúl, segundo contava a avó Gertrudes, descenderia de judeus sefarditas de Córdoba, no sul de Espanha. Já os Oliveira, os do seu lado,  seriam cristãos novos. No tempo do senhor dom João II, os de Córdova haviam-se instalado em Portugal, fugidos do cruel édito dos Reis Católicos de Espanha. Ter-se-ão espalhado por Lisboa e vilas ribeirinhas do estuário do Tejo. Um ramo fixou-se em Alenquer. Outros tantos  terão seguido as rotas do Império e aproveitado as novas oportunidades de negócio, nomeadamente como  mercadores, prestamistas  e artesãos. 

A família (tanto dos Abraúl como dos Oliveira) não tinha qualquer pergaminho, manuscrito ou papel que comprovasse a sua origem. Era tudo "de outiva", ou seja, da tradição oral. Nem a avó Gertrudes fazia a mínima ideia por onde os seus antepassados terão deixado os ossos, ao longo daqueles quatro séculos e tal. Espalhados, por certo,  por esse vasto e desvairado mundo, como muitos dos outros portugueses de quinhentos, seiscentos, setecentos…

A avó era do ramo de Alenquer. Gostava muito de contar ao Esaú, em pequeno, histórias, algumas seguramente fantasiosas, sobre os "marranos", os "cristãos-novos" e as perseguições a que a "gente da Nação" sofrera às mãos da Inquisição. "Marrano" era um termo que ela nunca pronunciava: considerava "aviltante" para designar os avós dos seus avós.

No passado, o vocábulo "marrano" (porco) era usado pelos cristãos-velhos para injuriar e discriminar a "gente da Nação", os de origem hebraica, e que em Portugal e na Espanha haviam sido convertidos ao cristianismo pela força, enquanto outros haviam sido forçados ao exílio (em França, Holanda, Norte de África, Império Otomano, etc.). 

− E até levavam a chave de casa!...

E acrescentava a matriarca:

− Sabes, Esaú, até na desgraça os seres humanos são capazes de serem ingénuos, para não dizer estúpidos. Levavam a chave de casa, imagina!… Pobres coitados... Eram como o cordeiro da Páscoa ("Pessach", para os hebreus) que, inocente, não sabe que vai ser sacrificado, imolado,  para a festa...

E, depois, batendo com o punho na mesa, indignava-se:

−  São tão ou mais antigos que os outros povos ibéricos. Depois da queda do templo de Jerusalém, acompanharam as legiões romanas, e aqui viveram e conviveram com outros povos invasores, como os visigodos e os mouros.

O Esaú nunca tinha ouvido,  antes,  falar da Inquisição, dos "marranos", nem de "cristão-novos" e "cristãos-velhos" e das tropelias a que foram sujeitos muitos dos seus antepassados. Na Escola Conde Ferreira em Alenquer (a primeira a ser construída por legado do grande benemérito José Ferreira, apoiante da causa da Dona Maria II), o Esaú aprendeu a ler e a escrever. Mas onde era mesmo bom era nas contas, na tabuada, na aritmética.

A avó, Gertrudes Oliveira, não tinha andado na escola mas era letrada e viajada, como as meninas das classes abastadas  da época. O pai dera-lhe uma educação esmerada e bastante livre para os padrões da época, viajando de barco a vapor e, depois, de comboio, entre algumas cidades e estâncias termais da Europa. Expressava-se fluentemente em francês. O marido, Abraúl,  era primo em segundo ou terceiro grau.

Ao virar do século (teria o Esaú dez anos) mudara-se a família Abraúl para uma vila mais a Norte onde o avô iria construir uma moderna "caldeira de queimar vinho",  capaz de produzir muitas pipas de álcool. A vitivinicultura nacional estava em recuperação, depois da desgraça da filoxera (c. 1887), era precisa então muita aguardente vínica para enriquecer o vinho do Porto, a nossa principal exportação na época. 

A região do Oeste tinha excelentes condições para o aumento do negócio da destilação à escala industrial. Foi uma coisa nunca vista, lá na terra,  com tantos carros de bois a carregar e descarregar inúmeras estruturas e peças em cobre, tubos, retortas, alambiques, torneiras,  caldeiras, serpentinas, etc., importadas de França e trazidas de barco. E ferros, para construir depósitos para o vinho. E cimento ( da fábrica "Tejo", em Alhandra). 

Foi construída uma grande destilaria, em alvenaria, um edifício, imponente, de elevado pé direito, ostentando ao alto o nome da firma, Abraúl & Filho Lda. A inauguração foi um evento social, como noticiou o jornal da terra.

Infelizmente os pais do Esaú irão morrer, ambos, com a pandemia da gripe espanhola. Aos 20 anos, o rapaz vê-se inesperadamente à frente da firma. O que lhe valeu é que o patriarca Abraúl ainda estava vivo, pelo que beneficiou do seu conselho, experiência e capital de relações pessoais, comerciais e políticas (morreria em 1930, aos 90 anos). Por sua vez, a matriarca, a avó, essa quase que chegaria, já centenária, às vésperas da II Guerra Mundial.

Ninguém sabia a origem da riqueza da família. Era o segredo mais bem guardado. A mãe da avó Gertrudes ter-lhe-á deixado, em herança, umas boas "barras de ouro". Falava-se do saque de igrejas, conventos e palácios no tempo das lutas liberais. Mas isso eram acusações mútuas que faziam "malhados" e "corcundas", liberais e absolutistas. 

A avó falava do "mealheiro do Brasil", deixado pelo avô do seu pai, dono de engenho e de escravos.  Seriam "libras em ouro"... Mas que importava a rota do dinheiro  ? Tinha chegado, por herança, às mãos do Esaú, de resto filho único de Jacó e Rebeca. E deveria chegar ao seu herdeiro, mais velho, se algum dia o chegasse a ter, como os Abraúl e os Oliveira tanto ansiavam. 

−  E depois o dinheiro é fêmea!  −  lembrava o avô Abraúl, transmitindo-lhe de seguida, ao seu neto querido,  a cartilha que já vinha dos seus progenitores. "O dinheiro não é de quem o ganha, mas de quem o poupa ... e o investe, e o multiplica por dois, três e mais".

Na nova terra da Estremadura que o acolheu, o Abraúl era conhecido pela alcunha de "o Judeu" ou então "o Abraúl da caldeira".  Essa alcunha passou para o neto, "Esau, o Judeu" ou o "Esaú da caldeira".

O Esaú não frequentava a igreja, não ia à missa, tal como o pai e o avô. Mas as mulheres da casa salvavam a "honra do convento", isto é, as aparências sociais. 

De resto, os novos tempos, com a República, eram de moderado anticlericalismo e de maior tolerância religiosa. A terra tinha alguma tradição republicana, desde pelo menos o Ultimato Britânico. A filarmónica  era desse tempo. Os grandes proprietários e os últimos nobilitados do final da Monarquia (os tais que tinham comprado "títulos em saldo") eram poucos, comparados com os de Alenquer. 

Predominava a pequena e média agricultura,  o pequeno comércio, os ofícios tradicionais, uma incipiente indústria e alguns funcionários públicos, incluindo o juiz da comarca, "ainda moço e de ideias arejadas" que frequentava a casa, o "casarão", da família Abraúl, cuja hospitalidade era procurada e reconhecida pela elite local.

Na família ainda era pela via matrilinear (ou "uterina", dizia o avô, brejeiro), que se transmitiam algumas tradições e sobretudo memórias dos antepassados. Os homens tocavam os negócios, ganhavam dinheiro, sustentavam a casa…As mulheres eram as matriarcas dentro de casa.

− Elas eram as guardiães do templo da memória!  − orgulhava-se a avó  Gertrudes, uma feminista "avant la lettre". E sufragista!

Da celebração das festividades hebraicas já ninguém tinha a mais pequena memória. Afinal, as duas famílias sempre foram "cristãs-novas" em Portugal. A avó Gertrudes (um nome germânico, talvez visigótico) é que desenterrara o passado, quando veio a moda do sionismo, em finais do séc. XIX. Até então não havia uma consciência nítida da sua origem hebraica, apesar dos nomes de muitos dos seus membros, inspirados em figuras bíblicas.

A avó Gertrudes tinha nascido no final das guerras civis de 1828/34. Lembrava-se do pai dizer que, nessa época, "o clero andava assanhado, contando, de cacete na mão, as ovelhas malhadas" (sic). O pai combatera ao lado das tropas de Dom Pedro e fora dos primeiros a atravessar o rio Tejo e a entrar, vitorioso, em Lisboa, em 24 de julho de 1833, num destacamento avançado das tropas do duque de Terceira.

O Esaú, convenhamos,  não era dado às letras nem ao estudo da história, para grande desgosto da avó, que o amava como se fosse um filho. Casaria com uma "gentia" (sic), por amor, é certo: a primeira professora da terra, a ser formada pelo Magistério Primário, filha de um dirigente local do Partido Democrático, do façanhudo Afonso Costa.

Na terra sempre foi considerado "rico", "filho de rico", se bem que "forreta". Não se lhe conheciam extravagâncias. Nem luxos. Não bebia nem fumava. O único defeito que podia ter era o seu lado "femeeiro". Na tradição da família, emprestava dinheiro a juros, a pessoas conhecidas e de confiança. Era prestamista. Aceitava joias e ouro. Na época não havia bancos na província e a crise financeira dos anos 20 deu cabo de muitas poupanças e patrimónios.

O maior erro da vida do Esaú, entretanto,  terá sido o de dar sociedade a outro dos caciques da terra. Meteu-o como sócio, minoritário, da firma Abraúl & Filho Lda, pelo seu jeito para a parte comercial e as suas ligações aos meios políticos e militares mais conservadores de Lisboa. 

O sócio, o Sequeira, tinha sido o primeiros dos republicanos da terra a apoiar publicamente o golpe militar do 28 de maio de 1926. Faria depois carreira no Estado Novo dentro dos organismos corporativos. Era temido.

Esse sócio era "um dos viúvos da gripe espanhola". Mantinha uma amante, mais nova do que ele, antigo combatente da Grande Guerra. Oficiosamente,  e para salvar as aparências, a amante era a "governanta" da casa. Uma das suas criadas "de dentro", que não gostava da "nova patroa", foi meter nos ouvidos do senhor Sequeira que "a governanta andava a fazer olhinhos ao Judeu",

Numa terra pequena e de moral hipócrita, não era preciso muito para que constasse que "o Judeu" andava a infringir a Tábua dos 10 Mandamentos de Moisés, desejando a mulher do próximo…

O Sequeira era ciumento, como qualquer macho que se prezasse naquele tempo. Retorceu o farto bigode e fez questão de tirar "a prova dos noves aos dois safados". Montou a ambos uma armadilha. Aparelhou o cavalo e disse, lá em casa e na caldeira, que tinha de ir a  Lisboa tratar dos "negócios da porca da política", pelo que se iria ausentar por uma semana, pelo menos. 

Montou, cedo, a cavalo, percorreu a artéria principal da vila e perdeu-se na estrada, em  macadame, que levava à estação de comboio, já no concelho vizinho. Pela calada noite, e com a preocupação de não ser visto, deixou o cavalo nas imediações, e entrou furtivamente em casa. Foi encontrar os dois na sua cama, o "judeu" e a "governanta".

 −  Esaú, meu cabrão, nunca pensei!...

E desfechou um tiro de revólver, à queima roupa, nos órgãos genitais do sócio.

O grito de dor, lancinante, que o Esaú soltou não acordou a criadagem a quem a "governanta" tinha dado folga de um ou dois dias, na véspera de feriado do 5 de Outubro.

Por sorte e conveniência do "triângulo amoroso",  o escândalo foi abafado. O João Semana da terra, amigo dos dois, e vizinho do Sequeira, veio de pronto, com a maleta dos primeiros socorros. Tinha sido alertado pela "governanta", de roupão, em estado de histeria.

− Tiveste sorte, meu sacana. − Por um tris, não foste capado!... A bala, de pequeno calibre, passou de raspão por um dos teus tintins. Fez estragos mas ainda tens o sobresselente… Vamos lá estancar o sangramento. Pára de berrar e morde-me a toalha com força!...

O Sequeira, com as mãos na cabeça, deambulava pelo quarto, agitadíssimo, mal acreditando que podia ter morto o seu sócio e rival…

− Bem me tinham dito que não se pode confiar nos judeus!

O crime (aliás, o "duplo crime") ficou confinado às quatro paredes daquela alcova, de janelas largas e pesados cortinados. Um rápido acordo foi selado por intermediação do João Semana: desapartava-se a sociedade; o Sequeira recebia uma indemnização, em dinheiro, para reparar a "ofensa  à sua honra"; o Esaú aos costumes não dizia nada... enquanto a "governanta" dava sumiço logo nessa mesma noite. 

À cautela, o médico levou o seu doente ao Hospital de São José, uns dias depois, para ouvir a opinião abalizada de um seu antigo mestre da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. A boa notícia é que não havia infeção, que o ferimento iria sarar e não havia razão, em princípio,  para o homem ficar com medo de vir a sofrer de disfunção erétil… A má notícia, é que  muito provavelmente já não poderia procriar no futuro…  

Com a sua extraordinária intuição,  e o "olho de lince" (nunca usou óculos aquela mulher!), acabou por "tirar nabos da púcara" do João Semana de quem, de resto, era uma  "alegre paciente e amiga íntima", tendo ficado a par dos pormenores desta tragicomédia. 

Do alto da árvore da sua sabedoria, e com a autoridade dos seus 90 anos, a avô Gertrudes iria, uns tempos depois, dar um valente puxão de orelhas ao seu "netinho", acabrunhado e humilhado:

− Esaú, Esaú, meu filho!.. Eu bem te ensinei a nunca misturar alhos com bugalhos. De futuro, lembra-te sempre do meu conselho :  "Nunca te metas com a mulher do teu amigo, nem muito menos com a amante do teu sócio... E muito menos ainda se ela for gentia"!

A matriarca tinha-se, entretanto,  convertido ao judaísmo ainda antes de enviuvar. Era, estatisticamente falando, a única judia da terra. E com tal constava do censo de 1930.

Mas a história do "Esaú, o Judeu" ficaria por aqui, se não tivesse entretanto acontecido , uns anos depois, a II Guerra Mundial. A matriarca, felizmente, foi poupada às notícias dos seus horrores. O ex-sócio do Esaú, esse, era agora presidente do Grémio da Lavoura local e um eufórico germanófilo. Curiosamente, já há muito havia esquecido que lutara contra os alemães em Moçambique, tendo sido ferido e feito prisioneiro em Negomano, em 25 de novembro de 1917 (conforme constava do monumento local aos heróis das guerras de África).

O Esaú,  por seu turno, continuava a emprestar dinheiro a juros e a lucrar com a sua "caldeira de queimar vinho" durante a guerra. Era, porém, um fleumático anglófilo. E nunca mais quis ter sócios em negócios. 

Ambos, até por rivalidade, acabaram por comprar, do seu bolso,  aparelhos de telefonia com altifalantes, colocados nos extremos opostos da Praça da República. Claro, com a anuência do presidente da Câmara Municipal, que era por sinal um oficial do exército, já na reserva. Era um "serviço público",  que se prestava ao povo da terra, concordou o autarca. 

A rádio ainda era um luxo para a maior parte da população. O aparelho do "Judeu" estava sintonizado para a BBC e a Voz da América. A do Sequeira para Roma e Berlim. E havia sempre ouvintes para todas as quatro emissoras: quando uma acabava, o grupo mudava-se para o canto oposto. 

Os germanófilos, mesmo assim, uma minoria, refrearam o seu entusiasmo quando as coisas começaram a correr mal para as potências do Eixo.

A celebração da vitória dos Aliados, em 7 de maio de 1945,  também foi comedida, quando a GNR recebeu ordens para dispersar uma pequena multidão que veio espontaneamente para a rua dar vivas aos vencedores. "A nossa política é o trabalho, é o trabalho!", dizia o capitão que estava à frente da edilidade, ajudando a enxotar os populares (que só podiam ser do "reviralho") bem como a banda filarmónica.

A mulher do Esaú, a "senhora professora", tinha muita pena de "não poder ter filhos"... E achava que a "culpa" era dela... O casal acabaria por receber e adotar, legalmente, um menino austríaco judeu, órfão de guerra. Uma linda criança, "lourinha e de olhos azuis". Cresceu mas não quis ser engenheiro:  formou-se em línguas na Universidade de Coimbra. Nunca manifestou interesse pelos negócios do pai adotivo. 

Entretanto, em 1973, rebenta o "escândalo do vinho a martelo" (a produção e destilação de misturas hidro-alcoólicas, com adição de açúcar). A inspeção das atividades económicas acabou por mandar a GNR selar a caldeira da firma Abraúl & Filho Lda. 

O Esaú, na altura,  também já tinha problemas com o delegado de saúde por causa das descargas para o rio e os maus cheiros da caldeira. A sua saúde mental degradou-se. Tinha 83 anos. O filho adotivo estava fora, em Angola, para onde havia sido mobilizado: comandava uma companhia de caçadores, como capitão miliciano. 

Inesperadamente a terra foi abalada com a trágica notícia do suicídio do "Judeu", numa trave alta da sua caldeira... A esposa enlouqueceu e viria a morrer em 1975.  O filho ainda veio a tempo, de Luanda, para assistir ao seu funeral.

Em 1977, o ex-capitão aliena o essencial do património da família. E fixa-se em Israel, onde funda uma empresa de guias e intérpretes de língua portuguesa. E deve ter levado com ele o famoso "mealheiro do Brasil"... 

Por volta de 1980 a caldeira, que não tivera comprador, já estava abandonada e vandalizada. Todo o recheio, em cobre, começou a ser paulatinamente roubado. Vinte anos depois o edifício era uma ruina completa, obrigando o município a intervir e a tomar posse administrativo do que restava,  bem como do terreno à volta. 

Acabou por construir-se, já no início do novo milénio, a universidade sénior. Mas nem toda a gente se atrevia a lá ir ou passar por lá, sobretudo à noite.  O sítio ficou amaldiçoado. Os idosos diziam que à noite se ouviam vozes. Era "a alma do Judeu Errante"...

© Luís Graça (2024). Quinta de Candoz, 18 de setembro de 2024.
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