Itinerário Mansabá-Farim, com o Bironque sensivelmente a meio caminho
© Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné
A Minha Guerra a Petróleo (22)
A Mina
Talvez por estar ligada a Bissau por estrada asfaltada, Mansabá tornou-se um destino para o turismo bélico-jornalístico, aí por volta de Dezembro de 1972, Janeiro de 1973. Um dia, recebi uma mensagem que me informava de que a CArt 3567 seria visitada por um jornalista e professor da Universidade de Harvard. Fiquei naturalmente surpreendido, mas não preparei recepção especial. Pensei que era mais positivo que o visitante visse um dia de actividade normal. Que viria um americano fazer à Guiné, quando as coisas já estavam a correr tão mal no Vietname, de tal sorte que nos Estados Unidos, a contestação à guerra subia diariamente de tom? Um dia, próximo da hora de almoço, uma coluna vinda de Mansoa trouxe o tal professor, acompanhado pelo Capitão Otelo Saraiva de Carvalho. Era um rapaz na casa dos trinta anos, jovial e ávido por saber. Fez-me perguntas, às quais fui respondendo, procurando dar-lhe uma ideia tão real quanto possível da situação. Pelo meu tempo de permanência no “TO daquela PU” não me apetecia, sequer, tentar apresentar-lhe uma situação que não correspondesse à realidade. Todavia, logo no início da conversa, impôs-me uma condição: ao almoço não queria que lhe dessem nem frango, nem bife. Acabara de me inutilizar as duas ementas festivas mais comuns nas “unidades do mato”.
Não me recordo do que era o almoço do dia, mas dispus-me a servi-lo “à la carte”, desde que o nosso depósito géneros pudesse satisfazer-lhe o capricho. Não enjeitou a sopa nem as fatias de casqueiro, mas optou por uma lata de sardinhas em azeite com batatas cozidas, que comeu com uma satisfação muito evidente. Tinha uma certa razão, já que, em todos os sítios onde tinha ido, o que lhe davam para comer era frango assado ou bife com batatas fritas e este último, muitas vezes, parecia extraído da cabeça da rês… Ainda lhe expliquei que aquela iguaria não fazia muito o nosso estilo, em virtude do número de vezes que já a tínhamos experimentado, mas ele respondeu-me no seu melhor português que “esta pessoa prefere sardinhas enlatadas em azeite”.
Após a refeição, passeámos no quartel, trocámos ideias e o visitante regressou a Bissau. Pareceu-me que ia bem impressionado.
Uma ou duas semanas depois – a 9 de Janeiro de 1973 – nova mensagem de teor idêntico, mas agora era uma jornalista norueguesa. A avaliar pela idade do jornalista anterior, começaram as conjecturas acerca da visitante seguinte. Para já era uma nórdica, o que, na nossa escala de conhecimento da Europa, significaria alguém alta, loura, de olhos azuis e com uma certa desenvoltura física… Mas, neste caso, não seria bem assim.
A coluna de Mansoa trouxe-a, num jeep civil, acompanhada pelo meu amigo Otelo e aí aconteceu a surpresa. Era uma velhota magrinha – Inga(?) de seu nome – vestida com uma túnica leve, de cor clara, umas calças escuras um pouco justas, e calçada com umas sabrinas de pano. Vinha visivelmente cansada. Desta vez, não me foram postas questões relativas à ementa do nosso restaurante-snack, mas quando me pediu que lhe mostrasse igrejas e hospitais fiquei bastante confuso. A igreja era improvisada, sempre que o delegado do Senhor visitava a unidade, num antigo refeitório do batalhão que anteriormente tinha guarnecido a localidade, e a enfermaria, se bem que boa e muito funcional, não era propriamente um hospital. Médico, só em Mansoa.
A minha mulher e as esposas de dois furriéis estavam connosco, clandestinamente, o que a jornalista achou muito interessante1. Porém, não conseguiu estabelecer contacto com nenhuma, pois nenhuma falava inglês.
Não sei qual era a posição do governo norueguês em relação à guerra. Hoje, pela experiência que a vida me deu, creio que o povo do país teria uma muito vaga ideia do que ali se passava e os dirigentes políticos mantinham uma posição de conhecimento, mas muito contido. Nunca ouvi falar de qualquer atitude oficial de apoio ou contestação à política portuguesa por parte da Noruega. A Suécia, sabíamos nós que participava na guerra, apoiando farisaicamente o PAIGC, fornecendo-lhe material escolar e sanitário. Mas, embora próximos os países são diferentes e não é lícito misturá-los. Nós, os portugueses também estamos perto dos espanhóis, mas somos povos bem diferentes, vivendo em países diferentes…
A coluna tinha chegado um pouco atrasada e convívio luso-norueguês esteve animado e prolongou-se. Estando previsto que a viagem continuaria para Farim, a partida da coluna para Norte atrasou-se, por consequência. Além disso, a CART não tinha no seu parque um jeep operacional onde se pudesse transportar a visitante até àquela localidade, onde apanharia o avião civil para Bissau. Procurando evitar transportá-la numa viatura militar de difícil acesso para um activo elemento da terceira idade, pedi emprestado ao administrador do posto, um jeep que tinha uma particularidade: estava mal de travões.
Enfim, partimos para Farim, indo a ilustre visitante no jipe, em segundo lugar na coluna. Subitamente, já perto do K3 (Saliquinhedim, de acordo com o mapa), surgiu um pequeno avião civil que, depois de uma volta à nossa vertical, aterrou na estrada no sentido da marcha da coluna. Não seria uma manobra fácil, mas o Comandante Pombo2 realizou-a, provavelmente porque entre o Bironque e o Rio Farim, a estrada asfaltada era recta e desenvolvia-se em terreno plano e praticamente sem vegetação numa área considerável.
Assim, “devido ao adiantado da hora” os dois viajantes VIP foram recolhidos e o avião partiu para Bissau. Que fazer agora? Mandei a coluna prosseguir até à margem do rio. O batalhão ali estacionado estava para ser rendido. Daí que tivesse aproveitado a jangada onde vinha o respectivo comandante para receber a jornalista e com uma viatura apenas cruzei o rio. Ali, os meus “ferrugentos”3 arranjaram, por simples oferta, peças avulsas para reparação das nossas viaturas. Um exemplo de camaradagem entre unidades. Não nos demorámos muito em Farim. Voltámos a cruzar o rio e iniciámos a marcha para Mansabá.
Tudo corria bem e seguíamos a uma velocidade regular. Passámos a tabanca velha do Bironque e um pouco depois… uma explosão. Eu, que seguia com o furriel mecânico (o Licínio), transportando na segunda viatura, o jeep sem travões, vi uma densa nuvem da terra e fumo negro junto da roda dianteira da Berliet que seguia à frente. Todo o pessoal que seguia nela foi projectado, excepto o condutor – o Valongueiro – que permaneceu agarrado ao volante.
Todos deverão ter passado pela estranha sensação de surpresa que o alferes Silva descreveu como “uma percepção imediata de que já se estava no Além, devido à formação de poeira, fumo e escuridão”. Depois diz que “não deixou de apalpar o corpo e ter uma sensação estranha e assim pensar que desta vida já fui”; e continua dizendo que “com o desanuviar da situação de escuridão, ouviu alguns a vociferar "dignas palavras" do nosso vocabulário vernáculo, começou a aperceber-se de que ainda não tinha sido desta que "estava no Além" e mais adiante ainda confessa que “à parte, apenas como desabafo, sei que praguejei contra a jornalista norueguesa um sem fim de palavras vernáculas minhotas, que dispenso de mencionar”. Uma descrição verdadeiramente rica do efeito de surpresa, quando nos sentimos envolvidos num conjunto de sensações dadas por todos os sentidos, mas mergulhados na escuridão, o que nos reduz muitíssimo a nossa capacidade de relação com o meio que nos cerca.
Não consegui imobilizar logo o jeep, mas acabei por aproveitar a berma para esse efeito e, por sorte não atropelei ninguém. O Sá Lopes, furriel “ranger” berrava para os lados do Morés contra os elementos In responsáveis pela situação. Chamava-lhes cobardes e convidava-os a virem até ao local onde estávamos parados. Graças a Deus foi ignorado nos seus apelos e apupos e pudemos tentar resolver o problema. Havia que mudar o pneu da Berliet, mas a poli devia estar deformada pelo que a roda não rolava. Para evitar que o segundo pneu também rebentasse colocou-se-lhe debaixo, uma das grelhas laterais do motor da Berliet e assim fomos rebocando a viatura. De vez que quando, molhava-se a chapa com água ou óleo para baixar e temperatura e facilitar o deslizar da roda.
Mas havia feridos. O que mais me preocupou foi o soldado Pessoa, que tinha um fiozinho de sangue que lhe saía do ouvido. Suspeitei de traumatismo craniano. Porém, o mais grave veio a ser o cabo Trindade4, que foi evacuado para Bissau, no dia seguinte. Empilhei os seis feridos no jeep e segui para o quartel, deixando o alferes Silva a conduzir a coluna, procurando chegar depressa e com a viatura atingida, o menos danificada que fosse possível. À chegada, a minha mulher recebeu-me e, segundo me disse depois, eu tinha terra até no intervalo dos dentes. Era natural, não podendo travar entrei na nuvem de poeira negra que se levantou e, o Licínio e eu ficámos um tanto enfarruscados. Ela nunca mais se esqueceu de que quando lhe peguei num braço, deixei nele uma marca de fuligem.
Berliet que accionou a mina anticarro na zona do Bironque
No aquartelamento, o alvoroço foi grande. Embora a explosão da mina se tivesse ouvido no quartel, foi o Valdrez, o operador de rádio de serviço, quem recebeu comunicação do sucedido e deu o alarme. A minha mulher que estava a escrever, sentada à minha secretária, foi dos primeiros a saber, já que o gabinete era próximo do posto de rádio. O furriel enfermeiro Carvalho começou a preparar a enfermaria para receber os feridos, mesmo saber quantos eram e o seu grau de gravidade. Estando um grupo de combate da companhia empenhado na segurança à construção da estrada para Bambadinca, o alferes Serras procurou organizar uma coluna de socorro com base no único grupo de combate disponível, o seu, e com as duas viaturas quase incapazes de que dispúnhamos e que só usávamos nos serviços do quartel, que teria de ficar entregue ao desfalcado pelotão de milícia. O Carvalho observou os feridos e, especialmente para o Trindade, era aconselhável a evacuação para Mansoa, onde o médico diria de sua justiça. No dia seguinte, uma nova coluna partiu com os feridos. Todos voltaram, excepto o Trindade, mas alguns vinham muito em baixo de forma. O alferes Silva e o Bateira andaram de bengala durante, pelo menos uma semana, e ainda assim andavam, quando fomos visitados por um brigadeiro do CTIG que vinha estudar da possibilidade de ser instalado em Mansabá um centro de instrução para uma companhia de comandos. Assim veio suceder, tendo sido preparada uma companhia de recompletamentos para o Batalhão de Comandos Africanos da Guiné.
Nunca tive qualquer resultado destas visitas dos tais jornalistas de estrangeiros, nem me foi dito para que publicações trabalhavam. Era um esforço que era necessário fazer para tentar – como se tal fosse possível – para modificar a opinião pública mundial…
Notas:
[1] - Um dia, antes das mulheres dos furriéis Costa e Ramos chegarem, um dos dois médicos do batalhão confidenciou à minha mulher que, na unidade, só havia uma pessoa onde poderia exercer a sua especialidade. O Dr. Pedro Carneiro era ginecologista.
[2] - O Comandante Pombo – José Luís Pombo Rodrigues (1934 – 2017) – era um piloto dos TAGP. Fora piloto da Força Aérea e havia prestado serviço na Guiné, no início da guerra.
[3] - Designação comum a mecânicos e condutores das companhias.
[4] - Manuel de Almeida Cunha Trindade
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Nota do editor
Último poste da série de 2 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17722: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (21): Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), ocorre-me perguntar: E afinal para quê?