sábado, 23 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21800: Os nossos enfermeiros (14): Na falta de médicos, optou-se pela secção sanitária a nível de companhia: um fur mil enf e três 1.ºs cabos aux enf (António J. Pereira da Costa / Paulo Santiago / António Carvalho / José Teixeira / Luís Graça)


Guiné >Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > 1969 (ao tempo do BCAÇ 2852, 1968/70) > Da esquerda para a direita, o 1º cabo aux enf Fernando [Andrade] Sousa (, vive na Trofa), o 1º cabo aux enf Carlos Alberto Rentes dos Santos ), é de Amarante, vive em França), o fur mil enf João Carreiro Martins (,vive em Lisboa) e o alf mil at cav José António G. Rodrigues (, já falecido, vivia em Lisboa; estava aqui de oficial de dia, era o cmdt do 4º Gr Comb).


Guiné >Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > 1969 
 (ao tempo do BCAÇ 2852, 1968/70)  > Três elementos dos serviços de saúde: ao centro, o fur mil enf João Carreiro Martins;  à sua esquerda,  o 1º cabo ex enf Fernando [Andrade]Sousa; e à sua direita o 1º cabo aux enf José Maria S. Faleiro (, morada actual desconhecida; foi dos primeiros a ser evacuado por doença intectocontagiosa, ainda em 1969).

Os três militares da CCAÇ 12 estão junto ao monumento erigido pela CCAÇ 1551 / BCAC 1888 (Bambadinca, mai - nov 1966; Fá Mandinga, nov 1966 - jan 1968): além de Bambadinca, teve pessoal destacado em Xitole, Saltinho, Mansambo; Missirá e Dulombi).


Fotos (e legendas): © Fernando Andrade Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

1. Comentários a vários postes sobre os serviços de saúde militares, e os nossos médicos e enfermeiros:


(i) António J.Pereira da Costa (*)


Louvemos o coronel médico Carlos Reis Alves, pela sua acção variada e pelo médico que foi ou ainda é. O conhecimento é algo que não nos podemos despir e que podemos aplicar sempre.

Pela recensão que foi apresentada podemos concluir que a sua acção dirá respeito a um TO [Angola] e num dado momento da Guerra [1970/71].

As alterações que se verificaram são consequência do "problema do pessoal" ou falta dele... Efectivamente seria lógico que em cada companhia existisse um médico. Efectivamente, teríamos uma unidade isolada - como era habitual - à qual estava ligada uma população que, às vezes atingia os milhares de pessoas.

Porém, o número de médicos não chegava e, assim rapidamente se resvalou para um médico por batalhão que era manifestamente insuficiente, devido à dispersão das unidades no terreno. E era o mínimo dos mínimos.

Assim, surge-nos o trabalho das Secções Sanitárias, sob o comando do furriel e com 3 cabos auxiliares de enfermagem (maqueiros), cujo trabalho foi heróico, quer pela insuficiência de meios, quer pela falta de conhecimentos, quer pelas variadíssimas situações que lhe poderiam surgir. Mas este será um tema para outro estudo.

Recordo que, no BArt 1896 e BCaç 2834, havia dois médicos, um em Cacine e outro em Buba.

Em Mansoa, havia também dois médicos no BCaç 4612, ambos em Mansoa. Um deles visitou a CArt 3567. Curiosamente era... ginecologista.


(ii) Paulo Santiago  (**)

No Saltinho, ao tempo da CCaçç 2701, havia Médico, o Dr Martins Faria, que era de Guimarães e faleceu precocemente há uns vinte anos. 

Na mesma altura,também havia médico no Xitole, o Dr Nunes de Matos.

No Saltinho, deixou de haver médico quando lá estava a Companhia da tragédia [ do Quirafo
, a CCAÇ 3490, Saltinho, 1972/74].

No Xitole [, CCAÇ 3492 /BART 3873, Xitole, 1972/74] continuou a haver Médico. O Dr Azevedo curou-me um otite.

Em Galomaro [, CCS / BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74], 
esteve o Dr Veloso, foi Director do IPO do Porto, e agora julgo ser Presidente da Liga. O Dr Pereira Coelho também esteve em Galomaro, mas tive pouco contacto com ele. 


(iii) António Carvalho [Carvalho de Mampatá] (**)

Caro amigo Teixeira e caros tabanqueiros

É (como costuma ser) interessante esta tua descrição pormenorizada da tua passagem por locais da Guiné, alguns deles comuns à minha permanência lá, pouco tempo depois.

No meu tempo, a minha companhia 
[, CART 6250/72, Mampatá,1972-74] tinha quatro Cabos Auxiliares de Enfermagem ( Celso, Gomes, Pinto e Azevedo), um por cada grupo de combate. Eram todos desenrascados e excelentes no mato.

Eu [, furriel enfermeiro,] estava mais na Enfermaria do Quartel, mas, algumas vezes, por doença ou férias de um 1º Cabo, ou ainda quando o Capitão saía, tinha também que alinhar no mato.

Nunca fiz qualquer diário, infelizmente, por isso não posso fazer descrições muito minuciosas de como aquilo funcionava. 

 Certo é que só havia um Alferes Médico na sede do Batalhão [BCAÇ 3852], em Aldeia Formosa, e esse era, segundo o que conheço, no período 72/74, o panorama geral naquele território.

O Médico terá visitado a nossa Companhia uma ou duas vezes , no decurso da comissão. O que sucedia com mais frequência era eu deslocar-me a Aldeia Formosa para receber instruções ou formação do Médico.

Na enfermaria do aquartelamento de Mampatá, havia dois turnos de trabalho, um destinado a pessoal civil e outro a pessoal militar. Claro que qualquer civil ou militar era atendido em qualquer um dos turnos e em qualquer hora se se tratasse de alguém que padecesse de algum ferimento ou doença grave que requeresse atendimento imediato. Os civis eram tratados com os melhores meios disponíveis, nada lhes sendo regateado. Estávamos, então, no tempo do Spínola. 

 
(iv) José Teixeira (**)

Bom amigo Carvalho: No tempo em que estive em Mampatá era o enfermeiro do Grupo de Combate aí sediado.

A Companhia [, CCAÇ 2381, 1968/70,]  estava sediada em Aldeia Formosa e tinha um Gr Comb em Mampatá e outro na Chamarra. Em Aldeia Formosa ficaram dois Gr Comb e um cabo auxiliar de enfermeiro.

Como o Furriel se estava nas tintas , era o desgraçado que alinhava em todas. Por exemplo: ia a Buba na coluna, regressava no dia seguinte com as viaturas carregadas e no outro dia a seguir partia para Gandembel.

Era duro, até porque as saídas de batimento da zona era feita a nível de Gr Comb e o desgraçado estava sempre a alinhar. Por esta razão eu sempre disse que fui um homem de sorte.

Eu montava o meu posto de socorros num sobrado de uma casa e atendia os meus camaradas e a população em geral. Foi um tempo bom para mim pelo que me pude dedicar à população, conhecer as pessoas os seus hábitos e valores, etc


(v) Luís Graça (***)

Em comentário à publicação do álbum de Fernando Andrade Sousa que foi 1º cabo aux enf, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, entre maio de 1969 e março de 1971), e mora na Trofa
, escrevemos o seguinte:

É inacreditável como é que a CCAÇ 12, uma subunidade de intervenção ao serviço do BCAÇ 2852 e depois do BART 2917, só tinha dois enfermeiros operacionais para alinhar no mato, aliás, dois 1ºs cabos aux enf, o Fernando Sousa e o Carlos Alberto Rentes dos Santos.

E este último só por pouco tempo, já que foi trabalhar como carpinteiro (!) no reordenamento de Nhabijões!... 

O 1º cabo aux enf José Maria S. Faleiro foi cedo evacuado para a metrópole. por doença infetocontagiosa (creio que hepatite) e e só muito mais tarde foi substituído pelo 1º cabo aux enf Fernando B. Gonçalves [, de quem já nem me lembro].

Os médicos e os furrieis enfermeiros (como era o caso do nosso João Carreiro Martins, de resto já enfermeiro na vida civil ) não alinhavam no mato (!), sendo cada vez mais absorvidos pelas tarefas de prestação de cuidados de saúde às populações civis!...

Spínola parecia confiar apenas no HM 241, nos helicópteros da FAP e nas enfermeiras paraquedistas que vinham fazer as evacuações Ypsilon!... 

Mas é legítimo perguntar-se: quantos camaradas nossos não terão morrido por falta de primeiros socorros e reanimação no mato!... A vida ali contava-se ao segundo... E nenhuma graduado tinha aprendido na recruta e na especialidade a fazer um simples garrote para estancar um ferimento de bala numa perna ou num braço!... Muito menos administrar um soro... É que os enfermeiros também eram alvos a abater, no caso de uma emboscada no mato.,,

Nunca vi ninguém protestar por esta insólita situação. A política da "Guiné Melhor" levou Spínola a "canibalizar", literalmente,  o seu próprio exército: alguns dos nossos melhores operacionais eram afetados a missões civis, como os reordenamentos, os postes militares escolares e os serviços de saúde! Spínola tinha pressa em "roubar" as populações ao PAIGC... 

Com a melhor das intenções, acabou por desfalcar as companhias que andavam na "porrada"... Enfim, não sabemos  o que se passava com as tropas especiais,que tinham outro estatuto e poder reivindicativo... Seria interessante saber como estavam organizados os serviços de saúde nos destacamentos de fuzileiros especiais, nas companhias de comandos, no BCP 12...

Mais: a CCAÇ 12 é obrigada a participar directamente no "projecto de recuperação psicológica e promoção social da população dos Nhabijões", ao tempo do BCAÇ 2852 (e depois do BART 2917), fornecendo uma equipa de reordenamentos e autodefesa, constituída pelos operacionais:

  • alf mil António Carlão (cmdt do 2º Gr Comb, já falecido);
  • fur mil at inf Joaquim M. A. Fernandes (cmdt da 1ª seção do 4º Gr Comb);
  • 1º cabo at inf Virgílio Encarnação (cmdt da 3ª seção do 4º Gr Comb);
  • sold arv at int Alfa Baldé.

Foram tirar o respectivo estágio a Bissau, de 6 a 12 de Outubro de 1969, estava  a CCAÇ 12 há três meses em Bambadinca, à ordens do BCAÇ 2852...

Foram ainda requisitados à CCAÇ 12 dois carpinteiros, um  1º cab at inf (cujo nome ainda consegui saber) e próprio 1º cabo aux enf Carlos Albertos Rentes dos Santos.

A CCÇ 12 tinham 24 operacionais (graduados e 1ºs cabos atiradores),
metropolitanos, e uma centena de praças do recrutamento local, distribuídos por 4 grupos de combate, sem contar com os especialistas, metropolitanos (condutores auto, transmissões, enfermagem, etc., ao todo uns 35/40). 

Os 4 elementos operacionais brancos que são retirados à companhia, representavam... um 1/6 do total!

Na prática, e durante muitos meses, o pobre do 1º cabo aux enf Fernando Andrade Sousa era o único a "alinhar no mato", dos 4 elementos iniciais da equipa de saúde!... (A CCAÇ 12 não tinha, de resto, soldados maqueiros; é possível que, por vezes, tenha alinhado o pessoal sanitário da CCS em operações a nível de batalhão).

E o Fernando também tinha, além disso, de integrar as equipas de "ação psicossocioal" (!), por exemplo, as visitas às tabancas, vacinação, etc.... E mais: ia todos os dias para o poste de saúde quando estava em Bambadinca!... E ainda foi destacado, dois ou três meses, no princípio de 1970, para o Xime da CART 2520, que estava sem enfermeiro!...

Em conclusão foram homens como o Fernando Anadrade Sousa, "marca c...",, como se diz no Norte, que seguraram as pontas desta "p... de guerra"!... (Julgo que levou, no fim, um louvor, averbado na caderneta militar, como seria, de resto, da mais elementar justiça!... Era o mínimo que  o capitão lhe podia dar!).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21781: Nota de leitura (1335): Os serviços de saúde militar e a guerra colonial - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P21799: Os nossos seres, saberes e lazeres (434): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3): Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Era impossível escapar à rota caldense, um convívio que se encetou há mais de 60 anos, tudo por causa das férias na Foz do Arelho, inevitável não ir à Praça da Fruta, D. Anita, minha madrinha, acolitada por marido e ajudantes, abastecia-se de fruta e legumes, carne e peixe, nenhuma das refeições tinha menos de dez pessoas. Havia escapadas até à Pastelaria Machado, com os seus doces icónicos. Atravessava-se a cidade para ir até Peniche, o meu padrinho era conserveiro, ali havia fábrica, uma outra na Nazaré, aqui havia o ritual de uma sardinhada servida por mulheres indumentadas com as sete saias, refeição de arromba. Interessava-me visitar a azulejaria de muitos edifícios caldenses, um legado de Rafael Bordalo Pinheiro, não perdia ocasião de ir até ao Museu José Malhoa, o mestre pintou os pais do meu padrinho, são dois retratos fabulosos.
O parque continua muito bem tratado, é aprazível e dá gosto vê-lo sempre cheio de vida. Pedi a quem ia ao volante de não fazermos diretamente a estrada para a Foz do Arelho, ocorreram outras recordações, os passeios ao Bom Sucesso e à Serra, atravessar a lagoa até à Lapinha, então um lugar bem pobre. E assim se contornou a lagoa para ver o oceano e os areais como num grande ecrã, longe da aglomeração hoje urbana, da Foz do Arelho. E foi maravilhoso reviver o passado, lembrar os meus mortos muito queridos e aqueles que estão distantes, que a roda da fortuna separou. A viagem continua, regressa-se a Óbidos, há que fazer as honras à casa, e depois, de orelha murcha, fazer uma pausa nas férias.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3):
Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho


Mário Beja Santos

Tive esse privilégio, fazer vilegiatura na Foz do Arelho, anos a fio, em casa dos meus padrinhos, a última casa que alugaram tinha sido a colónia de férias do Colégio Moderno. Era inevitável vir às Caldas, primeiro pelo abastecimento, não há nada no país como a Praça da Fruta, muita dela proveniente de localidades limítrofes, caso da Benedita. O parque é de visita obrigatória, sempre o conheci bem mantido, com os seus cortes de ténis e a escultura de José Malhoa como que a convidar a visita do museu com o nome deste ilustríssimo caldense. E a igreja-matriz, que vem do tempo da donatária, a Rainha D. Leonor, que deu certidão de nascimento em 1488, eram as Caldas um mero lugarejo. Falava-se das cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro, havia sinais do seu trabalho no Museu José Malhoa e em edifícios da cidade, bastava olhar para aquela azulejaria do tipo sevilhano. Era estância termal, não perdeu a fama, quase no final do século XIX as termas passaram a ser local obrigatório associado a férias, a população cresceu. Isto são coisas que eu estou a ler no livro Linha do Oeste, que também anuncia a chegada do comboio, a modernização urbanística, a importância da cerâmica, o Hospital Termal e a beleza do parque, obra do Administrador Rodrigo Maria Berquó, um arquiteto que procedeu à construção do parque com um lago e áreas aptas à prática de desportos. Nesses cortes de ténis, jogaram muitos estrangeiros fugidos aos horrores da II Guerra Mundial, eles estavam estacionados nas Caldas por decisão política superior, há mesmo livros que recordam a sua presença. E no século XX, em 1927, passou a cidade, destaca-se pelo seu trabalho de planeamento urbano o jovem arquiteto Paulino Montez. Mas voltemos atrás, por aqui andou Rafael Bordalo Pinheiro e deixou sinais do seu génio, a sua cerâmica era tão engenhosa que ainda hoje se reproduz e tem ávidos compradores.

Praça da Fruta, Caldas da Rainha

O Museu José Malhoa não se cinge ao romântico naturalismo deste caldense ilustre. É certo que ele está altamente representado por figuras prestigiadas da aristocracia, cenas campestres, figuras populares, retratos de amigos e discípulos como, caso do consagrado retrato que dedicou à sua discípula Laura Sauvinet, mas outros grandes artistas justificam uma demorada visita. Com efeito, a coleção de pintura, desenho, aguarela, escultura e cerâmica, onde predomina o movimento naturalista, tem obras de grande mérito e mesmo modernistas como Eduardo Viana aparecem aqui representados com obras de significado.

Estátua de José Malhoa, junto do museu do mesmo nome, Parque D. Carlos I
Retrato de Laura Sauvinet, por José Malhoa


Cidade termal, fundada em finais do século XV, sofrerá novo impulso no período joanino. Ganhou muito com o comboio, com a modernização urbanística, com o dinamismo do Hospital Termal. Não há viajante que não se abisme com aquelas construções fantasmáticas, parece que uma parte fundamental do termalismo deixou de pé uns edifícios esventrados, numa plácida agonia, mas na prática é um abandono chocante.

Os pavilhões termais, imponentes mas decadentes, Parque D. Carlos I
Os edifícios termais vistos de perto


O Parque é de uma indizível beleza, muito bem cuidado, e a prova de que é atrativo é a sua utilização para atividades desportivas, para recreio e lazer, e as instalações museológicas favorecem a atmosfera local, entra-se e sai-se para contemplar edifícios, visitar lojas de cerâmica, o meio envolvente é muito sugestivo. E é imperdível a visita à igreja-matriz, Nossa Senhora do Pópulo, está marcada pelo tardo-gótico, o seu interior é uma preciosidade em azulejaria, talha e escultura.

O viço das buganvílias num parque primorosamente mantido
A torre sineira da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, Caldas da Rainha
Uma imagem interior da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo


Prossegue a viagem em direção à Foz do Arelho, com uma nuance, não se vai propriamente pelo Nadadouro e contorna-se a lagoa, tom-se outra direção, caminha-se pelo lado oposto, há necessidade de recordar certos passeios de outrora, a praia e a lagoa eram uma outra coisa, caminhava-se pelo areal naqueles dias de bandeira vermelha e mar em turbulência, as ondas em cachão, uma constante neblina, impossível ver as Berlengas. Ia-se em direção ao Gronho, um maciço todo ornamentado de vegetação rala. Faziam-se burricadas quase até Peniche, o mar em vazante, todos na galhofa montados na azémola, com farto piquenique, ia-se até às praias de Peniche, o nosso guia sabia exatamente a tabela das marés, regressava-se à Foz do Arelho são e salvo. E foi com essa recordação, também a pensar nos passeios em que se atravessava a lagoa de barco para vir até à Lapinha, hoje tudo radicalmente transformado, que se parou diante daquele mar imenso, lá está a lagoa sempre ameaçada pelo assoreamento, deste ponto é tudo uma beleza, nem dá para acreditar que aquela aldeia que conheci vai para 60 anos se transformou e adaptou ao turismo de massas. Está na hora de regressar a Óbidos, amanhã vamos visitá-la a preceito, conviver um pouco com essa pintora extraordinária que foi Josefa d’Óbidos.

A Foz do Arelho contemplada do Gronho, a permanente ameaça da Lagoa de Óbidos assorear
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21773: Os nossos seres, saberes e lazeres (433): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2): Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21798: (Ex)citações (384): A evacuação do capitão paraquedista Valente dos Santos, no decurso da Op Grande Empresa (Manuel Peredo, ex-fur pqdt, CCP 122, 1972/74 / Moura Calheiros, ex-maj pqdt, 2º cdmt, BCP 12, 1972/74)

 
Guiné > Bissau > Bissalanca> BCP 12 (1972/74)

Foto (e legenda): © Manuel Peredo (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dois comentários ao poste P21779 (*)


(i) Manuel Peredo 

[ ex-fur mil paraquedista, na foto acima é o primeiro do lado direito, armado de RPG-2, seguido do sagento Carmo Vicente e do Fernandes, caboverdiano, fur mil, todos do 4º Gr Comb da CCP 122 / BCP 12, Bissalanca, 1972/74; vive em França, ou vivia até há uns anos; tem 7 referências no nosso blogue: integra o nosso blogue desde 2008](**)


Tendo eu participado na "reconquista do Cantanhez” [Op Grande Empresa], queria fazer uma observação. Eu estava presente quando o capitão Valente dos Santos [,comandante do CCP 122,]foi ferido com uma bala que lhe atravessou um braço.

Ele estava incluído no quarto pelotão, que era o meu e nessa emboscada tivemos quatro feridos,ou talvez cinco: o capitão Valente dos Santos,o radiotelegrafista Ribeiro,o enfermeiro Azenha e o soldado Severino que transportei às minhas costas.

Todos foram evacuados ao mesmo tempo, incluindo o capitão Valente dos Santos que, vendo em que estava o seu braço, não podia continuar a operação.

Eu li o livro do major Moura Calheiros (um excelente livro) (***) e a passagem sobre a evacuação do capitão Valente dos Santos deixou-me surpreendido ao afirmar que o capitão recusou ser evacuado querendo continuar a operação, o que não corresponde à verdade.

Em Maio de 2012 estive com o major Moura Calheiros em Tancos no dia da Unidade, onde se juntam várias gerações de paraquedistas. Dei-lhe os meus parabéns pela obra, mas disse-lhe que não estava de acordo com ele quando diz que o capitão Valente dos Santos recusou-se a ser evacuado. Disse-lhe que eu estava presente e que o capitão foi evacuado quando os restantes feridos, mas ele disse-me que eu estava errado e que o que escreveu estava certo pois andava a sobrevoar a zona na Dornier.

Nesse dia da Unidade encontrei-me com vários elementos do meu pelotão [4º  da CCP 122] que fizeram parte dessa operação e todos estavam de acordo com a minha versão.

Depois de os feridos terem sido evacuados, veio outro pelotão da CCP 122 reforçar o meu grupo e voltámos ao local onde tínhamos sofrido a emboscada, sendo a minha secção a ir na frente do bigrupo. 

Encontrámos várias granadas e munições e quando nos preparávamos para sair daquela zono, fomos atacados novamente e o furriel Aníbal Martins foi ferido gravemente. Esteve alguns dias no Hospital Militar, vindo a falecer dos ferimentos. A morte dele deixou-me abalado, pois éramos amigos e no BCP 12 dormíamos no mesmo quarto.

Também participei na operação Muralha Quimérica, onde o meu pelotão encontrou uma grande quantidade de bandeiras do PAIGC e ainda hoje tenho uma.


Capa do livro de José Moura Calheiros, "A Última Missão" 
(Porto, Caminhos Romanos,
2ª edição, 2011). A 1ª edição de 2010.

 (ii) Moura Calheiros

[tem 22 referências no nosso blogue, coronel paraquedista reformado, gestor e escritor; das três comissões de serviço no ultramar, destaque para a da Guiné (1971-1973) como 2º Comandante e Oficial de Operações do BCP12, COP4 e COP5 e ainda como Comandante do COP3]

"Sou" o Major Moura Calheiros, referido pelo Amigo e camarada paraquedista Manuel Penedo, no seu comentário ao meu livro "A Última Missão ", cujo elogio agradeço. 

Mas apresento-me hoje, e aqui, com mais 48 anos — meio século!!! — de vida do que aqueles que então exibia nos tempos que ele recorda, os da "invasão" do Cantanhez, na Guiné...

Tudo aquilo que ele refere se passou numa clara e muito quente manhã, tipicamente guineense, no dia 12 de Dezembro de 1972. E foi relatado, no livro, em 2010; logo, 38 anos depois..., passível, pois, de algumas pequenas imprecisões por efeito da falta de memória e de relatórios escritos sem muito detalhe e precisão, pois que aquele período não permitiu tempo para "burocracias", cuja falta hoje se fazem sentir... e que lamentamos existirem..

Mão amiga fez chegar ao meu conhecimento o comentário do Amigo e camarada Paraquedista Manuel Penedo a uma imprecisão existente no livro de minha autoria atras referido. E existe na verdade uma imprecisão: contrariamente ao que eu lhe tinha afirmado em Tancos, num Dia da Unidade...

Só que agora pude recorrer ao Comandante da Companhia, então Cap Paraq Valente dos Santos, muito mais jovem que eu, logo, com melhor memória. Ele confirmou-me que eu lhe propus a sua evacuação e de todos os outros feridos, mas que ele se recusara a ser evacuado sem que tivesse atingido o quartel inimigo; e, diferentemente do que eu afirmo no livro, os restantes feridos não foram logo evacuados por decisão sua, pois que não eram graves, mas sim, conjuntamente com ele, logo após a ocupação do objectivo.

Em resumo: o Amigo Manuel Penedo tem toda a razão no que afirma no seu Post, mas penso que a inexatidão não é relevante, pois em pouco ou nada o momento da evacuação é importante na narrativa; excepto, claro está, para os feridos... E felizmente tudo correu bem com eles... E com tudo o resto nesse dia, com excepção do raio do desembarque em Cadique...

As minhas desculpas aos leitores do meu livro por esta minha — quanto a mim, ligeira — imprecisão; e também ao Amigo e camarada Manuel Penedo, com o meu pedido de desculpas pelas minhas afirmações em Tancos, no Dia da Unidade. Como compensação, vai daqui um forte abraço para ele.

E, para terminar, saúdo os seguidores deste magnífico Blog, que em tempos idos eu visitava com muita frequência. Mas a idade não perdoa... (****)

_________


(**) Vd. poste de 27 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3095: Tabanca Grande (81): Manuel Peredo, Fur Mil Pára-quedista, CCP122/BCP 12 (Guiné, 1972/74)

(***) Vd.postes de;

 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7805: Notas de leitura (204) A Última Missão, de José de Moura Calheiros (1) (Mário Beja Santos)

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7815: Notas de leitura (205): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (2) (Mário Beja Santos)

27 de fevereiro de  2011 > Guiné 63/74 - P7872: Notas de leitura (210): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (3) (Mário Beja Santos)


2 de dezembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7371: A última missão, de José Moura Calheiros, antigo comandante pára-quedista: apresentação do livro (2): Excerto de Discurso do autor

3 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7375: A última missão, de José Moura Calheiros, antigo comandante pára-quedista: apresentação do livro (3): Sítio promocional

(****) Último poste da série > 6  de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21741: (Ex)citações (383): Jaime Frederico Mariz Alves Martins, Major Graduado Infantaria, vítima mortal por derrube de aeronave em 6 de Abril de 1973, na Região de Sambuiá (António Carlos Morais Silva, Cor Art Ref)

Guiné 61/74 - P21797: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (83): Pergunta ao Beja Santos: afinal quem era o filho mais novo do régulo de Missirá? E quem foi o seu sucessor? (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Carta do António Eduardo Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo,  Datada de Lisboa, 23 (?) de junho de 1967 (?)

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentárioenviado ao Mário Beja Santos, pelo João Crisóstomo
nosso camarada da diáspora (EUA, Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), casado com a eslovena Vilma, e destacado ativista social:


Date: sexta, 22/01/2021 à(s) 18:58
Subject: Comentário ao Post Guiné 61/74 - P21795
 

Caro Beja Santos,

Tentei fazer/ escrever um comentário ao teu post P 21795 (*), de hoje, 22 de Janeiro, mas nesse comentário não consegui incluir cópia duma carta, que acho pertinente ao assunto/pergunta de que queria falar.

Por isso envio-te este comentário por E mail, com conhecimento ao comandante de todos nós, Luís Graca, na esperança de que ele te faça chegar este comentário, pois me parece que raramente lês os meus E mails, o que é mais que compreensível, pois assim como sucede com o Luís Graca, eu não sou capaz de imaginar como vocês têm tempo para tantas coisas sobre que escrevem e em que estão envolvidos todos os dias). 

Mas o facto de eu não ter capacidade para tanto,  não quer dizer que outros não a tenham e vocês os dois são disso prova. E, como diz o ditado: "contra factos não há argumentos", embora o ex-presidente "trump" (letra pequena) e muitos dos seus crentes seguidores tenham tentado provar que não é bem assim. Mas, com ele fora de circulação, esperemos que volte o bom senso e "ditados" como este voltem a ter a devida aceitação.

Mentiria se dissesse que leio tudo o que escreves; mas porque andaste por terras que a ambos nos ficaram no coração e ainda hoje nos são queridas, sempre que vejo menções destas, especialmente Missirá e Porto Gole,  não deixo de ler essas tuas memórias. Por vezes, como sucedeu hoje, essas descrições memórias são fortes demais para mim e tenho de me socorrer do lenço de bolso para controlar estas emoções.

Hoje foram algumas fotos deste post que começaram por chamar a minha atenção: as fotos a "subida da palmeira" ; a "panorâmica da velha Tabanca de Bambadinca"; a foto do "local em Mato Cão onde se fazia a vigilância das embarcações" …Que saudades e emoções me fizeram logo sentir! E depois comecei a ler:

(...) "Foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre. (...). E à entrada do hospital (...) viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável (...) 

"O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá (...), tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população. (...) Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado,(...)

(...) "A despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos. (...)

Como não hei-de ficar abalado ? Descrições como esta fazem-me sempre imaginar coisas: neste momento esta pessoa que tu descreves sou eu, voltando à Guiné procurando saber o que é feito de tantos que eram meus amigos… Especialmente do meu guarda-costas, uem sabe não faz parte das muitas vítimas do abandono a que foram sujeitos depois da independência e da vingança dos "vencedores" que logo se seguiu… 

Como posso eu deixar de sentir mágoa e revolta… gostaria de um dia voltar lá, mas ao mesmo tempo sei bem que não sou capaz. 

Antes, no mesmo texto leio:

(...)  "Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento.(...) Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996. (...)

E aqui eu fiquei confuso: Eu conhecia o filho do régulo de Missirá, de nome António Eduardo Quebá Soncó , ferido um dia em combate, mesmo ao meu lado; o destino da bala podia ter sido eu , mas foi ele que a apanhou, numa operação em que tomei parte. 

Na minha mente jamais o esqueço e o seu grande sorriso permanente e contagioso. Era ele , assim se dizia, que ia um dia suceder a seu pai como régulo de Missirá. Eu pensei que ele era o filho mais novo do régulo. Ferido, teve de ser evacuado para Bissau e daí foi para Portugal . 

Em 1966 eu vim de férias a Portugal e fui-o ver no hospital; e no dia seguinte voltei lá com uma mala que ele me disse precisava para as suas coisas pois ia ser enviado para a Alemanha, para lhe porem uma perna artificial. Ele queria conhecer Lisboa antes de partir; e, no mesmo momento apesar do seu estado, peguei nele e levei-o a visitar diversos pontos da cidade . 

Ele jamais esqueceu isso; quando voltou à Guiné escreveu-me de Bambadinca, que já tinha visto a família, etc. Foi a última carta dele. Esta carta e outras que recebi dele guardo-as com o mesmo carinho com que guardo outras cartas de minha família e amigos cuja amizade muito enriqueceram a minha vida.

Como falas do "Abudu Soncó, filho mais novo do régulo" que apareceu em 1966… depreendo que eu estava enganado: então o Quebá Soncó não era o filho mais novo; muito menos sabia que o irmão dele tivesse conseguido ir/ficar em Portugal e o Quebá nunca me ter falado dele. Ou pelo menos eu não me lembro. Talvez esta minha confusão seja resultado da idade que nos faz destas… (**)

Obrigado pelas muitas memórias que me fazer sempre reviver. Não esqueço que foi graças a ti —e a este blogue--que consegui encontrar e ainda ver o meu/nosso querido amigo Zagalo, antes de ele nos deixar.

A Vilma , ( de apelido  "Knapič," não esqueças… e portanto ainda tua distante familiar e compatriota eslovena,) quis saber a quem eu estava a escrever e pede para a não esquecer… 

O abraço, por enquanto apenas virtual, é portanto de nós dois. Vamos a ver se quando formos a Portugal tu arranjas tempo para um abraço mesmo como deve ser!  

João e Vilma
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21796: Os nossos enfermeiros (13): em louvor do ex-fur mil enf Urbano Silva e do ex-1º cabo aux enf Silva (Jorge Fontinha, ex-fur mil inf, CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)


Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto > CCAÇ 2791 (1970/72) > O fur mil Jorge Fontinha a ser assistido pelo 1º cabo aux enf Silva, no decurso de uma operação na zona de 


Foto (e legenda): © Jorge Fontinha (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta história do Jorge Fontinha, publicada pelo nosso coeditor Carlos Vinhal, há quase 10 anos atrás (*), merece ser "desenterrada" e reproduzida na série "Os nossos enfermeiros"... 

Estamos justamente "com a mão na massa", a falar dos serviços de saúde militares durante a guerra, e da crónica  escassez de recursos humanos e técnicos que foram superados, em grande parte, pela grande abnegação, coragem e altruismo dos nossos médicos e enfermeiros (**). 

Nesta altura, no CTIG, em 1970/72, parece que a regra geral era 1 médico por batalhão, e não 1 médico por companhia, como previa originalmente o dispositivo sanitário.


Os nossos enfermeiros

por Jorge Fontinha


[Foto ao lado: Jorge Fontinha, foi fur mil inf,  da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72; é membro da nossa Tabanca Grande desde 2008 (***); tem  mais de três dezenas de referências no nosso blogue]


A CCAÇ 2791, "Força",  foi uma Companhia, cujos Especialistas e não só os Operacionais, foram de verdadeira excelência.

Hoje vou falar da equipa de enfermagem cuja competência e dedicação não tiveram limites. Superiormente liderada pelo Furriel Miliciano Urbano Silva, os Cabos e maqueiros divididos pelos 4 Grupos de Combate, foram uma equipa de respeito.

O Urbano era incomparável, tanto na sua Especialidade como ser humano, voluntarioso, competente e rigoroso. Ninguém escapava às suas seringas nem aos seus comprimidos. Protagonizámos, os dois, muitos episódios, alguns deles já nem sequer os consigo lembrar. Há todavia um que jamais vou esquecer.

Quando a Companhia se reúne em Teixeira Pinto com o nosso 4.º Grupo, alguns dias passados, há uma operação programada para o Balangarez. Na véspera tive uma entorse no pé direito e,  como nunca me havia baldado em circunstância alguma, fui ter com o Urbano para que ele me desse a sua opinião. 

Depois de revisto, aconselhou-me a consultar o médico do Batalhão [,  
BCaç 2928], que me aconselhou a descansar 3 a 4 dias, passando-me uma baixa para 3 dias. 

Como era da minha obrigação, dei conhecimento ao Alferes Gaspar e dirigi-me ao gabinete do Capitão Mamede, informando-o da situação. Aconteceu o impensável!

O Capitão Mamede acusou-me de caras de ser oportunista e de estar a forjar a  situação. Nunca havia sido tratado, por um superior hierárquico, da forma que estava a ser e com a indignação, disse que não ia à operação, bati com a porta e fui para o bar meter uns gins com água tónica pelas goelas abaixo.

Foi quando apareceu o Urbano. Não o enfermeiro, mas o ser humano que todos nós na Companhia lhe reconhecíamos. Agarrou-me por um braço e convidou-me a ir até à enfermaria pois queria falar comigo. Aí, mandou-me descalçar a bota, fez o seu próprio exame, mexeu, remexeu, massajou durante alguns minutos, com milagrosas pomadas, ligou-me o pé com todo o vigor e obrigou-me a engolir um comprimido, dando-me outro, para ser tomado ao levantar.

Fur mil enf Urbano Silva
Perguntei-lhe para que era aquilo tudo, se já tinha decidido não ir à operação. Aí,
sem que nada o fizesse esperar, faz uma pirueta no ar, dá dois ou três passos de dança e diz três ou quatro palhaçadas, provocando um ambiente hilariante e de boa disposição. Foi a táctica dele. 

- Vais à operação ou não? 

- Vou, mas levo a dispensa no bolso. Se tiver de ser evacuado, alguém a vai ver!

Hoje digo: obrigado,  Urbano!

No decorrer da operação senti alguma dor que estoicamente fui ignorando. A dada altura e já no período de emboscada, para passar a noite, comecei a ter tremuras e febre, tendo passado um mau bocado. 

Valeu-me na altura a minha companheira de emboscada, a inseparável garrafa de whisky, duas goladas e a colaboração do 1º Cabo Auxiliar Enfermeiro Silva, que com o restante me massajou, pondo-me a transpirar abundantemente. Ao raiar do dia, preparamo-nos para regressar à estrada e sermos recolhidos para voltarmos para Teixeira Pinto.

A febre e as tremuras passaram, o pé ainda bastante dorido, mas felizmente com evidentes melhorias ajudaram o resto.

Assisti mais assiduamente às intervenções do Cabo Enf Silva. Foi ele que quase em simultâneo assistiu ao acidente que mutilou a perna do Nunes, nosso primeiro ferido de toda a Companhia. Foi também ele que assistiu em primeira mão ao acidente que provocou o primeiro morto do Grupo de Combate e da Companhia, tendo tido a sorte, ele e todos nós, de seguir na viatura que ia à nossa frente e era comandada pelo Furriel Chaves.

Curiosamente, o Chaves esteve também ele ligado ao episódio seguinte, quando em Mato Dingal, o Cabo Enf Silva, foi chamado de urgência á Tabanca para ajudar a um parto difícil. Coincidiu com a hora de almoço mas o Silva interrompeu, veio avisar-nos a nós e preparou-se para ir. O Chaves que era homem para grandes rasgos, também interrompeu o almoço e igualmente,”meteu as mãos nas luvas” e também foi.

Entretanto eu e o Alferes Gaspar continuamos a almoçar, comer a sobremesa e continuamos à mesa, com os respectivos digestivos, aguardando a chegada de ambos. Assim, o Chaves mal se livra das luvas e se lava, vem para a mesa, acabar de almoçar. 

Quem estava de frente para a porta de entrada era o Gaspar, que de imediato começa a vomitar, provocando-me a mim próprio, igual reacção. O Chaves ao lavar-se, esqueceu-se de mudar a camisa, que vinha ensanguentada e com vestígios da placenta. Resta dizer que o desempenho do Silva, foi exemplar.

O Cabo Enfermeiro Silva era adorado pelo pessoal daquela Tabanca pois tinha sempre uma seringa mágica que curava toda a gente!…

Aos meus bons amigos,  ex-Furriel Urbano e ao ex-1º Cabo Silva, o meu abraço eterno.

Foi apenas mais uma Estória verdadeira, vivida na Guiné.

Aquele abraço para toda a Tertúlia.
Jorge Fontinha

2. Ficha de unidade > Companhia de Caçadores nº 2791

Identificação: CCaç 2791
Unidade Mob: RI 16 - Évora
Cmdt: Cap Mil Art Mamede José de Sousa | Cap Inf Joaquim Humberto Rodrigues Teixeira Branco | Cap Inf Manuel Estêvão Martinho da Silva Rolão | Cap Inf Joaquim Humberto Rodrigues Teixeira Branco
Divisa: "Força"
Partida: Embarque em 19Set70; desembarque em 020ut70 | Regresso: Embarque em 28Set72

Síntese da Actividade Operacional


Após realização da IAO, de 50ut70 a 290ut70, no CMl, em Cumeré, seguiu, em 300ut70, para Bula, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com a CCav 2487, sob orientação do BCav 2868. 

A partir de  1Dez70, foi integrada no dispositivo e manobra do BCaç 2928, como subunidade de intervenção e reserva do sector, com vista à realização de acções nas regiões de Choquemone, Ponta Matar, Bofe e outras e ainda de reconhecimentos,
patrulhamentos, emboscadas e escoltas na zona de acção do batalhão.

Após ter destacado, temporariamente, um pelotão para Teixeira Pinto, em
reforço do BCaç 2905, outro para Bissum, em 2Mar71, em reforço da CCaç 2781,
e ainda outro para Pache, em 19Mar71, foi deslocada para o subsector de Binar,
em 13Mar7l.

Em 25Mai71, mantendo um pelotão em Bissum, foi transferida para
Teixeira Pinto, reagrupando então o pelotão ali destacado do antecedente, a fim
de colaborar na segurança e protecção dos trabalhos da estrada Teixeira Pinto-
-Cacheu, ficando na dependência do CAOP 1 e depois do BCaç 2905. 

De 30Jul7l a 19Ag071, entretanto, esteve atribuída temporariamente ao COMBIS,
deslocando-se no período para Bissau e regressando em seguida a Teixeira
Pinto, com excepção de um pelotão que só recolheu em 30Ag071.

Em 250ut71, mantendo o pelotão destacado em Bissum, foi deslocada para
a base temporária de Capó, para protecção dos trabalhos da estrada Teixeira
Pinto-Cacheu até 06Dez71.

Após a recolha do pelotão destacado em Bissum em 2Nov71, para Bula e seu deslocamento para Ponta Augusto Barros em 16Nov71, a subunidade foi deslocada para Ponta Augusto Barros, com pelotões destacados em João Landim e Mato Dingal, substituindo nos respectivos reordenamentos a CCaç 2790 e assumindo a responsabilidade do subsector em 8Dez71, na dependência do BCaç 2928.

Em 30Jun72, foi rendida no subsector de Ponta Augusto Barros pela CCaç 3328, por troca, sendo colocada em Bula como subunidade de intervenção e reserva do BCaç 2928 e depois do BCav 8320/72, destacando um pelotão para Nhamate, em 30Jul72 e sendo utilizado em acções de emboscadas e patrulhamentos de contrapenetração.

Em 19Set72, foi rendida no subsector de Bula pela 3ª Comp/BCav 8320/ 72 e recolheu seguidamente a Bissau para o embarque de regresso.

Observações
Tem História da Unidade (Caixa n." 89 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), pp. 395/396.

Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Chegou-se a um momento em que se cruzam os acontecimentos do tempo da guerra com o dos regressos à Guiné, estes, por sinal, festivos e simultaneamente dolorosos. Annette registou conversas, espicaçou o diálogo sobre os retornos, sabia que tinha havido reencontros, tudo com pretextos profissionais, selaram-se novas cumplicidades. Um Soncó volta sempre. É um dever, é uma razão de ser. Paulo aprendeu ao longo dos anos que houve quem regressasse da Guiné profundamente malquisto, magoado, disposto a tratar aquele passado como livro fechado. Ele e a sua circunstância ditaram outro caminho, por isso acedeu facilmente a satisfazer a curiosidade de Annette quando ela lhe perguntou nas curtas férias de Lier, não muito longe de Antuérpia: o que representou na tua vida regressar aos locais de tantos afetos e de tantas violências? E Paulo contou-lhe o significado que ele atribuía aos seus retornos, afinal demonstrativos de que há memórias que nunca se apagam. E repetiu-lhe: um Soncó volta sempre.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureux, trabalhei todo o dia em Gand, era uma reunião promovida pela Comissão com médicos de várias categorias, retive comentários de professores universitários, eminentes cirurgiões, médicos de família também, mas havia na assistência representantes da indústria farmacêutica, farmacêuticos e especialistas em Saúde Pública, não sei se não estou a dizer algum disparate, mas passou-se o dia inteiro a ouvir intervenções sobre automedicação, tudo começou com a intervenção do Comissário da Saúde que tratou a automedicação como um fenómeno inevitável e em expansão, não só para garantir a eficiência dos serviços de Saúde e medicamentos essenciais a preços abordáveis, transferindo os medicamentos não prescritos pelo médico para um novo quadro de responsabilidade entre farmacêuticos e utentes e doentes. Houve para ali uma certa polvorosa, os médicos entendem que os doentes, de um modo geral, ainda não estão preparados para uma automedicação criteriosa. O representante da indústria farmacêutica, por seu lado, mostrou-se entusiasta para que a lista destes medicamentos cresça e revelou que os laboratórios gostariam de fazer uma comunicação direta com os doentes. Não podes imaginar o pandemónio que houve na sala. E recordei-te o dia todo porque no ano em que nos conhecemos tu tinhas vindo a Bruxelas colaborar na primeira conferência europeia sobre a automedicação.

Obrigado pela organização que estás a dar a todos os teus apontamentos até agosto. Tenho uma surpresa para ti. Coligi as nossas conversas em Lier, estava mortinha de curiosidade para saber o que representava a Guiné nos anos subsequentes ao teu regresso. Vê se compreendi bem, e o que estiver impreciso acrescenta ou corta. Pelo desenvolvimento que estás a dar ao romance, parece-me que faz todo o sentido que haja um posfácio, voltaste à Guiné em 1990, uma curta viagem, trabalhaste sensivelmente cinco meses em 1991 como cooperante, ficou-me a impressão de que houve alegrias e deceções profundas.

Retive o seguinte. Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Aquele teu furriel cujo sistema nervoso colapsou ainda estava muito débil, quase apático. Recebes visitas frequentes do Paulo Ribeiro Semedo e do Fodé Dahaba. Virão mais tarde outros sinistrados, caso daquele teu grande amigo, Mamadu Camará, era soldado Comando, foi gravemente ferido num calcanhar, tudo se tentou para a sua recuperação, mas a perna gangrenou, houve que a amputar, ainda hoje vocês se encontram. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996, ele era professor primário, passava longos meses sem receber salário, aproveitou um curso em Setúbal e foi trabalhar para a construção civil. Ri-me imenso quando me falaste de que tinhas preenchido uma declaração dizendo que o Abudu fora admitido em tua casa como criado, ele para ficar em Portugal tinha que ter uma fonte de rendimento, foi esse o expediente encontrado.

A Guiné entrara no limbo no teu quotidiano, mais tarde foste solicitado para escrever em algumas publicações, registei que fora trabalho penoso ir aos escaninhos da memória e encontrar episódios aliciantes, ilustrativos da guerra em que te movimentaste, foi trabalho de pouca dura, sentiste alívio que tudo permanecesse no limbo. Até que um dia, no final de 1989, foste chamado ao teu diretor-geral que te informou que as autoridades portuguesas, no âmbito das reuniões ministeriais que estavam a ter com os novos países independentes de língua portuguesa, para articularem posições quanto à Cimeira da Terra, que se iria realizar no Rio de Janeiro em 1992, o Ministro da Guiné-Bissau, para completa surpresa do ministro português, pedira-lhe cooperação para aprofundar uma política de consumidores no país, coisa considerada urgente. Estava aprazada uma reunião para janeiro, em Bissau, iria a subdiretora-geral e fazia todo o sentido que tu participasses nessa missão, não mais de uma semana, era só para avaliar da viabilidade de tal cooperação e em que termos ela podia ser feita. Foste, foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre. Ficaste assombrado com o funcionamento da administração, uma diretora-geral do Comércio Externo recebeu-vos logo declarando que tinha pouco tempo disponível, precisava de ir para a sua empresa pois tinha um contrato de exportação vantajoso para tratar… E à porta do hospital Simão Mendes viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável. O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá, graças a um outro cooperante, o carro avariou mas ele arranjou uma camioneta de caixa aberta, desde que te aproximaste de Mato de Cão até tomarem a estrada que leva Canturé a Missirá, passando por Cancumba, tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população, tu, a tua subdiretora e o cooperante português (registei o nome, Dr. Francisco Médicis), vocês rodeados dos anciãos, mais atrás os homens mais novos e os jovens adultos, ao fundo as mulheres e as crianças. Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, olhando para os tetos das casas e recordando o trabalhão que dera a chegada de tanta chapa zincada, entregavam-te papéis à socapa, o professor pedia cadernos e lápis e todos os livros disponíveis, alguém te entregou uma folha a pedir equipamentos de futebol, faltavam sacos de cimento para acabar a reparação da mesquita, noutra folha alguém invocava generosidades pretéritas, precisava de dinheiro para comprar arroz, óleo e sabão, se podia dar uma ajuda de uns escassos milhares de pesos… E tu ainda ficavas mais magoado, não vieras preparado para tanto desembolso. A reunião prolongara-se até meio da tarde, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos, era um banido, tinha emprego na empresa Socotran, cortava madeira, mas hoje mesmo viria comigo para Bissau, estava pronto a partir para Portugal. E tu transido, o que responder a este homem que te tinha dado uma amizade desvelada, que naquela amaldiçoada noite de 16 de outubro de 1969 ia no guincho do Unimog 404 e que com o sopro da explosão da mina anticarro voara uns bons metros até aterrar em cima de um morro de bagabaga, trazido para Finete, tu abraçado a quem davas como moribundo, o rosto todo retalhado, em Bissau diagnosticado duplo traumatismo craniano, e que superara o sinistro, como era possível agora dizer-lhe que não? E regressaram a Bissau, o Cherno empertigado na caixa da camioneta onde iam as prendas da população, várias galinhas e sacos com mangas. Mais tarde, o Cherno veio para Portugal, tornou-se uma das mais queridas amizades, encontrou emprego num estabelecimento de eletrodomésticos na região de São Paulo, entre o Cais do Sodré e o Conde Barão, foi o que tu me ditaste, espero que tenha escrito bem.

Estou agora a alinhavar o essencial do que me disseste da tua experiência em 1991, que peripécias, cher Paulo! Eu vou tomando nota de tudo o que te vem à memória, não te quero mentir, há momentos em que me convenço que o que se escreve na literatura é menos empolgante do que se passa na realidade… E pergunto-me a mim própria como é que aquela experiência da Guiné te fez mais forte, te trouxe uma maior alegria de viver. Disseste-me um dia que teres perdido tudo o que trouxeras de Lisboa numa flagelação em que se incendiou a tua casa, não te trouxera grande inquietação, havia que refazer o quartel e tratar dos vivos, os teus trastes foram considerados coisa morta, e havia mais vontade de viver, seria ela capaz de fazer renascer roupas, livros, discos e recordações feitas cinza, e que a grande lição aprendida é que se a vida não renasce é porque se perdeu o respeito por nós e o amor pelos outros. Quando voltas a Bruxelas? Onde passaremos a Páscoa? Que saudades tenho de ti, a despeito de tanta companhia que me dás. Obrigado pela tua joie de vivre, mon adorable, bien à toi, Annette.

(continua)

Local em Mato de Cão onde se fazia a vigilância das embarcações militares e civis no Geba
Edifício dos CTT, Bissau, imagem de Didinho, com a devida vénia
A beleza acrobática da subida da palmeira, um fruto que pode custar a vida, imagem de Didinho, com a devida vénia
Pescador no Rio Grande de Buba
Ainda hoje estremeço nesta panorâmica da velha tabanca de Bambadinca, ao fundo à direita estão os estancos onde se comprava desde a graxa a biscoitos, ali tudo se encontrava, do lado esquerdo, situava-se a loja do Rendeiro, outro fornecedor, detinha uma caverna de Ali Babá para primeiras necessidades, e ao fundo, feita a cambança do Geba, a bolanha de Finete, ao fundo à esquerda vêm-se os armazéns do porto, tudo mudou, a decadência tomou conta de tudo.
Uma imagem que vale por mil palavras
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21769: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21794: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (34): Uma pequena homenagem a um grande piloto da FAP, o Honório (António Baltazar Dias, ex-Alf Mil Art MA, CART 1745, Ingoré e Bigene, 1967/69)



António Baltazar Dias, membro da Tabanca Grande,
desde  24 de setembro de 2020 (*)
 
 

1. Mensagem do  António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69):


 Date: quinta, 21/01/2021 à(s) 16:48
Subject: Uma pequena homenagem a um grande piloto da FAP

Caro Luís Graça,

Segue um pequeno texto que pretende ser uma singela homenagem a um grande piloto da FAP de que, quem passou pela Guiné, por certo se recordará.

Se entenderes poderás publicá-lo no blogue.

Um abraço

António Baltasar Dias


Ao Honório: O mais louco piloto da FAP
por António Baltazar Dias



Honório Augusto Brito da Costa (1941-1993): 
caricatura do livro de fim de curso, 1961/62, 
da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém, 
 




Quem não se lembra do Honório !? (**)

Era o mais louco e melhor piloto que tive o privilégio de conhecer.

Quando um avião se fazia à pista,  sabíamos já de antemão se se tratava ou não do Honório. As piruetas que antecediam a aterragem, eram a sua habitual assinatura.

Enquanto estive em Bigene, entre 1967/69, procurava ser sempre eu a recebê-lo na pista, quando ali se deslocava com o avião de sector ou por quaisquer outros motivos. Tínhamos, assim, uma relação mais próxima que, penso eu, ele deveria manter também com muitos mais camaradas que visitava nas suas inúmeras deambulações pelo território da Guiné.

Naquela época era conhecido em todo o território e as suas façanhas eram relatadas já de forma fantasiosa. As peripécias que lhe atribuíam,  ultrapassavam já, em muitos casos, a realidade.

Tal, porém, nunca foi suficiente para pôr em causa as verdadeiras capacidades e destemor do Honório, que todos reconheciam serem muito para além do que era considerado normal.

E, para que fique registado, relato em seguida duas situações de que fui testemunha presencial.

A primeira, durante uma operação da minha companhia ao corredor de Sambuiá, em que fomos fortemente embocados pelos guerrilheiros do PAIGC. Solicitado apoio aéreo, foram destacados para o local dois T6 que sobrevoaram o local da emboscada. Qual não foi o nosso espanto quando nos apercebemos que, de carlinga aberta, um dos pilotos fazia fogo de pistola sobre os combatentes do IN que debandavam só com a aproximação dos aviões. 

Soubemos depois que se tratava do 1º Sargento Honório. De quem mais se poderia tratar…? !

Outra das situações deixou-me marcas muito mais indeléveis. Mas para que se perceba bem o contexto há que relatar os seus antecedentes. Como atrás referi, procurava ser sempre eu a acolher o Honório quando das suas deslocações a Bigene e, por norma, eu comentava as “maluquices” que antecediam a aterragem.

Ele dizia-me sempre que estava pronto a levar-me para Bissau, quando eu pretendesse mas que teria que “pagar imposto”, leia-se “obrigar-me a vomitar”! Eu replicava que, com ele, nem pensar. melhor seria ir de barco ou mesmo a pé !

E assim se passaram muitos meses de comissão e muitas idas do Honório a Bigene.

Um dia, porém, tive que me deslocar a Bissau para tratar de assuntos da Companhia e, não obstante diversas iniciativas, não conseguia transporte para regressar para junto dos meus camaradas.

Após várias tentativas apenas foi possível transporte para o Norte numa DO-27, pilotada pelo Honório, que teria que ir a mais dois ou três aldeamentos e também a Farim, recolher um médico que era suposto ir para junto da minha Companhia.

Quando me viu, e se apercebeu que iria voar com ele, só me disse: “É hoje!"... E eu fiquei “ligeiramente” apreensivo, sem antecipar o que se seguiria.

E o que se seguiu … foi indescritível! Tentarei fazer um pálido relato do que ocorreu (pálido já, no início, porque no final da viagem eu deveria ter uma cor cadavérica…).

Após ter levantado voo de Bissau e na travessia do rio Mansoa, o Honório apercebeu-se de que uma canoa com supostos guerrilheiros estaria a atravessar o rio, pelo que a melhor solução seria derrubá-los com a asa do avião. Imaginem as acrobacias que efetuou! E só retomou a rota quando os ocupantes da canoa se atiraram ao rio,  para escaparem à hipotética colisão com a aeronave.

Depois foi o habitual espetáculo antes de cada aterragem, “para que todos soubessem que era o Honório o piloto”!

Em Farim embarcámos o médico. Eu já deveria ter uma cor ou branca ou amarelo - esverdeada e respondi à saudação do médico com um grunhido impercetível. O médico ainda não havia ouvido falar do Honório. Era, portanto, o seu batismo de voo naqueles propósitos…

Ao reentrarmos na DO-27 o Honório disse-me: “Vais para a tua terra, Bigene, portanto vamos fazer uma aproximação especial"…

De nada me valeria replicar, por isso preparei-me para o pior. E que é que me reservou o Honório? Uma aproximação rasante pela bolanha junto ao rio Cacheu e, depois aparecer de surpresa sobre a povoação sem que ninguém esperasse! 

Só que, a seguir ao voo rasante e sobrevoo da vegetação do tarrafe,  surgiram de repente duas palmeiras mesmo em frente do nariz da aeronave. Pensei: “É hoje!" …(Não o “pagar imposto”, como o Honório pretendia, mas o último dia da minha existência...).

Mas o Honório era o Honório. Numa rápida manobra inclinou a aeronave e passou com uma das asas entre as palmeiras, evitando assim a colisão. Depois foi o habitual, mas um pouco mais requintado espetáculo. Foi a “folha morta”, foi o voo rasante na pista, foi um mais não sei quê de manobras acrobáticas até aterrar com segurança.

Quando saí do avião,  lembro-me que o médico estava mais branco que a cal da parede e sem poder pronunciar palavra. Eu nem sei que cor teria e nem me atrevi a abrir a boca durante um largo período de tempo.

Muitos minutos depois, já meio refeito, quando o Honório se preparava para regressar a Bissau ainda tive coragem de dizer à despedida: “Não me fizeste pagar imposto !!!”

De facto não cheirava a vomitado no avião, mas ficaram a pairar uns odores igualmente bem desagradáveis no habitáculo…

Grande Honório ! É a minha singela homenagem a um grande piloto que naquele tempo equiparávamos a Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o famoso Major Alvega,  herói da nossa adolescência.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de setembro de 2020 Guiné 61/74 - P21387: Tabanca Grande (503): António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69): senta-se no lugar n.º 819 do nosso poilão