sábado, 24 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22135: 17.º aniversário do nosso blogue (3): Para muitos, e já lá vão décadas, [este Blogue] tornou-se um indispensável ponto de encontro (José Belo, ex-Alf Mil da CCAÇ 2391, Ingoré, Buba. Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70))


1. Mensagem do nosso camarada José Belo, luso-sueco, cidadão-do-mundo, membro da Tabanca Grande, nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia, e que na Guiné foi Alf Mil Inf na CCAÇ 2391, "Os Maiorais" (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos, hoje mesmo, esta mensagem alusiva ao 17º aniversário do nosso Blogue:

Sendo uma obra de humanismos vários feita, haverá limitações que possa ter tido, tem ou terá.
É humano.

Para muitos, e já lá vão décadas, tornou-se um indispensável ponto de encontro.
De ante-mão, quem o lê identifica, e se identifica, com o seu tema base... a Guiné.
Uma Guiné que, infelizmente, a maioria veio a encontrar em dramáticas situações de guerra.
Tão longe de uma Guiné em paz e prosperidade que certamente em nada se assemelharia.

Aquelas gentes, mesmo nas situações mais extremas, deixaram em muitos de nós (e quase me atrevo a escrever... na maioria de nós) um estranho e melancólico sentimento de saudade.
Certamente acentuado por (então!) ainda olharmos o mundo através dos jovens olhos de pouco mais de vinte anos.

Talvez.

O Blogue veio preencher perfeitamente os sentimentos acima referidos, somados à amargura por tudo o que de muito duro por lá se enfrentou. De um modo ou de outro todos fomos afectados.
Mantivemos estes gritos da alma reprimidos muitos anos. Demasiados.

Afectou-nos talvez mais do que muitos se atrevem a reconhecer perante eles mesmos.

Surge o Blogue. As suas histórias que em conjunto formam a História, não só a nossa mas de Portugal.

Parabéns ao Blogue, aos seus Editores.

Parabéns às amizades sinceras que através dele se vieram a formar. 
Amizades entre Camaradas que de outro modo nunca se teriam reencontrado... ou mesmo,... “encontrado” pela primeira vez!

Guiné 61/74 - P22134: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): Soneto em louvor do galo do IPO - Lisboa



Lisboa > IPO - Instituto Português de Oncologia Dr. Francisco Gentil > 23 de abril de 2021 > Galináceos à solta...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Não é de todo insólito o doente do IPO-Lisboa tropeçar de manhã, quando vai a correr para o seu tratamento, com um pequeno bando de galináceos (galos, galinhas, frangos, pintos, à mistura com pombos e melros...) a cirandar à volta dos diversos pavilhões, nos espaços verdes...

As aves são residentes do Instituto, que vai fazer 100 anos em 2023. Não sei se há aqui capoeiras, vejo, quando por lá passo, que a bicharada  tem "livre trânsito", e prioridade sobre tudo e todos, incluindo as ambulâncias que chegam, às dezens, da área metropolitana de Lisboa e de todo o sul do país... (Imagino o sofrimento de que vem às 5 da manhá, do Alentejo profundo, partilhando a ambulância com mais mais um ou dois doentes, para estar aqui a horas para a sua quimieo ou a sua radioterapia.)

Vários galos, com voz operática, dominam os seus haréns e parece que, à noite, perturbam o sono dos vizinhos da rua Prof Lima Bastos... Mais importante que tudo, o galinheiro do IPO dá um nota de ruralidade e humanidade àquela antiga quinta da Casa de Cadaval, de sete hectares, onde hoje trabalham 1900 profissionais e se tratam, anualmente,  57 mil doentes... e onde às 8h15 da manhã já não há lugar de estacionamento...

Gosto da divisa do Instituto: "Quando só se vê cancro, nós vemos as pessoas"... É inspirador e dá-nos confiança. E o simples ouvir do cantar dos galos e do cacarejar das galinhas dá-me paz interior quando caminho para o pavilhão de radioterapia nestes últimos dois meses, em plena pandemia de Covid-19... É o princípio da alegria contra a dor, da vida contra a doença e a morte.... Pequenos detalhes que fazem diferença no dia-a-dia do doente oncológico. LG

O galo do IPO


Cocorococó!... O galo do IPO

Deixa uma nota de alvoroço matinal

Para quem está aqui a tratar-se do seu mal,

E que vem de longe, está triste e sente-se só!

 

Não é o galo cata-vento, fanfarrão,

Todo empertigado lá na torre sineira,

Mas o pica-no-chão, fora da capoeira,

Cujo cantar nos alegra o coração.

 

Contra o cancro, o galinheiro da Palhavã

Também faz figas connosco, é solidário,

Bela trupe de aves canoras, logo p'la manhã!

 

E a gente lembra-se da aldeia natal,

E da igrejinha com o seu campanário,

E da bicharada toda... lá p’lo quintal.


Lisboa, IPO, Serviço de Radioterapia, Unidade 3,

23 de abril de 2021

Luís Graça



2. A propósito do galinheiro de Palhavã, fui encontra no Portal da Queixa, a seguinte reclamação de um morador, vizinho do IPO-Lisboa, António, de seu nome, com data de 9 de abril 2021

Galos a vaguear no IPO

Moro na rua Prof. Lima Basto, mesmo em frente ao IPO de Lisboa. 

O que no inicio achei engraçado, ver um galo a vaguear dentro do recinto do IPO, está se a tornar um inferno. Passou de um galo para cerca de uma dezena de galos dentro do recinto da instalação, se já é mau ouvir durante todo o dia uma dezena de galos a cacarejar,  pior é quando, quase todas as noites, somos acordados por lutas entre eles ou outro tipo de barulhos ensurdecedores que emitem.

Na noite passada,  durou mais de uma hora começando por volta das 2h da manhã, com os barulhos infernais acima descritos.É impossível descansar de dia bem como dormir de noite.

Sendo este um ambiente hospitalar, porquê a utilização destes animais a vaguear pelo recinto? Para nós, moradores, está se a tornar impossível conviver com esta situação, sendo privados de descanso e sono. Solicitamos fim a este inferno.
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Guiné 61/74 - P22133: Blogpoesia (730): "Os ex-Combatentes são fixes" de Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)


1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Bom dia Carlos Vinhal
Pelo facto de ter andado bastante ocupado, pouco tempo tenho tido para te enviar alguns dos meus trabalhos, sempre dedicados à malta e à Tabanca Grande.
Desta vez, o que escrevi é; PARA TI CAMARADA.

Um grande abraço para todos os Tertulianos e em especial para os Chefes de Tabanca.
Albino Silva



OS EX-COMBATENTES SÃO FIXES

Eu era o 01100467
Sou o autor desta escrita
Esperando agora passar
Sempre que haja revista.


Não precisas de formatura
Para estas coisas ler
Podes ler desde manhã
Até ao toque de recolher.


Tudo o que aqui escrevo
Bem à tropa me refiro
Pois podes ler descansado
Pois não darei mais um tiro.


Ao escrever tudo isto
Não pude fazer mais nada
Eu não gastei munições
Nem descavilhei a granada.


Com muito mais para dizer
Tenho mais para contar
Mas com o carregador vazio
A G3 não vai mais disparar.


Não falei de muitas coisas
O que fiz foi às ajudas
Sem guerra não disparo mais
Nem ataco mais bajudas.


Camaradas meu amigos
Se disparei eu sei bem
Mas aqui no que escrevo
Não foi para atingir ninguém.


Os Ex-Combatentes são fixes
Pois de mal não tem nada
Por isso eu não disparei
Nem sequer uma rajada.


Não se espantem com a escrita
Nem de coisas como esta
Pois o Bino não é escritor
E muito menos poeta.


Eu não sou bom a escrever
E qualquer erro que passe
Não se espantei por favor
Pois só tenho a quarta classe.


Gosto de escrever em versos
E tenho mais para escrever
Com a certeza porém
Que serei o primeiro a ler.


Por vezes vou escrevendo
Para depois tudo guardar
São livros que vou escrevendo
Mas sem nenhum editar.


Agora vou sim disparar
E deste fogo não foges não
Para todos um bom abraço
Disparado do coração.


É assim que eu disparo
E sem querer ferir alguém
Já entreguei minha G3
Não disparo a mais ninguém.


Albino Silva
01100467
CCS/BCAÇ 2845 - Teixeira Pinto
Guiné - 1968/70

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22113: Blogpoesia (729): "Arroz doce"; O brilho dos brasões"; "Gradeadas as portas e janelas" e "Bom rasto", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P22132: Os nossos seres, saberes e lazeres (449): Quando vi nascer a Avenida de Roma (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Não só de ver nascer a Avenida de Roma vive aquele criançola que frequenta a Escola Primária N.º 151, que colabora nos abastecimentos calcorreando a Rua de Entrecampos, que visita todo o Bairro Social de Alvalade; joga-se à bola com os meninos de Telheiras ali bem perto onde houve um campo pelado do Sporting, e não muito longe onde nasceu o primeiro Estádio do Benfica, o Campo Grande presta-se a belos passeios, tem arvoredo majestoso, canteiros floridos, esculturas, dois lagos, além de ser flanqueado por uma arquitetura já decrépita, que os moços vão bisbilhotar nos seus passeios em torno do jardim: do lado esquerdo a Fábrica de Massas Itali, ao lado de prédios que já viveram melhores tempos, muito mais tarde serão terraplanados que deram origem àquele espaço onde posicionaram um edifício da Câmara Municipal de Lisboa e outros de habitação, a puxar para o chique, segue-se a Biblioteca Nacional, era um semi-descampado, depois os restos de casario oitocentista, ainda lá está um prédio do Colégio Moderno, segue-se uma vivenda Arte Nova, passava-se a Estrada de Malpique, as livrarias, depois da Avenida Alferes Malheiro mais moradias e casas apalaçadas, numa delas até se filmou Maria Papoila, o velho edifício da Junta de Freguesia do Campo Grande adossado ao Palácio Pimenta, corríamos até ao interior do Campo Grande e mirava-se com imenso prazer aquele lago que já vinha do passado. Pois muito do passado estava extinto, só restava um retiro, o Quebra-bilhas, já não havia a feira, já era raro passar gado para o Mercado Geral de Gados, que caminhava para a extinção, ninguém referia quermesses, batalhas de flores nem paradas militares, o Jóquei Club era para nós longe e desinteressante.
A idade contada, a proximidade também, só raramente se passeava até ao Campo Pequeno ou se subia a Avenida das Forças Armadas ou se descia a 5 de Outubro. A alteração de fundo é mesmo o alcatroamento da Avenida dos Estados Unidos da América e o fim da Quinta do Visconde de Alvalade. As classes médias vão ter mais espaço para desfrutar, começa a saga.

Um abraço do
Mário Beja Santos


Quando vi nascer a Avenida de Roma (5)

Mário Beja Santos

Enquanto a Avenida de Roma vai nascendo prodigiosamente em direção à linha do comboio, fora das horas passadas na Escola Primária N.º 151, e das muitas brincadeiras na Quinta e Olival do Sr. Visconde de Alvalade, pelas múltiplas deambulações entre os quintais do bairro, jogos de caricas, peão e berlinde, há o conhecimento fascinante do Jardim do Campo Grande. O meu guia e comentador é a minha mãe. O ponto de partida dos passeios é mesmo junto à Estátua dos Heróis da Guerra Peninsular, os talhões estão bem cultivados com belas flores, ela vai comentando as esculturas que vemos na passagem, caso do busto do ator António Pedro. A minha mãe conta que por ali D. Sebastião passou revista às tropas que depois largaram do Tejo a caminho de Alcácer Quibir, passamos o primeiro lago, os cisnes percorrem as águas em majestade, atravessamos a Avenida Alferes Malheiro a caminho do segundo lago, há sempre comentários para os edifícios plantados nas margens do jardim, há casas apalaçadas, os comentários na viagem para lá são habitualmente sobre o que se apresenta do lado esquerdo, ainda não se erigiu a Biblioteca Nacional, passamos ao lado da Estrada de Malpique, maravilho-me com as montras das livrarias, nem me passa pela cabeça que serão santuários da minha adolescência, percorre-se o lago do Campo Grande, é domingo, enorme a vozearia da mocidade nos botes, o restaurante lá em cima, ainda não apareceu o Caleidoscópio, há avenida das palmeiras, a minha mãe aponta ao fundo e diz tratar-se da Alameda das Linhas de Torres, mais casas apalaçadas, sobressai uma em tristonho abandono, a minha mãe fala-me no Palácio Pimenta, passamos agora para outro lado, e com surpresa minha vamos entrar numa vivenda, é um museu, tem ao lado o Asilo D. Pedro V, obra devotada de proteção à infância desvalida, pode ter sido a ideia inicial, mas recordo perfeitamente de ter visto velhinhos, mas também estou confuso, também passei por ali e ouvi o gralhar de crianças uniformizadas de bibe. E continuamos a subir, já conheço, é ali que eu frequento a catequese, a Igreja dos Santos Reis Magos. Lerei um dia uma publicação chamada “Guia de Portugal Artístico, Lisboa, Jardins, Parques e Tapadas”, a sua autora era Maria Rio de Carvalho, e retenho uma frase bombástica: “O Campo Grande, na beleza apoteótica das suas áleas, tantas vezes perfumadas do aroma subtil ou penetrante das mais lindas flores, perdura ainda a miragem evocativa do árido Campo de Alvalade, restando a sua corpulência gigante à surpresa maravilhada das renovações!”.

Lá para cima, há outro mundo em fermentação, a Cidade Universitária e o Hospital de Santa Maria, caminhamos agora em direção a casa, passamos pela Pastelaria Nova Iorque, tenho direito a um lanche, jamais esqueci o nome do cabeleireiro por cima da pastelaria, Instituto de Beleza Cleópatra, do outro lado ainda resta uma vivenda pombalina, será derribada, terá depois outra pastelaria, a Granfina, muito frequentada por namorados, fazendo esquina com a já bem alardeada Rua de Entrecampos. E voltamos pelo lado do Campo Grande. Agora tudo mudou de rosto, adeus padaria, adeus esquadra da polícia encostada à Rua Aboim Ascensão, há muito que desapareceu a linha do elétrico, o quarteirão seguinte parece que foi engolido por um tremor de terra, nada sobreviveu. Muitas mudanças houve nesta cintura protetora do Bairro Social de Alvalade, ele permanece incólume, a despeito de muitos proprietários envidraçarem as varandas, há muitas obras, pena é termos jardins tão maltratados, melhores dias virão.
Agora sim, vamos até à Avenida de Roma, há muito recreio à nossa espera.
Museu Rafael Bordalo Pinheiro, no fim do Campo Grande, uma posição quase frontal com o Museu de Lisboa – Palácio Pimenta
Duas peças de cerâmica inesquecíveis, explico porquê. A raposa e a cegonha esteve durante muitos anos à entrada do Museu, que se fazia então pela porta principal, a peça estava exposta no jardim, depois foi retirada para restauro e está hoje no interior. Não sei como nem porquê, a minha mãe adquiriu uma cópia deste bule da cerâmica caldense, é bonito que se farta, mesmo com algumas falhas gosto de o ver em exposição
Campo Grande, a sempiterna avenida das palmeiras, imagem de tempo recente
O Palácio Pimenta, conheci-o fechado, esteve abandonado até 1962, a Câmara de Lisboa adquiriu-o nessa altura e transformou-o em Museu da Cidade
Igreja dos Santos Reis Magos, Campo Grande, imagem muito antiga, não conheci o lugar deste modo, o muro foi derribado e destruídos todos os prédios à volta, as árvores sim, permanecem.
Igreja dos Santos Reis Magos na atualidade

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22110: Os nossos seres, saberes e lazeres (448): Quando vi nascer a Avenida de Roma (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22131: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte VI: O baptismo de fogo no Xime (17/8/1965, e a Op Avante, ao Buruntoni (em 29-30/8/1965) com os primeiros mortos



Guiné > Região de Bafatá > Sector de Bambadinca (L1) > Xime > Carta do Xime (1961) > Escala 1/ 50 mil > Posição relativa de Enxalé, Xime, Madina Colhido, Gundagué Beafada, Darsalame (Baio) e Buruntoni, a sula da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês (na Foz do rio Corubal).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)




Guiné > Região de Bafatá > Xime > CCAÇ 1439 (1965/67) > 30 de agosto de 1965 > O Armando Assunção Coutinho ("Penalti"), soldado do BCAÇ 697, ferido no decurso da Op Avante. Foto: fonte desconhecida.


1. Continuação da publicação da série CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) (*)



CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque)



Parte VI - Actividade operacional 
 durante a estadia da CCaç 1439 no Xime, de 17 de agosto a 5 de setembro de 1965


(i) Baptismo de fogo: 17 de Agosto de 1965, ataque ao aquartelamento do Xime

Foi o nosso baptismo de fogo. Diziam que sempre que chegavam “periquitos",   estes se deviam preparar pois o IN vinha sempre “dar as boas vindas’ e testar.

Copio o que consta no "relatório oficial”:

"Dia 17 de Agosto de 1965, ataque IN ao aquartelamento do Xime.

O ataque desenrolou-se com bastante violência com várias granadas de morteiro 60, rajadas de PM. As NT reagiram com fogo violento, não tendo o IN causado qualquer abalo no animo das NT. A CC1439 teve o seu baptismo de fogo.

Resultados obtidos - Do rebentamento de uma granada de morteiro 60 IN, resultaram dois feridos sendo um deles de muita gravidade, posteriormente evacuado para o HMP.  Foram eles: Soldado nº 5266865, João Pestana Vieira,    e Soldado nº  7387965, João Virgílio Nunes.

Da reacção das NT desconhece-se se houve baixas nos elementos IN atacantes.

Diversos - Distinguiu-se pelo seu valor e coragem o Furriel Mil. Manuel Nunes Geraldes."



Permito-me juntar duas notas complementares a este relatório para melhor e mais completa informação:

O Furriel Mil mencionado era o enfermeiro da CCaç 1439. Não havia nenhum médico e, como se veio a confirmar várias vezes depois durante os dois anos que se seguiram, a par da sua coragem e dedicação sem limites, ele tinha uma preparação profissional extraordinária, bem mais além de simples enfermeiro. 

Nunca mais soube nada do soldado evacuado para Bissau. Mas lembro-me bem do ataque e do tiroteio cerrado, ( mesmo em comparação com muitos outros que vim a experimentar depois). Eu,   embora não sentisse medo em demasia, corria quase desvairado dum canto a outro do acampamento: era a primeira vez que "a coisa era mesmo a sério” e eu queria ter a certeza de que toda a gente estava cumprindo o que se esperava de cada um. 

Fui interpelado por alguém que me disse haver feridos; corri e, quando cheguei ao local, o nosso furriel enfermeiro Geraldes já lá estava prestando os seus serviços. Ao perguntar-lhe qual a gravidade,   respondeu-me que ia fazer o que podia, mas que era melhor chamar o helicóptero imediatamente. 

Eu pensei que o ferido talvez não aguentasse muito tempo; e lembrei-me do pedido da mãe dum soldado, não sei qual, que no Funchal no dia da partida me tinha dito: "Oh Senhor alferes, cuide do meu filho …. ele vai consigo, por amor de Deus traga-me o meu filho de volta!"…  

E ali estava eu, sem saber o que fazer, talvez este não voltasse mais. Em outras situações haveria um médico e talvez mesmo um padre para o encorajar com esperanças e apoio. E fui buscar uma imagem de Nossa Senhora de Fátima que a companhia tinha trazido: sem palavras, que nem sei se ele estava suficientemente consciente, segurei durante alguns minutos a imagem em frente dele… Queria que,  além do cuidado médico,  ele sentisse também algum apoio moral e essa foi a única maneira que eu lha podia dar.

Outra coisa que merece ser mencionada e não vem neste relatório: neste “baptismo de fogo”, vim a confirmar o que já suspeitava: o nosso capitão não era para brincadeiras; na manhã seguinte , depois de termos feito buscas e vasculhado as vizinhanças sem qualquer resultado, ele disse-nos que tinhamos de "responder imediatamente e ir à procura deles” para mostrar àqueles c...  que não nos tinham metido medo e contassem connosco… E logo mandou chamar o Adão, um caçador nativo, que, diziam, conhecia bem toda a região para saber do que se poderia fazer …


(ii) Operação Bravura: de 19 a 24 de Agosto, na zona do Xitole


Dois dias depois estávamos envolvidos na Operação Bravura , junto com outra companhia (, a quem pertencia não me lembro,   e que o relatório também não identifica, mas que depreendo, pelo que se segue,  que fazia parte do BCaç 697)-

Tratava-se de uma "operação de reconhecimento e combate” na Zona de Xitole (de 19 a 24 de Agosto).

Resumindo o que vem no relatório:

"Chegados a Corubal,  foram detectados vestígios de presença IN tendo sido enviadas pequenas colunas de reconhecimento , foram assinaladas duas sentinelas, tendo sido eliminada uma. A outra detectou as NT e deu o alarme", Depois de várias manobras,  continua o relatório, "foi feita uma batida a toda a zona; foi destruída uma tabanca com os seus haveres, bem como um extenso campo de milho. Durante a retirada as NT foram emboscadas por duas vezes"...

Resultados obtidos : "foram causados dois mortos e três feridos confirmados ao IN" e  "capturados uma metralhadora ligeira, três Mauser", bem como diversas granadas ofensivas e defensivas e outras munições . "Não houve baixas das NT".

Diversos: foi salientada a audácia e sangue frio do soldado desempanador 3225/63, Armando Assunção Coutinho, da CCS do BCaç 697, voluntário para esta operação. 

Este soldado foi louvado pelo Exmo Comdt Chefe. Bem como o caçador nativo do Xime, Adão Camala, pelo seu valor mais uma vez demostrado nas operações em frente ao IN. "Todo o pessoal constituinte da Operação revelou qualidades militares de disciplina e com vontade de vencer".

(iii) Operação Avante: 29-30 de agosto de 1965, na zona do Buruntoni


Dia 29 e 30 de Agosto de 1965, realizou-se a Operação Avante.

Esta foi, na minha memória, uma das mais “difíceis”,  talvez a mais perigosa operação em que a CCaç 1439 esteve envolvida, opinião esta que é partilhada / confirmada por outros elementos desta Companhia que nesta e outras operações estiveram envolvidos. 

O próprio relatório da CECA,Volume 7, Tomo II, Guiné (página 349),  ao falar das actividades da CCaç 1439, menciona estas duas operações, Avante e Bravura,  como as dignas de maior destaque.

Vou copiar entre  algumas partes do "relatório oficial” mas porque fiz parte "não insignificante" desta operação que me ficou bem na memória, pelo mesmo relato de outros com quem tive recentemente ocasião de reviver estes momentos, reservo-me o direito de expôr a minha/nossa memória e versão, cujos detalhes não são exactamente a versão contada /escrita neste relatório.

(...) "Em 29 saiu do Xime a CCaç 1439 a fim de realizar a operação Avante que consistia numa patrulha de reconhecimento e combate à região, margem esquerda do Rio Burontoni junto da nascente."

E a descrição que se segue no relatório parece por vezes mesmo até contraditória nos seus detalhes. Pelo que vou descrever o que eu e outros , como por exemplo o furriel Lopes , lembramos com muita nitidez e precisão:

Saimos do Xime tendo o Capitão Pires que comandava a operação decidido que fosse o meu pelotão ( o 2º pelotão) a seguir na frente da coluna . "As forças da CCaç 1439 foram reforçadas com um Grupo de Combate da CCav 676, seis caçadores nativos e um voluntário da CCS, soldado 3325/63, Armando da Anunciação Coutinho."

(...) "A força partiu do Quartel do Xime a pé, e depois de articulada (com a outra CC de reforço) progrediu ao longo do Rio Gundagué, contornou Gundagué Beafada, passou ao largo do Darsalame (Baio)  e, antes de alcançar a povoação de Burontoni, (...) atingiu umas casas de mato, situadas na margem direita do Rio Burontoni, acerca de 200 metros deste".

O relato que se segue, sem dúvida bem intencionado, é um pouco confuso. E por isso permito-me descrever por minhas palavras o que vi e vivi, sem intuitos de aumentar ou diminuir:

O IN parece ter sido avisado com antecedência e estava definitivamente à nossa espera, tendo preparado uma bem pensada emboscada: antes, mas já perto do objectivo, talvez com o intuito de nos despistarem,   simulando desconhecimento da nossa aproximação, ouvimos conversas aparentemente despreocupadas, mas de lugar bem fora das nossas vistas. 

O meu pelotão, com a secção do furriel Lopes à frente em ponta, ia na frente; e connosco nesta secção iam dois guias nativos, um deles o Adão, em cuja experiência contávamos e em quem tinhamos toda a confiança; seguiam-se os outros dois pelotões da CCaç 1439 e o grupo de reforço em último lugar. O Capitão Pires vinha um pouco mais atrás do meu pelotão, talvez porque isso lhe daria mais facilidade de controle e comando.

Caminhávamos muito lentamente e de repente rebentou um ataque infernal, sobretudo de metralhadoras e pistolas metralhadoras à nossa frente. A emboscada estava preparada para à base de fogo de metralhadora a curta distância,  nos aniquilarem antes que tivéssemos possibilidades de nos defendermos. 

 No momento em que nos atirávamos ao chão,   ainda vi o corpo cair,  já descontrolado, do guia nativo Adão e de outros dois cujos ferimentos exigiram rápida evacuação de helicóptero para Bissau. 

Felizmente que as granadas de morteiro do IN foram cair mais longe de nós. Tivesse o IN juntado granadas de mão ( como está erroneamente escrito no relatório) ao fogo de metralhadoras no ataque ao meu pelotão que ia na frente,   e teríamos tido muitas mais baixas. 

Felizmente para as forças do meu pelotão havia um pequeno desnível no terreno que nos dava alguma proteção. Mas o fogo era muito cerrado e infernal. O Capitão Pires confessou-me mais tarde,  quando chegámos ao quartel,   que naquele momento pensou que toda a 1ª secção ( na qual eu estava, junto com o furriel Lopes) e talvez a maior parte do meu pelotão, estavam perdidos e ele nada podia fazer para nos salvar. 

Um dos soldados nativos, o guarda costas do furriel Lopes, Mamadu Jaló , ao ver o fogo cerrado de que estávamos a ser alvos, atirou-se para cima dele para o proteger, pondo-se ele em risco maior de ser atingido. Mas o furriel Lopes saiu imediatamente debaixo dele para poder usar a sua arma. 

Eu vi que estávamos perdidos se continuássemos naquela posição, pois quase não podíamos usar as nossas armas; mas tínhamos de fazer algo para inutilizar aquelas metralhadoras à nossa frente. No meio daquele inferno tive uma ideia e berrei tão alto quanto pude a todos, especialmente ao furriel Lopes e ao meu guarda-costas Baptista e aos outros que estavam perto de mim: "Granadas de mão e saltar"!...E  foi a nossa salvação. 

Lançamos as nossas granadas e, ao rebentar das nossas granadas, nós saltámos. O IN esperava tudo menos ver saltar de repente uma dúzia de homens/demónios à frente deles,  vomitando fogo para cima deles; espantados, nada mais fizeram que levantar e fugir loucamente à nossa frente para o interior da mata, sem sequer levarem as armas, enquanto nós corríamos como loucos atrás deles… 

Entretanto, os outros pelotões que estavam um pouco mais atrás, fizeram o mesmo levantando-se imediatamente com o Capitão Pires à frente,  a perseguiram o IN em frente e lateralmente, numa corrida /perseguição louca. 

Ouviram-se depois muitos tiros e rebentamento de granadas ao longe que não sabemos a que atribuir, uma vez que não tivemos conhecimento de qualquer outra operação nas redondezas naquele dia.

Não encontramos IN mortos, mas enquanto esperávamos os helicópteros, tivemos tempo de ver vários rastros de sangue, do que depreendo terem sido várias as baixas no IN .

As NT sofreram três mortos: Adão Camada, caçador/guia do Xime ; soldado 1880865, José Manuel Mendonça; soldado 833 3265 Tolentino de Gouveia;  e dois feridos graves: soldado 32265/63 Armando Assunção Coutinho ("Penalti"); e caçador nativo Braima Indjai; e vários outros feridos e acidentados de menor gravidade.

O “Penalti” não era madeirense, mas estava adido à nossa companhia. Mesmo seriamente ferido no braço,  não parou de fazer fogo louco. Não me recordo disso, mas outros que estavam comigo contaram-me. (não sei quem é o autor da foto que acima se publcia, que com a devida vénia copio, pois em boa hora apareceu no nosso blogue.)

O "Penalti" era “pau para toda a obra" ou "pano para toda a manga” e onde houvesse alguma chance de haver barulho ele era voluntário. No quartel andava sempre com um macaquito às costa (o “Benfica”) de que só se desligava quando saía para o mato, deixando-o acorrentado no quartel até que ele voltasse.

Consta (não posso afirmar a veracidade do que segue; assim me contaram, e conhecendo a fonte acredito que tenha sido verdade e portanto aqui o deixo, para que não passe ao esquecimento) que, não sei como (pois o 1º  ataque a Porto Gole foi em Marco de 1966) ele estava em Portugal quando o corpo do alferes Maldonado, vítima desse ataque, foi a enterrar em Coimbra. 

Ele soube e foi ter com a família a quem disse que estava em Porto Gole neste dia fatídico; que ao ver o Alferes Maldonado ferido pegou nele para o ajudar e que ele lhe faleceu nos seus braços.  Evidentemente que a mãe do Maldonado ficou emocionada e que depois tratava o ‘Penalti” como a um filho. Que permaneceu em Coimbra uns dias e que foi visto a andar de cavalo na quinta da família do falecido Maldonado. (**)

Consta ainda (mais uma vez não sei se é verdade ou não…) que voltou para o hospital onde estava em tratamento, mas, achando-se já suficientemente curado, como não lhe “davam alta”,  ele fugiu do hospital; e não sei como, conseguiu passagem para a Guiné num navio e apresentou-se em Enxalé para continuar o seu tempo de serviço na Guiné. 

Verdade ou não, mas que ele era homem para tudo isto… isso era sem dúvida nenhuma!


(iv) O dramático regresso da Operação Avante



O regresso foi exaustante, carregando às costas os nossos falecidos. O terreno e as circunstâncias eram as piores que se podem imaginar e a cada instante esperávamos sermos emboscados. Pelo que o Cmdt Capitão Pires pediu o apoio da Força Aérea. 

Ainda hoje lembro o respirar fundo e a sensação de alívio que senti quando dois aviões bombardeiros apareceram; o trajecto de regresso foi longo e creio que os dois aviões tiveram de ser revezados por outros, mas não nos deixaram mais durante todo o trajecto até chegarmos já bem perto do Xime.

Lembro que no dia seguinte, na formatura da manhã, o nosso Capitão Pires,  falando à Companhia inteira,  enalteceu o valor e coragem que todos tinham dado provas no dia anterior. Mas que queria de um modo especial mencionar o João Crisóstomo, o furriel Lopes e todo o 2º pelotão, que num momento, que parecia ser um momento trágico para a Companhia, tinham transformado essa situação de desespero numa acção heróica pela qual toda a Companhia lhes estava agradecida.

Foram vários os condecorados em resultado desta operação : Adão Camala, João Crisóstomo, António Lopes, Nauser Sana, Brama Lai; e outros foram “louvados". 

Ainda hoje é minha opinião que bastantes outros , nomeadamente todos os membros da secção do furriel Lopes e os que nesta operação perderam a vida mereciam o mesmo reconhecimento.

(v) Dia 5 de Setembro de 1965: Operação Corça, na zona do Enxalé

Um grupo de combate da CCaç 1439 deslocou-se do Xime para o Enxalé para participar na Operação Corça, reforçando a CCaç 1556. Esta operação é mencionada no resumo da CCaç  1556.

(Continua)
 
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22098: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte V: Destino: Xime.... E um levantamento de rancho que acabou à bofetada...

(*ª)  Sobre o malogrado alferes mil at inf, António Aníbal Maia de Carvalho Maldonado, 1ª CCAÇ / BCAÇ 697 (Fá Mandinga, 1964/66), morto em combate, em Porto Gole, em 3 de março de 1966, ver aqui:

22 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19517: In Memoriam (340): Até sempre, 'comandante' Jorge Rosales (1939-2019)

Guiné > Bissau > Praça do Império > Novembro de 1965 > O Jorge Rosales mais o Maldonado, junto ao monumento "Ao Esforço da Raça" ... "O alf mil Maldonado, meu camarada desde Mafra e meu substitulo em Porto Gole, (...) faleceu em março de 1966, em consequência do rebentamento de uma morteirada IN que o atingiu em cheio, no aquartelamento de Porto Gole". De seu nome completo, António Aníbal Maia de Carvalho Maldonado, morreu no dia 4/3/1966. Natural da Sé Nova, Coimbra, foi inumado no cemitério da Conchada.

Foto (e legenda): © Jorge Rosales (2010).. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]  


(,,.) No seu tempo (Março de 1966), morreu em Porto Gole o alf mil António Maldonado, que o veio substituir. O Maldonado, de Coimbra, estava em Bolama. Era alf mil da 1ª CCAÇ / BCAÇ 697. Eram amigos, tinham estado em Mafra. Tinham combinado revezar-se ao fim de um ano. O Maldonado vinha para Porto Gole e o Jorge ia para Bolama… No meio disto, há um coronel que vem dificultar o acordo de cavalheiros. Enfim, uma história que é preciso contar com tempo e vagar.

O Maldonado é morto num ataque violentíssimo a Porto Gole, depois de as NT terem feito um ronco nas áreas controladas pelo PAIGC… Ferido, aguardou em vão o heli que só podia vir de manhã. A mãe do Jorge [Rosales]  foi ao enterro, em Coimbra. O cadáver foi rapidamente trasladado, contrariamente ao que acontecia na época. Esta morte de um camarada e amigo abalou-o. (...) 

Guiné 61/74 - P22130: Parabéns a você (1955): David Guimarães, ex-Fur Mil Art MA da CART 2716/BART 2917 (Xitole, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22121: Parabéns a você (1954): António Baltazar Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Bigene, 1967/69)

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22129: 17.º aniversário do nosso blogue (2): O “nosso” Blogue faz anos! - Faz 17 anos, está quase a entrar na maioridade (Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF (Piche e Bissau, 1970/72)


1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 23 de Abril de 2021, a propósito do aniversário do nosso Blogue que hoje se comemora:



O “nosso” Blogue faz anos!

Num comentário de hoje o “timoneiro” Luís relembra que o Blogue faz anos.
Faz 17 anos, está quase a entrar na maioridade.

Desde então já muito, muitíssimo, foi escrito, comentado, muitas fotos ilustraram as palavras, os locais e acontecimentos, muitos livros lá deram à estampa, muita poesia foi apresentada, muitas outras iniciativas foram potenciadas, publicitadas, acarinhadas, muitos estudos com maior ou menor profundidade foram apresentados, muita polémica (bastantes vezes desnecessária) foi desenvolvida.
Tudo isto foi e é a vida do Blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné”.

Tem sido dito e redito que o Blogue foi “apropriado” pelos seus membros. Quase todos têm esse sentimento de que “o Blogue é nosso”. E têm razão! Se o Luís e os membros iniciais têm o mérito de o terem começado, a verdade é que fomos todos nós, os que de alguma maneira o engrossaram com as suas contribuições, o ampliámos e lhe fomos dando a alimentação e a visibilidade, que contribuíram para a sua longevidade. E isso não é de modo algum despiciendo pois como as pessoas em geral se movem por modas o que agora é mais apetecível são as frases e as ideias curtas, os “twits”, os “faces”, etc., pois os tempos são de grande frenesim e não há tempo nem paciência (nem capacidade…) para ler mais que 4 ou 5 linhas de texto. Bastam umas quantas “bocas”, umas provocações e já está.

Sobre o tema da guerra em África existem, ou existiam, muitos Blogues. Quase todos relacionados com as Unidades funcionais (do Batalhão, da Companhia, etc.) de quem promoveu esse repositório de memórias que, no geral, começaram por ser individuais ou do coletivo restrito. Ao nível do “Facebook” são os inúmeros os sites, muitos deles em “concorrência” de seguidores.
O que mais distintivo tem o nosso Blogue é o seu “livro de estilo”, as suas regras. É verdade que as regras se fizeram para serem respeitadas e se assim fosse tudo seria muito bom. Mas também há quem pense que são para serem “quebradas”, torneadas, usadas nas partes convenientes. Afinal há de tudo e o Blogue também é realmente uma boa amostra da sociedade.

Não há muito tempo esta questão, de ser ou não representativo, foi aqui colocada. É verdade que a representatividade é sempre questionável mas creio muito sinceramente que, pese embora o âmbito das questões que normalmente ocupam os conteúdos, no essencial tendo por pano de fundo a Guiné e as nossas vivências por lá, o universo dos que por aqui vão contribuindo e dos que apenas “espreitam” é bem ilustrativo da diversidade e pluralidade de opiniões, conceitos, participações. Há de tudo!

Se quisermos ser mais sentimentalistas para procurar os benefícios do Blogue, podemos lembrar quantas confissões de “blogueterapia” já foram produzidas, quantas romagens de saudade traduzidas nas visitas que já foram feitas e aqui indiretamente incentivadas, quantas iniciativas de solidariedade, quantas colaborações e contribuições para estudos mais ou menos académicos, quantas “tabancas gastronómicas” foram criadas, revelando por si mesmas a satisfação de encontrar pessoas que passaram por situações iguais ou semelhantes.

Por tudo isto só me posso sentir grato por, em boa hora, ter descoberto o Blogue e através dele ter aumentado o meu conhecimento geral e até particular em muitos aspetos da “guerra da Guiné”, por ter podido conhecer pessoas que estimo verdadeiramente, seja pela sua grandeza humana, intelectual, de solidariedade, de amizade genuína.

O Blogue deve continuar. O Blogue tem que continuar.

Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22128: 17.º aniversário do nosso blogue (1): Meu caro Luís Graça, tu és um "querido mano" para todos os que têm o privilégio de te conhecer (João Crisóstomo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missira, 1965/67)

Guiné 61/74 - P22128: 17.º aniversário do nosso blogue (1): Meu caro Luís Graça, tu és um "querido mano" para todos os que têm o privilégio de te conhecer (João Crisóstomo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


1. Mensagem do nosso camarada João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), com data de 20 de Abril de 2021:

Meu caro Luís Graça,

Tenho seguido como tantos outros camaradas o teu diário tratamento no Instituto de Oncologia. Se não te conhecesse ficaria admirado das tuas qualidades de homem completo, levado neste caso a um grau quase sublime.
Mas contigo e em ti todas as coisas extraordinárias são normais. Mais uma vez a tua vida e o teu exemplo são tremenda inspiração que para todos aqueles que tiveram/têm a data de te conhecer.

Pessoalmente, mesmo entre estes, eu me sinto um afortunado, pois quis o bom destino que além dos muitos elos que nos unem como camaradas da Guiné, se juntassem o facto de sermos vizinhos e termos como comuns amigos indivíduos também extraordinários que tanto têm enriquecido a nossa vida. Já hå muito nos tratamos como mano e irmão. Agora vejo com alegria grande que ao fim e ao cabo tu não és um mano e irmão apenas para mim e mais alguns: tu és um "querido mano" para todos os que têm o privilégio de te conhecer.

Sem intuitos de enaltecimentos ou de querer parecer bem fazendo-te elogios: Obrigado, meu querido mano, pelo que és. A tua vida a nível familiar e social é um exemplo fabuloso, uma verdadeira inspiração para todos nós. Pela tua vida, pelo teu trabalho, incluindo este blogue e tudo o que deste blogue resultou para benefício de cada um de nós, da história da Guiné, de Portugal e não só… de ti se pode com toda a verdade dizer “ porque deles é que reza a história”. Bem hajas!

Para ti e todos os teus, mas neste momento especialmente para ti, um apertado abraço, tão grande como a amizade que nos une

João, Nova Iorque


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PS: Para o caso de não teres visto, aproveito este para te mandar um artigo que acabei há momentos de ler no “Expresso curto”, escrito pela Cristina Figueiredo, editora de política da SIC, na rubrica "o que ando a ler".

Aqui está:

"Agora que se cumprem 60 anos sobre o início da longa e mortífera guerra colonial é boa altura para lembrar, sobretudo aos mais novos, o significado da palavra “Ultramar” para a geração dos seus avós.

A revista do Expresso trazia na semana passada um texto de Jorge Calado sobre as (poucas) fotografias públicas que há do conflito. Mas se faltam as fotos não faltam os livros. Um dos mais recentes é "Palco Sombrio", de Alice Caetano (Emporium Editora, setembro de 2020).
A ideia que preside à obra é original: dar um conteúdo improvável à expressão “teatro de guerra”, narrando um período do conflito nas colónias através do testemunho de um capitão miliciano que, coincidência aproveitada pela autora, também é encenador e ator.


Conheço bem o protagonista: Carlos Nery Gomes de Araújo é meu sogro (fica feita a declaração de interesses).

Foi, como tantos outros, mobilizado contra vontade para combater numa guerra em que não acreditava e de que não sabia se voltaria. Partiu para a Guiné, a bordo do Niassa, em maio de 1968, tinha 35 anos, um filho (o meu marido) com apenas um ano. Sem qualquer formação militar, a não ser o serviço militar obrigatório que cumprira 10 anos antes, foi treinado em Mafra “à pressão”, por quem pouco mais sabia do que ele. Foi no mato que aprendeu, a expensas próprias, como comandar homens, como reagir a ataques, como manter o sangue frio em situações que um técnico do Banco de Portugal, como ele, estava longe de imaginar ter de viver: “A primeira coisa que eu decidi naquela guerra é que não ia morrer ali. Decidi isto ainda antes de lá chegar e acho que foi essa decisão que me salvou. A mim e aos meus homens”.

Voltou intacto, com efeito, e sem ter perdido uma única das vidas humanas que tinha à sua responsabilidade.

Mais de meio século decorrido, uma escritora interessou-se por esta e outras histórias que compõem a sua biografia, indissociável do gosto pelo teatro, que não abandonou nem mesmo naqueles dois anos em África (terminou a sua comissão de serviço com uma encenação de “A Cantora Careca”, de Ionesco, em Bissau) e que continua a ser o seu “elixir da juventude”: aos (quase) 88 anos, é ator residente da Companhia Maior, em Lisboa, e prepara-se para subir mais uma vez ao palco (assim a pandemia o permita) no final do ano.

A sua vida, de facto, dava um livro. Alice Caetano teve essa presciência e em boa hora passou das musas… ao teatro".


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Comentário do co-editor CV:

Neste dia em que se vira mais uma página para um novo ano de existência, o 18º deste Blogue, não podemos deixar de cumprimentar, com uma vénia muito grande, o criador e mentor desta página, o nosso mano Luís Graça.
Embora ele e os seus colaboradores precisem já de uns suplementos vitamínicos, porque são já uns septuagenários cheiinhos de ferrugem, continuam animados e coesos para levar a sua missão o mais longe possível.

Ao Luís, quero desejar a melhor saúde. Presentemente está a precisar de uns retoques, mas no 18º aniversário estará já a cem por cento.

Aos nossos camaradas de armas, e aos nossos leitores em geral, desejo que continuem a acompanhar-nos nesta jornada que também inclui participação activa com o envio de textos e fotos.

Carlos Vinhal
Coeditor

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Notas do editor:

1 - Edição e inserção das imagens da responsabilidade do editor.

2 - Sobre a peça de teatro "A Cantora Careca", levada à cena em Bissau em 5 de Abril de 1970, vd. poste de:

4 DE SETEMBRO DE 2010 > Guiné 63/74 - P6935: A Cantora Careca, estreado em Bissau no dia 5 de Abril de 1970 (Carlos Nery)

3 - Neste dia de aniversário do nosso Blogue, vejam o Poste n.º 1 de:
23 de Abril de 2004 > Guiné 63/74 – P1: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22127: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (49): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Annette leva muito a peito a organização da comissão de Paulo Guilherme, mais, tem feito leituras sobre a história da Guiné-Bissau, aqui há uns tempos veio a Bruxelas uma comissão de guineenses para uma reunião de doadores, os senhores ficaram assarapantados quando uma intérprete deles se aproximou pedindo-lhes se era possível almoçarem juntos para eles a ajudarem a compreender certos aspetos da Geografia, da Etnologia, da tal guerra de libertação, que não se preocupassem com o rigor da exposição, ela estava a trabalhar para um romance e gostava muito de depoimentos de terceiros, pois quem estava a escrever o romance vivia com intensa paixão, a ela parecia-lhe demasiado, aquela paisagem era assim tão luxuriante, aquele verde tão denso, aquele território tão sulcado de água, a fauna e a flora tão espetaculares? E Annette depois contou esta conversa para Lisboa, os cinquentões estão mesmo em adoração, o romance enquanto ficção continua e dá força a este inesperado romance de amor em que se marcam os dias do calendário à espera de partir para Bruxelas, como se o repouso do guerreiro estivesse na incontornável Rua do Eclipse.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (49): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, très adorée, depois de te ter escrito ontem fiquei a ruminar num conjunto de dados a que tu pedes clarificação, curiosa como és, não posso adiar as informações de que disponho, como cronista queres dispor de todos os elementos para respeitar a cronologia, eu já estou em Bambadinca, há que deixar solucionados os assuntos pendentes do Cuor. Fazes mais perguntas sobre Infali Soncó e Sambel Nhantá. Durante anos foi assunto que não me interessou. Até que regressei em 1990 à Guiné, descobri que o filho mais novo do régulo Malã, que era uma criancinha dos meus tempos de alferes de Missirá, era agora professor e mostrou interesse em conversar comigo. No ano seguinte, como já te disse, voltei uns bons meses com o estatuto de cooperante e então conversei muito com Abdurramane Serifo Soncó, hoje o meu querido irmão Abudu. Era então vivo o último filho sobrevivente de Infali, Alage Soaré Soncó que lhe contou a história do seu pai, aqui vai um resumo do apontamento que ele me entregou em janeiro de 1992. Infali era natural de Berrecolom (que significa Fonte de Pedra) da região do Gabú. À frente dos seus homens conquistou a região de Cumpone, em Boké, hoje na Guiné Conacri, aqui foi feito régulo. Viu-se permanentemente ameaçado pelos Fulas, era seu inimigo Alfa Iaia, de Conacri. Passados uns anos de ser régulo o seu tio Calonandim Mané, régulo do Cossé, região de Bafatá, que mantinha um pacto cordial com os portugueses, pediu-lhe apoio para conquistar o regulado do Cuor (nessa altura escrevia-se Kuôr), o régulo chamava-se Sabel Nhantá que vivia em Sansão. Infali e o seu tio cercaram a tabanca do régulo Sambel e ele fugiu. Os anciãos do local elegeram-no régulo e veio de Bolama o governador Lito Magalhães que o consagrou como régulo. Infali, depois do seu tio Calonandim ter sido morto no Enxalé por Balantas, foi vingar a sua morte, e impôs-se desde Enxalé até Porto Gole.

O régulo Infali envolveu-se numa grave questiúncula com um alferes português, chegou a estar transferido para a região de Fulacunda, voltou e revoltou-se contra os portugueses com o apoio de régulos da vizinhança do Cuor. Está aí a origem das campanhas de 1907-1908 para o derrubar, ele pretendia mais uma vez impedir a navegabilidade do Geba, seria um golpe muito duro nessa via comercial que se estendia até Geba, Fá e Ganjarra, últimos locais da presença portuguesa no interior da Guiné da época. Infali é afastado, substituído por Abdul Indjai, um colaborador muito estreito do capitão Teixeira Pinto, este também se mostrou desrespeitador da soberania portuguesa, foi afastado dos regulados do Oio e do Cuor e Infali perdoado.

Annette, eu lia livros que falavam de Sambel Nhantá, via mapas onde se falava de Sambel Nhantá e ninguém sabia dizer-me onde era esta povoação. Estava ainda no Cuor e um dia perguntei ao régulo Malam onde estavam sepultados os seus ancestrais e ele disse-me prontamente que estavam sepultados em Sansão, era esta a tabanca de Infali e do pai de Malam, Bacari. Fomos até lá, de facto havia umas estacas de pé, propus ao régulo que se pusesse tudo em ordem e deixámos cimentados os locais. Minha adorada Annette, creio que era esta a informação que tu me pedias sobre os Soncó. Enviei-te pelo correio o caderninho de apontamentos das minhas conversas com o irmão do régulo, o padre Lânsana, foi ele que me ensinou o nome das diferentes árvores, as caraterísticas das trovoadas e dos tornados, o nome correto dos legumes que são cultivados nas hortas dentro e fora das aldeias. Nesse caderninho também poderás verificar o tipo de compras que fazíamos nas despensas de Bambadinca, não havia legumes frescos, era tudo enlatados, verificarás que comprávamos esparguete e outras massas, salsichas e chouriço (era impraticável comprar fiambre, deteriorava-se rapidamente com aquele clima), arroz, um pouco de feijão e grão, conseguíamos com certa regularidade comprar batata e cebola e tinha muito bom bacalhau, barricas com pé de porco, latas de dobrada – no fundamental era isto. Não se podia beber água da fonte, bebíamos todos água engarrafada, recordo-me que era água Perrier e Evian. Daí a certa monotonia alimentar.

Estranhaste uma história que escrevi à minha irmã sobre um acidente bizarro que se passou na primeira emboscada noturna que fizemos em novembro, bem perto do aquartelamento de Bambadinca. Recordarás que Bambadinca foi flagelada em maio desse ano e que se criou um sistema defensivo que passava por montar emboscadas nos principais pontos de acesso, uns vindos da região de Mansambo, outros da região do Xime. Tu perguntas-me quem era este Arnaldo Lima, eu nunca te tinha falado neste furriel. É verdade que nunca o mencionei, era um homem sem escrúpulos, sempre a inventar dores de cabeça ou a pretextar problemas de ouvidos e dentes, para fazer estadias em Bissau. Era mais ausente do que presente, adoecia na véspera das operações, não gostava da contabilidade, alegava nada saber sobre construção ou reparação nos quartéis, chegava ao cúmulo de quando ia fazer patrulhamentos em Finete se ausentar para Bambadinca (ali era mais seguro…). O Lima era para todos nós um fardo, um amoral. Depois naquela noite fui com ele e vinte homens e passei algumas das horas mais insólitas da minha vida. Selecionámos uma força de sensivelmente 20 homens, marcámos a hora de saída do quartel, e começámos a caminhar em direção de Undunduma, era aí que se ia montar a emboscada. Ter-se-ia progredido um quilómetro em que só se ouviam as nossas passadas a esmagar o saibro e subitamente ouviu-se um urro medonho a atravessar a noite, deu prontamente para perceber que não estávamos a ser emboscados nem houvera mina. Fui logo para o local da gritaria e ali estava o Lima estatelado no chão a gemer, não consegui perceber logo o que se tinha passado até que Ussumane Baldé me chamou a atenção para o braço direito do Lima, fui ver e ele tinha o dedo mindinho dentro do tapa-chamas da G3. Não levávamos maqueiro, procurou-se remover o dedo, a gritaria não parava. O que acontecera fora simplesmente que ele escorregara e o mais improvável dos acidentes acontecera, ao cair meteu o dedo mindinho e da arma não saía. Para pôr termo àquela bulha, com toda a gente a dar palpites, regressámos prontamente ao quartel, por prudência retirei-lhe o carregador da arma, o grupo avançou para a enfermaria, o Lima sentado, o rosto desfigurado, o braço direito todo esticado com a arma em cima da marquesa, fui a correr chamar o médico, o meu querido amigo David Payne, de quem já te falei. O David entrou na enfermaria, olhou para o insólito da situação, o facto é que o dedo ia inchando e todas as tentativas para pôr o dedo cá fora falhavam. O David tudo tentava, o rosto inundado de suor, até pôs a hipótese de lhe cortar o dedo, o Lima aí levantou-se aos berros, que não, que estava pronto a aceitar todas as dores até se encontrar uma solução para manter o dedo inteiro. Entrou o alferes sapador, o Mena Reis olhou, saiu e voltou com umas varetas e começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Lima insultou-o, o Mena Reis enfiou-lhe um estalo, vi jeitos do Lima afocinhar no chão com a G3, lá o endireitámos e pusemos braço e G3 na marquesa. Alguém mais inspirado lembrou-se do primeiro-cabo desempanador Alexandre, talvez ele tivesse uma boa resposta para este imbróglio. Estou a vê-lo entrar na enfermaria, alto e magricela, com um ar esgrouviado, avançou de olhos bem abertos para o Lima e para o seu braço e para a G3 e foi lesto a responder que a primeira coisa a fazer era desatarraxar o tapa-chamas, o Lima ainda ensaiou um impropério, o Alexandre não teve para os ajustes, segurou-lhe bem o braço, trazia com ele um outro ajudante que foi removendo lentamente a G3, operação morosa mas bem sucedida, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fratura exposta, o David Payne deu-lhe um calmante, o Lima voltou a Bissau, era o local que ele mais apreciava para passar a sua comissão e nós voltámos para a emboscada na região de Undunduma. Annette, acredites ou não, um dedo mindinho pode enterrar-se dentro de uma espingarda, e é o cabo dos trabalhos salvar um dedo.

Trago-te agora talvez uma boa-nova. Recebi três convocatórias e duas delas têm a ver com reuniões em Bruxelas, melhor, há um seminário em Gand, um dia inteiro para falar dos novos desafios da automedicação, isto em representação da Confederação Europeia dos Sindicatos, dois dias em Bruxelas para a assembleia-geral da Associação Europeia dos Consumidores, precedida na véspera de uma audição promovida pelo Parlamento Europeu com o Comité dos Consumidores sobre matérias inerentes à regulamentação do rótulo ecológico e as alterações na legislação das viagens organizadas. Tudo isto vai acontecer na última semana de abril. Não podes imaginar a felicidade que sinto em voltar para ti. Até lá, tenho que trabalhar quase a dobrar, dar aulas suplementares, produzir papéis, o Gilles Jacquemain manda-me diariamente novos elementos para o nosso relatório. E estamos num período de trabalho aqui no Instituto do Consumidor, eu coordeno o Concurso Europeu do Jovem Consumidor, são muitos os contatos com as escolas, há muitos textos a traduzir e a enviar para estes estabelecimentos de ensino. Infelizmente são escassas as dezenas de inscrições, mas isto também vai significar deslocações para falar com os professores e com os alunos que estão envolvidos no concurso.

Os meus filhos andam bem, são estes novos tempos da precarização, é um mundo que nada tem a ver com aquele em que nós, então jovens adultos, nos lançávamos no trabalho, havia outras regras, outras seguranças, agora é tudo sorrisos numa cortesia abstrata, desalmada.

Telefono esta noite, e amanhã, e depois. A almoçar ou a jantar, sinto que às vezes era bom que tu ali estivesses para partilharmos a conversa com os outros convivas. Não descuro o que me propuseste de nos reformarmos mais cedo, por ora só vejo obstáculos, mas são tantos e tais os lenitivos de poder estar na tua companhia todos os dias, basta este pretexto das coisas da Guiné, basta esta atividade que desenvolvo com os meus colegas europeus e na minha participação associativa, e até mesmo como funcionário público, que me permite andar sempre em ânsias para viajar até Bruxelas e entregar-me a ti de alma e coração. Bisous, multiplicados por mil, minha inesquecível companheira e adorada mulherzinha, bien à toi, Paulo
Infali Soncó, régulo do Cuor, sentado no centro, durante conversações com tropas portuguesas
É um livro admirável, relata ao pormenor a campanha no Cuor para submeter Infali Soncó, em 1908
Bambadinca, ponte do rio Udunduma, fotografia do blogue
Uma imagem que não carece de comentários
Guiné Portuguesa, Bilhete postal, Pescadora (Papel). Edição: Agência-Geral do Ultramar.
Guiné Portuguesa, Postal Ilustrado, Rapaz Balanta (Bissau). Ed. Foto SERRA, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22108: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (48): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22126: Fotos à procura de... uma legenda (148): acidente com a jangada do Cheche, no passado dia 21... (Patrício Ribeiro, Impar Lda, Bissau)












Guiné-Bissau > Região de Gabu > Rio Corubal > Cheche  [ou Ché-Ché] > 21 de abril de 2021 > Acidente com a jangada: queda de um camião ao rio, ao entrar na jangada, do lado de Béli.  Trânsito interrompido dos dois lados.


Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Português, natural de Águeda (1947), criado e casado em Angola, com família no Huambo, antiga Nova Lisboa, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.

Tem também uma "ponta", junto ao rio Vouga, Agueda, onde se refugiou agora, fugindo da pandemia de Covid-19: é o português que melhor conhece a Guiné e os guineenses, o último dos nossos africanistas: tem mais de uma centena de referências o nosso blogue; "irreformável"!, está à espera de receber a 2ª dose da vacina anti-Covid para voltar àquela terra verde-rubra que tem sido a sua paixão de uma vida.




1. Mensagem de Patrício Ribeiro:

Date: quinta, 22/04/2021 à(s) 20:13
Subject: Jangada do Ché che

Luís:

Só para informar que desde ontem, dia 21 de abril, a jangada do Ché Ché, não funciona. Caiu um camião ao rio, ao entrar na jangada, do lado de Béli. E como sabemos, a jangada continua a ter um cabo único, que a liga entre as margens.

Vão tentar rebocar o camião que está dentro do rio Corubal, com um camião mais forte e cabo de aço, para o lado de Canjadude [, a Norte]. Do lado do Boé [,a Sul], não há camiões com capacidade para o reboque, a fim de a jangada poder encostar à rampa do lado de Beli, e retirar as diversas viaturas, que se encontram retidas no Boé, para Nova Lamego.

Entre essas viaturas, está a da nossa equipa [, da Impar Lda,] , que vai dormir por alguns dias, na margem do rio ... Como estamos no "Jejum", só há comida à noite. Eles não levaram água, nem há rede de telefone, no Boé ... e como são todos balantas, lidam mal com a falta de bianda, durante o dia.

Se não for possível nos próximos dias a jangada funcionar, vão ter de dar a volta por Madina do Boé e Contabane, pela picada com muitos quilómetros , que se encontra em muito mau estado, e que eu conheço bem.

Não é necessário mandar nenhuma TV, porque já têm a notícia ... Ver a foto acima.

Abraço

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
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Nota do editor: