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segunda-feira, 28 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27062: Notas de leitura (1824): Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
É no seu segundo volume de memórias que Almeida Santos nos dá a sua visão de como se processou a descolonização da Guiné-Bissau: apresenta a evolução do conflito e como este, gradualmente, se nos tornou mais desfavorável; a obstinação de Marcello Caetano em travar qualquer forma de negociação para entendimentos políticos com o PAIGC; os conflitos de Spínola consigo próprio, depois do 25 de Abril, em sonhar com uma base federativa, quando tudo se alterara em profundidade na cena internacional; a sequência das rondas de negociações, a essência do protocolo do Acordo de Argel, como se processou a descolonização económica da Guiné, defendendo o autor que o Acordo de Argel foi o acordo possível nas circunstâncias que teve de ser negociado. Ambos os dois volumes, que somam mais de mil páginas são credores da nossa leitura, é do melhor que há na literatura memorial política, Almeida Santos foi um notável plumitivo.

Um abraço do
Mário



Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (2)

Mário Beja Santos

Em 2006, Casa das Letras/Editorial de Notícias e Círculo de Leitores deram à estampa as mais de mil páginas das memórias de Almeida Santos centradas na sua vida em Moçambique, o seu olhar sobre o processo colonial e as suas causas remotas, como se chegou ao 25 de Abril, a sua intervenção direta em sucessivos governos, a evolução do processo revolucionário, ponto em que se encontrava a guerra da Guiné e a leitura internacional que se fazia do conhecimento da independência da antiga colónia, isto matéria que ele versa no primeiro volume; a obra seguinte inicia-se com a descolonização da Guiné e prossegue com a narrativa de diferentes descolonizações até se chegar à frustrada descolonização de Timor e à não descolonização de Macau.

Do primeiro volume, uma preocupação de situar o oposicionista do Estado Novo em Moçambique e a leitura que ele fez de um processo colonialista que por decisão do líder do Estado Novo se foi encaminhando para um beco sem saída. O segundo volume das memórias de Almeida Santos enunciação exatamente com a descolonização da Guiné-Bissau, é em todo este enquadramento que vamos centrar o que, na nossa ótica, é merecedor da atenção do leitor.

O político reconhece que a guerra estava de antemão perdida, logo havia razões objetivas para isso, as condições difíceis do clima, favoráveis à guerrilha, os apoios dos Estados da vizinhança e o gradual fornecimento de melhor armamento que o nosso por parte dos amigos do PAIGC; a diminuta população portuguesa; a qualificada liderança cabo-verdiana e uma estratégia bem delineada que permitiu bastante sucesso logo em 1963; Spínola tenta uma inversão dos acontecimentos, tem um programa que procura preencher três fundamentais requisitos: corresponder às legítimas ambições do povo; promover a justiça social e a igualdade de todos os cidadãos e criar o mais depressa possível o progresso económico e social.

Reuniu-se com os comandantes militares e apresentou-lhes este novo conceito:
“Uma guerra subversiva nunca estã ganha, nem nunca se ganha militarmente, só é possível ganhar politicamente. Portanto, eu não vos vou pedir que ganhem a guerra, porque vocês não a têm capacidade para a ganhar. Quem tem de ganhar a guerra sou eu. A vocês só vos peço que não me percam a guerra e que me deem tempo para eu conseguir ganhá-la politicamente.”

O general procura dar um novo estímulo às operações militares, continuaram os bombardeamentos, aumentaram os efetivos, acelerou-se a africanização da guerra, mas o PAIGC passou a possuir instrumentos que alteraram a correlação de forças. E quando o Governo de Lisboa solicitou aos seus aliados antídoto que contrariasse os mísseis terra-ar, não obteve resposta, ela chegará em cima do 25 de Abril. Ainda num quadro de equilíbrio de forças, Spínola tenta negociar a mediação de Senghor, Marcello Caetano desautoriza Spínola a efetuar conversações quer com o presidente do Senegal e efetuar negociações diretas com o PAIGC. Adensava-se o fantasma da Índia, crucificar os militares pelo previsível desastre.

A partir dos inícios de 1970, a PIDE vai informando Lisboa de que há um processo evolutivo da guerra, entravam viaturas no terreno da colónia, a guerrilha tinha cada vez maior quantidade de material. Fragoso Allas escreve para a direção-geral da PIDE:
“Praticamente perdemos a vantagem da Força Aérea e não dispomos de meios aéreos que possam constituir força de dissuasão, ou que nos permitam castigar duramente as bases de apoio. Temos de encarar como possível que o PAIGC venha, em curto prazo de tempo, a estabelecer novas áreas libertadas, a dificultar ou impedir o tráfego aéreo e até mesmo a aniquilar algumas guarnições que agora passam a não poder contar com o apoio aéreo para as defender, evacuar os feridos ou reabastecer.”
E havia manifestações claras que a guerra tinha passado de subversiva a convencional. Spínola escreve assim uma cunha de que se caminhava para o colapso militar.

No passado, em novembro de 1970, ocorrera a operação Mar Verde, um falhanço que trouxe ainda um maior isolamento diplomático. Quando, em 28 de abril, Spínola mandou a Paris Carlos Fabião e Nunes Barata para se avistar com Senghor, este disse-lhes que era tarde para a retoma das anteriores tentativas de uma descolonização negociada a tempo. Spínola não aceitou essa evidência, mantinha a ilusão de uma base federativa. Em 13 de maio, o PAIGC declarava que o fim da guerra dependia do reconhecimento por Portugal da República da Guiné-Bissau, posição que não viria a ter recuo.

Almeida Santos escreve as etapas da descolonização da Guiné: o encontro em Dacar, as declarações politicas do PAIGC, o encontro de Londres, onde pairou no ar os espectro da continuação da guerra por parte do PAIGC, as tentativas de Spínola para que houvesse um congresso do povo para reconhecer a independência da Guiné-Bissau, Carlos Fabião fez-lhe ver que esse projeto passa a ser inviável; a ronda de negociações em Argel, o mais que se consegue é a aceitação formal das descolonizações da Guiné e Cabo Verde; em julho, já há conversações entre as tropas portuguesas na Guiné e o PAIGC; em 26 de agosto chega-se ao Acordo de Argel, assinado vinculativamente pelas duas delegações, ratificado pela Junta de Salvação Nacional, pelo Governo provisório e pelo Presidente da República. O autor recorda a fragilidade dos laços entre os dirigentes cabo-verdianos e guinéus, como tudo se encaminhou para o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980.

Não deixa de fazer referência à delicada matéria dos fuzilamentos, fala sem peias de um barbarismo repugnante, os Comandos começaram por exigir dinheiro para entregar as armas, foram aliciados pelo PAIGC, Carlos Fabião insistiu em que viessem para Lisboa, mas quase ninguém quis vir na altura. Este fuzilamento sumário semeou o ódio entre guinéus, ferida que ainda não sarou.

E por fim, Almeida Santos tece considerações sobre a descolonização económica da Guiné, fala do conjunto de problemas que se impunha encarar e resolver, isto ainda numa atmosfera em Bissau onde havia relações em Bissau claramente deterioradas, greves que paralisavam o reabastecimento da Guiné; não eram poucos os problemas de intendência, caso das ligações aéreas, um subsídio para aquisição de arroz, discutir o futuro das ligações marítimas entre Portugal e Guiné, o futuro de empresas como a Sacor, o tratamento a dar à sucursal do Banco de Portugal e à delegação do Banco Nacional Ultramarino, etc., etc.

Porque não correu melhor esta descolonização? Primeiro, a obstinação do Estado Novo a recusar qualquer tipo de negociações; o domínio do PAIGC no sul do território e a sua fixação num conjunto de santuários; manifestamente depois de 1973, a guerra tinha ultrapassado o limite, já se agia como se estivesse numa guerra convencional, a situação invertera-se, agora eram os militares portugueses a criar obstáculos de toda a ordem para que os guerrilheiros não chegassem aos quartéis. E havia a questão de memória, o lastro de ressentimento histórico, os séculos de tráfico de escravos, o fardo do trabalho forçado, a gestão económica confiada à CUF e à Casa Gouveia, a autonomização da Guiné face a Cabo Verde em 1879. E Almeida Santos escreve:
“Tenho perfeita consciência que nos limitámos em fazer um número histórico consistente em confirmar o já confirmado, e em autenticar o que por outro havia já autenticado. Fomos nós os escolhidos para aceitar a derrota na frente militar da Guiné e para, sem honra, mas também se humilhação, negociarmos a paz. O Acordo de Argel foi o acordo possível nas circunstâncias que teve de ser negociado. As fórmulas usadas não foram tão vexatórias como podiam ter sido. A verdade é que não estávamos em condições de fazer exigências que os nossos interlocutores não quisessem aceitar. Termos conseguido autonomizar a descolonização da Guiné da de Cabo Verde foi um resultado positivo. Termos afastado a semântica de um ajuste de contas, foi outro. Pelo contrário: a linguagem do respeito, e até do afeto recíproco, não ficou de fora do texto do Acordo.”

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Notas do editor

Vd. post de 21 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27041: Notas de leitura (1821): Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 25 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27053: Notas de leitura (1823): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27041: Notas de leitura (1821): Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Ínvios são os caminhos de que pesquisa e de quem tem a ambição de arregimentar a documentação mais relevante com a leitura do processo colonial e da descolonização que aconteceu depois do 25 de Abril. O que sempre muito me impressionou em Almeida Santos é a raríssima associação entre o poder da escrita e o vigor discursivo, lembro-o em plena Assembleia da República discorrendo como se tivesse a escrever, possuidor de uma riqueza vocabular incomum, simples e fluente. Não mascara o papel que desempenhou na oposição democrática em Moçambique, e o desempenho histórico que lhe coube na descolonização. Dirá deste primeiro volume, que se lê de um só fôlego: "Esta é a minha verdade sobre o estertor do colonialismo e sobre o dossiê da descolonização; sobre os mais salientes acidentes do processo revolucionário posterior a abril que lhe determinaram o tempo, o modo e o resultado final. Deixo ligados a tudo isso inolvidáveis momentos da minha vida. Nem todos agradáveis. Apesar disso, foi reconfortante recordá-los."

Um abraço do
Mário



Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (1)

Mário Beja Santos

Em 2006, Casa das Letras/Editorial de Notícias e Círculo de Leitores deram à estampa as mais de mil páginas das memórias de Almeida Santos centradas na sua vida em Moçambique, o seu olhar sobre o processo colonial e as suas causas remotas, como se chegou ao 25 de Abril, a sua intervenção direta em sucessivos governos, a evolução do processo revolucionário, ponto em que se encontrava a guerra da Guiné e a leitura internacional que se fazia do conhecimento da independência da antiga colónia, isto matéria que ele versa no primeiro volume; a obra seguinte inicia-se com a descolonização da Guiné e prossegue com a narrativa de diferentes descolonizações até se chegar à frustrada descolonização de Timor e à não descolonização de Macau.

António de Almeida Santos, a opinião é da minha exclusiva lavra, foi o mais eloquente tribuno que passou pela Assembleia da República depois do 25 de Abril, discursava tal como escreve, possui um domínio absoluto da escrita, simples, mas deslumbrante do uso do termo próprio, não faz conceções a qualquer primarismo de juízo, não se furta à análises mais tortuosas.

Lembra o seu encontro com D. Sebastião Soares de Resende, bispo da Beira, uma conversa decisiva, desfiou as suas observações sobre os Direitos Humanos, o trabalho forçado (herdeiro da escravatura), o Estatuto do Indigenato, com o seu cortejo de sujeições, os chibalos, compulsivamente arrebanhados e enviados para as minas do Transval, as palmatoados compulsivas da produção do algodão. “Tudo isso desfilou perante o basbaque que eu era ali, certificado pela clarividência aguada do sentido cristão de justiça daquele sacerdote que falava dos negros como Cristo havia falado dos pobres.” O que o remete para outras lembranças, os negros que Almeida Santos vira a trabalhar em Angola com uma inamovível esfera de ferro ligada por cadeias a um tornozelo, entre outras ignominias; em Moçambique, onde exerceu de 1953 a 1974 advocacia viu de perto como se comportava o Apartheid.

Elenca a obstinação do Estado Novo e do seu líder em recusar os ventos da história, assobiando para o lado com o mundo emergente da Segunda Guerra Mundial, a tentativa fruste de imaginar que estávamos em África há cinco séculos, e como o chamado Império não fosse mesmo desdenhado em obras de grandes escritores, como Eça de Queiroz, e não tivessem havido críticas assanhadas até de administradores coloniais como António Enes e Norton de Matos e denúncias como a que Henrique Galvão fez no seu relatório sobre o trabalho forçado, matéria que Almeida Santos analisa ao detalhe. Homem do Direito, percorre os sistemas jurídicos africanos e revela-nos como o nosso sistema jurídico produzia um choque brutal nos diferentes processos culturais das etnias africanas. Inevitavelmente fala dos nacionalismos, o branco e o negro, recorda que pertenceu ao Grupo dos Democratas de Moçambique, o principal esteio da oposição democrática na colónia, o seu poder assentava nos abaixo-assinados; e não deixa de referir o balão de oxigénio que o regime encontrou no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, uma tremenda confusão entre desejos e realidades. O autor vai mais longe, disseca as causas remotas até se chegar a 1961, o ano de todos os avisos.

E os movimentos emancipalistas entraram em cena, o Estado Novo indiferente com o que se passava na Argélia ou na Rodésia, o abandono gradual das potências coloniais em África; e os anos do fim com Marcello Caetano, lembra a completa dissonância deste assegurando em discurso a defesa intransigente do Ultramar e procurando, pela porta do cavalo, negociar com o PAIGC, à procura de uma saída política, já que a militar caminhava para o desastre. O regime não tinha solução política, veio o 25 de Abril. O autor disserta sobre a constituição do I Governo provisório, as viagens que fez a África, as notícias que diariamente chegavam dos diferentes teatros de guerra que ninguém queria continuar a combater, como se chegou à Lei 7/77, que abria caminho à autodeterminação das colónias. E explana sobre as determinantes de descolonização, as pressões internacionais, as constantes manifestações em Portugal para pôr termo à guerra colonial e o caso particular da Guiné em que a 1 de julho, numa Assembleia Geral do MFA se exigia que o Governo português reconhecesse imediatamente e sem equívocos a República da Guiné-Bissau.

O autor demora-se a contar a atitude do general Spínola face à descolonização da Guiné. Spínola entrara em conflito consigo mesmo, confrontava-se com a Comissão Coordenadora do MFA e até com o general Costa Gomes. A descolonização da Guiné era para ele um sapo muito difícil de engolir e o autor observa: “Quando partimos para Londres, onde teve lugar a primeira reunião entre a delegação portuguesa e a do PAIGC, o essencial estava definido que era impensável tentar impor ao PAIGC uma consulta popular; impensável deixar de reconhecer o PAIGC como último e legítimo representante do povo da Guiné; impensável recusar o reconhecimento da Guiné-Bissau como novo Estado soberano; impensável seguir outra via que não fosse a da negociação direta entre o Estado português e o PAIGC. Ainda a lei 7/77 não tinha sido publicada e já o comunicado resultante da visita a Lisboa do secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, se situava também no tempo futuro. Mas nem por isso restava a menor dúvida sobre os citados pontos.” Houve discussão acesa entre Spínola e Mário Soares, Spínola negava-se a admitir que era um processo sem retorno, corria-se o risco do PAIGC poder voltar a pegar nas armas, seria para nós a humilhação suprema.

Os rancores de Spínola pelo PAIGC foram exibidos numa sessão protocolar. “No almoço que teve lugar em Belém, a convite do Presidente, na sequência da homologação do acordo de Londres, o Presidente Spínola sentou o comandante Pedro Pires, que no ato representava o PAIGC, do outro lado da mesa, à direta do General Costa Gomes. E sentou à sua direita o embaixador do Brasil. No brinde final, destacou com particular ênfase o mesmo embaixador, a quem ostensivamente intitulou de seu principal convidado. E, sem deixar de saudar o povo da Guiné, bebe à memória dos três oficiais portugueses, emboscados e mortos, quando se dirigiam, desarmados e em missão de paz, ao local de um encontro secreto aprazado com o PAIGC.
Seguiu-se um momento de expectativa tensa. Mas o Comandante Pedro Pires, de seu feitio controlado, ergue por seu turno o cálice, brindou pelo futuro das relações do povo português e o povo da Guiné-Bissau, e de imediato pediu licença para se retirar. Tive assim a oportunidade de assistir à última batalha do General Spínola com o PAIGC. E tirei para mim a conclusão de que é errado pôr quem fez a guerra a negociar a paz!”
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Nota do editor

Último post da série de 18 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27030: Notas de leitura (1820): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) - 3 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26969: Notas de leitura (1815): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2024:

Queridos amigos,
Não devemos esquecer que a cada um que aqui vem testemunhar a sua participação no MFA Guiné foi pedido um relato pessoal e daí parecer por vezes que se repetem as memórias de como todos eles se foram encontrando e atuando, como se institucionalizou o MAPOS, logo em 4 de maio, exigindo negociações com o PAIGC, a efervescência do ambiente social em Bissau depois do 25 de Abril, o papel da Voz da Guiné, a vida no mato, seja em Empada seja em Caboxanque, trata-se de um documento que se poderá classificar como de referência, na justa medida em que complementa tudo quanto já está escrito pelo lado de oficiais do quadro permanente e até de investigadores deste período, como é o caso dos trabalhos de António Duarte Silva. É pois de leitura obrigatória para quem pretende estudar quem foi quem no final do Império, no território da Guiné.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Na sequência do texto dado à estampa na semana anterior e referente ao livro recentemente publicado e intitulado "Guiné, Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril", Âncora Editora, 2024, onde se dá voz a um conjunto de depoimentos de milicianos, alguns deles ligados à crise académica de 1969 e a Coimbra, já deu para entender que por um feliz acaso ocorreu uma gradual convergência entre estes oficiais milicianos sediados em Bissau e o núcleo de oficiais do quadro permanente onde, entre outros, estavam ativos Sales Golias, Duran Clemente e Carlos de Matos Gomes e estreitamente relacionados com o capitão miliciano José Manuel Barroso.

Dada a diversidade de olhares, deu-se a palavra a um acervo de intervenientes como Álvaro Marques, Amaro Jorge, Canhoto Antunes, Celso Cruzeiro, Eduardo Maia Costa, João Teixeira, José Manuel Barroso e J. M. Correia Pinto. Põe-se termo a esta digressão pelos testemunhos destes oficiais milicianos, começa-se por José Pratas e Sousa, alferes-miliciano da CCAV n.º 8352, SRI e secretariado do MFA. Como outros intervenientes, Pratas e Sousa logo alude à derrota das tentativas de desenvolvimentos de soluções neocolonialistas, como foi repudiado o projeto de Spínola de manter a Guiné numa comunidade lusíada. Faz menção de que o que procura relatar é a sua experiência pessoal, como viveu e sentiu acontecimentos do período de abril a setembro de 1974. Mafra, a Escola Prática de Cavalaria, o Regimento de Cavalaria n.º 3 onde se formou a sua companhia, chegaram à Guiné em 4 de novembro de 1972, o destino era Caboxanque, na região do Cantanhez. “Tinha cerca de 800 habitantes e a nossa tropa instalou-se dentro da povoação que era habitada por velhos, mulheres e crianças. Não havia jovens. Estavam no mato com o PAIGC, que até então tinha controlado todo o Cantanhez. Esta situação contribuiu para acentuar a sensação de sermos ocupantes ilegítimos de uma terra que não era nossa.” Fazem patrulhamentos intensivos, são flagelados, normalmente sem consequências maior, terão dois mortos. Frutificaram amizades, que permanecem, refere Rui Silva, o capitão miliciano que comandava a companhia, com quem mais tarde se encontrará no secretariado do MFA em Bissau.

Deixa a companhia em agosto de 1973 (esta ir-se-á manter em Caboxanque até junho de 1974), foi transferido para Bissau, irá dirigir o Programa de Línguas Nativas, um programa de rádio militar integrado no Serviço de Rádio e Difusão de Imprensa. O noticiário oficial procurava iludir o agravamento da situação militar: os aviões derrubados pelo PAIGC eram noticiados em Lisboa como alvos de mísseis disparados a partir da Guiné-Conacri ou quedas devidas a acidentes. Dá-nos conta de como viveu o 25 de Abril, como foi determinante o papel do capitão Jorge Golias, era o oficial de maior prestígio dentro do MFA, não esquece o papel importante do capitão miliciano José Manuel Barroso, que desempenhou funções de adjunto de Carlos Fabião, Barroso foi o único miliciano que esteve desde o início envolvido nas reuniões conspirativas do Movimento dos Capitães da Guiné. Não esquece a referência ao MAPOS, o Movimento pela Paz que agregou oficiais, sargentos e praças, constituído em 4 de maio.

Observa que a guerra da Guiné acabou no dia 26 de abril. “É certo que ainda houve alguns combates, havendo a lamentar, nos cinco meses seguintes, cinco mortos entre os militares portugueses. Sem querer desvalorizar o significado destas mortes, ainda mais absurdas num tempo em que estavam abertos os caminhos da paz, é de lembrar que nos onze anos de guerra na Guiné morreram em média cinco militares portugueses em cada dez dias. O que houve foi o resultado de alguns incidentes provocados na sua maioria por comandantes do PAIGC, que no mato tomaram iniciativas individuais, que foram logo reprimidas pela direção do partido.” E lembra o papel que tiveram as sessões de esclarecimento em muitas unidades do interior.

Tem agora a palavra Luís Araújo, da Repartição da ACAP do Comando-Chefe em Bissau. Desembarcou em Bissau em março de 1973, engenheiro de formação, regista as primeiras impressões, a atuação dos oficiais milicianos, os acontecimentos do 25 de Abril e dias imediatamente posteriores. “A minha função era a recolha e processamento de informação que permitisse ao Comando-Chefe acompanhar a opinião da evolução pública, quer nacional, quer internacional, sobre a situação da Guiné. Produzia relatórios periódicos de divulgação interna reservada, baseados em fontes de informação internas do território e em posições expressas na imprensa portuguesa e nacional.” Irá colaborar depois com comissões de apoio às funções de Carlos Fabião.

O último depoimento pertence a Rui Pedro Silva, nome já mencionado por José Pratas e Sousa. Ele comandava a companhia de Caboxanque, pela rádio ouviu falar no golpe de Estado. Vem de férias em março de 1974, no regresso é confrontado com a notícia da morte de dois soldados. Fazendo um balanço desse mês de março, observa que no Cantanhez houvera uma forte manifestação na capacidade do PAIGC. Faz uma alargada digressão sobre os acontecimentos políticos em Portugal, como correu a sua mobilização, foi enviado para Angola em 1971 e 1972, esteve nos Dembos, volta a Mafra para o curso de comandante de Companhia, como se processou em termos efetivos a operação Grande Empresa, encetada em 6 de dezembro de 1972. Tem importância o que escreve a seguir sobre a quadricula para Cafal, Jemberem, Cobumba e Chugué, lembrando que o relato detalhado desta operação é da lavra do Coronel Moura Calheiro no seu livro "A última Missão", ele foi o coordenador da operação desde o seu início. Em 27 de setembro de 1972, a CCAV n.º 8352 é transferida para Caboxanque. “Nos primeiros cinco meses em Caboxanque, a maioria dos militares dormia em valas, a comida era distribuída por uma viatura que percorria o limite do aquartelamento por onde estavam distribuídas as três secções de cada um dos quatro pelotões, cerca de quilómetro e meio, chegando já fria à últimas secções, utilizavam uma vala como latrina, partilhavam sem privacidade.”

Conta várias peripécias, até de um estranho acidente com uma arma de fogo, como se procedia a ação psicológica, desde a melhoria das habitações da população local à assistência de enfermagem. Também escreve a sua versão sobre os acontecimentos de 1973, e assim chegamos ao encontro com o PAIGC em maio de 1974, que ele descreve assim:
“Reuni os chefes da tabanca, poucos dias após os 25 de Abril, informei-os que íamos cessar as patrulhas na zona operacional, mas que queríamos manter contacto com a população que vivia fora de Caboxanque e pedimos que disso dessem infomação a essas populações. Cerca de duas semanas após o 25 de Abril, fomos visitados por um comissário do PAIGC, vinha fardado e naturalmente desarmado. Apresentou-se em Cufar e depois, a seu pedido, transportado em escolta até Caboxanque. O encontro foi muito cordial. Primeiro, pediu autorização para visitar a família que vivia em Caboxanque e que não via há bastante tempo. Depois dessa visita realizámos uma longa conversa, partilharam das dificuldades vividas. Concordámos que não haveria lugar a emboscadas, ataques ou minhas em toda a zona operacional. Para nós, a guerra tinha terminado. Na despedida, demos um abraço”.
A companhia é transferida para Bissau em junho, Rui Pedro Silva fica a trabalhar no secretariado do MFA.

O anexo inclui imagens da Voz da Guiné, de encontros entre as nossas tropas e as do PAIGC.

Obra de referência para o estudo das relações entre os oficiais do quadro permanente e milicianos na génese, organização do MFA Guiné e das ações posteriormente desenvolvidas em conjunto.


Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação
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Notas do editor

Vd. post de 23 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26950: Notas de leitura (1812): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26962: Notas de leitura (1814): O fotógrafo Alfredo Cunha, a Guiné, o 25 de Abril no mais antigo museu português (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26950: Notas de leitura (1812): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
O mínimo que se pode dizer deste conjunto de testemunhos é que pela primeira vez acorrem ao palco oficiais de milicianos que participaram de um modo ou do outro no MFA da Guiné, gente que tinha estado nas lutas estudantis, algum deles já tinha iniciado a sua vida profissional, coube-lhes relevantes funções desde o comando das forças militares até à coordenação dos serviços de comunicação e mesmo na direção de serviços da própria administração colonial. Contam como atuaram, formaram o núcleo inicial e este se desenvolveu, como tudo se estava a modificar depois da perda da supremacia aérea, como contribuíram para o 25 de abril. Fica demonstrado como todo este grupo de milicianos teve um papel marcante no fim do Império, como decorreram as negociações com o PAIGC, e todos são unânimes que Spínola era portador de um sonho anacrónico neocolonial que felizmente não houve condições para pôr em prática.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Na sequência do texto dado à estampa na semana anterior e referente ao livro recentemente publicado e intitulado Guiné, Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril, Âncora Editora, 2024, onde se dá voz a um conjunto de depoimentos de milicianos, alguns deles ligados à crise académica de 1969 e a Coimbra, já deu para entender que por um feliz acaso ocorreu uma gradual convergência entre estes oficiais milicianos sediados em Bissau e o núcleo de oficiais do quadro permanente onde, entre outros, estavam ativos Sales Golias, Duran Clemente e Carlos de Matos Gomes e estreitamente relacionados com o capitão miliciano José Manuel Barroso.

Dá-se a palavra a Eduardo Maia Costa, alferes miliciano do Serviço Geral da Força Aérea, colocado em Bissalanca. Chegou a Bissau no dia 20 de janeiro de 1973, dia do assassinato de Amílcar Cabral. Foi colocado no serviço de Justiça. A Força Aérea, no início desse ano, assegurava a superioridade da tropa portuguesa na guerra, tinha o domínio absoluto dos ares, cumpria sem sobressaltos a rotina que ia desde o apoio às operações, à evacuação dos feridos, ao transporte de pessoas, de géneros e materiais, até aos bombardeamentos.

Depois veio o abalo dado pelo uso dos mísseis terra-ar. Ponto importante para a ligação entre os milicianos foi a oferta feita por Barros Moura ao Major Coutinho e Lima de ser seu defensor, Spínola não gostou deste tipo de intervenção, Barros Moura foi empandeirado para S. Domingos. Em Portugal fermentava o MFA, na Guiné ele surge em agosto de 1973, implanta-se em Bissau, na Força Aérea aderem Jorge Alves e Faria Paulino. Sucedem-se os acontecimentos que outros autores já referenciaram, dá a sua nota pessoal:
“Realizaram-se na Força Aérea eleições para a escolha dos representantes do MFA das diversas categorias, tendo eu sido um dos eleitos dos oficiais milicianos. No dia seguinte apresentámo-nos ao comandante da Base. Ele recebeu-nos um pouco amedrontado, possivelmente pensando que o íamos prender. Foram-nos atribuídas tarefas específicas: substituir, com outros oficiais milicianos, os funcionários dos serviços de trabalho. Os funcionários coloniais receberam-nos de bom grado, eles não se entendiam com os novos tempos, queriam era regressar à metrópole, e logo desapareceram.” Vai passar férias e regressa a Bissau em 10 de agosto, aqui o ambiente era de fim do império, Portugal iria reconhecer no dia 26 a independência da Guiné.

Segue-se o depoimento de João Ferreira do Amaral, que chegou a Bissau em março de 1973, comenta a situação político-militar a partir dessa data. Ele está nos serviços de economia, recorda o aumento do preço de arroz, procurava-se a todo o transe garantir o abastecimento deste alimento básico; continuará nestes serviços até ao princípio de outubro. “Tive a oportunidade de transferir a administração dos serviços de economia para as novas autoridades, acompanhando o ministro Dr. Vasco Cabral, numa visita a uns serviços que estavam então a meu cargo, economia, estatística e planeamento.”

Dá-se agora a palavra a João Teixeira, alferes-miliciano com a especialidade de Engenharia, colocado na Base Aérea n.º 12. Chega a Bissau a 21 de janeiro de 1973, é esperado no aeroporto por José Manuel Barroso, especula-se sobre quem mandou matar Amílcar Cabral. Descreve a sua vida em Bissau, os acontecimentos posteriores aos abates dos aviões com os mísseis terra-ar, a adaptação dos voos à nova realidade, os apelos urgentes a Lisboa para se encontrar a competente defesa aérea para a Guiné. João Teixeira discorre amplamente sobre a evolução do MFA na Guiné, a tentativa neocolonial perpetrada por Spínola, e como foi derrotada, dá-nos um quadro do que foi a Assembleia Geral na Guiné em 1 de junho, e regressa a Lisboa em meados de setembro.

É o momento de ouvirmos José Manuel Barroso, capitão miliciano, parecia que ia para o mato, mas é nomeado para trabalhar com Spínola, a sua missão era acompanhar a atividade militar e governativa, e transformá-la em notícias a fornecer para o exterior, para os média nacionais e para as agências noticiosas internacionais, recorda algo que se ia aprofundando entre ele, Sales Golias e Matos Gomes. “A minha mais profunda surpresa inicial foi a descoberta no mundo da oficialidade que servia no Comando Chefe, na fortaleza de Amura. Uma boa parte dos oficiais falava abertamente da questão política da guerra, questionando-a, ouvi mesmo dizer a um dos meninos queridos de Spínola que aquilo só iria à força.” Viveu os acontecimentos ligados ao assassinato de Amílcar Cabral e pareceu-lhe sincera a atitude de Spínola, reagiu desalentado com esta perda.

Descreve a atitude de um punhado de oficiais do quadro permanente quando se souber da realização de um Congresso de Combatentes. “Quase a totalidade dos capitães do quadro permanente assinaram protesto dirigidos ao Governo central – e dezenas de milicianos também. Mas o episódio criou um clima de contestação aberta, que não pararia. Antes do Movimento dos Capitães, a Guiné era cabeça da contestação. O núcleo do que seria a comissão de militares do MFA estava constituído e preparado para qualquer ação. O nosso agora alargado grupo chegou a discutir uma hipotética ação militar contra Lisboa, sem sequer saber que algo idêntico, mas mais forte ainda, havia sido discutido por oficiais afetos a Spínola, como o Major Fabião revelaria depois. Estive no grupo que, na Guiné, ligado a Otelo e ao Movimento dos Capitães apoiou ativamente o golpe em Lisboa, despediu a 26 de abril as autoridades militares em Bissau que se não manifestaram favoráveis à Junta de Salvação Nacional. Depois, fui chamado, com o Tenente-Coronel Mateus da Silva para, em representação do MFA/Guiné, acompanhar o Ministro dos Negócios Estrangeiros no seu primeiro contacto com o presidente do PAIGC, Aristides Pereira, em Dacar. Dias depois de chegar a Bissau, fui chamado a Lisboa por Spínola, que me proibiu de regressar à Guiné. Fui o primeiro capitão do MFA saneado".

J. M. Correia Pinto era Segundo-Tenente do Comando de Defesa Marítima da Guiné, desembarcou em Bissau em 24 de maio de 1972. Faz um enquadramento do início da guerra colonial, do curso de oficial da Defesa Naval, acompanhou a evolução da situação da Guiné, ali chegara e ainda os ecos da operação Mar Verde estavam longe de estarem extintos, fora-lhe testemunhado por um oficial do quadro permanente ter participado na Mar Verde que o objetivo primordial era assassinar Sékou Touré, promover um golpe de Estado, sequestrar ou assassinar Amílcar Cabral mais dirigentes do PAIGC, destruir material bélico da República da Guiné, caso dos aviões MiG, quase tudo correu mal. E em 1973, a roda da fortuna desandou em favor do PAIGC, volta a falar na defesa do Major Coutinho e Lima, no significado do Congresso dos Combatentes, como se processou a ação do PAIGC no primeiro trimestre de 1974, o significado que se atribuiu ao livro de Spínola e descreve minuciosamente os acontecimentos do 25 de abril. “Chegado a Lisboa no dia 4 de maio, deparei-me com um convite de uns camaradas da Marinha, ir a Caxias ver os pides presos. Recordo que as primeiras pessoas que vi em Caxias, a consultar os arquivos, foram o Zé Manel Tengarrinha, o Oneto e o Jean Jacques Valente.”

Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação

(continua)

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Notas do editor

Vd. post de 16 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26925: Notas de leitura (1809): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 23 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26949: Notas de leitura (1811): O livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (2025) (235 pp.) - Parte I: apresentação de Luís Graça

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26925: Notas de leitura (1809): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Aparece finalmente uma coletânea de depoimentos dos milicianos que intervieram entre 1973 e 1974, em convergência com os oficiais do quadro permanente, na formação e atividade do MFA da Guiné, são depoimentos que em alguns casos forçosamente se repetem mas há em muitos deles a singularidade do testemunho, um olhar lúcido sobre a evolução da guerra, a participação nas conversações com os quadros do PAIGC, muitos deles dão conta do anacronismo das pretensões de Spínola fazer um referendum na Guiné quando já houvera o reconhecimento internacional para um Estado soberano que terá a liderança do PAIGC. Esta obra, que se saúda pela pertinência dos testemunhos, tem o poder de complementar um acervo de depoimentos e análises do MFA da Guiné, em que constam nomes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes e António Duarte Silva.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (1)

Mário Beja Santos


Muito se tem escrito sobre a formação e atividade do MFA da Guiné, intervenientes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes, investigadores como António Duarte Silva, são algumas das figuras mais salientes desse fenómeno original de um movimento altamente sigiloso formado em 1973 e que ganhou vida própria. É facto que a presença dos milicianos não é descurada da narrativa, aparece sempre a figura do capitão José Manuel Barroso, mas quanto à competição do desempenho dos milicianos ainda não existia um conjunto organizado de depoimentos, e daí saudar-se esta obra coletiva intitulada "Guiné Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril", com doze testemunhos de participantes, e aonde não falta a lembrança daqueles que já partiram como José Aurélio Barros Moura, Luciano Avelãs Nunes, Jorge Cabral Ventura e Joel Hasse Ferreira, Âncora Editora, 2024.

O primeiro depoimento cabe a Álvaro Marques que dá ênfase à crise académica de 1969 e à incorporação nas Forças Armadas. Esteve em Mafra e em Santarém, aí conheceu Salgueiro Maia, é amnistiado em 1970, reincorporado em 1972, tem uma troca de palavras com Spínola, este convida-o para um jantar no Palácio, não esconde ao general que aquela guerra perdeu sentido, segue depois para Aldeia Formosa, recebe o convite do capitão José Manuel Barroso para vir para Bissau trabalhar no PIFAS, vai fazer parte do Núcleo de Luta Anticolonial, irão juntar-se, entre outros, Celso Cruzeiro, Barros Moura, Sacadura Botte, estes pretenderam ser advogados de Coutinho e Lima, que estava preso no Cumeré, a ira de Spínola não se fez esperar, Barros Moura foi despachado para S. Domingos; o núcleo alargou-se, vão assistir à criação do MFA em Portugal, o MFA da Guiné passa a ter estatuto próprio, incluindo o projeto de desencadear o golpe de Estado, caso falhasse o de Lisboa.

Os milicianos terão desempenho na criação do MAPOS, um movimento para a paz que em 1 de julho aprovou uma moção onde se repudiava qualquer solução local e unilateral que não fosse aceite pelo Governo central em Portugal, exigindo que fossem imediatamente reatadas as negociações com o PAIGC e, ponto curioso, “Apelar para que os militares portugueses encarem a sua presença atual e estrutura na Guiné como uma forma de prestar a sua cooperação desinteressada ao povo da Guiné, assim contribuindo para o pagamento da dívida histórica criada pelo colonialismo português.” Álvaro Marques refere o seu trabalho na publicação Voz da Guiné.

O segundo depoimento pertence a Amaro Jorge, que foi alferes miliciano no Batalhão de Intendência de Bissau, também esteve ligado à crise académica de 1969, pertenceu aos Serviços Auxiliares, assim chega à Intendência de Bissau, colocado na chefia da Secção de Reabastecimentos, dá-nos conta da delicadeza do que era organizar a listagem de bens, combustíveis e outros, havia sempre comida a estragar-se ou a desaparecer. Foi destacado da Intendência para o Palácio do Governo, para adjunto do Governador, tendo ficado com os assuntos do pessoal e das relações de trabalho. Regressou a Portugal em 1 de setembro.

O terceiro testemunho vem de Canhoto Antunes, foi capitão miliciano, este em Madina Mandinga, Nema e Empada. Estagiou na Guiné integrado na CAOP 2 (Gabu), voltou a Mafra, forma a CCAÇ 4944, conta por onde andou, a atividade operacional, incluindo em 26 de maio de 1974 que houve 10 feridos numa emboscada. Chegou a Empada em 4 de junho, estabelecem-se contactos com o PAIGC. Regressa a Lisboa em 28 de setembro, em plena manifestação da “maioria silenciosa”, o que os obrigou a vários stops nas estradas até casa, até pensou que saíra de uma guerra para entrar noutra.

O quarto testemunho pertence a Celso Cruzeiro, da chefia do serviço de Justiça do Quartel-General, redator do Voz da Guiné. Chamo a atenção para o reconhecimento que os jovens capitães cedo fizeram do papel desempenhado pelos milicianos, eles contribuíram para melhor compreender a guerra como fenómeno dependente dos interesses do poder económico e do sistema de influência geopolítica. Salienta a importância dos encontros na Guiné em 1973 entre os jovens oficiais do quadro permanente e o conjunto dos oficiais milicianos ali presentes, ao longo dos primeiros meses de 1974 foram-se estreitando os laços. Recorda o abaixo-assinado lançado no dia 28 de abril de 1974 e dirigido ao Presidente da Junta de Salvação Nacional, solicitando um cessar-fogo imediato e conversações prontas com o PAIGC; fará um historial das etapas subsequentes, as conversas havidas entre Fabião e Spínola, a importância dos Movimento para a Paz, à institucionalização do MFA da Guiné, a ira de Spínola que convocou para Lisboa vários oficiais do quadro permanente e milicianos e recorda, em jeito de conclusão, que a participação dos milicianos tinha a dupla preocupação de colaborar com o MFA no processo de descolonização da Guiné e, por outro lado, fornecer uma base mínima de politização ao contingente dos soldados portugueses. Não deixa de lamentar como o novo país independente vestiu rapidamente o manto dramático da tragédia em que permanece.
Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26916: Notas de leitura (1808): Lembranças do que foi o Museu da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

terça-feira, 10 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26904: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (15): A despedida do Quartel de Brá e o Regresso

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


47 - DESPEDIDA DO QUARTEL DE BRÁ

Todo o Batalhão aprumado e engraxado apresentou-se, sem armas, ao General Spínola.
Depois do discurso de despedida proferido pelo General, seguiu-se a leitura dos louvores para as Companhias. Das quatro, a CCS e três operacionais, só a minha a CCAV 2483, os gloriosos "CAVALEIROS DE NOVA SINTRA", não recebeu qualquer louvor. Mais uma grande desilusão. Se fomos para Nova Sintra porque éramos a Companhia mais bem preparada para lá permanecer os primeiros seis meses, mas acabamos por ficar vinte, com o pior aquartelamento em termos de instalações e o mais doloroso, tivemos cinco mortos em combate e as outras nenhum, salvo a CCS que teve um por acidente com arma de fogo dentro do quartel. Não é de esquecer que o nosso capitão foi gravemente ferido. Sei a razão, naquele momento o nosso Comandante de Companhia era um alferes e o de todas as outras eram capitães do quadro permanente. Quero com isto dizer, que os louvores não se destinavam às companhias, pois estas extinguiam-se à chegada a Estremoz, mas sim aos capitães do quadro que tinham carreiras militares a seguir. Para além duma grande injustiça, foi também uma humilhação, desta maldita guerra.

Ensaio para desfile despedida
Cervajaria Pelicano
Alocução General Spínola
Marginal estrada para Stª Luzia
Catedral de Bissau


48 - O REGRESSO

Embarcamos no navio Úige no dia 22 de Dezembro de 1970. O pessoal estava e continuou eufórico até à chegada a Lisboa. A noite de Natal foi passda a bordo. Para além do jantar habitual, à meia noite foi servida uma ceia, com tudo o que comporta uma ceia daquela noite. Bacalhau com batatas e legumes, bolo rei, rabanadas e outras goluseimas, sem esquecer o tinto e o branco, e o espumante. No dia de Natal o barco foi autorizado pelas autoridades marítimas espanholas a aproximar-se do porto de Las Palmas, sendo visível a marginal, as palmeiras e o movimento automóvel. Chegamos a Lisboa no inicio da noite do dia 28, mas dado que não podiamos atracar, o barco ficou ancorado ao largo. De certeza que ninguém dormiu. Rádios, gravadores e cantoria fizeram-se ouvir toda a noite. De manhã cedo do dia 29, o barco atracou ao cais e começou o desembarque. As malas e os sacos estavam pesados por causa das compras, o que o tornou mais lento. No cais o pessoal desenfreado ía à procura dos seus familiares. Com facilidade encontrei os meus pais e irmã.

É o momento em que não de pode controlar as lágrimas. Seguiu-se o agrupar das tropas para o desfile perante as autoridades militares.

As camionetas da Setubalense esperavam por nós e entrado o último militar iniciou-se a viagem para Estremoz. No quartel, ordeiramente fizemos a entrega do fardamento e efetuadas as demais formalidades finalmente pudemos vestir a roupa civil. Seguiram-se as despedidas sempre emocionadas, com a promessa de encontros futuros, que felizmente acontecem todos os anos. Oa cafés encheram-se para o último copo. Num deles o meu amigo Jardim quis conhecer o meu pai e eu sabia porquê. Tentou convencê-lo a deixar-me ir com ele para Angola, a sua terra natal. Dizia que a avó queria que ele fosse gerir umas fazendas ou roças e pretendia levar-me para o ajudar. Ainda em Nova Sintra ao luar africano, por diversas vezes ensaboou-me a cabeça, procurando convencer-me. Não fui por razões familiares e porque tinha assegurado o regresso ao meu emprego. Grande amigo o Jardim. Por quatro vezes veio ao nosso convívio annual e na primeira emocionei-me com uma lágrima ao canto do olho.

O Úige afastando-se do cais
O cais
A terra à vista são as Canárias
Paz e sossego depois de 22 meses de muita inquietação
O alferes Martinho a mandar acelerar
Continência perante as autoridades

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26878: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (14): Tite, Quarto dos Furriéis e Últimos dias em Bissau

Guiné 61/74 - P26903: Efemérides (458): foi há 52 anos, o 10 de junho de 1973, Dia de Portugal, o último sob o regime do Estado Novo ("Diário de Lisboa", 11 de junho de 1973)


Dia de Portugal, 10 de junho de 1973, o leitor que adivinhe! Foto de primeira página, sem título de caixa alta, apenas com a seguinte legenda;



Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06817.167.26386 | Título: Diário de Lisboa | Número: 18126 | Ano: 53 | Data: Segunda, 11 de Junho de 1973 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Observações: Inclui supl. "Exclusivo" | Fundo: DRR - Documentos Ruella RamosTipo Documental: Imprensa  (Com a devida vénia...)


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
 


1. O jornal, o "Diário de Lisboa", que não se publicava em dias feriados, reproduz na página 14 (e não 12, como vem indicado na notícia de primeira página) o discurso do então Chefe de Estado, Almirante Américo Tomás (Lisboa, 1894-Cascais, 1987).  Seria o último 10 de junho, Dia de Portugal,  realizado na vigência do regime do Estado Novo.  (O jornalista não podia adivinhar que era o último, mas hoje sabemos; o leitor habitual também náo precisava de título para saber do que tratava.)

Na primeira página, ao canto direito,  publica-se apenas a foto que reproduzimos acima: o chefe do Governo a entregar uma condecoração a título póstumo (a uma mulher, carregada de luto, uma viúva de um militar morto em combate,  deduz-se). A imagem, escolhida foi esta, sempre pungente,  e não  outra (por exemplo, a dos "Torre e Espada" desse ano).  E não era por acaso, tendo em conta a orientação do jornal, "conotado com a oposição democrática".

A notícia das cerimónias (que o jornal não podia deixar de dar...) é remetida para a página 14...

Ficamos a saber que nesse  10 de Junho de 1973 foram distribuídas, em Lisboa e outras cidades,  mais de 4 centenas e meia de condecorações a militares dos 3 ramos das Forças Armadas, que se destacaram nos TO de África:

  • em Lisboa, 89 militares;
  • no Porto, 86; 
  • em Coimbra, 34;
  •  em Santarém, 46; 
  • em Évora, 4; 
  • no Funchal, 7; 
  • em Ponta Delgada, 6; 
  • em Luanda, 8 (além de  três civis africanos);
  • e, em Lourenço Marques, 59. 

Um major de cavalaria  dois capitães de infantaria e um alferes receberam em Lisboa a mais alta condecoração, oficial da Ordem Militar da Torre Espada com palma. (O jornal não diz os nomes,  mas sabemos que foram o maj cav J. Almeida Bruno, os cap inf F. Lobato de Faria e A.J. Ribeiro da Fonseca e o alf  pqdt A. Casal Martins.)

Condecorado com Medalha de Ouro de Valor Militar com Palma foi o  gen J. M. Bettencourt Rodrigues, que, ainda provavelmente sem o saber, seria o próximo com-chefe e governador da Guiné, substituindo o gen António Spínola (que cessaria funções em 6 de agosto de 1973).


Duas companhias do navio-escola brasileiro "Custódio de Melo" associaram-se ao desfile final. em que participaram mais de três mil elementos dos três ramos das Forças Armadas Portuguesas, das corporações e dos estabelecimentos militares (pág, 14). (O Brasil, recorde-se, ainda vivia sob ditadura militar, 1964-1985).

Do discurso do almirante Américo Tomás, o último presidente da República do Estado Novo,  publicado na edição do "Diário de Lisboa", de 11 de junho de 1973, reproduzem-se alguns excertos... 

Doze anos depois do início da guerra em África, parece haver preocupação,  por parte do então chefe de Estado,  com a coesão, a solidez e o moral das Forças Armadas, numa altura em que havia já sinais de pré-rotura do gen Spínola com o regime (ou  com a ala mais radical do regime) e quando o manuscrito do livro  "Portugal e o Futuro" estava já na forja, mas ainda em segredo e sem título. (Seria concluído, nesse verão, nas célebres termas do Luso onde Spínola passava sempre uma temporada.)

Pergunta-se: será que esta mensagem do então presidente da República chegou a todos os seus destinatários, e sobretudo aos que defendiam a bandeira de Portugal nos "até por vezes inconfortáveis quartéis do mato africano" (sic) ? E, se sim, terá sido bem acolhida e compreendida ?

Pessoalmente não me lembro do meu Dia de Portugal no TO da Guiné, nem em 1969 (em Contuboel) nem em 1970 (em Bambadinca ou algures no mato). 


(...)





segunda-feira, 9 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26902: Notas de leitura (1807): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Estão aqui muitos anos de aturado trabalho, investigação de longo fôlego que marcou a diferença na historiografia ao pôr o acento tónico na luta na Guiné Portuguesa que se iria constituir um fator principal do direito da descolonização e do próprio 25 de Abril. Todo o processo da independência da Guiné-Bissau tem subjacente a intervenção genial de Amílcar Cabral pela sua habilidade diplomática e por ter encontrado uma estratégia adequada conducente à declaração unilateral da independência. Acresce que o autor observa com extremo cuidado como este processo da independência acabou por definir os termos e os limites da descolonização portuguesa. Foi este o grande avanço e o virar de página que António Duarte Silva imprimiu neste ramo da historiografia.

Um abraço do
Mário



A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (3)

Mário Beja Santos

A diferentes títulos, este primeiro livro de António Duarte Silva constituiu uma singularidade nos termos da visão de como se processara a independência da Guiné-Bissau da colonização portuguesa. A historiografia da época (acima de tudo, a de caráter internacional) centrava-se no pensamento de Cabral e na forma como procedera estrategicamente na luta armada, em caso algum, toda essa vasta bibliografia jamais pusera acento tónico no que havia de revolucionário no processo jurídico que fora montado para a declaração unilateral da independência, por exemplo, matéria que o autor disseca em profundidade. Obviamente que não foge a dar-nos a moldura da ascensão do nacionalismo guineense, o papel que tiveram as decisões tomadas na reunião em Bissau em 1959, como se preparou a luta armada, a questão da unidade Guiné-Cabo Verde, a ligação do processo independentista guineense com o de outras colónias quando outros movimentos emancipalistas de colónias portuguesas africanas.

Em consequência, o ponto alto desta laboriosa investigação é desenhado pela originalidade das estratégias conducentes à declaração unilateral, não descurando que pelo caminho houve tentativas de negociação que pudessem conduzir à autodeterminação da colónia. Vimos no texto anterior o essencial da constituição do Boé, as reproduções da declaração de independência foram enormes, em pouco mais de 80 países reconheceram a República da Guiné-Bissau.

Mas há que atender a uma outra dimensão contemporânea à aceitação e reconhecimento do novo Estado independente, o caminho que nos conduz ao 25 de Abril, a existência do MFA da Guiné. Com o 25 de Abril, como o autor observa aprofundadamente houve um percurso por vezes muito acidentado nas negociações, isto a despeito de os Capitães de Abril reconhecerem que se impunha ratificar a existência de um novo Estado, partiu-se do cessar-fogo, de conversações em Londres e em Argel, perante o insustentável de não haver vontade para combater o próprio Spínola, como estribado do Conselho de Estado, promulga legislação que abre as portas à autodeterminação das colónias, a partir daí abria-se uma larga clareira para se chegar ao Acordo de Argel, a lei 7/77, de 27 de julho, fora determinante. Depois a Guiné-Bissau é admitida na ONU, concluído o Acordo de Argel que, como o autor releva, teve um papel impulsionador para outras independências.

Para os estudiosos, a quarta parte desta investigação de referência, dedicada à formação do Estado, é de consulta obrigatória, analisa os textos da formação do Estado Guiné-Bissau, é um exaustivo levantamento de caráter jurídico em que o autor conclui dizendo que “A Guiné-Bissau é, quanto aos modos da formação do Estado, um Estado criado por descolonização mediante uma declaração unilateral de independência. Em primeiro lugar, porque a proclamação de independência se fundou juridicamente no direito à autodeterminação e independência dos povos coloniais e, à data da sua formação, a Guiné-Bissau já não era, face ao direito internacional vigente, parte do território português. Depois, porque a luta armada de libertação nacional se tornara legítima quanto a repressão do exercício do direito à autodeterminação correspondia a um uso da força contrário à Carta da ONU e, mais ainda, porque o PAIGC fora reconhecido como único, autêntico e legítimo representante do povo.”

Esta apreciação inovadora carreada pelo autor prossegue com a sua leitura do direito à autodeterminação, leitura que desagua no direito de descolonização em que se formou a Guiné-Bissau pois o autor diz que a formação da Guiné-Bissau foi um acontecimento excecional, constituindo uma etapa importante internacional da descolonização, e passa-se revista a todo o processo histórico vivenciado pelos movimentos de libertação das colónias portuguesas, o estabelecimento de contactos do PAIGC com a ONU, a justificação do recurso à guerra, e, por fim, as bases jurídicas do reconhecimento da Guiné-Bissau, um processo que não foi linear para todas as independências das colónias portuguesas. Os anexos do trabalho incluem peças fundamentais: relatório da reunião do PAI, de 19 de setembro de 1959; proclamação do Estado da Guiné-Bissau; Constituição da República da Guiné-Bissau, aprovada em 24 de setembro de 1973; as leis portuguesas conducentes ao reconhecimento do Estado soberano da Guiné-Bissau; a legislação guineense sobre a orgânica do Estado, a atribuição a Amílcar Cabral do título de Fundador da Nacionalidade; a resolução da ONU de 2 de novembro de 1973 que alude à presença ilegal de Portugal na Guiné-Bissau; a moção do MFA da Guiné de 1 de julho de 1974; o texto do Acordo de Argel e respetivo anexo.

Para a época, o autor revelava a mais extensa bibliografia relativa à colonização, guerra colonial e luta de libertação nacional, bem como a bibliografia sobre o processo de independência da Guiné-Bissau e a sua relação com a descolonização portuguesa.

Dá-se como provado o que o autor induz na sua escrita da contracapa da obra: uma perspetiva multidisciplinar, abordando as vertentes histórica, jurídica e política quer nos planos interno, colonial e internacional; trata das características locais do colonialismo português e do desenvolvimento do nacionalismo guineense; recorre a fontes primárias, documentos inéditos e alguns testemunhos orais, apoia-se numa bibliografia extensa e pesquisas em múltiplos centros de documentação.

Sujeito às rugas do tempo e às correções suscitadas por novas fontes e novos olhares sobre este complexo caminho que levou à independência da Guiné-Bissau, mantém-se com um estudo admirável que beneficiará toda e qualquer investigação em torno da presença portuguesa e da criação do Estado soberano da Guiné-Bissau.

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Notas do editor:

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