Dois são comentários de Manuel Amante da Rosa, e o outro um excerto das memórias do Arsénio Puim.
"Barco turra", e não no "barco dos turras"... Chamavam-se assim as embarcações civis que faziam a carreira Bissau-Xime-Bissau ou Bisssau-Bambadinca-Bissau... O pai do Manuel Amante da Rosa tinha uma carreira diária para o Xime, com o "Bubaque"... É possível que elementos do PAIGC, militantes ou simpatizantes, também utilizassem este meio de transporte... Não havia outros, a não a ser aéreos. A avioneta (civil ou militar) era um luxo... Muitos de nós, quando íamos a Bissau, utilizávamos o "barco turra"... Fardados, mas desarmados... Sem escolta, confiando na segurança que se fazia no Mato Cão e na Pona Varela...
O nosso ex-alf mil capelão Arsénio Puim (CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72) escreveu num das suas crónicas, sobre "cruzeiro turístico" pelo Rio Geba abaixo... Vale a pena relembrar. Não sei se também se aplicava ao "Bubaque" o epíteto de "barco turra"... O Manuel Amante da Rosa já veio dizer aqui que o pai não tinha nenhum acordo com o PAIGC. Ele prestava um serviço público, de que todos beneficiavam de um lado e do outro (população, militantes e simpatizantes do PAIGC, militares portugueses...). Em 10 anos de navegação pelo Geba acima Geba abaixo, o "Bubaque" terá sido atacado uma vez, "por engano", em 1/6/1973, à uma e tal da manhã, em São Belchior, antes de chegar a Bambadinaca
O embaixador Manuel Amante da Rota, 2013. Cortesia da
RTC - Radiotelevisão Caboverdiana].
Manuel Amante da Rosa (**)
[ex-fur mil, QG/CTIG, Bissau,1973/74 (embaixador plenipotenciário da República de Cabo Verde em Itália entre 2013 e 2018; membro da nossa Tabanca Grande; o pai, antes de se tormar empresário de trasnsportes fluvianets, tinha sido, até ao início da guerra, comerciante em Belim, Fulacunda.]
(...) a navegação fluvual e costeira na Guiné era complexa e sempre dependente do ciclo das marés. Fazia-se muito pelos canais, à vista, com pontos de referência, e de forma impírica.
Muito raros eram os arrais, motoristas e marinheiros que sabiam ler ou escrever. Mesmo assim tornavam-se pela prática experientes navegadores e exímios maquinistas. Muitos deles eram ainda do tempo das lanchas à vela. Muitos bebiam é certo o que em certas épocas se tornava um perigo. Metê-los no porão era a melhor opção. Pude cconstatar isso por diversas vezes. Dessa vez com o meu Pai ausente e com uma tripulação quase toda bêbada de cerveja, porque os excursionistas apesar de avisados deram-lhes à vontade de beber, sem restrições, tive de ir para o leme à partida de Bubaque.
Era um bom navio. De ferro. Dois pisos. Um antigo e batido cacilheiro, "O Amanhã" . Dotado de um potente e excelente Caterpillar que lhe fazia bater entre 10 a 12 nós em viagem.
O meu Velho comprara-o anos antes ao Sr. Fausto, português de Setúbal, opositor do regime de Salazar, desterrado para a Guiné, nos anos 40, e que ali se tornará um reconhecido madeireiro. Era ligado ou pelo menos tinha ligações a alguns dirigentes do PAIGC. Teria sido ele a transportar Luis Cabral, durante uma noite, até à fronteira com o Senegal para que não fosse preso pela PIDE que lhe estava no encalço. Era pessoa conhecida e ter levado para Bissau uma boa embarcação e colocado o nome de "O Amanhã" diz muito. (****)
Na realidade existe muita semelhança com a navegação fluvial do Brasil. Lembro-me que a primeira coisa que fiz ao chegar um dia a Manaus foi ir para o Hotel e apanhar um táxi para o porto/mercado. revivi o Pidjiguiti tal às semelhanças. Pontão, navios no lodo, grande amplitude das marés, mesmos cheiros, gentes, embarcações parecidas e até mercadorias. Umas boas horas somente a observar, a conversar e a passar de um navio para o outro.
Anos mais tarde em Amapá, norte do Brasil, foi a mesma constatação e subir o Amazonas de lancha ronceira até Afuá. Pormenores inesperados que refluem na memória que julgavámos há muito desgarrados. (...)
Arsénio Puim (***)
|
Arsénio Puim, ilha de São Miguel, Açores, 2019.
Foto: Arsénio Puim |
[ açoriano, da Ilha de São Jorge, ex-alf mil capelão; foi expulso do seu Batalhão, o BART 2917, e do CTIG em maio de 1971, apenas com um ano de comissão; no final da década de 1970 deixou o sacerdócio, formou-se em enfermagem, casou-se, teve 2 filhos; vive na Ilha de São Miguel; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande; tem cerca de 40 referências no nosso blogue; é autor da série "Memórias de um alferes capelão", de que se publicaram doze postes]
(...) Mas as embarcações que circulavam no Geba Estreito são também barcos a motor, para transporte de pessoas e de carga, que faziam viagens regulares e prestavam um importante serviço entre a capital do território e Bafatá.
Vim, uma vez, num destes barcos da carreira civil desde Bambadinca até Bissau, numa longa e pitoresca viagem que hoje ainda recordo.
Alguns militares usavam, uma vez ou outra, este meio de transporte para se deslocarem à capital. Penso que o grande Machadinho e meu grande amigo [, alf mil Abílio Machado, nosso grã-tabanqueiro, e que pertencia igualmente à CCS/BART 2917], também ia nesta viagem, mas não tenho a certeza.
No «Bubaque», apinhado de pessoas – muitos africanos e africanas e alguns soldados portugueses –, galinhas, porcos, cabras, (tudo em muita paz), navegámos ao longo do Geba Estreito, ladeado de mato denso e misterioso e cheio de curvas muito apertadas que obrigavam o barco a manobrar bastante próximo das margens. Depois entrámos no Geba largo, cada vez mais espaçoso e aberto aos nossos olhos curiosos, de margens arborizadas e baixas, ponteado com os seus quarteis militares estrategicamente disseminados dum lado e outro do território.
Sete horas depois, agradavelmente vividas em conversação amena e, sobretudo, a olhar, profundamente, a terra da Guiné e desfrutar da sua natureza, o «Bubaque» havia passado a grande ria do Geba e entrava no porto de Bissau, quando eram cinco horas da tarde do dia 8 de Março de 1971.
Fácil se tornou para nós pensar que, não obstante serem alvo de um ou outro ataque esporádico, não seria possível estes pequenos barcos civis, indefesos e para mais trasportando elementos do exército português, circularem regularmente numa tão extensa e recôndita área fluvial se não existisse um acordo secreto entre a empresa e a guerrilha, como aliás era voz corrente.
Mas além deste possível e mais ou menos controlado obstáculo humano, todo o movimento de barcos no Geba é condicionado por um interessante fenómeno natural que dá pelo nome de macaréu.
É, em linguagem simples, uma onda, provocada pelo choque da maré com a corrente fluvial, que avança rio acima, impetuosa e com grande ruído, operando à sua passagem a transição brusca e imediata da baixamar para a preiamar, numa amplitude que pode atingir dois metros ou mais.
Neste interior da Guiné, a mais de 100 quilómetros de Bissau, várias vezes me detive junto do grande Geba para ver passar o macaréu, poderoso e cheio de mistério, admirável e sempre benvindo. (...)
Manuel Amante da Rosa (***)
(...) Caro Arsénio Puim, alegrou-me muito saber que fez uma viagem no "Bubaque" de Bambadinca para Bissau. Muito provavelmente, se a sua jornada foi num fim-de-semana eu deveria estar a bordo. Se assim foi, deveremos ter saído do sempre atulhado e improvisado cais de Bambadinca às 11 da manhã. Uma a duas horas antes da vazante. Factor regular (horário das marés) que muito nos preocupava para não ficarmos em seco no meio do Mato Cão.
O Bubaque era do meu Pai que o adquirira à Marinha Portuguesa e o transformara em barco de passageiro com capacidade para 140 ou 180 passageiros, após ter sido abatido à carga. Teria sido antes uma trainera algarvia que foi transformada ainda em Portugal em Lancha Patrulha (o LP4) com uma pesada casamata blindada, em ferro, a meia nau e enviada para a Guiné em principios de 1960.
Muito patrulhou os rios da Guiné tendo inclusivamente participado na batalha do Como. Com a chegada regular das LDM e LDP as 4 LP tornaram absoletas e foram abatidas por Decreto do Ministro da Marinha. Eram robustas, aguentavam bem o mar e todas possuiam bons motores.
O Bubaque era muito conhecido na região do Leste. Era a carreira mais regular entre Bissau e Bambadinca e exclusivamente destinada ao transporte de passageiros e suas cargas. Era também conhecido por “Djanta Kú cia” pela sua rapidez na jornada. Significava que se podia almoçar em casa e chegar ao seu destino ainda a tempo de jantar.
Fiz muitas e muitas viagens nesse navio, mais de dia que de noite, algumas com acidentes e avarias graves no percurso mas, estando a bordo, nunca fomos vítimas de ataque. Meu Pai sim, numa madrugada em pleno Mato Cão, por erro de identificação. Não me parece que tivesse havido alguma vez um acordo ou pagamento de passagem. Era sabido que só transportavámos passageiros e muitos deles seriam familiares próximos de quem estava na luta quando não fossem mesmo guerrilheiros ou mensageiros a caminho de Bissau e vice-versa. Transportei muitas vezes militares que demandavam e/ou outro porto Sentiam-se seguros no "Bubaque". A viagem directa Bambadinca-Bissau demorava em média de 5 a 6 horas, duas das quais na “auto-estrada” do Mato Cão a parte que mais encanto me dava. A subir era sempre menos.
No Geba largo, no tempo das chuvas e tornados, a preocupação era evidente devido às vagas curtas, sempre de través e instabilidade da massa humana a fugir da chuva ou a agachar-se do vento a sotavento dele. Nessas ocasiões aproximavamo-nos da margem oposta passando por Jabadá e Enxudé até cortar directo para oeste de Cumeré, passar entre a ponte cais e o ilhéu do Rei e atracar no Pidjiguiti. No outro dia, a favor da mare, lá se iniciava uma outra jornada. Tenho ainda vivas as mesmas imagens que tão bem descreveu das margens do Geba apertado. (...) (*****)
____________
Notas do editor
(*) Vd. poste de 22 de maio de 2019 >
Guiné 61/74 - P19815: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXX: Viagem, de regresso, do Gabu a Bissau, em 26/2/1968: no 'barco turra', a partir de Bambadinca (II)
1 de julho de 2015 >
Guiné 63/74 - P14823: Memória dos lugares (299): O Rio Geba e o "barco turra", a caminho de Bissau, no dia em que o homem chegou à lua (20 de julho de 1969) (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)
(**) Vd.comentário ao poste 17 de março de 2015 >
Guiné 63/74 - P14377: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (29): A Ilha das Galinhas que eu conheci e a nostalgia da "prisão" com que o Zé Carlos Schwarz ou Zé Cabalo (, no meu tempo de liceu), nos surpreende, na letra e música de "Djiu di Galinha" (Manuel Amante da Rosa)
(***) Vd. psote de 12 de dezembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba
(****) Vd. poste de 20 de junho de 2017 > G
uiné 61/74 - P17489: (De) Caras (85): o testemunho de Manuel Amante da Rosa, embaixador plenipotenciário de Cabo Verde em Itália, sobre o Fausto Teixeira: "era uma figura distinta, opositor ao regime de Salazar, vigiado pela PIDE/DGS, amigo do meu pai que lhe comprou, no início dos anos 70, o último navio que ele levou para a Guiné, um antigo cacilheiro que fazia carreiras regulares para o Xime e para os Bijagós ...Morreu depois do 25 de Abril em Portugal".
Vd. também postes de:
18 de novembro de 2014 >
Guiné 63/74 - P13912: (Ex)citações (247): A embarcação "Bubaque", da carreira Bissau-Bambadinca-Bissau (Manuel Amante / Jorge Araújo / J. F. Santos Ribeiro)