1. Não havia só as anedotas do "Caco Baldé", ou do "Gasparinho"... Havia uma Spinolândia, do Cacheu ao Cacine... Naquela guerra, todos os bons pretextos para um gajo se rir ajudavam a passar o tempo e amenizar as agruras do arame farpado e das operações no mato (*)...
Há "cromos" que ficam para a eternidade, "grafados" no papel. Outros vão desaparecer dos neurónios da nossa memória. Já aqui citámos alguns dos "heróis" do livro do Manel Mesquita, "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor, s/l, 2005, 144 pp.), como por exemplo o Mário...
O Mário já estava farto de estar na Guiné e um dia encheu-se de coragem e interrompeu o general, em plena parada, em Aldeia Formosa, para expor a sua situação: "Vossa Excelência, meu general, dá-me licença ?" (**)...
O general deu-lhe "licença" e o Mário ganhou um "bilhete" para regressar a casa no primeiro barco... A história foi contada pelo Manel Mesquita, o autor dos "Resistentes de Nhala", soldado da CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71).
O nosso crítico literário já lhe dedicou em tempos, ao livro e ao seu autor (que conheceu a caminho de Fátima), duas saborosas e generosoas "notas de leitura" (***)
(...) "Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente." (...)
Nessa galeria de figuras humanas, do tempo da Spinolândia, está o "Fugitivo"... Merece figurar aqui num poste, na montra grande do nosso blogue. Não sei se o Spínola o conheceu, mas deveria, por certo, de gostar de o conhecer. Nós gostámos e pedimos licença ao Manel Mesquita para partilhar o seu retrato-robô com os nossos leitores. É um retrato feito a traço grosso, convenhamos. Mas o leitor vai-se rir a bandeiras despregadas, como nós rimos.
É uma figura bem típica da "literatura pícara" da nossa guerra. Como é nosso timbre, não fazemos juízos de valor sobre os nossos camaradas... A verdade é que "a tropa mandava desenrascar"... E o "Fugitivo" era um militar desenrascado... À letra, desenrascado é alguém que se sabe "livrar de um perigo, de apuros, de dificuldades."...
Reproduzimos aqui, com a devida vénia, essas duas páginas do livro. É também uma homenagem aos "resistentes de Nhala", os bravos da CCAÇ 2614.
O "Fugitivo"
por Manel Mesquita
O "Fugitivo" era natural e residente no concelho de Sintra. Era fisicamente muito baixo e entroncado, um artista a jogar futebol, preferia o lugar de médio atacante.
Quando fomos para a recruta, rodava na televisão uma série com o nome "O Fugitivo". Ele assentou praça com um braço ao peito por fratura. Como havia outro, o outro levou com a alcunha de "Maneta". E o nosso Manuel Pedro M... levou com a alcunha de "Fugitivo".
Nunca se importou. Era uma pessoa alegre e com sentido de humor.
(i) A tomar banho, um dia, deu nas vistas o seu curto pénis, foi motivo de chacota durante toda a comissão, principalmente na presença de mulheres africanas. Ele não desarmava, dizia que era proporcional ao corpo.
(ii) Quando veio de férias, gabou-se e passou a constar-se que andava com uma determinada moça jeitosa e com dote. Tinha barba muito forte, uma manhã foi ao barbeiro, todos os cumprimentaram o recém-chegado e deram-lhe a vez.
Quando o barbeiro lhe passava a navalha de barba pela parte da frente do pescoço, perguntou-lhe:
− Então você é que é o tal que se gaba que anda a comer a minha filha?!
O Manel Pedro (como é lá conhecido) perdeu o sentido de humor, quase perdia a fala:
− Eu?!..., na, na, eu não!... É mentira. Isso é uma grande mentira..., eu até nem gosto de mulheres!!!...
O barbeiro voltou-se para a sua mesa de trabalho, passando a navalha pelo assentador.
O "Fugitivo" mostrou por que lhe chamavam tal nome: levanta-se da cadeira, larga as toalhas e, junto da porta, grita para dentro:
− Eu... eu até sou paneleiro!
Fugiu da barbearia com a barba meia feita e meia por fazer e toda por pagar, nunca mais por ali ele quis passar.
Mostrou, mais uma vez, que não foi por acaso que o batizaram como "Fugitivo". Ficou então a saber a que a tal Maria do Carmo era a filha do barbeiro...
(iii) Quando convidado para um petisco, era sempre o primeiro a aparecer. Era um bom garfo! Para trabalhar e para as saídas (para o mato) era sempre o último. Quando preparávamos a saída, o alferes perguntava se estava o "Fugitivo"; se sim, estava tudo, podíamos sair.
Escapava-se, sempre que podia, às faxinas e outros serviços de quartel.
(iv) Um dia segredou a um de nós que a namorada se queixava que nos aerogramas e cartas não lhe mandava palavras doces... Então o "Fugitivo" encheu-lhe uma aerograma de palavras como: marmelada, geleia, mel, açúcar, compostas, etc., isto para o pequeno-almoço; para o almoço: laranjas, tangerinas, etc.; para o lanche, marmelada, mel, geleias, etc.; para o jantar: uvas, figos, maçãs, pêras, etc.
(v) Um colega estava com uma máquina fotográficas na mão, ele meteu-se todo dentro de um bidão e... pediu-lhe:
− Tira-me uma fotografia de corpo inteiro para mandar à moça.
(vi) Num dos patrulhamentos, parámos para descansar junto à "Bolanha dos Passarinhos". Tirou a carga para descansar e, quando levantámos, nunca mais se lembrou que deixara ali no chão o cano suplente da HK 21.
Quando chegou oa aquartelamento deu pela falta. Preocupado, disse a todos a enrascada em que estava envolvido, que tinha que ir lá buscar o cano.
Como raramente falava a sério, ninguém se acreditou. Era noite, preparou-se e começou a ir sozinho. Foi aí que o pessoal se acreditou, e apareceram voluntários a comunicar e a pedir autorização ao capitão para ir ao local.
O "chefe" comprendeu a aflição do soldado e mandou uma viatura. Soubemos que havia correio em Buba, aproveitámos e fomos lá buscar o que para nós era importante receber. A viatura avariou, e não havia mecânico. Desenrascámo-nos, mas chegámos ao aquartelamento era quase meia-noite, sem jantar e sem comunicações com ninguém, mas já com o cano que era considerado material de guerra.
(vii) Dizem que um dia mandou dizer à mãe (não sei esta é verdade, ele nega; "lerpar" era um calão que queria dizer, para nós, morrer)... Ter-se-á referido a um colega duma aldeia vizinha, nestes termos:
− Minha mãe, o ... (nome do fulano) lerpou. Vai antes do tempo. Um dia destes ele vai chegar aí, num barco.
Na volta do correio, a mãe respondeu-lhe:
− Meu filho, vê se lerpas também, para vires mais cedo daí!
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
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19 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6427: Notas de leitura (108): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (2) (Mário Beja Santos)