Guiné > Bissau > HM 241 > c. maio/ junho de 1972 > Gravemente ferido em combate, em 14/5/1972, o José Maria Pinela esteve aqui internado dois meses, sendo sendo evacuado para o HMP, em Lisboa donde teve alta em 6/4/1973. É hoje DFA (Deficiente das Forças Armadas).
É caso para perguntar;: quantos de nós passaram por aqui ? quantos cá morreram ? quantos foram transferidos para o HMP ? quantos foram parar ao "Texas", o "Anexo de Campolide" ? quantos passaram por Alcoitão ? quantos "viajaram" até Hamburgo?
Foto (e legenda): © José Maria Pinela (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Não temos falado aqui suficientemente e em voz alta (!) dos nossos "hospitais militares" (o HM 241, Bissau, o HMP, Lisboa, incluindo o seu famigerado "Anexo de Campolide", o Centro de Reabilitação de Alcoitão, que pertencia à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o Hospital Militar de Hamburgo, e outros "pesadelos") (*)
Este excerto do livro do A. Marques Lopes ("Cabra Cega, 2015) merece ser relido e comentado (**). Não pode passar sem comentários. E se tiver cem comentários, melhor, é sinal que ainda estamos vivos... (***).
O quarto dos horrores... no "Anexo de Campolide" do HMP
por A. Marques Lopes
(...) À medida que ia andando espreitava para os quartos e camaratas. O que via deixava-me estarrecido e sem fala, não havia palavras perante tal panorama. Havia alguns que pareciam melhor, mas vi homens sem pernas, outros sem braços, uns cegos e, destes, alguns sem mãos ou sem braços também. Ainda bem que não era para falar com eles que ia. Só de ver já era impressionante. Se tivesse de os ouvir contar como foi, estavam stressados de certeza, devia ser terrível.
Ia tão com intenção de só ver o Fragata que não me passara pela cabeça que, no quarto dele, podia encontrar igual panorama. E encontrei mesmo quando lá cheguei e vi as quatro camas.
Fiquei especado à porta, atónito. O Fragata estava com uma perna engessada, numa cama estava um sem mãos e a cara com manchas esverdeadas, noutra um sem pernas e, fora o que me deixara estarrecido, vi numa das camas um tronco de homem com uma cabeça.
(...) Enquanto falava com o Fragata, ia dando umas miradas aos outros que lá estavam e via-os interessados na conversa. Acabei por ficar familiarizado com aquele ambiente e mais calmo. Senti-me mais à-vontade.
– Como é que foste ferido? –perguntei ao que não tinha mãos.
– Era o furriel de minas e armadilhas e… já sabe. Estava a desmontar uma armadilha e ela rebentou-me nas mãos.
– Aí o Quim está fodido. Nem uma punheta pode bater – disse o Fragata.
E riu-se, o sem pernas também. Menos o tronco com cabeça. Mas o Quim não se desmanchou.
– Trabalho mais e melhor sem mãos do que vocês com elas. Quando a minha Zulmira cá vem vocês vêem bem quanto tempo passo com ela ali no quarto do truca-truca.
Admirei-me pois não imaginava que a tropa se preocupasse em cuidar desse aspecto com os feridos que ali tinha. Se calhar era um esquema organizado por eles, também podia ser.
Virara-me para o que não tinha pernas e ia-lhe perguntar mas ele antecipou-se.
–Era condutor auto-rodas e uma mina que rebentou por baixo da GMC, levou-me as pernas. Mesmo assim, meu alferes, tive mais sorte que ali o Casqueiro – apontou para o de tronco e cabeça. – Ele conduzia um Unimog, que é muito mais leve, e a mina levou-lhe tudo. Pernas, braços e tomates. E até o deixou surdo.
Fiquei silencioso. Além dos mortos, até tinha entre eles uns amigos, havia estes jovens com a vida desfeita, sem hipóteses do futuro que podiam vir a ter se não os metessem naquela guerra. O Casqueiro sobretudo. Estava ali, rosto fixo sem ouvir nada da conversa deles. Era um homem-saco só podendo abrir a boca para lhe meterem comida e água. Já reparara que devia ter uma fralda, de certeza que era onde fazia as necessidades. As deste muito mais, mas os outros também tinham ficado com grandes limitações. O Fragata safara-se, e graças ao inimigo. À vista disto já não era a estupidez ou as barbaridades como se fazia a guerra que me perturbavam, era a guerra em si, e sobretudo esta sem sentido que deixava tantos sem futuro.
(,,,) Os outros notaram como eu estava. O Fragata quis amenizar. Era palerma, às vezes, mas era bom rapaz. Eu sabia disso.
– Eu aqui, meu alferes, sou o anjo deles – disse –. Ali ao Quim sou eu que lhe abro a carcela quando ele quer mijar. Mas não lhe pego na gaita! – os outros riram-se. – O Fragoso não, que o gajo tem mãos para arrear as calças. O Casqueiro não é preciso tratar dele, ele faz tudo sozinho – riram-se todos. – Tenho é que chamar o enfermeiro quando o gajo se borra e mija todo. É cá um pivete! – os outros riram-se novamente. – E à noite? Nem queira saber. Quando estes gajos se põem a sonhar com minas e emboscadas não me deixam dormir. Tenho de os acordar e chamar o enfermeiro para lhes espetar uma agulha.
Já vira, já vira a malta inutilizada e traumatizada ali despejada. Aquelas piadas eram um intervalo curto nas suas horas longas de angústia e desespero. Tinha de sair dali.
– Vou-me embora. Mas antes diz-me lá, ó Fragata, ainda bebes mijo?
– Não goze comigo, meu alferes. Agora é só cerveja.(....)
(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)
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Nota do editor:
(*) Vd. postes de:
15 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24850: Efemérides (410): Há 56 anos: onze mortos (além de dezenas de feridos), da CART 1661, na estrada Porto Gole-Bissá, em duas minas A/C (uma incendiária), em 5 e 6 de outubro de 1967... Ainda hoje recordo os soldados queimados, alguns com o terço ao pescoço, rezando para os salvarmos! (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé, Missirá, Porto Gole e Ilha das Galinhas, 1966/68)
17 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24074: (De) Caras (195): Em 1975, cinco anos depois, saí do Hospital Militar Principal com as marcas da mina A/P, armadilhada, que me mudou completamente a vida: estava destroçado, cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda (Manuel Seleiro, 1º cabo, Pel Caç Nat 60, DFA, São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)