Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados
Assunto: O crioulo da Guiné
Luís Graça
Envio um pequeno trabalho com algumas considerações pessoais sobre o crioulo da Guiné, um assunto que me cativou na minha estadia neste território, para publicação no blogue, se achares que tem interesse.
Um abraço, Arsénio Puim
2- Memórias de um capelão > O Crioulo da Guiné
Um aspecto da cultura guineense que logo me chamou a atenção e despertou muito interesse durante a minha estadia na Guiné, na zona de Bambadinca, foi, precisamente, o crioulo falado pelos nativos deste território.
O crioulo, ou kriol, na língua nativa, é apenas um dos sistemas linguísticos da Guiné, pois que as populações autóctones falam, em primeira mão, a língua gentílica da sua etnia e, com alguma frequência, o português, de sabor acrioulado, simplificado nas suas regras gramaticais e com um sotaque mais afim do brasileiro. Isto leva-me a dizer que o povo da Guiné, falando habitualmente três línguas e, às vezes, conhecendo ainda alguma das línguas de outras etnias, é um povo poliglota.
O crioulo nasceu da confluência do português com as línguas indígenas e a idiossincrasia dos aborígenes. É, portanto, uma herança do país colonizador, moldada pelo povo indígena à sua medida e ao seu sabor.
Os nativos consideram-no a língua dos «criston» (os cristãos), um termo que na Guiné tem uma referência específica à etnia papel, a qual se concentra sobretudo em Bissau, e aos caboverdeanos, muito abundantes neste território.
Mas nos tempos actuais quase todas as etnias falam o crioulo, nomeadamente os papeis, os fulas, os mandingas, e os caboverdeanos, ainda que com algumas pequenas variações e peculiaridades.
Referiu-me o sr. Jamil, conhecido comerciante libanês que residia então no Xitole, que na Guiné há o crioulo fula e o crioulo papel, além do crioulo de Cabo Verde. Esta análise corresponde aos dois dialectos que alguns investigadores consideram integrar o crioulo guineense: o dialecto de Bissau / Bolama, a que se pode associar o crioulo de Cabo Verde, e o dialecto de Bafatá, que será o referido crioulo dos fulas. Na opinião dos investigadores, há ainda o dialecto crioulo do Cacheu, território situado a norte, com influência do francês, pela proximidade do Senegal.
Entre os vários fenómenos linguísticos que determinaram o processo de formação e evolução do crioulo guineense em relação à língua mãe, e o caracterizam sobremaneira, julgo poder destacar dois que lhe estão especialmente presentes: o primeiro é a eufemização sonântica, de acordo com o profundo sentido musical africano, o que lhe confere uma sonoridade e um ritmo próprios. Na verdade, é agradável ouvir, por exemplo: «djúbi si na chúbi» – vai ver se está a chover; «cá bu tchora, fidjo» – não chores, filho; «ami cá sibi»– eu não sei.
O outro fenómeno é a descomplexificação linguística, nomeadamente pela eliminação das clássicas e complicadas regras gramaticais, tanto morfológicas como sintáticas, da língua portuguesa. No crioulo não há artigos, nem variações de género e número dos nomes, e os verbos só tem uma forma gramatical para todas as pessoas, tempos e modos, correspondente à 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo: ami ná bai, bu ná bai, i ná bai – eu vou, tu vais, ele vai. (O na é a partícula usada na forma afirmativa, enquanto a negativa se faz com a partícula cá, como vimos nas últimas duas frases crioulas acima. É toda uma simplificação que roça mesmo a ingenuidade linguística e lhe dá um engraçado sabor infantil, cheio de expressividade.
E para essa ingenuidade e graça da linguagem crioula, concorre ainda a genuinidade e primitivismo do seu léxico e da construção fraseológica: corpo sta bom? (como está?); ermon di amanhã – depois de amanhã; mussa piquenino – doi um pouco; e sobretudo o pluriuso da pitoresca palavra manga, com o significado de muito, grande quantidade, nos mais diversos casos – manga di patacão, manga di giro, manga di mama firme, manga di sabe (saber muito), manga di mofineza na cabeça (ser atrasado mental), manga di cabeça grande (estar embriagado), manga di cú piquinino (ter medo) e até manga di sàtice ( grande chatice).
A Guiné, e a generalidade dos países africanos, adoptaram, para uso oficial, a língua do país colonizador, mas também é certo que essas, muitas vezes, não são as línguas mais faladas pelo povo e que, por outro lado, se tem vindo a desenvolver, em algumas regiões, movimentos linguísticos e literários de tendência indígena.
Amílcar Cabral, com a sua visão larga e profundo conhecimento da cultura indígena, já estatuíra no seu programa para a Guiné a adopção do crioulo, desenvolvido e com codificação escrita , como língua comum do povo do território.
A sua morte criminosa, e desastrosa para a independência da Guiné e para a causa africana, parece, no entanto, não ter enterrado este projecto cultural, já que o crioulo faz parte do currículo da escola primária deste país, juntamente com o português. E o crioulo continua a ser a língua corrente e generalizada da Guiné: na vida do dia a dia, nas escolas, nas Igrejas e até na política interna.
Por tudo isto, não me custa admitir que o kriol, com todas as suas virtualidades, constitua no futuro - e de alguma maneira já hoje - a grande língua do país da Guiné Bissau, ao lado do português, para uso oficial.
Arsénio Puim
2. Comentário de L.G.:
Há mais de um ano que eu não tinha notícias do nosso amigo e camarada Puim. O último mail dele (27/3/2013) dizia o seguinte (transcrevo um excerto):
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Nota do editor:
Vd, postes anteriores da série >
(...) Este é o primeiro duma série de pequenos relatos, para este histórico blogue de Luís Graça, respeitantes à minha vivência como alferes capelão do Batalhão 2917, que acompanhei desde a Serra do Pilar até Bambadinca, no centro da Guiné, entre Dezembro de 1969 e Maio de 1970.
É meu propósito essencial rememorar e partilhar com os antigos companheiros do Batalhão, por quem tenho muito apreço, alguns factos e acontecimentos que nos são comuns, sem nunca pretender atacar quem quer que seja. (...)
10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau
(...) No dia 2 de Março de 1970, o BART 2917, em que me integrava como alferes-capelão, já deixara a Pesada [, o RASP 2,] em Gaia, e encontrava-se na linda e pequena cidade de Viana do Castelo, para fazer o IAO.
Foram dois meses e meio de intenso treino operacional, incluindo um acampamento, em princípios de Março, na serra, para as bandas de Santa Luzia, em que também participei. Um ambiente duro, onde faltava tudo o que pudesse saber a conforto. E, sobretudo, que frio, meu Deus, durante a noite! (...)
21 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4989: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71)(3): De Bissau a Bambadinca, a cova do lagarto
(...) Às duas horas da manhã do dia 31 de Maio de 1970 deixámos Bissau, numa LDG, e continuámos a subir o Rio Geba, em geral bastante largo e de margens baixas e arborizadas, pela calada da noite, estranhamente muito fria. Cinco horas de viagem, sem qualquer incidente, até ao Xime, onde ficou já a Companhia 2715.
No dia anterior tinha-se realizado a entrega das armas aos membros do Batalhão. Todos em fila, um por um. Quando chegou a minha vez, recusei receber a G3. Uma questão, simplesmente, de missão específica do capelão e de consentaneidade com as suas funções, enquanto sacerdote ao serviço da Igreja - expliquei.
- Você é testemunha de Jeová? – atalhou um oficial superior que superentendia ao acto.
- Não, sou padre católico – retorqui. (...)
Ao capelão militar é atribuída uma função específica, que é prestar assistência religiosa aos militares do Batalhão e testemunhar, na medida do possível, os valores do Evangelho, e ele não é, compreensivelmente, um combatente da guerra, independentemente da justeza ou não desta, posição que eu assumi e demarquei logo de início, renunciando à posse de arma de combate, que me era proposta. Nem, de resto, a preparação elementar ministrada no Curso de Capelães Militares durante um mês e meio, na Academia Militar da Rua Gomes Freire, me habilitava para esse desempenho. (...)
12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba
São disso um exemplo os dois grandes rios que passam na zona interior: o Corubal e o Geba. O primeiro, que nasce na Guiné Conacri e vai desembocar no Geba, a sul do Xime, é navegável até à região do Xitole. A partir daqui, surgem alguns rápidos: primeiro, em Cusselinta – bonita estância onde um longo braço do rio forma uma piscina natural com condições privilegiadas – e, depois, já de proporcões maiores, na pitoreca zona do Saltinho. (...)
A viagem do «Bubaque», desde as 10 horas às cinco da tarde - não sei se parámos em algum porto intermédio, como o Xime, já não me lembro - correu muito bem, com muita ordem, boa convivência e sem qualquer problema. Foi um espectáculo permanente oferecido aos nossos olhos e que, como em outras ocasiões, me fez pensar e sentir: que pena a guerra!... (...)
2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz
(...) Mancaman vivia na tabanca do Xime, contígua ao quartel onde estava estacionada a CART 2715 (**). De trinta e poucos anos, magro e um pouco alto, filho do chefe da tabanca - Mancaman (pai). Era mandinga, do que se orgulhava, por reconhecer a supremacia histórica e cultural desta etnia no quadro guineense e africano.
Não gostava dos Fulas e apreciava o espírito laborioso e a coragem dos Balantas. Falava, com muita graça e expressividade, o português, além do crioulo, o mandinga e o fula. Inteligente, muito humano e sabedor no que toca à guerra da Guiné, nas suas duas faces. Era-nos dedicado, correcto, amigo. E pertencia mesmo às milicias populares, armadas pelo exército português. (...)
11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5626: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (8): Recordações da Belmira, da Manjaca, da Maria, da Safi, do Jamil...
Vive só e pobre, com o seu filho, de cor mestiça, cujo pai é um soldado português pertencente a uma unidade antiga de Bambadinca. Por causa disso, tem problemas na tabanca. As pessoas olham mal as mulheres que têm filhos de brancos e ostracizam-nas. (...)
(...) A Igreja na Guiné, em princípios da década de 70, tinha como autoridade eclesiástica máxima o Perfeito Apostólico (não era Bispo, nem a Guiné era então Diocese, ao contrário do que acontece hoje), com sede em Bissau e dependente directamente do Papa, em Roma.
Também em Bissau, e arredores, viviam os Padres Franciscanos, exercendo ao mesmo tempo o professorado no Liceu. Mais para o interior do território, haviam-se fixado os Padres Missionários Italianos, que tinham a sede em Bafatá e, se não erro, uma pequena extensão em Catió.
Para além destes, havia os capelães militares, dependentes do Vicariato Castrense, em Lisboa, em comissão de serviço temporária, por força da guerra existente, dispersos e isolados pelos quartéis do mato, onde às vezes existiam também minúsculos núcleos de cristãos nativos.
2 de maio 2010 > Guiné 63/74 - P6292: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (10): Samba Silate
(...) Um dos lugares tristemente célebres da guerra da Guiné, que eu tive oportunidade de visitar nos princípios de 1971, chama-seSamba Silate. Fica a poucos quilómetros de Amedalai, para o lado do Geba, entre Bambadinca e o Xime. Na continuação da tabanca estende-se, até ao rio, uma grande bolanha, tida como das melhores da Guiné. Para lá do Geba, fica Mato Cão e Madina.
Dantes, Samba Silate foi uma grande tabanca balanta e um importante centro de produção de arroz. Mas na altura em que lá estive, era uma terra desabitada e completamente inculta. Dizia-se que qualquer tentativa dos Fulas para o seu aproveitamento seria gorada pelos Balantas.(...)
(...) De todos os Natais que, na minha já longa vida, passei, em localidades e situações muito variadas, não foram menos marcantes e significativos os dois Natais que vivi na Tropa, como alferes capelão.
O primeiro, a que já me referi num texto que escrevi neste blogue há uns três anos, foi vivido no Regimento de Artilharia Pesada 2, na Serra do Pilar, em Gaia. (...)