1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 19 de Novembro de 2010:
Pensei, pensei... e acabei escrevendo isto que te envio com um abraço
José Brás
Se não discutir com os meus amigos que são diferentes, mas meus amigos, discutirei com quem?
Meus amigos
Se querem que lhes diga, não acredito que uma cópia seja alguma vez... uma cópia, quer dizer, a reprodução exacta da coisa copiada, seja ele um texto, uma foto, um objecto qualquer que se possa tentar imitar, colocar sobre o vidro de uma fotocopiadora ou impressora, a jacto de tinta, laser, analógica ou digital, e que saia o retrato chapado da pretensa irmã.
Nem do outro lado do espelho se poderá dizer que está a mesma coisa que exibimos deste lado, reflexo apenas ponto a ponto reproduzido virtualmente porque sem tempo nem espaço. Reparem que estou a falar apenas em coisas sem vida, folhas de papel garatujadas com boa ou má caligrafia, ortografia apurada ou descuidada, careta de tio que se pôs a jeito para a foto no dia dos anos, coisa até com volume que caiba sobre o vidro da maquineta, ou até, voltando ao espelho, as fuças de um gajo que se põe sério afagando a face depois da barba cortada.
Imaginemos agora um ser vivo, seja gato de estimação, dizem que sem alma nem inteligência, o que, se calhar, não são a mesma coisa, seja cidadão em aldeia ou cidade nascido, moirejando o pão desde criança na escola até ao lar da terceira idade, crescendo por aí, por fora e por dentro, debaixo de calores e chuvas desiguais, apanhando nas ventas ou afagado por mães diferentes, comendo pão escuro ou carcaça afrancesada.
Mudando o ritmo a isto, torcendo um pouco direcção da fala e do pensamento, perguntemos agora a nós próprios primeiro, e a outros, depois: -que raio de condição humana que nos leva tantas vezes a fingir que queremos amigos quando afinal queremos apenas cópias, gente que nos diga sim a cada ai que soltamos, que nos sorria amistoso e falso, ou que nos grite ainda mais falso "és o maior!"?
Que raio de sina nos ata a este desejo de sermos uma espécie de deus rodeado de seus santos e anjos?
Bem sei que na teoria dos bio-sociólogos (é assim que se diz?), tudo isto se passa no íntimo da tremenda guerra no mundo dos genes pelo poder da preservação da espécie, guerra não menos feroz do que a dos arianos que no século passado destruíram meia Europa por duas vezes.
E se é assim, que poder tem essa guerra sobre a inteligência do homem, capaz de o utilizar sem mais nem ontem, de o separar do vizinho, e pior ainda, de lhe utilizar o espírito, a sensibilidade, a capacidade criadora e o próprio amor, ao ponto de se digladiarem, não para tornar mais claras e aceitáveis as diferenças, mas para romper ainda mais, como se cada um fosse um planeta afastado sem remissão.
Acabamos sempre por ir perdendo amigos, reduzindo o grupo dos que se sentem bem connosco, até ao epílogo do beijo de Judas.
E isto vem aqui a que propósito, já que algum propósito hei-de ter com este...despropósito.
Vamos lá ver!
Estive a ler vinte e cinco (que afinal eram 22) comentários a um trabalho de Beja Santos no poste, creio que
7297, sobretudo na parte que explodiu com a pergunta deste "Não há ninguém que queira escrever sobre o recuo estratégico que estava em marcha na Guiné, naquele segundo trimestre de 1974?".
Li, e a bem dizer, nem devia meter o bedelho nesta disputa porque, tratando-se de disputa, vem mesmo a calhar para a chapar aqui com a minha cagança de cima. E a disputa encarniça-se sempre, à volta da ideia "ganhámos ou perdemos a guerra?" como se fosse possível chegar a uma verdade inegável, absoluta e última, apenas porque uns acham que sim e esgrimem opiniões mas também documentos, actas de reuniões, cópias de planos, relatos de batalhas, e outros dizem que não, igualmente escudados na mistura de convicções, outros documentos, outros relatos de situações localizadas ou gerais.
Vendo bem...
- que estávamos a perder a guerra dizem muitos militares portugueses, gente bem colocada para construir opinião credível, respeitados pela sua coragem e valentia exemplar na mata, ou estrategas de Bissau, incluindo o General Caco que se demitiu justamente por isso (também na certeza que Lisboa não podia dar-lhe mais nada); incluindo o seu substituto no posto que vem agora desdizer o que disse então; incluindo Lisboa que chegou a aceitar encontros em Londres mas preferia a derrota do seu exército à "desonra do abandono".
- que podíamos ganhar a guerra dizem também valentes e esclarecidos militares portugueses (e até alguns guineenses), seguros que seria possível aguentar posições e de que também o PAIGC estava com enormes e dificilmente solucionáveis problemas, não apenas para manter a ofensiva no nivela a que tinha chegado, mas mesmo para manter a coesão interna depois da morte de Amílcar e no meio do cansaço extremo dos seus combatentes.
E quem sou eu para me colocar num dos lados da discussão, se não passei de um Furriel colocado num sítio lixado, é certo, mas limitado na minha visão das coisas, não apenas pelo horizonte dos acontecimentos, mas também pelas minhas próprias convicções morais?
Acredito que perderíamos a guerra, não no significado que damos aqui à palavra perder, construído na ideia do poder das armas, na coragem dos combatentes, na sua capacidade de sacrifício e arte militar, nos meios à disposição, etc..
Acredito que acabaríamos por a perder, por um lado por carência absoluta de razão histórica e de capacidade de nos opormos à marcha da humanidade (não cabendo aqui apreciações se para o bem ou se para o mal), mas também por esgotamento de meios disponíveis neste pequeno e atrasado País a que orgulhosamente pertencemos mas não deixamos de analisar racionalmente.
Acredito que a poderíamos aguentar ainda muito tempo se estivéssemos dispostos a mais experiências de Guidage, como no-la descreve sem ficção (que alguns repudiam) o Daniel Matos no interior do quartel e outros nas colunas de apoio, ou mais invasões aos países vizinhos, como Guiledje e Gadamael, e como tantos outros locais daquele pequeníssimo território.
Falar de Mirages e de Migs é apenas um exercício verbal, provavelmente um e outro muito distantes de qualquer possibilidade, embora me pareça mais verosímil a dos Migs por acção de cubanos ou outros quaisquer pilotos disponíveis, e não para guerra aérea com a nossa FAP, embora fosse inevitável nesse caso, mas para largar algumas "ameixas" em sítios escolhidos e para dificultar evacuações e pouco mais.
E aqui acho melhor dar de novo outro rumo à minha conversa porque já estarei a tocar rabecão, não sendo mais que sapateiro.
E para dar a volta, escolho naturalmente o terreno onde me sinto mais à vontade, pese embora nele não exibir mais que convicções morais e ideológicas, fincadas num humanismo que assumo tendo como pontos fortes ideias -liberdade, solidariedade, fraternidade, (i)legitimidade colonial, sentido da história...
Agarrado a esse campo, não tenho qualquer dúvida de que perderíamos a guerra e nem merece argumentar que "afinal perderam a guerra porque estão piores do que estavam".
Ainda hoje penso que foi um erro a separação de Leão e Castela e que esse erro continuamos a pagar caro, sem que deixe de sentir orgulho no que sou, português, ou deixando de assumir essa qualidade, as vitórias e as derrotas, a cultura, o contributo que demos para a grandeza do mundo e também os crimes que aqui se praticaram contra outros povos e contra nós próprios.
Voltando à "vaca fria" dos amigos e das cópias.
Não acompanhar Graça Abreu na sua sanha contra Beja Santos, nem o acompanhar inteiramente na sua ideia de que não tínhamos perdido a guerra, não proíbe de ter gostado muito do seu Diário, não apenas um relato da sua experiência que deixa antever experiências de outros, mas, em minha opinião, um bom texto mesmo do ponto de vista da construção da escrita e da comunicação, e não me proíbe de me considerar seu amigo, ainda que disponível e liberto para criticar quando disso for caso. Mais acrescenta o apreço que por ele tenho, o lirismo da escrita sobre a sua experiência chinesa e o contributo que tem dado na tradução e na divulgação de poetas da China, desse modo contribuindo para alargar a visão sobre o mundo.
Apreciar muito o trabalho que Beja Santos vem desenvolvendo à sombra da Tabanca, diligente, metódico, competente, plural e amigo, precioso para uma melhor compreensão das coisas desta guerra e no registo amplo do que sobre ela tem sido produzido, não me obriga, não me obrigará nunca, nem me pareça que ele espere tal coisa, a discordar pontualmente de opiniões suas e mesmo de certas afirmações que tenha feito ou omitido.
Não foram muitas nem agrestes as minhas discordâncias com o "nosso" tenente-general António Martins de Matos. Aconteceram e hão-de acontecer algumas vezes, mesmo sem necessidade de se expressarem, mas isso não obsta a que tenha por ela estima e respeito e que dele conte com os mesmos sentimentos.
Já expressei em mais do que uma vez a minha concordância, se não plena, pelo menos genérica, com a decisão do coronel Coutinho e Lima em Guiledje, e que por isso o considero uma boa pessoa. Tal postura, no entanto, não me proíbe de pensar (especulando, claro) que se estivesse no seu lugar, muito provavelmente teria feito coisa diferente, ainda que com a possibilidade de grandes prejuízos para toda aquela gente.
Confesso sem custo que já tive em tempos essa desgraçada tendência de considerar amigos apenas aqueles que comungavam da minha (i)religião, da minha ideologia, da minha interpretação do caminhar do mundo. Ou porque de velho me perdi... ou porque de velho me achei, hoje vou com mais calma ao pipo, gostando de vinho carrascão, ou aberto, ou verde, ou tinto, ou branco, tentando encontrar o que de bom cada um tem e não o deitando pelo cano, excepto quando é mesmo zurrapa.
E zurrapa para mim é o quê? Vinho de má qualidade, direi abreviando para não me perder ainda mais do que já estou.
E abusando da comparação entre gente e vinho, direi que gente que excluo mesmo das minhas amizades e da possibilidade de qualquer discussão, são aqueles com verdadeira saudade de um passado condenado; com desvelado amor à guerra pela guerra; capazes de proibir o pensamento, de massacrar, de torturar, de negar humanidade a outra gente só porque de outras crenças ou de outras cores, incapazes de reconhecer legitimidade no contrário.
E aqui no blogue já encontrei gente assim, que bate e foge, que vem sorrateira e pela calada, morde e baba; que se esconde no (ou quase) anonimato. Desses quero distância e escusaria sempre qualquer debate. Mas tais figuras não estão aqui em nenhum dos vinte e dois contendores do momento, nem naqueles que nomeei como exemplo das diferenças que mantemos entre nós.
Não estão, e por isso com eles estarei sempre disponível para o debate, com eles discordando ou concordando, mas irmanado nessa crença de que o melhor mesmo teria sido estudar a questão, ouvido vozes antigas, negociado saídas vantajosas para as duas partes e evitado o desperdício de meios e de gente, desviando-os de tarefas mais importantes para a riqueza e a felicidade dos povos.
E se não discutir com esses, diferentes mas meus amigos, discutirei com quem?
Com os amigos que são iguais?
Com os inimigos?
José Brás
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 9 de Novembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7250: (In)citações (22): Recordando Fatemá e Sambel Baldé, tenente de 2ª linha, régulo de Contabane (José Brás)
Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7295: (Ex)citações (109): Alguns considerandos muito intimistas (José Belo)