1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2018:
Queridos amigos,
Em 2016, aqui se fez menção ao livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem", um conjunto de mais de 50 cartas que versam a relação entre Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues, um arco de missivas que vão desde a aproximação amorosa até aos preparativos da partida de Maria Helena para acompanhar o líder do PAIGC no exílio. Iva Cabral, a filha mais velha do casal, era a depositária deste valioso espólio. Agora a investigadora Aurora Almada e Santos, de colaboração com a segunda mulher de Amílcar Cabral, Ana Maria Cabral, que vive em Cabo Verde e é membro-dirigente da Fundação Amílcar Cabral, coligiu e contextualizou com rigor este acervo de bilhetes-postais que o líder revolucionário endereçou à mulher entre 1966 e 1972. Um documento indispensável para conhecer melhor o homem e a causa pela qual deu a sua vida.
Um abraço do Mário
Postais de viagens de Amílcar Cabral, cânticos de amor e saudade
Beja Santos
“Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto, Rosa de Porcelana Editora, 2018, é uma reunião de postais de Amílcar Cabral endereçados à sua segunda mulher, Ana Maria Sá Cabral e aos filhos, da Escandinávia à África Ocidental, de Marrocos ao Médio Oriente, ficou-nos o legado de bilhetes-postais vintage onde se fala da saudade, dos cuidados, dão-se informações ligeiras sobre congressos e meetings, é permanente a preocupação com o estado de saúde da mulher amada. Esta é credora de todo o seu afeto.
Logo no postal de 10 de dezembro de 1966, de Genebra:
“Ana, Sem ti, as maravilhosas entrecôtes do café de Paris não valem nada”. A Suíça era uma plataforma para se alcançar outros países e Cabral mantinha contactos regulares com organizações de solidariedade no país. No ano seguinte, expede do Cairo outro postal onde se vê mar, rochas e palmeiras:
“Olha bem para este postal: a ânsia de vida dos rochedos espelhada no verde das palmeiras, da esperança no isolamento do mar. Do infinito também, porque o dever fecunda a certeza – e a saudade, amor”. Cabral ia assistir à conferência da Organização de Solidariedade com os Povos Afro-asiáticos, com sede no Cairo. E escreve ao filho:
“Querido Raúl, o papá tem pena de estar fora de casa no dia dos teus anos. Mas pensa muito em ti, faz votos para que cresças bem e sejas um grande militante do nosso Partido, para servires bem o nosso povo. Que a mamã não se esqueça de te fazer um bolo bonito”.
Em julho do ano seguinte, escreve da Argélia: “O Osvaldo (talvez Osvaldo Vieira) trouxe-me um raio de sol: a tua carta. Acho que em vez de te resignares a viver só, deves decidir-te a acompanhar-me, que sou o teu companheiro”. Ainda em Argélia, nessa viagem, escreve à mulher: “Ana querida, Um dia será erigido um monumento ao camelo, pilar silencioso da presença do homem na aridez do mundo. Eu admiro os camelos na sua elegância própria, mas sobretudo na altivez do seu olhar”.
Em outubro desse ano escreve de Dacar para a RDA, envia um postal como a imagem de uma aldeia africana: “A beleza de uma paisagem pobre está mais no sonho do seu progresso do que no equilíbrio dinâmico do seu espaço, humano ou físico. O sonho só é realizável no conhecimento: assimilar o essencial da realidade para transformá-la. Esta é a nossa luta: conhecer para transformar no sentido do progresso, a realidade física e humana da nossa terra. Nela, estou convencido dar mais do que tenho ou posso. Não, porque tu existes como minha companheira”.
No ano seguinte, novamente do Cairo: “Espero que estejas já menos triste ou só com a tristeza da minha ausência. Eu estou triste porque não estás comigo, mas me alegra imenso o crer que cada dia estarás mais ao meu lado mesmo quando não estou. E eu ao teu lado também”. Recorde-se que o Cairo, tal como a Argélia, tornara-se num centro de apoio à luta contra o colonialismo. Nasser entendia que a República Árabe Unida não poderia ficar indiferente perante a persistência do colonialismo. Em 1970, de Túnis, envia um postal com a vista portentosa de Monastir: “Quando estou ao pé de ti – e estás bem-disposta, sorridente – a vida brilha como este dia de sol azul nos desertos da Tunísia. Que sejas o meu oásis – e eu o teu – nos vendavais desta luta gloriosa”.
No ano seguinte, em Addis Abeba: “Ana querida, Apesar das pobrezas, das misérias e grandezas de um ‘império’, a Etiópia é rica de cores humanas e naturais. Espero que um dia, que não tarda muito, tu virás aqui para, juntos, admirarmos e aprendermos. Tenho muitas saudades tuas e penso nos dias que vais ter com o tratamento, porque os ouvidos são muito delicados”.
Dias depois, ainda no decurso da sessão da Organização da Unidade Africana, envia à mulher um postal com uma jovem etíope, num quase perfil e com uma cabaça na cabeça: “Esta deve ser uma das expressões de mulher das mais belas do mundo. Mas será de certeza a segunda, porque, para mim, a primeira és tu, meu amor”.
Tempos depois, em Estocolmo, a imagem do bilhete-postal é uma tulipa: “Aqui está uma tulipa: bela, altiva, rica de silêncios e de mistério. Como tu, companheira. Que tenhamos longa vida na luta difícil mas gloriosa pela libertação e progresso do nosso povo: para que à luz da tua beleza, na altivez cada dia mais construtiva dos teus gestos, transformemos os silêncios em alegria de viver e o mistério na força da nossa vida: o amor pela justiça”.
Em março de 1972, envia de Trípoli um postal com a imagem do mercado de Leptis para o filho:
“Raúl, Um dia, que não tarda muito, tu serás um homem, viajarás pelo mundo e conhecerás as maravilhas que o Homem criou. E saberás que a melhor maravilha que o Homem criou é o próprio homem de que as crianças como tu, são as flores.Beijos do papá”.
Trata-se de uma edição cuidadosíssima, a contextualização histórica coube a Aurora Almada e Santos, insere textos de António Guterres, Guilherme D’Oliveira Martins, Jorge Carlos Fonseca e José Maria Neves. Márcia Souto e Filinto Elísio já nos tinham brindado com outro livro igualmente de Amílcar Cabral, “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: A Outra Face do Homem”, Rosa de Porcelana Editora, 2016, versa um conjunto de 53 cartas que o líder do PAIGC enviou à colega, namorada e primeira mulher, é um documento relevante na justa medida em que permite aquilatar a dimensão afetiva do estudante de agronomia até à partida para o exílio do líder revolucionário.
Voltando aos itinerários de Amílcar Cabral, eles poderão ser muito importantes dado o facto de cartografar e calendarizar o percurso de um dos mais reconhecidos dirigentes da luta pela autodeterminação, são testemunhos de um desvelo amoroso, de uma presença constante a pedir ajuda para a sua causa, fala insistentemente na saudade, esteja em Moscovo, Nova Iorque ou Estocolmo, permitem conhecer o estado de espírito do lutador, ir sentindo a palpitação pela credibilidade e aceitação do líder do PAIGC na cena mundial.
António Guterres refere o livro de memórias de Gérard Chaliand,
“A Ponta da Navalha”, onde o intelectual conta que quando disseram a Nelson Mandela
“Tu és o maior”, este terá replicado:
“Não, o maior é Cabral”.
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Nota do editor
Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2021 >
Guiné 61/74 - P22279: Notas de leitura (1361): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima; Março de 2020, Edição de Autor (Mário Beja Santos)