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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27304: Notas de leitura (1849): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Só agora descobri este interessantíssimo livro editado pela Tinta-da-China em 2022, trata-se de um projeto coletivo envolvendo académicos, ativistas, museólogos, jornalistas que interrogam Lisboa através de um quadro sólido de instituições, entidades, espaços públicos, monumentos, infraestruturas e até nomes de ruas e que são ecos, e mesmo reminiscências, da nossa presença colonial. Dedica-se hoje atenção ao Arquivo Histórico Ultramarino, à Associação Comercial de Lisboa e ao Bairro das Colónias, o primeiro é um lugar fundamental de uma imensidade de estudos, para aqui convergiram documentos multisseculares, os arquivos do Ministério das Colónias, do Arsenal da Marinha, entre outros, deram-se muitas alterações, quando andei a pesquisar João Vicente Santana Barreto, tenente médico que esteve em Cabo Verde e prestou meritíssimos serviços na Guiné, pensei que o seu processo estivesse no Arquivo Geral do Exército, não senhor, o melhor que encontrei foi mesmo aqui; a Associação Comercial de Lisboa esteve ligada a nomes bem representativos de negócios africanos caso de Angola e São Tomé; e o Bairro das Colónias é assim tratado por toda a gente, só resiste a outro tratamento a antiga Praça do Ultramar, hoje Praça das Novas Nações, é um Bairro altamente miscigenado, tem a Farmácia Colonial e o Restaurante Sabores de Goa...

Um abraço do
Mário



Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 1

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

A viagem começa no Arquivo Histórico Ultramarino, instituição criada na década de 1930, pensado desde o início como o arquivo histórico do Império. O seu próprio nome é revelador da profunda ligação que este projeto manteve com uma visão histórica do Império Colonial. Era intento do Estado Novo moldar a memória colonial para se obter uma narrativa oficial sobre o passado de Portugal enquanto nação imperial. Os autores do artigo contam a história deste arquivo que está instalado no Palácio dos Condes da Ega, na Calçada da Boa Hora n.º 30, na Junqueira, lembram a convergência de outros arquivos para aqui, a grande preocupação era a do investimento ideológico no controlo da memória e do discurso histórico sobre o Império. Prevendo-se, após a II Guerra Mundial, o surto da descolonização rebatizou-se o Arquivo Histórico Colonial de Ultramarino.

Depois do 25 de abril, o arquivo conheceu várias tutelas até que em 2015 foi incorporado na Universidade de Lisboa, está integrado na Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas. Há vários discursos e narrativas estratégicas na vida deste arquivo e fala-se agora muito de que é um património arquivístico comum da lusofonia. Observam os autores:
“É fundamental que a inventariação da enorme massa documental do Arquivo seja acompanhada por uma sensibilidade crítica relativamente à sombra que esta genealogia continua a projetar sobre o Arquivo”, e advertem que “convém ter presente que os sistemas coloniais de classificação documental podem ocultar certos sujeitos ou certos temas tidos no passado por secundários ou, de algum modo, irrelevantes ou inconvenientes”.
Os autores também referem que também se está a proceder na atualidade a um levantamento dos fundos do Conselho Ultramarino.

Passamos agora para a Associação Comercial de Lisboa, edifício projetado pelo arquiteto Álvaro Augusto Machado, o mesmo da Sociedade Nacional de Belas Artes, aqui se alojou inicialmente um espaço de diversão noturna, o Club Palace, quando este fechou as portas, foi aqui que a Associação se estabeleceu. Esta Associação transferira-se em 1895 para o antigo Palácio Seiscentista dos Condes de Povolide, o Ateneu Comercial de Lisboa. No século XIX fora constituída a Associação Mercantil Lisbonense, muitos dos seus dirigentes estavam ligados a negócios coloniais. “Entre os seus fundadores, muito poucos vinham dos tempos anteriores à abertura dos portos do Brasil à navegação estrangeira, em 1808. A regularização das relações comerciais com o Brasil, sobre as quais a direção solicitava ao Rei providências urgentes, foi uma das suas primeiras preocupações. O mesmo sucedeu com a promoção do comércio com as colónias de África. Logo em 1835, o Conselho da Associação apreciou o memorando sobre a situação de Angola após a abolição do tráfico de escravos. Após ter mudado de denominação para Associação Comercial de Lisboa, em 1855, a Associação formou várias comissões especializadas, uma das quais dedicadas às questões ultramarinas.”

Refere o autor as ligações da Associação com o Banco Nacional Ultramarino, com donos de roças São Tomé e Príncipe e Angola, entre outras, e escreve:
“É impressionante a identificação, durante quase um século entre a direção da Associação e os interesses coloniais. E ainda hoje, passadas décadas sobre a descolonização, embora se concentre mais nas suas funções de Câmara de Comércio e Indústria, a memória dessa relação vive no percurso de vida do atual presidente. À frente da Associação desde 2005, Bruno Pinto Basto Bobone viveu quase toda a sua infância em Moçambique, de onde só regressou depois do 25 de abril.”
Conclui nestes termos:
“Investigar organizações como a Associação Comercial de Lisboa, o processo de recrutamento dos seus dirigentes e de formação das suas posições, enquanto instituições que representam, no plano político, os mesmos interesses económicos coletivos ao longo do tempo, mas sondá-las também como lugares de encontro de indivíduos e de grupos, contribui-se certamente para compreender como mesmo na sociedade de hoje, se seguem certos rumos e se tomam certas opções.”

Da rua das Portas de Santo Antão, passamos para o Bairro das Colónias. Mudou o nome da Praça do Ultramar para Praça das Novas Nações, o nome das ruas mantém-se, há mesmo uma placa de trânsito a indicar o Bairro das Ex-Colónias. Este local corresponde a uma etapa da urbanização da cidade, foi um dos últimos bairros construídos em torno da Avenida Almirante Reis, resultou de um projeto apresentado à Câmara Municipal para urbanizar o espaço que restava da Quinta da Mineira e da Quinta da Charca, era um terreno que se situava entre dois bairros recentes, o Bairro Andrade e o Bairro de Inglaterra. O Bairro das Colónias começou a ser construído na década de 1930.

“Uma das forças mais eficazes na normalização da nomenclatura do Bairro das Colónias é o negócio imobiliário. Se alguém consultar as principais empresas imobiliárias com a intenção de comprar ou arrendar uma casa não encontrará nenhuma oferta no Bairro das Novas Nações. Já no Bairro das Colónias as possibilidades são diversas.”

As transformações do Bairro, a avalanche de nossos compradores levou a alterar o perfil do comércio; é verdade que ainda existe a Farmácia Colonial, o restaurante central das Colónias, a oficina de automóveis Auto-Colonial ou a Pastelaria Nova Ultramarina, mas este imaginário tem vindo a dar lugar a negócios geridos por imigrantes, sobretudo os provenientes do Nepal, do Bangladesh, do Paquistão e da Índia, o Bairro dispõe de massagens tailandesas, de um café com serviços para imigrantes, ostentam-se nos prédios bandeiras da Guiné-Bissau, do Nepal, do Senegal e da Roménia. E para concluir diz o autor:
“Com mais de noventa anos de história, maioritariamente vividos em democracia, o Bairro das Colónias passou por mudanças significativas, mas o seu anacrónico nome permanece sem aparente contestação”.

O autor recorda que o Bairro Africano de Berlim conheceu um movimento de contestação nacional e internacional que propôs a renomeação das ruas do Bairro, que mantinham alusões às antigas colónias e a colonialistas de renome. A não existência em Lisboa de movimentos semelhantes aos de Berlim não deveria suster a ação urgente dos poderes autárquicos locais, começando eventualmente pelas placas de trânsito. Num processo que deveria conduzir à tão necessária mudança do Bairro, seria igualmente relevante considerar que as populações que lá viveram e alguns dos que ficaram, escapando à fúria dos imobiliários, associam este nome às suas geografias sentimentais. Bem explicada, a ideia de que não se deve celebrar um regime colonial e predador será certamente compreendida pela maioria.

Regressamos falando do Banco Nacional Ultramarino e de vários monumentos espalhados pela cidade.

Palácio da Ega, Arquivo Histórico Ultramarino
Associação Comercial de Lisboa - Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa
Rua de Angola, Bairro das Colónias, imagem de Jorge Ferreira, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27293: Notas de leitura (1848): "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira, capelão, major ref - Parte IV: "Até 1966 eram todos voluntários" (Luís Graça)

sábado, 9 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27103: Os nossos seres, saberes e lazeres (695): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (216): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho 2025:

Queridos amigos,
Pode parecer um tanto espetacular, e rebarbativo, crismar este museu de uma casa da extensa História de Portugal, mas a verdade é que o acervo de pintura medieval, a qualidade da escultura gótica, a pintura tardo-gótica, e indo por aí fora até ao século XIX, com remissões para a arte europeia de primeira ordem, impressiona quem quer que o visite, os biombos japoneses, a custódia de Belém, o extenso mobiliário, as preciosidades da arte flamenga e tudo mais justificam visitas regulares ao antigo palácio dos condes de Alvor e do Convento das Albertas, a museologia e a museografia que é hoje possível desfrutar não tem qualquer termo de comparação com as visitas que ali fiz na meninice, estou a ver a minha mãe a mostrar-me orgulhosa a Baixela Germain e eu a interrogá-la se não havia dinheiro para limpar as pratas, como é que uma Baixela tão valiosa se apresentava tão enegrecida... Isto para já não falar nos tapetes puídos e na falta de boa iluminação. Deixa-se aqui dois apontamentos, sugere-se ao potencial visitante que leia previamente uma publicação alusiva ao museu para desfrutar da sua memorável itinerância.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (216):
Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 1


Mário Beja Santos

Sem nenhuma preparação prévia, naquela manhã de sábado em que tinha pensado em limpar o meu escritório, arranjei-me e tomei a decisão: vou visitar o Museu Nacional de Arte Antiga, nada tem de custoso, apanho o metro até ao Cais do Sodré, são inúmeros os transportes daqui até ao velho Palácio dos Condes de Alvor. Muni-me de uma obra escrita pelo meu amigo José Luís Porfírio, que foi diretor e conservador do museu, fui selecionando o que mais me interessava ver, mas sempre aberto a imprevisto. Recordo-me que a primeira vez que ali entrei, levado pela minha mãe, fiquei intrigado pelo desconsolo da decoração, e quando a minha progenitora me apontou, ufana, para a Baixela Germain, perguntei-lhe se não havia dinheiro para limpar as pratas, estava tudo enegrecido.

Hoje, dá gosto percorrer todas aquelas salas, independentemente de haver ciclos e escolas que não desfazem bater o coração. Mas o Museu das Janelas Verdes, instalado num antigo palácio do século XVIII, e completado com um anexo de 1940, que ocupa o que foi o antigo Convento das Albertas, tem sido alvo de muita atenção, alvo de intervenções qualificadas, e, como muitos outros, é um filho direto da revolução liberal. D. Maria II, e porventura o marido, quiseram preservar o que de melhor havia no acervo nos conventos extintos em 1834, magnífico recheio que foi colocado em depósito no Convento de S. Francisco, aquele quarteirão onde está hoje o Museu do Chiado e no lado oposto a Academia de Belas Artes.

O Museu Nacional das Belas Artes ganhou notoriedade em 1882 com a célebre Exposição de Arte Ornamental, vieram peças de Espanha e do Reino Unido, o museu intitulava-se então Museu Nacional de Belas Artes e Arqueologia e mudou de título em 1911 para Museu Nacional de Arte Antiga. O seu património excede o que veio da extinção dos conventos, temos peças provenientes do espólio da rainha Carlota Joaquina, peças adquiridas pelos reis D. Fernando II e D. Luís, peças adquiridas pela Academia das Belas Artes, peças provenientes de vários legados, como, por exemplo o visconde de Valmor ou as peças depositadas como as 1500 esculturas da Coleção Ernesto Vilhena.

Se o visitante começar a sua visita no andar superior, tem pintura portuguesa e estrangeira do século XIV, adiante irá demorar-se junto dos painéis de S. Vicente, verdadeiramente polémicos quanto ao seu autor e lugar de proveniência, há quem jure a pés juntos que o seu autor é Nuno Gonçalves, permito-me duvidar, o que há de Nuno Gonçalves neste museu tem pouco a ver com o conjunto destas seis tábuas, e não conheço nenhum políptico destinado a uma igreja com pescadores e cavaleiros, naturalmente que me rendo ao assombro deste conjunto, não desmerecendo que está ali o retrato da nascente epopeia portuguesa dos Descobrimentos.

Mudando de posição, vou defrontar-me com obras que muito me impressionam, caso do Santo Agostinho pintado por Piero della Francesca, a Virgem e o Menino de Hans Memling, passo um tanto como cão por vinha vindimada por muita arte religiosa para ir desfrutar do quadro intitulado Chegada das Relíquias de Santa Auta ao Mosteiro da Madre de Deus, pelo chamado mestre do retábulo de Santa Auta, gosto muito de apreciar a Anunciação de Frei Carlos e daqui passo para retratos de grande qualidade como o de D. Leonor de Áustria, pintado por Joos van Cleve ou o rei D. Sebastião pintado por Cristóvão de Morais. Suspendo aqui a visita para ir tomar um cafezinho no belo jardim do museu com uma parte do porto de Lisboa pela frente, mas só depois de me demorar diante de S. Jerónimo, pintado por Albrecht Dürer.

São João Evangelista, 1301-1350, oficina ativa na Península Ibérica
Retrato de um cavaleiro da Ordem de Cristo, 1525-1550 (?), escola portuguesa, estilo de Gregório Lopes. Durante muito tempo pensava tratar-se de Vasco da Gama, com os elementos do quadro, a começar pelos óculos, é totalmente inadmissível.
O Inferno, 1510-1520, escola portuguesa
Virgem Maria (de Calvário) e São João Evangelista (de Calvário), 1501-1525, oficina flamenga ativa em Portugal
Martírio de São Sebastião, Gregório Lopes, 1536-1539
Santo António pregando aos peixes, Garcia Fernandes, 1535-1540
D. João III e São João Batista, oficina de Cristóvão Lopes (?), depois de 1564
Natureza-morta com caixas, vidros e pote de barro, por Josefa d’Ayala, dita Josefa de Óbidos, cerca de 1660-1670
Retrato de senhora, mestre desconhecido, 1625-1650
Presépio de Santa Teresa de Carnide, de António Ferreira, cerca 1701-25, exposto no Museu Nacional de Arte Antiga
Vista do Mosteiro e Praça de Belém, Filipe Lobo, 1657
São Jerónimo, pintado por Albrecht Dürer, 1521

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 2 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27080: Os nossos seres, saberes e lazeres (694): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (215): Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 2 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24701: Os nossos seres, saberes e lazeres (592): António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)

António Carmo numa exposição nas Caldas da Rainha, evocativa dos seus 50 anos de carreira


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Quem porfia sempre alcança. Demore a saber que este prestigiado artista plástico fizera comissão na Guiné, finalmente houve encontro, falei-lhe do nosso blogue, procurei fazê-lo sentir a importância do acervo que ele comporta, e António Carmo, caso eu não esteja a laborar em erro, é o único artista plástico que durante a sua comissão deixou obra, e a trabalhou depois, posso estar a ser precipitado no meu juízo mas o artista durante décadas subscreveu trabalhos de grande tensão, encontro alguma afinidade com a arte de Francisco Relógio, um lirismo e uma poética nestas figuras ultradimensionadas que nas últimas décadas se transmutaram para uma arte mais repousada, asseguram uma contemplação que nos lava a alma naquele eixo central em que se exalta a figura da mulher. Agora fico à espera que ele tenha uma nesga de tempo para conversar comigo e voltarmos à Guiné, onde ele deixou muitos trabalhos, resta saber por onde andam.

Um abraço do
Mário



António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné

Mário Beja Santos

Conheci a arte de António Carmo por duas vias. Há uns bons anos, fiz parte de um júri referente a um concurso europeu do jovem consumidor, a reunião decorreu num sindicato de professores, e concluídos os trabalhos o anfitrião quis obsequiar os membros do júri oferecendo serigrafias. Chamou-me a atenção uma que me parecia falar de África, figuras femininas de rosto muito sereno que pareciam encaixadas umas nas outras como as bonecas russas, não hesitei na escolha; emoldurada, veio para o meu escritório, ficou entre um desenho do meu amigo Sá Nogueira e uma gravura de David Almeida. Bem a contemplava à procura da motivação do artista, nada feito. Numa digressão a Bruxelas, à saída da Gare Central encaminhei-me para a Rue de la Madeleine, uma artéria onde há várias galerias de arte e ao tempo uma livraria apaixonante, a Posada, hoje desaparecida, e é nisto que em frente à Galeria Alberto I vejo anunciada uma exposição de António Carmo, nela já pontificavam estas mulheres desmesuradas numa coloração vibrante, mas simultaneamente com efeitos oníricos e a inerente exigência de reflexão. No dia seguinte, fui visitar a exposição e pude ler numa brochura a impressionante carreira internacional do artista.

Só muito mais tarde se me assomou a referência de que fizera uma comissão na Guiné, guardei no meu caderninho de propósitos de futuro trabalho saber como podia encontrar com o artista, saber se ele estava disponível para contar a sua experiência na Guiné. E quis o acaso que na manhã de 20 de setembro ter uma reunião na Âncora Editora, fui ao site e deparou-se-me com o convite para esta exposição. Com o diretor discuti a publicação do livro de memórias do sonhador Vasco, que será publicado em Março próximo, conversas tidas, vai para dez anos, ao longo de meses, na sua casa em Fontanelas. Perguntei por António Carmo, ele sugeriu que aparecesse na apresentação do seu livro mais recente, "Encontros e Memórias", que se iria realizar nessa tarde na Casa dos Livros da Amadora. É nisto que toca o telefone para o editor, este amavelmente pôs-me em contacto com o António Carmo, sim, teria todo o gosto em falar do seu trabalho na Guiné, à tarde aprazaríamos uma reunião, finda a organização de uma nova exposição.

Antes de ele chegar já eu percorria o novo livro e chamou-me a atenção do prefácio de outro artista plástico, Rocha de Sousa: “Cada pintura é paisagem com gente em quadro falsamente imobilizado. Porque António Carmo não cessa de agitar o denso contacto dos corpos, entre flores e vagas névoas além ou ali. A densidade das cores irrealiza a representação de um povo comum: esse povo é alma das festas de aldeia. Mãos entrelaçadas, os rostos subindo a voz ou o cântico, os corpos vestidos de azul, vermelho, amarelos pontuados por verdes, o que de súbito se mistura em muita gente como flores de adorno, abertas à luz, soltando obliquidades da dança e do vento.” Uma observação que me parece corresponder ao trabalho de Carmo.

Iniciada a sessão, Álvaro Lobato Faria comentou os trabalhos e vivências dos últimos 20 anos, as referências dos textos ligados às exposições, observou em que constitui o processo criativo de Carmo, a pesquisa incessante destes corpos com falsa desmesura, tudo ganha numa poética dos sentidos à custa de uma vigorosa materialização da cor. Carmo comentou o que tem feito nos últimos 20 anos, abriu espaço para o debate, senti-me no direito de falar da Guiné, curiosamente a assistência revelou-se interessada com a narrativa do artista plástico. Esteve nas transmissões do quartel-general, começou a fazer uns desenhos, defendia-se com a ambiguidade das mensagens, os seus superiores revelaram entusiasmo, vieram as encomendas, deixou trabalhos em vários locais, escreveu na "Voz da Guiné", publicação do tempo, de tudo prometeu falar quando nos encontrássemos. E a propósito da nossa conversa telefónica no escritório do editor, mostrou o livro publicado na Editorial Caminho, deixou-me fotografar imagens dos seus desenhos feitos na Guiné, para mim estava ali a chave explicativa da serigrafia para a qual eu não tinha, para além de emoção, qualquer código de referência. Dá para perceber que é um desenho de uma África em estado de tensão, ele referiu explicitamente a forte atração que sentiu pela arte Nalu, julga ter plasmado alguns dos códigos desse género artístico nestes seus trabalhos em que a África está sempre presente.

Agora só me resta ficar a aguardar o dia em que nos iremos encontrar e falar dos trabalhos dos seus dois anos na Guiné. Voltou em 1972, no ano seguinte fez uma exposição na Galeria Opinião, ali se mostrava a guerra, ainda hoje Carmo não sabe como é que não teve problemas com a censura.

Fico agora a aguardar que o artista me receba e dê a conhecer as suas memórias com mais de meio século. Talvez valha a pena referir que é o único artista plástico que falou da Guiné daqueles tempos da luta de libertação. O que traz redobrado interesse para conhecermos a inspiração subjacente a todos estes trabalhos e a outros que ele vai mostrar.


Amílcar Cabral, 1973
Memória africana, 1973
Choque Africano-Guiné, 1973
Memória Africana, 1973
Memória Africana, 1973
Imagem da exposição de António Carmo na Galeria Opinião, 1973, retirada dos Arquivos da RTP, com a devida vénia
A arte de António Carmo depois da sua comissão da Guiné
António Carmo, Editorial Caminho, 2003, esgotado
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24691: Os nossos seres, saberes e lazeres (591): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (12) (Mário Beja Santos)

sábado, 26 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24590: Os nossos seres, saberes e lazeres (587): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (117): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
A minha intenção é exclusivamente partilhar as alegrias vividas no meu regresso a um museu que andou 11 anos em remodelação e que tem um acervo de preciosidades que o põe na primeira linha dos principais museus europeus. Depois da visita ao núcleo temático de James Ensor, preferi um certa versatilidade, do tipo daquela que encontramos no Museu Metropolitano de Nova Iorque em que saímos de uma sala com arte do Norte de África e entramos na sala do califa de Bagdad e daqui partimos para um faustoso núcleo da pintura de Monet ou Pissarro. É certo que me bandeei para os movimentos mais tumultuosos do fim do século XIX e a alvorada do modernismo, mas de vez em quando fui a épocas anteriores, fiquei assombrado com um Fra Angelico e uma Madona de Dieric Bouts, contemplei com prazer George Grosz e Ben Nicholson. Fiz agora uma pausa, segue-se a última ofensiva dentro de um museu que tem uma remodelação admirável, como aqui se procura mostrar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (117):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas ! (8)


Mário Beja Santos

Vim propositadamente a Antuérpia para visitar o remodelado Museu Real de Belas-Artes, possuiu um acervo impressionante e de altíssima qualidade em milhares de peças de pintura, desenho e escultura, abarcando da Idade Média à atualidade.
Depois de uma barrigada de um santo do meu culto, James Ensor, lancei-me em obras do acervo, dei preferência aos tempos de transição/evolução do figurativismo para a abstração. O que aqui deixo são meras notas de viagem, impressões muitíssimo pessoais de autores que aprecio profundamente, limito-me a tecer alguns comentários, alguns deles, para mim inevitáveis, têm a ver com ligações decorrentes com escolas, pretéritas ou do tempo, ou até mesmo profecias, as tais viagens das ideias em que uma geração acende a candeia e as seguintes estabelecem a eletrificação geral. É esse desfile de artes plásticas que agora sucede, um mero registo das alegrias e descobertas que fui sentindo na abençoada decisão que tomei de vir até Antuérpia, está aqui um pouco da história das artes plásticas europeias, ao longo de séculos.

A fachada neoclássica do Museu Real das Belas Artes de Antuérpia, reaberto ao público em 2022
Floresta Mágica, por Jan Toorop.
Toorop é um artista bastante ignorado fora destes cantinhos do Norte da Europa. Não é por acaso que se assinala a sua atração pelas cores de Van Gogh e pelos processos surrealizantes de Ensor, para mim há aqui um fim do simbolismo e uma retorção entre o modernismo da sua dimensão expressionista.

Já estou no andar superior, agora posso ver quem anda a contemplar as obras geniais de James Ensor, no seu núcleo temático
Escultura de George Minne, intitulada Solidariedade
Ossip Zadkine, Cabeça de Orfeu
Escultura de Edgar Degas, Mulher Grávida.
Considero Degas um escultor fora de série, há quem pense que ele se fixou primordialmente em bailarinas, no entanto ele possuía uma diversificação de olhares e a sua escultura tem um elevado poder estético em rutura com o academismo e o realismo.
Andei sempre com cuidado de legendar as obras que mais me entusiasmavam, aqui falhei, mas pretendo partilhar esta figura que me parece um centauro e, não sei bem porquê, recorda-me as soberbas esculturas elaboradas por António Pedro na alvorada do surrealismo, uma espantosa torção nas formas em que a soma das partes é tudo tornar mais visível.
Anthony van Dyck, estudo de cabeça
Uma das alterações de fundo neste gigantesco edifício, foi a introdução de claraboias que permitem ao visitante ter um outro modo de olhar a obra de arte e sentir-se em diálogo ou contemplação de quem anda lá por baixo, rendi-me a esta luminosidade e à solução de leveza e transparência gerada pela comunhão dos espaços.
Victor Servranckx, Opus 20. Deste a primeira visita que fiz ao Museu de Belas-Artes e História, em Bruxelas, tomei contacto com este homem que me lembra um construtivista, há aqui formulações que me lembra aquela escola russa que depois foi asfixiada pela ortodoxia soviética, que aboliu o vanguardista futurista.
Ben Nicholson, outro mal-amado fora da Grã-Bretanha, tive o prazer de ver as suas obras conjuntamente com os seus colegas na Tate Saint Ives, na Cornualha, consigo ver o diálogo destas construções, que me lembram Arpad Szenes, com a arte escultórica da sua mulher Barbara Hepworth, uma santa do meu culto, pela sua capacidade de síntese, ela e Henry Moore são os meus escultores modernos britânicos da minha predileção.
Amadeo Modigliani, Nu sentada
George Grosz, O escritor Walter Mehring.
Cada vez que vejo as obras deste espantoso expressionista alemão lembro-me de alguém que frequentou Berlim daquele tempo e que captou bem a crítica social de Grosz e, sobretudo, se apoiou nesta revolução das formas e que tornou Mário Eloy num dos pintores portugueses mais audaciosos do modernismo, na sua geração.

A Miséria de Job, Ossip Zadkine
Fra Angelico, S. Romualdo recusa a entrada na igreja ao imperador Otto III
Obra de Lucio Fontana.
Consigo ver na arte de Lucio Fontana a rotura perante o conteúdo e a apresentação da obra, todos estes golpes, sempre recorrentes no seu trabalho, são passaportes para uma antevisão de que um monocromatismo sujeito a alterações visuais é a representação singela da realidade, era essa uma das lições maiores da corrente plástica em que ele se filiou, a Arte Povera.

Dieric Bouts, Madona
Paul Delvaux, Os Laços Cor-de-Rosa
Pieter Bruegel, O Recenseamento de Belém.
Aqui está uma das provas provadas de que Bruegel e a sua descendência recebiam encomendas da clientela abastada para andar à volta do mesmo tema, neste caso o recenseamento de Belém, ludibriando o olhar do espectador, há uma extensão no conteúdo, uma paisagem até ao fim do horizonte, no canto esquerdo decorre o recenseamento, no extenso tapete de neve a vida continua, há idas e voltas e crianças a brincar e com um toque de discrição vemos a Virgem no seu burrico, esta a portentosa visão bíblica de Bruegel num animado cenário flamengo.

Jean Chastellain e Noël Bellemare, Pietá.

Por ora não canso mais o leitor, eu aproveito para descansar um pouco os pés e preparar a última ofensiva, a esta hora ainda não sei que não vou conseguir nenhum transporte público até à gare central de Antuérpia, tive tudo a ganhar, foram uns quilómetros a pé desde o Zuid, deu para ver o interior desta bela cidade e apreciar uma sociedade multicultural, conversas animadas na rua entre gente africana e asiática e bastantes casais mistos.
Até já!


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24567: Os nossos seres, saberes e lazeres (586): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (116): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (7) (Mário Beja Santos)