terça-feira, 26 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24701: Os nossos seres, saberes e lazeres (592): António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)

António Carmo numa exposição nas Caldas da Rainha, evocativa dos seus 50 anos de carreira


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Quem porfia sempre alcança. Demore a saber que este prestigiado artista plástico fizera comissão na Guiné, finalmente houve encontro, falei-lhe do nosso blogue, procurei fazê-lo sentir a importância do acervo que ele comporta, e António Carmo, caso eu não esteja a laborar em erro, é o único artista plástico que durante a sua comissão deixou obra, e a trabalhou depois, posso estar a ser precipitado no meu juízo mas o artista durante décadas subscreveu trabalhos de grande tensão, encontro alguma afinidade com a arte de Francisco Relógio, um lirismo e uma poética nestas figuras ultradimensionadas que nas últimas décadas se transmutaram para uma arte mais repousada, asseguram uma contemplação que nos lava a alma naquele eixo central em que se exalta a figura da mulher. Agora fico à espera que ele tenha uma nesga de tempo para conversar comigo e voltarmos à Guiné, onde ele deixou muitos trabalhos, resta saber por onde andam.

Um abraço do
Mário



António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné

Mário Beja Santos

Conheci a arte de António Carmo por duas vias. Há uns bons anos, fiz parte de um júri referente a um concurso europeu do jovem consumidor, a reunião decorreu num sindicato de professores, e concluídos os trabalhos o anfitrião quis obsequiar os membros do júri oferecendo serigrafias. Chamou-me a atenção uma que me parecia falar de África, figuras femininas de rosto muito sereno que pareciam encaixadas umas nas outras como as bonecas russas, não hesitei na escolha; emoldurada, veio para o meu escritório, ficou entre um desenho do meu amigo Sá Nogueira e uma gravura de David Almeida. Bem a contemplava à procura da motivação do artista, nada feito. Numa digressão a Bruxelas, à saída da Gare Central encaminhei-me para a Rue de la Madeleine, uma artéria onde há várias galerias de arte e ao tempo uma livraria apaixonante, a Posada, hoje desaparecida, e é nisto que em frente à Galeria Alberto I vejo anunciada uma exposição de António Carmo, nela já pontificavam estas mulheres desmesuradas numa coloração vibrante, mas simultaneamente com efeitos oníricos e a inerente exigência de reflexão. No dia seguinte, fui visitar a exposição e pude ler numa brochura a impressionante carreira internacional do artista.

Só muito mais tarde se me assomou a referência de que fizera uma comissão na Guiné, guardei no meu caderninho de propósitos de futuro trabalho saber como podia encontrar com o artista, saber se ele estava disponível para contar a sua experiência na Guiné. E quis o acaso que na manhã de 20 de setembro ter uma reunião na Âncora Editora, fui ao site e deparou-se-me com o convite para esta exposição. Com o diretor discuti a publicação do livro de memórias do sonhador Vasco, que será publicado em Março próximo, conversas tidas, vai para dez anos, ao longo de meses, na sua casa em Fontanelas. Perguntei por António Carmo, ele sugeriu que aparecesse na apresentação do seu livro mais recente, "Encontros e Memórias", que se iria realizar nessa tarde na Casa dos Livros da Amadora. É nisto que toca o telefone para o editor, este amavelmente pôs-me em contacto com o António Carmo, sim, teria todo o gosto em falar do seu trabalho na Guiné, à tarde aprazaríamos uma reunião, finda a organização de uma nova exposição.

Antes de ele chegar já eu percorria o novo livro e chamou-me a atenção do prefácio de outro artista plástico, Rocha de Sousa: “Cada pintura é paisagem com gente em quadro falsamente imobilizado. Porque António Carmo não cessa de agitar o denso contacto dos corpos, entre flores e vagas névoas além ou ali. A densidade das cores irrealiza a representação de um povo comum: esse povo é alma das festas de aldeia. Mãos entrelaçadas, os rostos subindo a voz ou o cântico, os corpos vestidos de azul, vermelho, amarelos pontuados por verdes, o que de súbito se mistura em muita gente como flores de adorno, abertas à luz, soltando obliquidades da dança e do vento.” Uma observação que me parece corresponder ao trabalho de Carmo.

Iniciada a sessão, Álvaro Lobato Faria comentou os trabalhos e vivências dos últimos 20 anos, as referências dos textos ligados às exposições, observou em que constitui o processo criativo de Carmo, a pesquisa incessante destes corpos com falsa desmesura, tudo ganha numa poética dos sentidos à custa de uma vigorosa materialização da cor. Carmo comentou o que tem feito nos últimos 20 anos, abriu espaço para o debate, senti-me no direito de falar da Guiné, curiosamente a assistência revelou-se interessada com a narrativa do artista plástico. Esteve nas transmissões do quartel-general, começou a fazer uns desenhos, defendia-se com a ambiguidade das mensagens, os seus superiores revelaram entusiasmo, vieram as encomendas, deixou trabalhos em vários locais, escreveu na "Voz da Guiné", publicação do tempo, de tudo prometeu falar quando nos encontrássemos. E a propósito da nossa conversa telefónica no escritório do editor, mostrou o livro publicado na Editorial Caminho, deixou-me fotografar imagens dos seus desenhos feitos na Guiné, para mim estava ali a chave explicativa da serigrafia para a qual eu não tinha, para além de emoção, qualquer código de referência. Dá para perceber que é um desenho de uma África em estado de tensão, ele referiu explicitamente a forte atração que sentiu pela arte Nalu, julga ter plasmado alguns dos códigos desse género artístico nestes seus trabalhos em que a África está sempre presente.

Agora só me resta ficar a aguardar o dia em que nos iremos encontrar e falar dos trabalhos dos seus dois anos na Guiné. Voltou em 1972, no ano seguinte fez uma exposição na Galeria Opinião, ali se mostrava a guerra, ainda hoje Carmo não sabe como é que não teve problemas com a censura.

Fico agora a aguardar que o artista me receba e dê a conhecer as suas memórias com mais de meio século. Talvez valha a pena referir que é o único artista plástico que falou da Guiné daqueles tempos da luta de libertação. O que traz redobrado interesse para conhecermos a inspiração subjacente a todos estes trabalhos e a outros que ele vai mostrar.


Amílcar Cabral, 1973
Memória africana, 1973
Choque Africano-Guiné, 1973
Memória Africana, 1973
Memória Africana, 1973
Imagem da exposição de António Carmo na Galeria Opinião, 1973, retirada dos Arquivos da RTP, com a devida vénia
A arte de António Carmo depois da sua comissão da Guiné
António Carmo, Editorial Caminho, 2003, esgotado
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24691: Os nossos seres, saberes e lazeres (591): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (12) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Mário e restantes camaradas

Realmente o António Carmo foi nosso "camarada da Guiné", onde esteve nas Transmissões.
Sei que fomos contemporâneos, embora não tenha presente a "sobreposição" das nossas comissões.
Fez por lá vários trabalhos, tais como o que mostras, além de outros, como por exemplo os cartões do "Boas Festas".
Além disso referes no teu escrito o Sá Coutinho.
Não sei se esse teu Sá Coutinho é o mesmo "meu Sá-Coutinho", que conheci também na Guiné, como fotocine e que depois quando vim à Metrópole em férias, fez de meu cicerone no Porto.
Tenho ideia que este "meu Sá-Coutinho", que creio ser nome de família, têm galeria de exposições e é muito amigo de um outro "camarada da Guiné", de nome Centeno, artista reconhecido e que recomendo que pesquises.
Este Centeno não é da linha do especialista de finanças mas sim da linha familiar da Yvette Centeno, do Porto. Foi Furriel do Pelotão de Artilharia destacado em Piche e convivemos quando estivemos por lá.

Abraço
Hélder Sousa