O cinema também serve para falsificar ou reinventar ou reescrever a história... (O filme de 1945 não pretende ser "uma biografia, mas uma obra livremente inspirada na vida do célebre salteador"...)
Cartaz do filme "José do Telhado" (1945), a preto e branco, 98 minutos: produzido e realizado por Armando de Mirando, e contracebado por Virgílio Teixeira e Adelina Campos, nos dois principais papéis. Os exteriores foram filmados em Vouzela, em 1945. O filme foi estreado no Porto (Coliseu, em 15/12/1945), e emLisboa (Polteama, 16/1/1946). Fonte: Cinept / UBI (com a devida vénia...)
2. Vamos reproduzir mais alguns excertos das "Memórias do Cárcere" (1ª edição, 1862), em que o Camilo Castelo Branco traça um retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico, sobre o seu companheiro de infortúnio (mas também precioso "guarda-costas" ...), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto, retrato esse que de algum modo ficou, acriticamemte, para a posteridade, criando-se assim o mito do "Robin dos Bosques português"... Afinal, também temos direito a ter um... A tradição popular, outros escritores, menores, o cinema e a televisão (veja-se a série da RTP, "João Semana") têm contribuido para reforçar o mito do "banditismo social".. (Convém lembrar que Camilo não era historiógrafo, era um ficcionista, um "folhetinista", que escrevia muito, em pouco tempo, e em função do seu "nicho de mercado", que era uma clientela urbana ou urbanizada, letrada, que lia jornais, "folhetins" e alguns livros, com poder de compra, em suma, a pequena e a média burguesia liberal socialmente em ascensão.)
Os excertos aqui reproduzidos são os da 8ª edição (Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966)
(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)
(…) "Na noite de 22 de Maio [de 1852] (**) deu José do Telhado batalha campal à tropa no local denominado Eira dos Mouros [freguesia de Santa Cristina de Figueiró, concelho de Amarante, distrito do Porto] (**)
O destacamento de infantaria 2 (***) conseguira capturar dois salteadores e descera com eles a uma estalagem, para descansar. Aí o surpreendeu a horda com o chefe montado em fogosa égua. Chegou ele ao terreiro da estalagem, e exclamou: "Carregai com quartosn (****), rapazes, que está aqui José do Telhado."
Saiu fora a tropa, e empenhou-se um tiroteio, que rematou pela retirada do destacamento. O chefes sustentou sempre a vanguarda da avançada, fazendo fogo de pistola e clavina.
Estavam os dois saltadores prisioneiros na cavalariça da estalagem: um fugira logo que rompeu o fogo, o outro ficara na impossibilidade de erguer-se sobre as pernas cortadas de balas.
− Vem! − disse o capitão ao salteador ferido.
− Não posso; matem-me que eu estou sem pernas.
− Faz o ato de contrição − retrucou o chefe.
O ferido resmuneou o acto de contrição , e a estalajadeira verteu lágrimas piedosas.
José dos do Telhado estirou-a com uma bofetada, e desfechou contra o peito do camarada, dizendo;
− Acabaram-se-te os teus trabalhos, e os meus estão em começo. Adeus!
O cadáver não podia responder a este saudoso vale do seu chefe. (pp. 95/96)
(…) Noutra noite, cercou-lhe a tropa a casa, estando ele no primeiro sono. Despertou-o a mulher, e ajudou-o a vestir muito de seu vagar. Caminhou para uma porta transversal, e retrocedeu a ir buscar o relógio esquecido, e a dar ordens ao criado para lhe conduzir de madrugada o cavalo a designado sítio. Abriu uma janela, e disse para os soldados:
− Que tal está a noite, rapazes ?
Retirou da janela, e abriu a pequena porta, que defrontava com uma cortinha para a qual relevava saltar por cima de um quinchoso. Aí estavam postados três soldados. José Teixeira aperrou a clavina de dois canos, e disse:
− Agachem-se, que quero saltar. Os dois primeiros que se moverem, passo por cima deles mortos.
Os soldados agacharam se, e ele saltou. Já de dentro da cortinha, atirou dois pintos (*****) aos soldados, e e disse-lhes:
− Tomai lá para matar o bicho à saúde do José do Telhado.
E foi seu caminho pacífica e detidamente como se andasse espreitando a toupeira no seu meloal. Teria ele tempo de palmilhar um oitavo de légua, quando lhe deram uma descarga. (...) (pág. 97)
(...) José Teixeira folgava de entremeter incidentes cómicos nas suas assaltadas. A uma dama de Carrapatelo dera ele um beijo de despedida, e à mulher do senhor Camelo perguntara de que lhe servia o dinheiro, se não podia comprar uma cara mais nova e menos feia.
O senhor Bernardo José Machado, muito conhecido comerciante do Porto, ia um dia para Cerva [Ribeira de Pena, no Alto Tâmega] , sua terra natal , e alcançara, a distância curta do Torrão, um cavaleiro bem posto no seu corpulento cavalo, e acamardou-se com ele na jornada. Falavam vários assuntos, e caiu a propósito os perigos de jornadear por tais sítios infestados pelo terrível Zé do Telhado.
O cavaleiro mostrou-se também horrorizado pela hipótese de o encontrarem, e ouviu da bocado senhor Machado a história dos flagicídios do célebre bandoleiro. Apearam numa estalagem, e jantaram o mais lautamente que podia ser. O cavaleiro mudara de estrada. e despediu-se do senhor Machado, que lhe ofereceu os seus préstimos. Pediu o comerciante a conta à estalajadeira, e soube que o outro sujeito pagara a despesa. Perguntou o viajante, quem era aquele cavalheiro, e a mulher respondeu que era o José do Telhado.
É bem de ver que o senhor Machado, em vista do panegírico com que o brindara, não foi muito a seguro de o topar adiante com outra cara, ocasionando lhe um facto novo para realçar a história. (...) (pág. 99),
(...) O libelo cerra a meda dos crimes do José do Telhado om a tentativa de evasão para reino estrangeiro sem passaporte.
A morte de José, denominado o pequeno, por antifrase, não vem incluída na acusação.
José Pequeno era agigantadado de estatura, e o mais cruel da malta, comandada por José do Telhado.
Custava muito ao chefe refrear-lhe o instinto sanguinário; mas com melindre o fazia, porque o parceiro era o único de quem ele se receava em luta de braço a braço.
Andava José Pequeno cogitando no expediente mais azado a livrar-se de perseguições, e tentou-o o demónio a atraiçoar os companheiros. Foi a malta surpreendida, estando ausente o denunciante. Comandava a força o destemido Adriano José de Carvalho e Melo, Administrador do Marco de Canaveses.
Carregou tão brava a polícia sobre a chusma dos ladrões, que lhes foi remédio a fuga. Aí recebei José Teixeira uma bala nas costas a qual, segundo ele diz, o fizera saltar dez passos avante contra sua vontade. A bala produziu-lhe na coluna vertebral um choque elétrico meramente.
Ao outro dia, José Teixeira teve de evidência que seu companheiro o denunciara. Ao anoitecer foi à Lixa [concelho de Felgueiras] onde pernoitava o traidor, entrou-lhe em casa, e disse-lhe:
− Não te quero matar â traição; previne-te como quiseres, que um nós há de morrer aqui.
− Ou ambos! − disse o José Pequeno, lançando mão da faca.
− Ou isso ! − redarguiu o José do Telhado, sacando de uma tesoura. E acrescentou:
− Hei de cortar-te com ela a língua.
A primeira arremetida que se fizeram, apagaram a luz da vela, e arcaram peito a peito. Revolveram-se na escuridade um quarto de hora, rugindo alternadamente injúrias e pragas ferozes.
José Teixeira já tinha um braço rasgado; mas José Pequeno expedira o último rugido pela fenda que a tesoura lhe abria na garganta. O chefe ergueu o joelho sobre o peito do cadáver, quando os dois gumes da tesoura se encontraram ao través da língua que o denunciara.
O homicida aparecer na Lixa ao outro, e disse a multidão parada à porta do morto:
− Se não sabem quem matou este traidor, aqui o têm.
E passou adiante. obrigando o cavalo a garbosa upas.
Coisa é digna de reparo, que o ministério público não desse querela contra o assassino. Bem pensada a irregularidade, dá de si que a moral pública, representada pela polícia criminal e administrativa, propôs um voto de gratidão ao matador do formidável celerado da Lixa. (...) (pp. 100-102)
In: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 54")~
(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos / parênteses retos: LG)
Este obra está disponível em formato pdf, no sítio da Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 2020, 232 pp, edição de Ivo Castro e Raquel Oliveira, distribuição gratuita. (Segue a 2ª edição, revista pelo autor, Porto, 1864.)
https://imprensanacional.pt/wp-content/uploads/2022/03/Memorias-do-Carcere.pdf?btn=red
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(**) Vd. José Manuel de Castro - José do Telhado- Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il. (Tipografia Guerra, Viseu).
(***) Vd. Wikipedia: Na época(1852) era conhecido por Regimento de Granadeiros da Rainha, unidade de elite criada em 1842, responsável pela guarda pessoal da Rainha D. Maria II; em 1855, o regimento adopta a actual designação de RI2 - Regimento de Infantaria 2, com sede em Lisboa. Quando Camilo escreveu as "Memórias do Cárcere" já era RI 2,
(****) O "quarto" era um equena bala de chumbo, de forma angular.
(*******) Na época o "pinto" valia cerca de 480 réis. Também era conhecido como "cruzado novo".