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sexta-feira, 2 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24361: FAP (126): A que altura (quantos pés) voava a DO-27 quando fazia de PCV (Posto de Comando Volante)? (Fernando de Sousa Ribeiro)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Pista de Bambadinca... Ao fundo, o muro do cemitério... Uma DO-27 na pista... 

Era uma aeronave que  adorávamos  quando nos trazia de Bissau os frescos e a mala do correio ou, no regresso, nos dava boleia até Bissau, para apanharmos o avião da TAP e ir de férias... 

Era uma aeronave preciosa nas evacuações (dos nossos feridos ou doentes militares, bem como dos civis)... 

Era um "pássaro" lindo a voar nos céus da Guiné, quando ainda não havia o Strela...

Em contrapartida, tínhamos-lhe, nós, os infantes, um "ódio de morte" (sic) quando se transformava em PCV (posto de comando volante) e o tenente coronel, comandante do batalhão, ou o segundo comandante,  ou o major de operações,  ia ao lado do piloto, a "policiar" a nossa progressão no mato...  Quando nos "apanhavam" e ficavam à nossa vertical, era ver os infantes (incluindo os nossos "queridos nharros") a falar, grosso, à moda do Norte, com expressões que eram capazes de fazer corar a Maria Turra... "Cabr..., filhos da p..., vão lá gozar pró c..., daqui a um bocado estamos a embrulhar e a levar nos corn...".

Também os nossos comandantes operacionais (capitães QP ou milicianos) não gostavam nada do "abelhudo" do PCV, em operações no mato...

Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

.

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, 
CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);
 membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780


1. O nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro levantou uma questão que não é de lana caprina (*):

O que é de cabo-de-esquadra é o PCV, que eu tive que ir verificar do que se tratava, porque em Angola não havia disso.

É o cúmulo "comandar" uma operação a partir de um avião! Mas que diabo de ideia! Toda a gente que estivesse num raio de muitos quilómetros ficava a saber onde é que a tropa andava, o que destruía por completo uma das regras básicas da guerra de guerrilha, que é o fator surpresa. 

Os "brilhantes" cérebros militares não sabiam disso? Está visto que a guerra na Guiné era uma guerra rica, pois até majores e tenentes-coronéis passeavam-se em aviões, enquanto a carne-para-canhão morria ou ficava estropiada cá em baixo por culpa deles.

Para abater um DO-27 não eram precisos "strelas". Uns tiros de AK-47 bem apontados ao depósito de combustível ou à hélice do avião deitá-lo-iam abaixo, a menos que este voasse a mais de 300 ou 400 metros de altura, fora do alcance das espingardas, ou então que voasse muito baixinho, a roçar as copas das árvores. 

Portanto, aqui deixo a minha dúvida: a que altura é que os PCV costumavam voar?

2 de junho de 2023 às 02:04  (*)


2. Comentário do nosso editor LG:

Boa questão, Fernando... O "hino da CCAÇ 12", da época de 1971/72, que iremos publicar à parte, é uma paródia da cantiga do "tiro-liro-liro", mais uma bela peça do nosso humor de caserna  lá em cima o senhor major, no PCV ("posto de comando volante") e cá em baixo a "tropa-macaca"... 

Lá em cima anda o Heli-Canhão
Cá em baixo anda a 12 e anda o Xime. (...)

Juntaram-se os três numa operação
Lá para os lados do Poidão
Correu tudo que nem um mimo! (...)

Major... ó meu Major
Ora diga lá agora o que é que quer. (...)

Ora essa continuem cinco minutos,
não precisam que vos peça.
Continuem... ora essa! (...)

Comandante... ó meu Comandante
Estamos fritos, estamos agora a embrulhar! (...)

Tenham calma... tenham calma e não pensem
que eu daqui não vos estou a ajudar. (...)

Contra os canhões sem recuo...
VAI TU!

No sector L-1 o comando dos batalhões usavam e abusavam do PCV... "Para mostrar serviço" aos senhores de Bissau... Nunca dei conta que tenham sido úteis, bem pelo contrário..

Os pilotos de DO-27 podem dizer-nos a quantos pés costumavam voar em operações como PCV ? Vamos lá perguntar aos camaradas da  FAP. (**)
___________

Notas do editor:


sexta-feira, 10 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24133: S(C)em Comentários (7): Ouvi um alto dirigente do MPLA, já depois da independência, dizer que o governo angolano deveria agradecer às Forças Armadas Portuguesas o facto de existir uma consciência nacional em Angola, em vez de uma pertença tribal somente (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, 1972/74)


1. Comentário (ao poste P24128) (*), assinado pelo Fernando de Sousa Ribeiro, que integra a nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018; foi alf mil, CCaç 3535 / BCaç 3880 (Angola, 1972 / 74):

Fernando de Sousa
Ribeiro
Alguns anos depois da independência de Angola, ouvi um alto dirigente do MPLA dizer que o governo angolano deveria agradecer às Forças Armadas Portuguesas o facto de existir uma consciência nacional em Angola, em vez de uma pertença tribal somente. 

Explicou ele que, no serviço militar prestado nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas, foram postos em contacto angolanos das mais diversas etnias e origens geográficas, o que os levou a descobrir que o que os unia era mais do que o que os separava.

Em Angola não havia "pelotões nativos", "comandos africanos" ou "companhias indígenas", cujos membros pertenceriam, na sua maioria ou mesmo na sua totalidade, à etnia A ou à etnia B. Havia apenas militares regulares, que eram jovens como nós, cumpriam o serviço militar obrigatório como nós e no fim passavam à "peluda" como nós. 

Assim como nas companhias e pelotões metropolitanos eram indiferenciadamente incorporados minhotos, alentejanos e transmontanos, também nas companhias e pelotões angolanos eram incorporados, sem distinção, ovimbundos, bacongos e quiocos. 

Nos últimos anos da guerra, esta mistura foi levada ainda mais longe, com a incorporação de militares angolanos em unidades e subunidades metropolitanas, que saíam de cá incompletas. Foi o que se passou com o meu batalhão, que teve alfacinhas, tripeiros e beirões misturados com luandenses, malanjinos e beguelenses. Tudo misturado. 

O resultado foi francamente positivo, na minha opinião.


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.Caç. 3535, B.Caç. 3880


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24033: (De)Caras (194): O mecânico-desempanador Mota, da CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), mais conhecido por "Matraquilho" (Fernando de Sousa Ribeiro)

1. Comentário do Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Angola, Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), ao poste P24012 (*)

É a primeira vez que encontro uma referência à especialidade de desempanador. Para mim é uma completa novidade, não sabia que existia semelhante especialidade. Que eu saiba, no meu batalhão em Angola,  não havia nenhum mecânico desempanador, porque todos acabavam por sê-lo, mais cedo ou mais tarde.

Na região dos Dembos, em todas as colunas auto seguia obrigatoriamente um mecânico, porque a vetustez das viaturas e o acidentado do terreno a isso obrigava. 

O "desempanador-mor" da minha companhia era um soldado mecânico chamado Mota (ainda está vivo, e espero que por muito mais tempo ainda), que resolvia sempre todos os problemas da maneira mais criativa possível. Servia-se de paus de fósforos (para substituir algum parafuso partido, por exemplo, renovando os paus quando eles mesmos também se partiam), chicletes (nomeadamente para vedar alguma fuga de óleo ou de combustível), etc. 

Com ele, todas as viaturas chegaram sempre ao seu destino pelos seus próprios meios. Uma vez, partiu-se a mola do acelerador de um unimog, mola esta que tinha por função manter o pedal do acelerador levantado. O Mota resolveu o problema substituindo a mola partida pelo elástico que tirou das suas próprias cuecas!

27 de janeiro de 2023 às 03:05

2. Comentário do editor LG:

Uma história incrível, Fernando, essa do Mota, o mecânico "desenrascador" e "desempanador". Que importa que não tivesse o "diploma" nem o "título"?! 

Também os houve na Guiné, havia mecânicos das Daimlers, por ex., que conseguiam manter operacionais essas relíquias da II Guerra Mundial... O Mota, mesmo que  vocês tenham estado em Angola, merece um poste no blogue dos amigos e camaradas da Guiné. Uma homenagem a todos os nossos mecânicos. Tens uma foto dele ou com ele? Candando (abraço, em angolês). 

Luís

3. Resposta do Fernando Ribeiro:

Data - sábado, 28/01/2023, 03:01

Caro Luis,

A única fotografia que tenho do mecânico Mota é esta (à esquerda), que data de 2016 e foi feita no convívio do meu batalhão realizado aqui no Porto. Ninguém o conhecia por Mota, mas sim pela alcunha de Matraquilho.

Quando a minha companhia chegou a Zemba, estavam num canto do bar dos soldados uns matraquilhos estragados. O Mota foi pedir ao capitão, Lamas da Silva, licença para reparar os matraquilhos. O capitão respondeu-lhe que não tinha que lhe dar licença nenhuma, porque os matraquilhos não faziam parte do espólio da companhia e, por isso, não tinham dono. Acrescentou que, se o Mota quisesse ficar com os matraquilhos, que ficasse, e fizesse deles o que muito bem entendesse. 

Isto foi música para os ouvidos do Mota, que tratou logo de reparar os matraquilhos e pô-los a render. E como renderam! Zemba era um cu-de-judas onde não havia comerciantes, nem "meninas", nem nada onde a malta pudesse gastar o seu dinheiro, a não ser o bar dos soldados. 

Os matraquilhos do Mota foram por isso um enorme sucesso, que a malta toda usava de manhã até à noite, metendo todas as moedas necessárias para jogar. O Mota a partir de então passou a ser conhecido pela alcunha de Matraquilho, o mecânico que personificava o portuguesinho desenrascado.

Um abraço, Fernando Ribeiro

4. Novo comentário do editor LG:

O teu Matraquilho faz-me lembrar, com as devidas distâncias (até geográficas e históricas...) o MacGyver, o herói de uma série que passou na RTP, em 1987, e era muito popular... É caso para perguntar quem imitou quem... Entre um e outro há uma distância de 15 anos... 

Lembras-te das aventuras do MacGyver?

(i) Aqui vai um excerto da RTP > Programas TV

"As aventuras de MacGyver: a sua mente é um autêntico canivete suíço

Richard Dean Anderson é Macgyver (foto à esquerda, cortesia da RTP), um agente astuto e muito inteligente, que opta por resolver situações de conflito sem recurso às armas e à violência. Um herói que arrisca a sua vida em delicadas operações de salvamento, utilizando como únicas armas, os utensílios que existem à sua volta" (...)

(ii) Na Wikipédia também se pode ler:

MacGyver (Profissão: Perigo no Brasil) foi uma série de televisão americana de ação-aventura criada por Lee David Zlotoff (...) . MacGyver durou 7 temporadas, de 1985 a 1992, no canal ABC nos Estados Unidos. A série foi filmada em Los Angeles  (...) e  em Vancouver (...) . O último episódio foi exibido a 21 de maio de 1992.

A série segue o agente secreto Angus MacGyver, interpretado por Richard Dean Anderson, que trabalha como “um solucionador de problemas” para a Fundação Phoenix em Los Angeles e como agente para o Departamento Governamental de Serviços Externos (DXS), ambas fictícias. 

Educado como cientista, MacGyver serviu na Guerra do Vietnã como técnico da brigada antibombas ("Countdown"). 

Muito versátil e possuidor de um conhecimento enciclopédico de ciências físicas, MacGyver resolve problemas complexos ao criar coisas a partir de objetos comuns, grande parte das vezes com a ajuda do seu canivete suíço; MacGyver também porta consigo fósforos e fita adesiva em alguns episódios. Prefere resolver suas missões sem violência e não gosta de usar armas de fogo devido a uma morte acidental que envolveu um de seus amigos de infância. (...)

[ Seleção / revisão e fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23752: Fotos à procura de...uma legenda (166): Que garrafa de... "bioxene" segura na mão o nosso camarada João Silva (1950-2022) e os demais elementos do grupo, na foto do Natal de 1973, no CIM de Bolama ? (Valdemar Queiroz / Fernando de Sousa Ribeiro)

Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de 1973 > O João Silva, em primeiro plano, à esquerda, segurando na mão  uma garrafa que, ao nosso editor, pareceu de espumante, mas não devia ser...


Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de 1973 >  Já agora quem seria este capitão matulão, em segundo plano, do lado direito?



Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de1973 >  "Foto de grupo, cada militar segura uma garrafa de espumante que, se presume, foi-lhe oferecida"... (Detalhe)

Fotos (e legendas): © João Candeias da Silva / António Duarte (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dois comentários, ao poste P23750 (*),  de leitores que estão sempre atentos ao detalhe e que, neste caso, não viram garrafas de espumante nenhumas...  

Vamos aceitar o desafio do nosso querido camarada Valdemar Queiroz que, além de leitor compulsivo do nosso blogue, é catedrátrico em matéria de passatempos do tipo "Descubra a  Diferença"... (Sabemos que o nosso blogue tem-lhe dado... anos de vida, a ele que, sofrendo de uma DPOC, vive sozinho trancado em casa, e que em matéria de "bioxene", já bebeu os DOC todos que tinha a beber, diz ele, com o seu proverbial bom humor de caserna).

(i) Valdemar Queiroz

Bem, no tempo que passei no CIM de Contuboel não tínhamos praia mas tínhamos rio. Também não nos foi oferecido garrafas de bioxene com fitinhas de Natal, mas foram igualmente tempos que nem parecia que estávamos na guerra da Guiné, como nestas fotos se pode observar.

E a propósito de garrafas de bioxene com fitinha de Natal que aparecem na fotografia, não parecem ser de espumante que seriam maiores e de rolha bem diferente, e nota-se não serem todas da mesma marca.

Vale uma carica a quem descobrir de que bioxene se trata, 'bora lá. (**)
(ii) Fernando de Sousa Ribeiro:

Ao olhar de lince do Valdemar não escapa nada. As garrafas parecem ser de "espumante" JB, Drambuie, VAT69, etc.



quarta-feira, 29 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23395: A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (1): Luanda, Depósito de Adidos de Angola, o oficial de dia e o preso cabo-verdiano (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, 1972/74)

1. Comentário ao poste P23391 (*), que o nosso editor LG considerou como uma "verdadeira história pícara" e, como tal, merecedora de ser publicada, em poste, na montra principal do nosso blogue. 

 Afinal, a nossa guerra também passou por aqui, pelas Ruas Escuras, os Bairros Altos, os Cais do Sodré, as Ilhas de Luanda, os Cupelons, os Bataclãs, os Depósitos de Adidos... , sítios por onde passou muita "malandragem" eonde também também havia "minas & armadilhas".

Histórias de "a(r)didos e mal pagos", pode ser um bom título para uma nova série, que hoje inauguramos... com uma história deliciosa, com princípio, meio e fim,  do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780. História deliciosa, contendo também uma profunda lição de humanidade e de solidariedade.

E, a propósito, recorde-se aqui dois dos nossos mestres do pícaro, o saudoso Jorge Cabral e o "bandalho" do Zé Ferreira da Silva. Iremos repescar um ou outro poste, já publicado, destes e doutros autores,


A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (1): Luanda, Depósito de Adidos de Angola, o oficial de dia e o preso cabo-verdiano 

por Fernando de Sousa Ribeiro 


Os militares que se deslocassem a título individual de e para Luanda e tivessem que passar alguns dias na cidade, fosse em serviço, em consultas no Hospital Militar ou em rendição individual, ficavam no Depósito de Adidos de Angola (DAA), que era um quartel situado próximo do aeroporto de Luanda.

Não havia qualquer semelhança entre o Depósito de Adidos de Angola e o Campo Militar do Grafanil; o DAA era um quartel e o Grafanil era uma espelunca. Quando passei um mês em Luanda em consultas externas de Psiquiatria, foi no DAA que fiquei colocado. Até fiz lá um serviço de oficial de dia.

Um dia, um capitão pertencente aos quadros do Depósito de Adidos de Angola comunicou-me que eu teria que fazer um serviço de oficial de dia na unidade. Eu respondi-lhe:

— Se tiver que fazer o serviço, faço, mas olhe que eu estou aqui em Luanda a frequentar as consultas de Psiquiatria. Não sei se estou em condições mentais de desempenhar devidamente as funções.

Disse-me o capitão:

— Não ficou internado, pois não? Então está em condições de fazer o serviço.

E acrescentou, em tom apaziguador:

— Não se preocupe, porque não vai acontecer nada. Aqui nunca acontece nada. Isto não é uma unidade operacional, é um simples lugar de passagem. O que você tem que fazer é tomar nota de quem é que chega para cá ficar e quem é que se vai embora, a fim de mantermos um registo permanentemente atualizado de quem se encontra cá colocado e quem deixou de estar. Mais nada. Você até se vai aborrecer. Aqui nunca aconteceu nada e não vai ser agora que vai acontecer.

Nunca tinha acontecido nada, mas eu quase fiz que acontecesse, graças ao meu talento para me meter em sarilhos.

Estava eu sentado à secretária de oficial de dia e com a cabeça na lua quando, a meio da manhã, chegou uma escolta com um soldado, preso e algemado, para ser metido na prisão do quartel. Recebi o preso, assinei a papelada que tinha que assinar, os militares da escolta retiraram as algemas ao preso e foram-se embora. Fiquei com o preso à minha frente.

Dei uma vista de olhos pelos papéis e verifiquei que o preso tinha acabado de chegar da Metrópole, mas era cabo-verdiano. Perguntei-lhe:

— O que foi que aconteceu para você estar aqui nesta situação?

Ele respondeu-me que era de Cabo Verde, mas vivia na Metrópole e, por isso, foi incorporado no serviço militar na Metrópole. Depois de ter feito a recruta e a especialidade, foi colocado no RAP 2, em Vila Nova de Gaia, até que foi mobilizado para Angola em rendição individual.

Para se despedir da Metrópole, resolveu ir às "meninas" da Rua Escura, no Porto, apesar de estar sem dinheiro. Quando a profissional que o atendeu descobriu, no fim do serviço, que ele não lhe iria pagar, saiu para a rua e fez tamanho escarcéu, dizendo que não estava ali para trabalhar de graça, que apareceu o chulo dela, seguindo-se uma cena de pancadaria entre o chulo e o cabo-verdiano. Entretanto alguém chamou a Polícia Militar, que levou o cabo-verdiano sob detenção. E ali estava ele, diante de mim, depois de ter feito a viagem de avião de Lisboa para Luanda sempre vigiado e algemado.

Assim que me contou a sua história, o cabo-verdiano pediu-me, com todo o descaramento:

— Meu alferes, eu preciso de contactar uma pessoa que está aqui em Luanda, para que saiba que eu estou cá. O meu alferes dá-me licença que eu saia? Eu prometo que volto. Prometo. É só falar com a pessoa e volto assim que puder. Prometo.

Eu disse-lhe que sim!

Logo que se foi embora um soldado que eu não conhecia de lado nenhum, para falar com uma pessoa que eu não sabia quem era e num lugar que ele não me revelou qual era, é que me dei conta da asneira que tinha acabado de cometer. Pensei: «Bonito serviço! Então eu deixo sair livre como um passarinho um preso, que momentos antes estava algemado e sob escolta?! E se ele não voltar, o que é que me vai acontecer? Isto de nomearem um maluco para oficial de dia só podia dar mau resultado».

Não deu mau resultado. Por volta das duas horas da tarde, o cabo-verdiano apareceu-me à porta do gabinete, dizendo:

— Meu alferes, já me pode prender.

Dei um suspiro de alívio que se deve ter ouvido na cidade inteira.


Fernando de Sousa Ribeiro, 
ex-alferes miliciano da CCaç 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 28 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23391: A galeria dos meus heróis: uma história pícara de três “a(r)didos” - II (e última) Parte (Luís Graça)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22902: (Ex)citações (398): Topónimos de origem árabe: Missirá, Amedalai, Medina, Meca... Curiosidades, controvérsias (Cherno Baldé, Bissau / Fernando Ribeiro, Porto)


Guiné > Região de Bafatá >  Sector L1 (Bambadinca)  > Regulado do Cuor >  Missirá > Pel Caç Nat 52 > c. 1968/69.

"Um momento de Missirá: à esquerda. Madiu Colubali, baixo de corpo, grande de coragem. Grande conhecedor do Corão e da escrita marabu; à direita, o régulo Malã Soncó, em perfeito traje de chefe mandinga - figura bíblica, bravura sem igual. Atrás, o pequeno monumento que os rebeldes destruíram e nós reconstruímos. Ao fundo, à esquerda, a mesquita. À direita, cubata destruída no ataque de [6 de ] setembro [de 1968]. Tudo tão belo"...

Foto (e legenda): ©  Mário Beja Santos (2006). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


1. Comentários ao poste P22891 (*):




Caros amigos,

Com a partida do "Alfero" Jorge Cabral, o unico, o Blogue, os Veteranos da Guerra da Guiné e todos nós, perdemos um Homem bom e invulgar, um excelente Humorista e Comediante nato. Aproveito esta oportunidade para endereçar os meus sentimentos de pesar à familia enlutada e aos amigos mais próximos.

Sobre o Poste de hoje (*), gostaria de apresentar algumas notas, a titulo de curiosidades, que, certamente, o "Alfero" e todos os que passaram pela região, gostariam de saber.

No último parágrafo do seu Conto de Natal o "Alfero" Cabral escreve: 

"Foi em Novembro, estava calor, o Menino era Braima e não Jesus, nenhuma estrela iluminava o céu, e o Alferes não se parecia com os Reis Magos. Porém ainda hoje, ele acredita, que ali no meio do mato, naquela tarde, aconteceu Natal".

Num comentario a um dos Postes anteriores escrevi, mais ou menos isto: Não era o menino Jesus, mas estava o menino Braima que é o maior dos Profetas das trés religiões conhecidas. Braima ou Ibrahima vem do Árabe "Ibrahim" e que corresponde ao Abrão ou Abraham dos Cristãos.

O topónimo Missirá (nas línguas dos povos muçulmanos da Senegâmbia) vem, também, do Árabe "Misr" ou "Misra", ou seja o nome dado, pelos árabes, ao Egipto. 

São da mesma origem topónimos como Hamdalaye (cidade de Allah), Keruane ou Quereuane (cidade de Cairo), Madina (Medina, cidade do Profeta, na Arábia Saudita onde foi enterrrado o Profeta Mohammed) e muitos outros. 

Curiosamente, não tenho ouvido nenhuma localidade com o nome de Maca (Meca) que, mesmo sendo considerada a cidade santa, não merece muita reverência, provavelmente devido ao facto da sua longa resistência e luta tenaz movida pelo clã dos Kuraisitas (Clã do proprio Profeta) contra a religião islâmica e ao próprio Profeta,  obrigando-o a fugir e refugiar-se na região mais ao Norte onde encontrou apoio entre os clãs de Medica.

Na região da Africa Ocidental, especialmente nos paises de maioria muçulmana, são muitos os topónimos de origem Árabe devido  influência da religião islâmica que aconteceu nos séculos anteriores à colonizaçao europeia, e fundamentalmente no século XIX com a entrada em cena dos povos Fulbés ou fulanis (fulas, em português) e a fundação de importantes reinos teocráticos que alteraram radicalmente o cenário politico, demográfico e sócio-cultural da região, desde o Oceano Atlântico (Senegal/Mauritânia) até à África Central (Camarões e RCA). 

Estes movimentos e reinos nascidos das "Djihads" de letrados Fulbhées da região foram depois vencidos ou subjugados através de politicas de Protectorados pelas potências coloniais. Todavia, assistimos de novo ao recrudescer do fenómeno "Djihadista" sob outras roupagens e caracteristicas, fundamentalmente fruto de políticas erradas e de governos exclusivos e a marginalização de povos inteiros que não se reconhecem nos governos e lideranças nascidos das independências precipitadas e mal geridas, cujas consequências e impactos ninguém pode prever, por enquanto.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

9 de janeiro de 2022 às 13:51

(ii) Fernando de Sousa Ribeiro

Caro amigo Cherno Baldé e restante pessoal

Existe em Portugal uma localidade chamada Meca. É uma pequena aldeia situada a norte de Alenquer. Fui lá uma vez há muitos anos e deparei-me com uma grande e imponente igreja, grande e imponente demais para uma aldeia tão pequena, o que não é caso único em Portugal. Todos os anos realiza-se no adro fronteiro à igreja uma cerimónia de bênção do gado. Os criadores de gado da região reunem as suas ovelhas, cabras e bois no largo, para que o padre abençoe os animais, aspegindo-os com água benta.

Embora a igreja e o ritual sejam católicos, o nome Meca pode ter origem muçulmana, pois os árabes ocuparam a região durante cerca de quatro séculos e deixaram numerosos vestígios. O topónimo Alenquer, por exemplo, é de origem árabe. Por outro lado, um vulcão extinto existente nas proximidades da aldeia poderia ter sido um local para rituais pagãos realizados muitos séculos atrás, dos quais a bênção do gado poderia ser um sobrevivente.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22488: Fotos à procura de... uma legenda (155): Boinas... há muitas: a propósito das "boinas vermelhas" do grupo de comandos "Diabólicos", Brá, setembro de 1965 (Virgínio Briote / Carlos Vinhal / Fernando de Sousa Ribeiro / Luís Graça)


Guiné > Bissau > Brá > Setembro de 1965 > Grupo Comandos Diabólicos > "Foto de finais de Set 65, tirada em Brá, quando começaram os "ensaios" com as boinas vermelhas... Da esquerda para a direita: Marcelino da Mata, Azevedo, Virgínio Briote , Black e Valente"...



Guiné > Bissau > Brá > Setembro de 1965 > Grupo Comandos Diabólicos, completo, em frente à camarata do Grupo. Ao centro, na 1ª fila, o 6º a contar da esquera, o comandante do grupo, alf mil 'comando' Virgínio Briote. Na ponta direita, de pé, o srgt mil 'comando' Mário Valente. Na 2ª fila, de pé, na extrema direita, o 1º cabo 'comando' Marcelino da Mata.


Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Comentários à primeira foto de cima (*):

(i) Fernando Ribeiro:

1. No mato ninguém morre em versão John Wayne, porque o John Wayne nunca morria nos filmes. Ele era sempre o "herói" da fita e um "herói" nunca morre.

Quanto à fotografia em que se veem cinco militares, pode ler-se na legenda, a dada altura: «Foto de finais de Set 65, tirada em Brá, quando começaram os "ensaios" com as boinas vermelhas...» 

Aqui permito-me discordar. Boinas vermelhas nos Comandos, já em 1965?! Eu julgava que elas só tivessem sido usadas depois do 25 de Abril... As boinas parecem vermelhas porque a imagem está toda ela avermelhada! Os pigmentos azuis e verdes da fotografia original desapareceram com o passar dos anos, e quase só ficaram os pigmentos vermelhos. 

As boinas deles deviam ser castanhas, como as de toda a gente, e os uniformes deviam ser de caqui, e não amarelos fosforescentes como parecem ser. As cores da imagem não correspondem às cores originais, nem pouco mais ou menos. Estão completamente alteradas. O tempo não perdoa.

25 de agosto de 2021 às 18:13


(ii) Carlos Vinhal:

Quero subscrever as palavras escritas pelo camarada de armas Fernando Ribeiro. As boinas vermelhas dos Comandos começaram a ser utilizadas só em 1974 e as verdes dos Operações Especiais em 1982. O resto é fantasia.

Dá-me a ideia que as boinas da foto foram coloridas à posteriori.

Boina militar em Portugal:

A primeira unidade militar a usar boina em Portugal foram as tropas paraquedistas da Força Aérea em 1955.

O Exército só adotou a boina (para as suas unidades de Caçadores Especiais) em 1960. São ou foram usadas as seguintes boinas:

  • Boina verde escuro (verde caçador-paraquedista) - Tropas Paraquedistas
  • Boina azul - Polícia Aérea;
  • Boina castanha - inicialmente apenas Caçadores Especiais, depois boina genérica do Exército Português;
  • Boina negra - tropas da Arma de Cavalaria (com excepção dos militares qualificados como Paraquedistas ou Comandos), incluindo a Polícia do Exército;
  • Boina vermelho vivo - Comandos a partir de 1974;
  • Boina verde-claro (verde musgo) - Operações Especiais a partir de 1982;
  • Boina azul ferrete - Fuzileiros Navais
  • Boina negra com uma faixa verde - Regimento de Infantaria da Guarda Nacional Republicana
  • Boina verde escuro - Comandos Territoriais de Infantaria da Guarda Nacional Republicana
  • Boina bege - Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro da Guarda Nacional Republicana
  • Boina camuflada (fora de uso) - 3ª Companhia de Comandos (Guiné) e Força de Flechas da PIDE/DGS,
  • Boina amarela (fora de uso) - Grupos Especiais de Moçambique
  • Boina vermelho grená (fora de uso) - Grupos Especiais Paraquedistas de Moçambique
  • Boina branca (fora de uso) - Formações Aéreas Voluntárias

25 de agosto de 2021 às 20:29 

(iii) Gil [Virgínio Briote]:

Caros Camaradas:

Esta foto de Setembro de 1965 foi tirada em Brá. A farda era caqui amarela clara e a boina que usámos, exclusivamente para a foto, era de cor vermelha. Julgo que algum Camarada terá encomendado essas boinas em Lisboa. Tenho a foto original, em papel.

Estávamos no início da formação dos Cmds da Guiné, na que, mais tarde, veio a ser chamada a "fase de grupos". Estes gozavam de grande independência, quase sempre actuaram isolados, com apoio e recolha de Grs Comb das zonas de actuação. Só muito raramente, talvez duas ou três vezes os Grs actuaram em conjunto. Esta filosofia veio a alterar-se com a chegada das CCmds formadas em Lamego.

A boina vermelha, que ouvi dizer cá que não é vermelha mas magenta, só foi autorizada muito mais tarde.

Em 1964/65 estava-se na fase da formação de identidade, que incluia a cor da boina, mas não só.

Um abraço e obrigado pelo vosso interesse.

V Briote
ex-alf mil da CCav 489/ BCav 490 (Jan/Mai) e CCmds do CTIG (Jun 1965 /Set 1966)

25 de agosto de 2021 às 22:04

(iv) Tabanca Grande Luís Graça:

Fernando: Intuitiva e apropriada a tua observação. De facto, nas lendas e narrativas do Faroeste da nossa infância e adolescência, os heróis eram todos brancos e nunca podiam morrer. Hollywood alimentou (e matou) o nosso imaginário. O mundo está dividido entre fortes e fracos, heróis e vilões, índios e cobóis... E o melhor índio só podia dia ser... o morto.

Ainda cheguei, já no tempo do Spínola, a ouvir essa, em Contuboel e em Bambadinca, da parte dos meus soldados fulas: "Um balanta a menos era um turra a menos"... Como se sabe, o racismo nem tem cor nem bandeira, nomeadamente nas "guerras civis" (como também o eram as "guerras coloniais" em que, por "azar do destino",  nos calhou, sem termos feito mal a ninguém...).

26 de agosto de 2021 às 08:36

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Afinal, boinas há (ou havia) muitos... Como havia bonés, chapéus e barretes, de todos os feitios, grandes e pequenos...

Eu aceito plenamente a explicação do Gil (, leia-se: Vb, ou Virgínio Briote). Ele é a honestidade intelectual em pessoa e, como nosso autor e nosso coeditor jubilado, o blogue deve-lhe muito).

Não tenho dúvidas, pois, que as boinas da foto fossem vermelhas, mesmo que a foto tenha sido "retocada" para efeitos de melhoria da sua resolução... Nessa altura, na decadência do Estado Novo, já se podia dizer "vermelho". Mas no auge do regime de Salazar, nos anos 30/40, a palavra era proibida. Oficialmente, o "vermelho" não fazia parte do espectro das cores do arco íris... Até a tinta, nas repartições públicas, era azul ou "carmezim".

26 de agosto de 2021 às 10:24 
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 19 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22468: Fotos à procura de... uma legenda (147): A imagem da capa do livro de Pedro Marquês da Silva, "Os números da guerra de África" (Guerra e Paz Editores, 2021)

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22253: Estórias avulsas (106): O Aspirante Carvalho e a nossa (in)sanidade mental (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535/BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)


Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973.  


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro [ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), do BCAÇ 3880; é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; vive no Porto; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018, sentando à nossa sombra do nosso poilão no lugar n.º 780; tem 2 dezenas de referências no blogue.]
 
Date: terça, 1/06/2021 à(s) 18:22
Subject: Mais um texto meu (o último) (*)
 

Caro Luís,

Tenho mais um texto a partilhar contigo, e que poderás publicar no teu blogue se quiseres, relativo a um aspirante que conheci em Angola e que era doente mental. O texto não faz parte do meu livro, porque eu não tenho qualquer intervenção na história. O meu estatuto foi unicamente de observador. Posso, contudo, assegurar-te que os casos narrados no texto se passaram tal como os descrevo, nomeadamente o incidente com a granada de mão. A versão do incidente que o próprio agressor pessoalmente me contou é coincidente, quase palavra por palavra, com a versão que a vítima me tinha contado antes. Garanto, por isso, que o incidente se passou tal como o descrevo. 

Eu não tenho em minha posse qualquer fotografia do aspirante, nem sei onde poderei encontrar uma. Nesta situação, só posso descrever-to, dizendo que ele era um indivíduo relativamente baixo e entroncado e que usava óculos, uns óculos bastante redondos, que apropriadamente lhe davam um aspeto um tanto ou quanto alucinado.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro, 
ex-alferes miliciano, 
CCaç. 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74


2. Estórias avulsas > O Aspirane

No meu tempo de tropa, os muitos capitães milicianos que tiveram a responsabilidade de comandar companhias operacionais na guerra colonial eram habitualmente selecionados para esse posto em função da idade. Seguia para capitão, e não apenas para alferes, quem estivesse indicado para vir a ser oficial miliciano com uma especialidade operacional e tivesse uma idade superior a um determinado limite. Não me lembro ao certo de qual era esse limite, mas julgo que devia ser à volta de 23 ou 24 anos. Olhe-se para os jovens que agora têm 23 ou 24 anos, repare-se nas criançolas que quase todos eles ainda são e compare-se com as brutais responsabilidades que foram exigidas aos capitães milicianos na guerra. 

Depois de frequentarem o COM (Curso de Oficiais Milicianos) em Mafra, tal e qual como acontecia com os militares que iriam ser alferes milicianos de Infantaria, os futuros capitães milicianos frequentavam o chamado CCC (Curso de Comandantes de Companhia). 

Eu não estou em condições de descrever em que é que consistia o CCC mas calculo que os futuros capitães teriam que aprender a lidar com as diversas questões relacionadas com o comando de uma companhia, nas quais se incluiam as questões operacionais, administrativas, contabilísticas, logísticas, disciplinares, etc. 

No âmbito do CCC e em jeito de estágio, já com o posto de alferes, os futuros capitães milicianos eram enviados para África por cerca de quatro meses, para que, integrados numa companhia real, pudessem aprender como é que as coisas se faziam na prática. Na minha própria companhia, a Companhia de Caçadores 3535, em Zemba, esteve durante algum tempo um destes alferes, que tinha ido para lá estagiar junto do capitão Lamas da Silva, que era então o comandante da mesma. O próprio Lamas da Silva já tinha tido um estágio deste tipo, antes de se tornar capitão miliciano. O estágio do Lamas deve ter acontecido no ano de 1971 e ocorreu na cidade do Luso (agora chamada Luena), no leste de Angola. 

Quando o Lamas da Silva (Foto n.º 1, acima) chegou ao Luso para o seu estágio, estava lá colocado um aspirante a oficial miliciano que sofria de sérias perturbações mentais. Era o aspirante Carvalho. Nalgumas unidades chamavam-lhe Meireles, mas Carvalho é que era o seu último apelido. Este aspirante, porém, nunca assinava Carvalho com todas as letras; sempre e sistematicamente assinava Carvalho sem V! Até no bilhete de identidade ele tinha assinado Carvalho sem V… 

Enquanto esteve no Luso, este aspirante fez diversas tropelias, algumas inocentes, mas outras perigosas. Por exemplo, uma noite ele foi visto a correr completamente nu pelas ruas da cidade, com a malta atrás dele para o agarrar! 

Este indivíduo mantinha-se no posto de aspirante sem ser promovido a alferes, por causa das asneiras que ia fazendo e das sucessivas punições que estas lhe iam valendo. Ele não tinha um comportamento que lhe permitisse ser promovido. Na verdade, ele nem aspirante deveria ser. A sua doença mental era tal, que ele deveria ter sido isentado de todo o serviço militar e submetido a um tratamento psiquiátrico em condições. Mas não foi isso o que lhe fizeram. Limitaram-se a passá-lo aos auxiliares. 

De vez em quando, ele era enviado para o Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Luanda, onde ficava internado. O Serviço de Psiquiatria era uma coisa verdadeiramente tenebrosa. Nem os campos de concentração nazis conseguiam ser piores do que aquilo. O Serviço ficava numas instalações situadas na zona da Samba, longe do centro da cidade. Estas instalações eram constituidas por alguns pavilhões muito próximos uns dos outros e estavam rodeadas por muros altíssimos e coroados de arame farpado. Lá dentro, era impossível estabelecer todo e qualquer contacto com o mundo exterior, a não ser que alguém abrisse o portão, a única ocasião em que os doentes lá internados poderiam ver uma nesga do largo fronteiro às instalações. De resto, o isolamento do mundo para quem estava internado era total. Lá dentro, não se via outra coisa que não fossem muros e paredes, nas quais se roçavam os doentes de olhar perdido, encharcados em drogas. Estar internado em tais condições implicava ficar doido varrido para o resto da vida. 

No entanto, o aspirante Carvalho não se deixava amarfanhar por aquilo e, por mais sedativos que lhe dessem e por mais tratamentos que lhe fizessem, ele conseguia sempre fugir dali para fora. Como fugia só com a roupa que trazia no corpo e sem dinheiro, acabava depois por ser encontrado a dormir na rua... 

O incidente mais grave que o aspirante protagonizou no Luso envolveu o então alferes Lamas da Silva. Por razões que desconheço ou sem razão alguma, o aspirante ganhou um ódio de morte a um certo sargento que estava lá no Luso. Uma noite, depois de jantar, enquanto o resto do pessoal que estava na messe de oficiais ia conversando e bebendo as suas cervejas e os seus whiskies, o aspirante levantou-se de repente e afirmou: 

— Vou matar o filho da puta do sargento Fulano. 

Foi ao seu quarto, saiu de lá com uma G3 nas mãos e dirigiu-se à messe de sargentos. Logo se gerou uma enorme confusão, com o pessoal a procurar demovê-lo dos seus intentos, mas a medo, porque aquele maluco estava armado. No meio da confusão, o Lamas da Silva conseguiu arrancar a arma das mãos dele. 

O incidente parecia ter terminado desta forma, mas não terminou. Quando foi para a cama, o Lamas levou consigo a espingarda do aspirante, colocou-a debaixo do travesseiro e deitou-se. 

A dado momento, o aspirante apareceu à porta do quarto do Lamas com uma granada na mão, dizendo: 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Não dou — respondeu o Lamas da Silva. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada — repetiu o aspirante.

 — Não dou. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Já disse que não dou!... 

O aspirante lançou a granada para dentro do quarto do Lamas da Silva.  Este só teve tempo de saltar para debaixo da cama e proteger-se o melhor possível, antes de a granada explodir. Se a granada fosse defensiva, daquelas que espalham estilhaços de ferro quando rebentam, o Lamas não teria saído dali com vida. 

Mas a granada era ofensiva. Não espalhava estilhaços de ferro, mas tinha um grande poder explosivo. Ao rebentar, a granada destruiu o recheio do quarto e o Lamas da Silva ficou ferido por estilhaços. Foi evacuado e ficou internado no hospital. Mesmo quando, mais tarde, comandou a companhia 3535, o Lamas ainda tinha no corpo alguns estilhaços, que os  médicos não tinham podido tirar-lhe. Ele valeu-se disso para conseguir sair definitivamente de Zemba e abandonar o comando da companhia. 

Um dia, quando o capitão Lamas da Silva ainda estava em Zemba, quem foi que desembarcou lá, chegado numa coluna vinda de Santa Eulália, a fim de cumprir uma pena de prisão de um mês? O aspirante Carvalho! 

Quando o viu, o Lamas da Silva ficou branco como a cal da parede. 

— Tu aqui?... — balbuciou o Lamas, espantado. 

— É a vida! — respondeu o aspirante, encolhendo os ombros. 

E nunca mais se falaram. Mais do que isso, até. Não só não se falaram, como nem sequer se cruzaram mais. Se o Lamas da Silva ia para um lado, o aspirante ia para outro e vice-versa. O aspirante tinha ido para Zemba cumprir uma pena de um mês de prisão por causa de um incidente que ele tinha provocado em Santa Eulália, onde estivera colocado ultimamente. 

Uma noite, encontrando-se ele de serviço como oficial de dia ao Comando de Agrupamento 3952, a que então pertencia, o aspirante abandonou o seu posto e foi para a sanzala, onde andou aos tiros com a pistola de serviço. Felizmente não acertou em ninguém. O coronel de Infantaria Carlos Lacerda, que com o posto de major foi segundo-comandante do Batalhão de Caçadores 3880. Como não podia deixar de ser, quando chegou a Zemba, o aspirante foi apresentar-se ao comandante da unidade, que naquele momento era o major Carlos Lacerda, porque o tenente-coronel estava de férias. O major, ao observar os papéis que o aspirante tinha trazido, comentou: 

— Você tem aqui um currículo impressionante! São porradas e mais porradas... E agora vem aqui cumprir mais um mês de prisão... Pois olhe, a única prisão que temos aqui em Zemba é uma coisa que há ali num torreão. Mas aquilo não tem condições nenhumas, não é prisão nem é nada. Este quartel aqui em Zemba é que é todo ele uma prisão, isso sim! Isto é um autêntico campo de concentração. Até eu, que não cometi crime nenhum, estou aqui preso. Se eu quiser sair daqui, só posso ir com uma escolta. Portanto, considere-se preso e ande por aí... Mas veja lá como é que se comporta! Ao mais pequeno incidente, eu abato-o, ouviu? Abato-o! 

— O meu major abate-me?! — admirou-se o aspirante. 

— Abato-o, já disse! 

— Ó meu major, se isto aqui em Zemba é assim à Texas, então o melhor é irmos os dois ali para o meio da parada, para ver quem é que dispara primeiro... 

— O quê? Você não se assustou com o que eu lhe disse? — perguntou o major, surpreendido com a reação do aspirante. 

— Eu não — respondeu este. 

— Não teve medo? A sério? 

— A sério. 

— Eh, pá! — exclamou o major. — Você é dos meus! É de gajos assim que eu gosto! Gajos de tomates, sem medo... Acho que nos vamos dar bem. Venha daí beber um whisky. 

E assim nasceu uma grande amizade entre o major Lacerda e o aspirante Carvalho. Como poderão confirmar todos quantos estiveram em Zemba nessa altura, o aspirante nunca causou qualquer problema, fosse de que ordem fosse, enquanto lá esteve. Quem o visse em Zemba, diria que ele era um indivíduo perfeitamente normal, alegre e bem disposto e que se dava bem com toda a gente (menos com o Lamas, claro). Fartou-se de jogar matraquilhos com a malta. 

— Aqui em Zemba é que me sinto bem — confessou ele uma vez. — Sinto-me tão bem, que até já deixei de tomar os medicamentos para a cachimónia. Não sinto falta nenhuma deles. 

Quando terminou a pena de prisão, o aspirante, em vez de voltar para Santa Eulália, foi transferido para o Batalhão de Artilharia 3860, sediado na Damba, a cerca de 100 km a sul de Maquela do Zombo. Foi a sorte dele, e já vamos ver porquê. Na Damba, as condições mentais do aspirante voltaram a deteriorar-se. Os incidentes que ele provocava eram cada mais frequentes e cada vez mais graves. O comandante do batalhão da Damba já estava pelos cabelos, já não podia aturá-lo mais. O aspirante arriscava-se a apanhar mais uma punição de um momento para o outro. 

Um dia, chegou à Damba a notícia de que tinha mudado para Maquela do Zombo um tal Batalhão de Caçadores 3880... Logo o aspirante pediu licença ao comandante para integrar a próxima coluna que se deslocasse a Maquela, para fazer uma visita ao seu amigalhaço Lacerda. Talvez para se ver livre dele por umas horas, o comandante deu-lhe autorização e o aspirante lá foi. Quando voltou à Damba, o aspirante vinha mais bem disposto e passou a comportar-se melhor. A visita ao major Lacerda tinha-lhe feito bem. 

Então o comandante da Damba passou a ter o seguinte procedimento para com o aspirante: sempre que este começasse a fazer muitas asneiras, era metido numa viatura e levado para Maquela. Mais tarde, quando ficasse mais calmo, voltava para a Damba. 

E assim se passaram alguns meses, sem que o aspirante voltasse a sofrer qualquer punição. Por volta de janeiro de 1974, o batalhão da Damba chegou ao fim da sua comissão militar e o aspirante Carvalho (ou Meireles, como era chamado na Damba) regressou finalmente à Metrópole, juntamente com o batalhão. 

Ao todo, o aspirante fez cerca de quatro anos de comissão. E nunca foi promovido a alferes; ficou aspirante até ao fim. (**)

 [Tíitulo do poste,  da resposnsabilidade do editor: LG ]
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Notas do editor:

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22101: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Capítulo extra: uma operação helitransportada

Foto nº 1 > Um helicóptero Puma, SA-330, de fabrico francês


Foto nº 2 > Um jato F-84 Thunderjet, de fabrico norte-americano, sendo abastecido de combustível na Base Aérea 9, em Luanda.  Esta aeronave, em concreto, pode ter atuado na operação ao Quiuanda.

 


Foto nº 3 > Um avião Dornier DO-27, de fabrico alemão 



Foto nº 4 > Um helicanhão idêntico ao utilizado no ataque ao Quiuanda 




1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro [,ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);  membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780; tem  cerca de 2 dezenas de referências no nosso blogue: é engenheiro electrotécnico reformado; vive no Porto; é autor do livro, inédito, em formato digital "Dignidade e Ignomínia: Episódios do Meu Serviço Militar", de que se publicaram seis partes ou postes  no nosso blogue]

 

Data - 28/03/2021, 02:44
Assunto - Capítulo extra do meu livro

Caro Luis,

Quando há três meses vi pela primeira vez o filme que está ao cimo do blog da CCav 2692, do BCav  2909 (http://ccav2692susaeles.blogspot.com/), senti um arrepio na coluna, como se esta fosse percorrida por uma corrente elétrica. «Eu estou ali!», pensei, espantado. Não estava, mas vivi uma situação que foi em tudo igual à que está documentada naquele filme, tal e qual.

O filme não tem nada de especial, de modo nenhum, apenas mostra uns helicópteros em Zemba e alguns militares a embarcarem num deles, enquanto outros militares observam, cheios de curiosidade. Se algum interesse o filme possui, é o próprio facto de existir, dado que há pouquíssimos filmes sobre a guerra colonial. Mas este filme não mostra tropas em ação nem nada, não tem interesse absolutamente nenhum. Pessoalmente, sim, o filme interessa-me imenso, pois dois anos mais tarde eu fui protagonista de uma cena parecidíssima com a documentada no filme.

Eu tinha começado um esboço de capítulo para o meu livro virtual, sobre uma operação helitransportada que comandei em Zemba, mas não consegui conclui-lo, Não consegui concluir o capítulo, mas deixei ficar o seu rascunho no computador. Após visualizar o filme, decidi escrever o resto que faltava ao capítulo, completando-o e complementando-o. Acho que agora posso dar o capítulo por concluido, finalmente, e remeter-to. Faz dele o que quiseres.

Um abraço e votos de feliz Páscoa (se o coronavírus deixar)

Fernando de Sousa Ribeiro

 

AS LÁGRIMAS DE UM SOLDADO

por Fernando de Sousa Ribeiro

Quando me comunicaram que eu iria comandar uma operação militar helitransportada, não entrei em pânico, mas pouco faltou. «Como é que se comanda uma operação helitransportada?», pensei eu, sobressaltado. «Nunca me ensinaram!» 

Passei mentalmente em revista o Curso de Oficiais Milicianos que frequentei em Mafra e concluí que ninguém, em momento algum, me ensinou fosse o que fosse que estivesse relacionado com operações deste tipo. «Porque não entregam o comando da operação a alguém que tenha um mínimo de conhecimentos sobre o assunto?», interroguei-me ainda, mas logo me apercebi de que em todo o batalhão não havia um só capitão ou alferes nessa situação. Todos eles pareciam saber tanto como eu, ou seja, nada. Quis o acaso que fosse a mim, e não a outro, que calhasse a responsabilidade do comando daquela operação. 

Pouco a pouco, fui-me tranquilizando a mim mesmo, concluindo que tudo iria correr bem, pois a sorte que sempre me acompanhara na guerra, o instinto de sobrevivência e a intuição me iriam valer nessa operação, como já me tinham valido em operações anteriores. Quaisquer que fossem as dificuldades que me viessem a surgir, eu iria conseguir resolvê-las e tudo iria correr da melhor maneira possível. Sempre assim tinha sido e com certeza assim voltaria a ser mais uma vez. Quando embarquei no helicóptero que me iria largar nas proximidades do objetivo, já eu me sentia relativamente confiante e decidido a enfrentar as dificuldades que me viessem a aparecer. 

A operação foi muito mais fácil do que eu tinha imaginado. Foi, incomparavelmente, a menos cansativa de todas as operações militares que fiz, e também foi, sem qualquer sombra de dúvida, uma das menos arriscadas. Esta operação teve como objetivo uma base da FNLA chamada Quiuanda, situada muitos quilómetros a norte de Cambamba, e nela participaram dois grupos de combate da minha companhia: o 2.º grupo, que era o meu próprio, e o 4.º grupo, que era comandado pelo alferes miliciano Peixoto. 

A operação decorreu entre 20 de abril (Sexta-Feira Santa) e 22 de abril (Domingo de Páscoa) de 1973. A partida para a operação foi em tudo idêntica à que está documentada no vídeo existente no endereço de internet que a seguir se indica e que recomendo seja visto em ecrã inteiro, dada a pequenez da imagem publicada. Este vídeo foi feito precisamente em Zemba, mas no ano 1971, e mostra a partida para uma operação helitransportada feita por militares pertencentes ao batalhão que nessa ocasião se encontrava sediado lá, o Batalhão de Cavalaria 2909. 

As cenas que nós protagonizamos em 1973 foram iguaizinhas às filmadas em 1971, tal e qual: o mesmo quartel do mato, o mesmo alvoroço dos militares do batalhão perante a presença inusitada de helicópteros na pista, as mesmas serras envolventes, as mesmas florestas, as mesmas nuvens baixas no início da manhã, a mesma dissipação da névoa com o avançar do dia, o mesmo embarque de tropas, os mesmos volteios dos helicópteros no ar, enfim, tudo se passou de forma rigorosamente igual ao que se vê no filme. Só os protagonistas foram diferentes. De facto, foram muito diferentes; no filme só se veem europeus, enquanto o meu batalhão era multirracial. O filme está no endereço seguinte:


 [Vídeo, 2' 25'': vd. em ecrã grande]

Fomos levados "ao colo" por helicópteros Puma [, Foto nº 1,] até às proximidades do objetivo. Estes helicópteros eram grandes e muito fechados. Embarquei no primeiro que levantou de Zemba e à chegada fui um dos primeiros militares a saltar do aparelho que ficou a pairar a cerca de metro e meio de altura do chão, com a intenção de dirigir a colocação no terreno dos meus homens. 

À medida que eles iam saltando, eu encaminhava-os de maneira a formarem uma ampla circunferência em volta do local do desembarque, deitados no solo e com as armas apontadas para fora. Ainda hoje não sei se era assim que eu devia proceder; fiz o que me ocorreu naquele momento. Ao mesmo tempo que saltávamos dos helicópteros, diversas aeronaves da Força Aérea faziam fogo à nossa volta, provocando uma barulheira infernal. 

Fui tomado de uma enorme euforia, que só com muito custo consegui refrear, porque me senti invencível, rodeado que estava por um tão grande poder de fogo. Eu estava no meio de um inferno, mas o inferno era "bom", porque me protegia. Confesso que tive muita dificuldade em conseguir dominar-me e tomar consciência da real situação em que estava. 

As aeronaves que evolucionavam à nossa volta eram jatos F-84 [, Foto nº 2], um avião a hélice DO-27 [Foto nº 3] e um helicanhão, o qual consistia num helicóptero Alouette III possuindo um pequeno canhão MG-151 montado a bordo [Foto nº 4].

Os rebentamentos dos rockets lançados pelos aviões e as rajadas do helicanhão faziam um barulho ensurdecedor. Este barulho durou até ao momento em que o último dos meus homens saltou para o chão. Então, todas as aeronaves se calaram e partiram de regresso a Luanda, deixando-nos sozinhos no terreno. Ordenei logo ao meu pessoal que se levantasse e se preparasse para partir. Dirigimo-nos imediatamente para a base que deveríamos destruir. 

Apesar de ter uma certa importância estratégica, a base de Quiuanda era pequena e não justificava um tão grande poder de fogo por parte da Força Aérea. Os poucos guerrilheiros que deviam guarnecer a base puseram-se em fuga antes de entrarmos nela. Encontramos a base vazia de gente. 

Os guerrilheiros deviam ter sido apanhados de surpresa pelo ataque, pois deixaram pequenas fogueiras acesas com latas cheias de água em cima, em jeito de cafeteiras, provavelmente para prepararem o pequeno-almoço, em Angola chamado mata-bicho. Os guerrilheiros e a população que os apoiava costumavam reaproveitar as latas vazias e as colheres de plástico das rações de combate que a tropa portuguesa abandonava na mata durante as operações. 

Foto nº 5 
No centro da base estava hasteada uma bandeira da FNLA, que um militar que não consegui identificar,  retirou. Julguei que ele mais tarde me iria entregar a bandeira, para juntar ao restante espólio da operação, mas tal não aconteceu. O militar ficou com ela. [Foto nº 5 > Bandeira da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA)] 

Depois de termos destruído a base, saímos dela por um trilho, a fim de explorarmos a região envolvente. Mais adiante, na beira do caminho, encontramos uma mulher morta, sem metade da cara. Era evidente que ela tinha sido abatida pelo apontador do helicanhão. As balas disparadas pela arma montada a bordo desta aeronave costumavam ser de ponta explosiva. Uma bala deve ter atingido a mulher na cara, abrindo-lhe um horrendo buraco de ossos estilhaçados e sangue. 

O soldado Domingos Cangúia, que era natural do Cuanza Norte e era íntegro e puro como poucos, chorou convulsivamente a morte gratuita daquela desgraçada mulher, a quem até a vida foi tirada. Dizia o generoso soldado, entre soluços: 

— Que mal é que esta mulher fez a quem a matou? Porque foi que ele a matou? Certamente ela tinha filhos pequenos. O que vai ser agora dos filhos? 

E chorava inconsolavelmente. Há cenas que ficam gravadas na nossa memória como ferro em brasa. Para mim, esta foi uma delas. 

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de outubro de 019 > Guiné 61/74 - P20241: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte VI: Não aos crimes de guerra: os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos