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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26328: A Nossa Poemateca (3): Adeus, irmão branco!, de Geraldo Bessa Victor (Luanda, 1917 - Lisboa, 1985) (escolha de Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e 
Ponte do Zádi, Angola, 1972/74); membro da Tabanca Grande  desde 11 de novembro de 2018,  com o nº 780, tem 33 referências no nosso blogue.  Escreveu sobre o nosso blogue

 "O teu blog é um monumento. É de certeza absoluta o maior acervo que existe, na Internet e fora dela, sobre a guerra na Guiné. Está lá tudo, ou pelo menos assim parece. Não existe, para a guerra em Angola e em Moçambique nada que se lhe compare. Absolutamente nada. Zero vírgula zero zero zero. Neste aspeto, os antigos combatentes em Angola e Moçambique têm que se contentar com a pobreza franciscana dos grupos no Facebook, dos quais nem sequer sou membro (...) Tu e os camaradas que te acompanham nessa tarefa merecem, no mínimo, um reconhecimento público". (...)

Engenheiro, natural do Porto,  o Fernando Ribeiro é o administror do blogue "A Matéria do Tempo", que mantém ativo desde janeiro de 2006 até hoje. Um caso notável de longevidade. 


1. A escolha é do Fernando de Sousa Ribeiro (ou Fernando Ribeiro), nosso grão-tabanqueiro, que fez a guerra em Angola mas se intressa também pela da Guiné. É um homem de um cultura invulgar, e sem ofensa um grande "africanista". Sobre este poeta de origem angolana, mal conhecido e talvez pior amado em Angola, veja-se aqui o que o Fernando escreveu no seu blogue.



ADEUS, IRMÃO BRANCO!

por Geraldo Bessa Victor (1917-1985)


ADEUS, meu irmão branco, boa viagem!

Chegou a hora de você voltar
para a Europa, a sua terra.
Quando você chegar, há-de falar
dos encantos que encerra
esta África Negra, tão distante,
tão distante, irmão branco...
Pois eu quero, neste instante
da partida, pedir-lhe uma promessa:
- Não se esqueça da alma do negro,
não se esqueça!

Você há-de falar das terras africanas,
da mata e da cubata,
dos montes e das chanas;
mas não se esqueça da alma.
Você há-de falar do sol fogoso,
das caçadas e queimadas,
das noites que viveu em batucadas
no mais feiticeiro gozo;
mas não se esqueça da alma.

Vai falar do café, do algodão, do sisal,
da fruta tropical, enfim, de toda a flora;
mas não se esqueça da alma.
Você há-de falar dos negros no seu mato,
da negra tentadora
de corpo sensual,
mostrando até retrato;
mas não se esqueça da alma.

Adeus, meu irmão branco! Lá na Europa,
quando falar da tropical paisagem,
não se esqueça da alma do negro.

Adeus, meu irmão branco, boa viagem!


Geraldo Bessa Victor (1917-1985), poeta de Angola

"Obra Poética", Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2001
https://loja.incm.pt/en/products/livros-obra-poetica-no-20-1001652

_______________

Nota do editor:

Postes anteriores da série:

29 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26323: A Nossa Poemateca (2): "Lágrima de preta" (1961), de António Gedeão / Rómulo de Carvalho (1906-1997) (escolha de Beja Santos, nosso crítico literário)

27 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26318: A Nossa Poemateca (1): "Ladainha dos Póstumos Natais" (1971), de David Mourão Ferreira (1927-1996) (escolha de Valdemar Queiroz, minhoto de criação, alfacinha por adoção)

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25532: S(C)em Comentários (37): no séc XVI, a língua portuguesa tornou-se a língua-franca de quase todo o Oceano Índico...Para o bem e para o mal, os portugueses fazem parte da própria história de muitos daqueles povos (Fernando de Sousa Ribeiro)



Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf,
CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e 
Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);
membro da Tabanca Grande 
desde 11 de novembro de 2018, 
com o nº 780


1. Comentário de Fernando de Sousa Ribeiro  ao poste P25426 (*):


Com a chegada dos portugueses, não foi só o tétum que passou a ter novas palavras. Praticamente todas as línguas do sul e sudeste asiático tiveram essas novas palavras: tailandês, cingalês, vietnamita, malaio, indonésio, japonês, etc. etc. 

Isto é assim porque, no séc XVI, a língua portuguesa tornou-se a língua-franca de quase todo o Oceano Índico. Era a língua que permitia que pessoas falando diferentes idiomas se entendessem entre si nas trocas comerciais ao longo da África Oriental, Arábia, Índia, Birmânia, Malásia, Japão e por aí adiante. 

Desde então, praticamente todos os habitantes do sul e sudeste da Ásia passaram a incorporar palavras portuguesas nas suas línguas, que adaptaram à sua própria pronúncia. Cinco séculos depois, ainda as utilizam: "escola", "sapato", "bandeira", "copo", "mesa", etc. etc.

O tétum oficial de Timor Leste é, de facto, considerado um idioma crioulo. Foi em cima do tétum original, que já ninguém fala, que se desenvolveu o tétum simplificado de hoje. Este é por vezes chamado tétum-praça ou tétum-Díli, certamente porque era uma variante do tétum nascida na praça do mercado de Díli. Veja-se, por exemplo o que diz a este respeito a Wikipedia.

Em português
 
Em mirandês

Nestas coisas linguísticas, uma das referências mais credíveis costuma ser o Ethnologue.

Timor Leste:
 
Guiné-Bissau:
 
Qualquer criança em idade escolar de um qualquer país da Ásia sabe localizar Portugal no mapa. Pode não saber localizar a Suécia ou a Bulgária, mas Portugal sabe. 

Para o bem e para o mal, os portugueses fazem parte da sua própria história. 

O Japão, por exemplo, nunca mais foi o mesmo depois da chegada dos portugueses com as suas armas de fogo; esta chegada marcou o fim do feudalismo no Japão. 

No Sri Lanka, milhões(!) de pessoas possuem apelidos portugueses, como Silva ou Pereira.

 A língua vietnamita é escrita em carateres latinos, por influência dos jesuítas portugueses. 

Nós podemos não saber nada sobre todos estes povos e nações, mas eles sabem sobre nós. Os portugueses não são para eles uns ilustres desconhecidos, seja no Camboja, seja em Taiwan (a que os portugueses chamaram Formosa), seja na Indonésia, seja onde for. (**)


Japão > Museu da cidade de Kobe > Biombo namban (séc. XVI/XVII) > Representação de um caraca portuguesa. A famosa "nau do trato" (os japoneses chamava-lhe  Kurofune, navio negro). 

Imagem do domínio público. (A carraca um tipo de navio utilizado no transporte de mercadorias, concebido pelos portugueses especificamente para as viagens oceânicas. Tinha   velas redondas e borda alta, e possuíam três mastros. Os da carreira da Índia tinham capacidade até  2 mil  toneladas.

Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia...) 

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25426: Timor-Leste, passado e presente (2): Exorcizando fantasmas da história: reparações... ou reconciliações ?... Apostemos, isso, sim, no ensino e promoção do tétum e do português

(**) Último poste da série >  9 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25499: S(C)em Comentários (36): Os 50 anos do 25 de Abril foram bem celebrados neste canto do mundo, Timor-Leste , onde quase ninguém fala o português, mas que tem um grande carinho e afeição com os portugueses, com Portugal (Rui Chamuco)

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24827: Manuscrito(s) (Luís Graça) (240): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VII

 

Fotograma nº 1 > "De herói a vilão", eis a história do Zé do Telhado, aqui, sargento patuleia, recebendo  a mais alta condecoração do país, a Torre e Espada, das mãos do general Sá da Bandeira, a quem salvou a vida, em combate, na Guerra da Patuleia (out 1846 / jun 1847), que se seguiu à Revolta da Maria da Fonte.

Fotograma nº 2 >  O fantasioso (no filme) assalto à Casa do Carrapatelo, Marco de Canaveses, sita nas faldas da serrra de Montedeiras e na margem direita do rio Douro, a escassos quilómetros na nossa casa em Candoz.


Fotograma nº 3 >    Um destacamento dos Granadeiros da Rainha, em perseguição, mal sucedida,  do Zé do Telhado e do seu bando, em 1852

Fotograna nº 4 >  Um filme "romântico" mas também um "western à portuguesa" onde há de tudo:  amor, perdição, ciúme, traição, nobreza, camaradagem, ação, coragem, assaltos, tiroteiro, loucas correrias a cavalo, duelo,  morte... Foi uma época, a da consolidação da monarquia constitucional, nas décadas de 20, 30, 40 e 50 do séc. XIX, violenta, pautada por sucessivos episódios de guerra civil (as chamadas "lutas liberais": dos liberais contra os absolutistas, dos liberais entre si)... Calcula-se que mais de 20 mil portugueses tenham morrido às mãos de portugueses... Estamos muito longe, portanto, do país de "brandos costumes" dos nossos contos de fadas e príncipes encantados...


Fotograma nº 5 > O "duelo de morte" com o José Pequeno, o "vilão da história", que traiu o bando, e aquem,  diz o Camilo, o Zé do Telhado,  cortou a língua com uma tesoura depois de morto. 

Mas o "ajuste de contas final" entre os dois teria sido na Lixa, e não na serra, como  vemos no filme de 1945 que, de resto, é considerado um "remake" do filme mudo, de 1929, realizado por Rino Lupo, com exteriores filmados no Solar de Beirós, São Pedro do Sul; o guião, por sua vez, tem como fonte  o livro de Eduardo Noronha (1859-1948), "José do Telhado: Romance Baseado sobre Factos Históricos" (1923)(As cenas do exterior deste primeiro filme, o de 1929, foram rodadas em diversos sítios por onde andou o "nosso herói": Amarante, Vila Meã, Lixa, Marco de Canaveses, Felgueiras, Serra do Marão, Sobreira em Caíde de Rei, Lousada, e na casa onde nasceu José do Telhado, em Recesinhos, no lugar do Telhado, Penafiel. Fonte:  Penafiel, Terra Nossa).

Fotogramas do filme "José do Telhado" (1945).  disponível no You Tube, na conta "MusaLusa". 

Uma das raras fotos da época (pormenor) do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. 

Fonte:   Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp).   , 1947,  pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)



Contracapa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")


1. Comentários de alguns dos nossos leitores sobre estes escritos do editor Luís Graça com referência ao Zé do Telhado, cujo "fantasma" ainda paira pelos vales do Sousa e do Támega e pelas serras à volta (Montemuro, Marão, Montedeiras...) (*)


(i) Francisco Baptista:

Amigo Luís Graça, já poucos escrevem, poucos comentam. Estamos todos a ficar com as pilhas gastas. Tu és dos poucos que continuas a dar grandes provas de vitalidade.

Gostei de saber por ti do Zé Telhado, de quem pouco sabia, como a maioria dos portugueses, sabem o nome e a fama de bandoleiro, que roubava aos ricos e dava aos pobres. Nem sabia que sobre ele já tantos escritores tinham escrito.

É natural que ele também te motivasse a ti pois além do mais era de perto de Candoz a outra terra que tu amas mais. Gostei de ler e espero por mais capitulos. Estou a pensar comprar também " As Memórias do Cárcere", de Camilo.

Obrigado. Grande abraço

22 de outubro de 2023 às 19:15 


(ii) Fernando de Sousa Ribeiro:

Estou um pouco como o camarada Francisco Baptista. No Porto, o Zé do Telhado é uma referência vaga, de uma espécie de Robin dos Bosques à portuguesa, que passou pela Cadeia da Relação da cidade antes de ser deportado para Angola. Só se fala nele quando se visita a cadeia (atual Centro Português de Fotografia) e se espreita a cela onde Camilo Castelo Branco viu o Rio Douro aos quadradinhos. Nessa ocasião fala-se de Ana Plácido, como não podia deixar de ser, e por arrastamento fala-se do Zé do Telhado também.

O encontro entre Camilo Castelo Branco e o Zé do Telhado na cadeia não terá sido o primeiro que eles tiveram. Muito tempo antes, o próprio Camilo foi assaltado pelo Zé do Telhado, numa ocasião em que viajava de diligência entre Vila Real e o Porto! O próprio Camilo fala no assalto num dos seus incontáveis livros (não me recordo de qual) e chama patife, facínora, ou outros nomes equivalentes, ao seu assaltante. Mal sabia ele que iria encontrar-se de novo com o antigo salteador na cadeia e que iria refazer a imagem que tinha feito dele.

Durante a minha comissão militar em Angola nunca ouvi falar do Zé do Telhado, nem uma só vez. Inclusivamente, no meu grupo de combate havia dois militares negros naturais de Malanje e nunca os ouvi fazer qualquer referência a ele. Já os brancos de Angola admiravam outras personagens, que não o Zé do Telhado; admiravam Paulo Dias de Novais, Salvador Correia de Sá, Silva Porto, Norton de Matos, etc.

23 de outubro de 2023 às 02:02

(iii) José Teixeira;

O Zé do Telhado tinha bem demarcada a sua zona de atuação. Do Marco de Canavezes a Vila Real até Cete, Paredes, sobretudo na orla da estrada real. A conhecida estrada Porto a Vila Real com uma variante para a Régua. Era a estrada por onde passavam os grandes comerciantes do Vinho Fino, vulgo, Vinho do Porto. 

A minha avó falava muito do Zé do Telhado, dado que o meu visavô foi contemporâneo dele. O Lugar da Árvore em Caíde, um entroncamento de estradas,  era um dos sítios onde ela costumava fazer as emboscadas. Recordo-me de em criança passar por lá várias vezes a caminho de Vila Meã. Havia sempre uma história contada pela minha avó sobre o meliante. A admiração que os mais velhos tinham pelo Zé do Telhado ia assim passando para os mais novos. Para a minha avó o Sr. José do Telhado tinha sido um grande homem. Ele roubava aos ricos para dar aos pobres e havia sempre mais uma história para contar.

20 de setembro de 2023 às 22:42 

(iv) Valdemar Queiroz:

Quanto ao apelido/alcunha "do Telhado", há três versões.

A mais conhecida é a de ser um salteador que entrava pelo telhado, outra que a casa do pai era a única com telhado de telhas em vez de colmo como as outras e a que parece mais lógica era de ser natural do aldeia/lugar de Telhado e assim ser conhecido quando foi viver para os lados de Lousada.

Antes de ser assaltante era castrador de animais e já lhe chamavam o Zé do Telhado.

No filme "Zé do Telhado", com Vergílio Teixeira, há uma cena em que ele, numa taberna, aperta a mão a outro bandidolas provocando-lhe dores.

Foi uma grande treta, o outro bandidolas era Juvenal Araújo que eu conheci, já dentro dos cinquenta anos, mas quando fez o filme era um matulão que ganhava apostas por rasgar uma lista telefónica fechada, o que deixaria o Vergílio Teixeira com as falanginhas e falangetas partidas.

15 de setembro de 2023 às 14:49

(v) Luís Graça:

O mito do país dos brandos costumes é uma invenção do salazarismo: "antes de nós o dilúvio, depois de nós o caos"... Não é por acaso que o séc. XIX era pura e simplesmente ignorado na escola (e na universidade, pouco ou nada investigado pelos historiadores)...

O que é que a gente sabia sobre o século em que a liberdade e a justiça passaram a ser também uma bandeira, pela qual muitos portugueses se bateram e morreram?!... Afinal, o século em que passámos a ter uma constituição, se consolidou a monarquia constitutucional, se derem passos importantes no processo de "modernização", se aboliu a escravatura e a pena de morte...

13 de outubro de 2023 às 12:37

Em 1945 fizeram um "western" à portuguesa em que o nosso Zé do Telhado (interpretado pelo galã Virgílio Teixeira) é um perfeito oficial e cavalheiro. (Só dei uma rápida vista de olhos ao filme disponivel no You Tube, parte dos exteriores terão sido rodados na nossa serra de Montedeiras.)

O filme está disponível aqui, na conta : https://www.youtube.com/watch?v=i_6MmOOrDh4

O cinema também serve para falsificar ou reinventar  ou reescrever a história... (O filme de 1945 não pretende ser  "uma biografia, mas  uma obra livremente inspirada na vida do célebre salteador"...)




Cartaz do filme "José do Telhado" (1945), a preto e branco, 98 minutos: produzido e realizado por Armando de Mirando, e contracebado por Virgílio Teixeira e Adelina Campos, nos dois principais papéis. Os exteriores foram filmados em Vouzela, em 1945. O filme foi estreado no Porto (Coliseu, em 15/12/1945), e emLisboa (Polteama, 16/1/1946). Fonte: Cinept / UBI (com a devida vénia...)



2. Vamos reproduzir mais alguns excertos das "Memórias do Cárcere" (1ª edição, 1862), em que o Camilo Castelo Branco traça um retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico, sobre o seu  companheiro de infortúnio (mas também precioso "guarda-costas" ...), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto, retrato esse que de algum modo ficou, acriticamemte, para a posteridade, criando-se assim o mito do "Robin dos Bosques português"... Afinal, também temos direito a ter um... A tradição popular, outros escritores, menores,  o cinema e a televisão (veja-se a série da RTP, "João Semana")  têm contribuido para reforçar o mito do "banditismo social"..  (Convém lembrar que Camilo não era historiógrafo, era um ficcionista, um "folhetinista", que escrevia muito, em pouco tempo, e em função do seu "nicho de mercado", que era uma clientela urbana ou urbanizada, letrada, que lia jornais,  "folhetins" e alguns livros,  com poder de compra, em suma, a pequena e a média burguesia liberal socialmente em ascensão.)

Os excertos aqui reproduzidos são os da 8ª edição (Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966)

(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)

(…) "Na noite de 22 de Maio [de 1852] (**) deu José do Telhado batalha campal à tropa no local denominado Eira dos Mouros [freguesia de Santa Cristina de Figueiró, concelho de Amarante, distrito do Porto] (**)

O destacamento de infantaria 2  (***) conseguira capturar dois salteadores e descera com eles a uma estalagem,  para descansar. Aí o surpreendeu a horda com o chefe montado em fogosa égua. Chegou ele ao terreiro da estalagem, e exclamou: "Carregai com quartosn (****),  rapazes, que está aqui José do Telhado." 

Saiu fora a tropa, e empenhou-se um tiroteio,  que rematou pela retirada do destacamento. O chefes sustentou sempre a vanguarda da avançada, fazendo fogo de pistola e clavina. 

Estavam os dois saltadores prisioneiros na cavalariça da estalagem: um fugira logo que rompeu o fogo, o outro ficara na impossibilidade de erguer-se sobre as pernas cortadas de balas.

− Vem!   − disse o capitão ao salteador ferido.

− Não posso; matem-me que eu estou sem pernas.

− Faz o ato de contrição  − retrucou o chefe.

 O ferido resmuneou o acto de contrição ,  e a estalajadeira verteu lágrimas piedosas. 

José dos do Telhado  estirou-a com uma bofetada, e  desfechou contra o peito do camarada, dizendo;

− Acabaram-se-te os teus trabalhos,  e os meus  estão em  começo. Adeus!    

O cadáver não podia responder a este saudoso vale do seu chefe. (pp. 95/96)


(…) Noutra noite, cercou-lhe a  tropa a casa, estando ele no primeiro sono. Despertou-o  a mulher, e ajudou-o a vestir muito de seu vagar. Caminhou para uma porta transversal, e retrocedeu a ir buscar o  relógio esquecido, e a dar ordens ao criado para lhe conduzir de madrugada o cavalo a designado sítio. Abriu uma janela,  e disse para os soldados:

− Que tal está a noite, rapazes ? 

Retirou da janela, e  abriu a pequena porta, que defrontava com uma cortinha para a qual relevava saltar por cima de um quinchoso.  Aí estavam postados três soldados. José Teixeira aperrou a clavina  de  dois canos, e disse: 

− Agachem-se, que quero saltar.  Os dois primeiros que se moverem, passo por cima deles mortos. 

Os soldados agacharam se, e ele saltou.  Já de dentro da cortinha, atirou dois pintos (*****) aos soldados, e e disse-lhes:

−  Tomai lá para matar o bicho à saúde do José do Telhado.

E foi seu caminho pacífica e detidamente como se andasse espreitando a toupeira no seu meloal.  Teria ele tempo de palmilhar um oitavo de légua, quando lhe deram uma descarga. (...) (pág. 97)

(...)  José Teixeira folgava de entremeter incidentes cómicos nas suas assaltadas. A uma dama de Carrapatelo dera ele um beijo de despedida, e à mulher do senhor Camelo perguntara de que lhe servia o dinheiro, se não podia comprar uma cara mais nova e menos feia

O senhor Bernardo José Machado, muito conhecido comerciante  do Porto, ia um dia para Cerva [Ribeira de Pena, no Alto Tâmega] , sua terra natal , e alcançara,  a distância curta do Torrão, um cavaleiro bem posto no seu corpulento cavalo, e acamardou-se com ele na jornada. Falavam vários assuntos, e caiu a propósito os perigos de jornadear por tais sítios infestados pelo terrível  Zé do Telhado. 

O cavaleiro mostrou-se também horrorizado pela hipótese de o encontrarem,  e ouviu da bocado  senhor Machado a história dos flagicídios do célebre bandoleiro.  Apearam  numa estalagem, e jantaram o mais lautamente que podia ser.  O cavaleiro mudara de estrada.  e despediu-se do senhor Machado, que lhe ofereceu os seus préstimos. Pediu o comerciante a conta à estalajadeira,  e soube que o outro sujeito pagara a despesa. Perguntou o viajante, quem era aquele cavalheiro, e a mulher respondeu que era o José do Telhado. 

É bem de ver que o senhor Machado, em vista do panegírico com que o brindara,  não foi muito a seguro de o topar adiante com outra cara, ocasionando lhe um facto novo para realçar a história. (...) (pág. 99),


(...) O libelo cerra a meda dos crimes do José do Telhado om a tentativa de evasão para reino estrangeiro sem passaporte. 

A morte de José, denominado o pequeno, por antifrase, não vem incluída na acusação.

José Pequeno era agigantadado de estatura, e  o mais cruel da malta, comandada por José do Telhado.

Custava muito ao chefe refrear-lhe o instinto sanguinário; mas com melindre o fazia,  porque o parceiro era o único de quem  ele se receava em luta de braço a braço.

Andava José Pequeno cogitando no expediente mais azado a livrar-se de perseguições,  e tentou-o o demónio a atraiçoar os companheiros. Foi a malta surpreendida, estando  ausente o denunciante. Comandava a força o destemido Adriano José de Carvalho e Melo, Administrador do Marco de Canaveses. 

Carregou tão brava a polícia sobre a chusma dos ladrões,  que lhes foi remédio a fuga. Aí recebei José Teixeira uma bala nas costas a qual, segundo ele diz, o fizera saltar dez passos avante contra sua vontade. A bala  produziu-lhe  na coluna vertebral um choque elétrico meramente. 

Ao outro dia, José Teixeira teve de evidência que seu companheiro o denunciara.  Ao anoitecer foi à Lixa [concelho de Felgueiras]  onde pernoitava o traidor, entrou-lhe em casa,  e disse-lhe:

− Não te quero matar â traição; previne-te  como quiseres, que um nós há de morrer aqui.

− Ou ambos!  − disse o José Pequeno, lançando mão da faca.

−  Ou isso ! −  redarguiu o José do Telhado,  sacando de uma tesoura. E acrescentou:

−  Hei de  cortar-te com ela a língua. 

A primeira arremetida que se fizeram, apagaram a luz da vela,  e arcaram peito a peito. Revolveram-se na escuridade um quarto de hora, rugindo alternadamente injúrias e pragas ferozes. 

José Teixeira já tinha um braço rasgado; mas José Pequeno expedira o último rugido pela fenda que a tesoura lhe abria na garganta. O chefe ergueu o joelho sobre o peito do cadáver, quando  os dois gumes da tesoura se encontraram ao través da língua que o denunciara. 

O homicida aparecer na Lixa ao outro, e disse a multidão parada à porta do morto:

− Se não sabem quem matou este traidor, aqui o têm.

 E passou adiante. obrigando o cavalo a garbosa upas. 

Coisa é digna de reparo, que o ministério público não desse querela contra o assassino. Bem pensada a irregularidade, dá de si que a moral pública, representada pela polícia criminal e administrativa, propôs um voto de gratidão ao matador do formidável celerado da Lixa. (...) (pp. 100-102)

In: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")~

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos / parênteses retos: LG)

Este obra está disponível em formato pdf, no sítio da Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 2020, 232 pp, edição de Ivo Castro e Raquel Oliveira,  distribuição gratuita. (Segue a 2ª edição, revista pelo autor, Porto, 1864.)

https://imprensanacional.pt/wp-content/uploads/2022/03/Memorias-do-Carcere.pdf?btn=red

__________


(**) Vd. José Manuel de Castro - José do Telhado- Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il. (Tipografia Guerra, Viseu).

(***) Vd. Wikipedia: Na época(1852) era conhecido por Regimento de Granadeiros da Rainha, unidade de elite criada em 1842, responsável pela guarda pessoal da Rainha D. Maria II; em 1855, o regimento adopta a actual designação de RI2 - Regimento de Infantaria 2, com sede em Lisboa. Quando Camilo escreveu as "Memórias do Cárcere" já era RI 2,

(****) O "quarto" era um equena bala de chumbo, de forma angular.

(*******) Na época o "pinto" valia cerca de 480 réis. Também era conhecido como "cruzado novo".

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24361: FAP (126): A que altura (quantos pés) voava a DO-27 quando fazia de PCV (Posto de Comando Volante)? (Fernando de Sousa Ribeiro)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Pista de Bambadinca... Ao fundo, o muro do cemitério... Uma DO-27 na pista... 

Era uma aeronave que  adorávamos  quando nos trazia de Bissau os frescos e a mala do correio ou, no regresso, nos dava boleia até Bissau, para apanharmos o avião da TAP e ir de férias... 

Era uma aeronave preciosa nas evacuações (dos nossos feridos ou doentes militares, bem como dos civis)... 

Era um "pássaro" lindo a voar nos céus da Guiné, quando ainda não havia o Strela...

Em contrapartida, tínhamos-lhe, nós, os infantes, um "ódio de morte" (sic) quando se transformava em PCV (posto de comando volante) e o tenente coronel, comandante do batalhão, ou o segundo comandante,  ou o major de operações,  ia ao lado do piloto, a "policiar" a nossa progressão no mato...  Quando nos "apanhavam" e ficavam à nossa vertical, era ver os infantes (incluindo os nossos "queridos nharros") a falar, grosso, à moda do Norte, com expressões que eram capazes de fazer corar a Maria Turra... "Cabr..., filhos da p..., vão lá gozar pró c..., daqui a um bocado estamos a embrulhar e a levar nos corn...".

Também os nossos comandantes operacionais (capitães QP ou milicianos) não gostavam nada do "abelhudo" do PCV, em operações no mato...

Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

.

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, 
CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);
 membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780


1. O nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro levantou uma questão que não é de lana caprina (*):

O que é de cabo-de-esquadra é o PCV, que eu tive que ir verificar do que se tratava, porque em Angola não havia disso.

É o cúmulo "comandar" uma operação a partir de um avião! Mas que diabo de ideia! Toda a gente que estivesse num raio de muitos quilómetros ficava a saber onde é que a tropa andava, o que destruía por completo uma das regras básicas da guerra de guerrilha, que é o fator surpresa. 

Os "brilhantes" cérebros militares não sabiam disso? Está visto que a guerra na Guiné era uma guerra rica, pois até majores e tenentes-coronéis passeavam-se em aviões, enquanto a carne-para-canhão morria ou ficava estropiada cá em baixo por culpa deles.

Para abater um DO-27 não eram precisos "strelas". Uns tiros de AK-47 bem apontados ao depósito de combustível ou à hélice do avião deitá-lo-iam abaixo, a menos que este voasse a mais de 300 ou 400 metros de altura, fora do alcance das espingardas, ou então que voasse muito baixinho, a roçar as copas das árvores. 

Portanto, aqui deixo a minha dúvida: a que altura é que os PCV costumavam voar?

2 de junho de 2023 às 02:04  (*)


2. Comentário do nosso editor LG:

Boa questão, Fernando... O "hino da CCAÇ 12", da época de 1971/72, que iremos publicar à parte, é uma paródia da cantiga do "tiro-liro-liro", mais uma bela peça do nosso humor de caserna  lá em cima o senhor major, no PCV ("posto de comando volante") e cá em baixo a "tropa-macaca"... 

Lá em cima anda o Heli-Canhão
Cá em baixo anda a 12 e anda o Xime. (...)

Juntaram-se os três numa operação
Lá para os lados do Poidão
Correu tudo que nem um mimo! (...)

Major... ó meu Major
Ora diga lá agora o que é que quer. (...)

Ora essa continuem cinco minutos,
não precisam que vos peça.
Continuem... ora essa! (...)

Comandante... ó meu Comandante
Estamos fritos, estamos agora a embrulhar! (...)

Tenham calma... tenham calma e não pensem
que eu daqui não vos estou a ajudar. (...)

Contra os canhões sem recuo...
VAI TU!

No sector L-1 o comando dos batalhões usavam e abusavam do PCV... "Para mostrar serviço" aos senhores de Bissau... Nunca dei conta que tenham sido úteis, bem pelo contrário..

Os pilotos de DO-27 podem dizer-nos a quantos pés costumavam voar em operações como PCV ? Vamos lá perguntar aos camaradas da  FAP. (**)
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Notas do editor:


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24221: S(C)em Comentários (9): Atravessando uma bolanha em... Angola: artigo publicado "Jornal de Angola", de 2/4/2023, ilustrado com foto (pirateada...) do Humberto Reis, tirada no subsetor do Xitole, na margem direita do rio Corubal, no decurso da Op Navalha Polida (2-3 de janeiro de 1970)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1  (Bambadinca) > Subsector do Xitole > 2/3 janeiro de 1970 > Forças da CCAÇ 12 (na foto, o 2.º Grupo de Combate, dos furriéis milicianos Humberto Reis e Tony Levezinho). O Humberto vem atrás dos homens da bazuca e do lança-rockets (igual à dos páras). E, mais atrás, os 1.ºs cabos (metropolitanos) Alves e Branco. 

Não apareço na foto mas participei na Op Navalha Polida, em 2 e 3 de janeiro de 1970,  integrado desta vez no 4.º Gr Combate. Como me dizia amavelmente o meu capitão Brito - era um gentleman! - , eu era o peão das nicas, o tapa-buracas, o suplente, o que substituía os camaradas furriéis doentes, convalescentes, desenfiados ou em férias... Não sei por que carga de água é que os psicotécnicos me disseram que eu era bom para apontador de armas pesadas de infantaria. Como a CCAÇ 12 era uma companhia de intervenção, não tendo armas pesadas, eu tornei-me um polivalente, um pau para toda a obra... (LG)

Foto da autoria de Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). Tem sido imensa e despudoradamente  "pirateada" por aí, nas redes sociais, em livros, etc., sem referência ao autor e ao nosso blogue.

Foto:  © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro (que integra a nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018; foi alf mil, CCaç 3535 / BCaç 3880, Angola, 1972 / 74; tem 27 referências no nosso blogue): 

Data - 9 abr 2023 17:45
Assunto - Atravessando uma bolanha em... Angola
 
Boa tarde, Luis

Espero que tenhas tido uma boa Páscoa, apesar da morte recente da tua cunhada, que muito lamento.

Há um blog de um jornalista angolano, que por sinal é bastante tendencioso. O jornalista chama-se Luciano Canhanga, usa o pseudónimo Soberano Kanyanga, e o seu blog chama-se "Mesu Majikuka", que significa "Olhos Abertos" em quimbundo. 

Eu visito ocasionalmente o blog dele e, na última espreitadela que fiz, dei de caras com a fotografia do teu grupo de combate atravessando uma bolanha, como se a fotografia tivesse sido feita no Cuando Cubango no tempo da guerra civil angolana!

Aparentemente, a fotografia foi publicada no Jornal de Angola para ilustrar uma crónica do dito jornalista. A crónica também tem muito que se lhe diga, mas não é isso que agora me ocupa. O que me ocupa é o recorte do jornal, que pode ser visto no seguinte post:

http://mesumajikuka.blogspot.com/2023/04/kwitu-kwanavale-e-o-meu-representante.html




Folha de rosto do blogue Mesu Majikuka, e do poste de sábado, abril 08, 2023 > Kwitu Kwanavale e o meu representante. A foto que aqui se reproduz (e que é por sua vez de um artigo publicado pelo autor no "Jornal de Angola", em 2 de abril de 2023) foi tirada na Guiné, em 2 ou 3 de janeiro de 1970: retrata a atravessia de uma lala ou bolanha, de forças da CCAÇ 12, a caminho da península de Galo Corubal - Satecuta, na margem direita do Rio Corubal (Op Navalha Polida). Os créditos fotográficos são de atribuir a Humberto Reis e ao blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2006).

Aposto que não deste consentimento para a publicação da fotografia num jornal diário em Angola.

A sua publicação em Angola engana facilmente os incautos, pois, por um lado, o Cuando Cubango tem vastíssimas áreas alagadiças e, por outro, os uniformes camuflados usados pelas Forças Armadas Angolanas eram (ainda serão?) iguaizinhos aos que nós próprios usávamos. As FAA devem tê-los encomendado às OGFE em Portugal.

Quanto à fotografia propriamente dita, apetecia-me tecer algumas considerações, pois não gosto de alguns aspetos que vejo nela, mas isso agora não vem ao caso. Limito-me a dizer-te que me parece que ela documenta o que não se devia fazer numa situação como aquela.

Desculpa a minha sinceridade e aceita os meus votos de continuação de Boa Páscoa

Fernando de Sousa Ribeiro

2. Comentário de LG:

Obrigado, Fernando, pelo teu cuidado. Já regressei ao Sul, depois de quatro semanas no Norte a que uma parte de mim também pertence. (Aliás, basta ver o blogue A Nossa Quinta de Candoz, de que sou um dos editores.)

Quanto ao uso (e abuso) da tal foto pelo "Jornal de Angola"... Devo começar por esclarecer que: 

(i) a foto não é minha, é do meu amigo, camarada  e vizinho (de Alfragide) Humberto Reis, colaborador permanente do nosso blogue, ex-fur mil op esp, 2.º Gr Comb /  CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71);  

(ii) eu, ex-fur mil arm pes inf, nunca tive pelotão distribuído, mas ao longo da comissáo andei mais com o 4.º Gr Comb e foi com eles que apanhei mais porrada;

(iii) concordo contigo: a malta do 2.º pelotão "fica mal na fotografia", ao atravessar aquela lala ou bolanha, no subsetor do Xitole, no decurso da Op Navalha Polida (2 e 3 de janeiro de 1970): serve para se mostrar o que não se deve fazer, num situação de guerra, uma morteirada em cima da malta e ia tudo ao charco...

Mas adiante: fizeste bem alertar-nos para mais um uso indevido desta foto... Não é o primeiro nem será o último. A foto da autoria de Humberto Reis, tem sido imensa e despudoradamente  "pirateada" por aí, nas redes sociais, em livros, em jornais, etc., sem referência ao autor e ao nosso blogue. 

Pessoalmente, não sei o que fazer mais para além de, mais uma vez, lembrar uma das dez regras básicas do nosso blogue, o respeito pela propriedade intelectual e pelos direitos de autor... É nossa preocupação habitual, na edição dos postes, de fazer a devida atribuição dos créditos fotográficos....

Procuramos cumprir e fazer cumprir o princípio da defesa (e garantia) da propriedade intelectual dos conteúdos aqui inseridos (texto, imagem, vídeo, áudio...). Gostamos de partilhar os nossos conteúdos, mas dentro da mais elementar das regras: qualquer outra utilização desses conteúdos, fora do propósito do blogue (ou da nossa página no Facebook), necessita de autorização prévia dos autores e dos editores (por ex., publicação em livro, jornal ou revista,  programa de televisão),,,

S(c)em (mais) comentários (*)...
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sexta-feira, 10 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24133: S(C)em Comentários (7): Ouvi um alto dirigente do MPLA, já depois da independência, dizer que o governo angolano deveria agradecer às Forças Armadas Portuguesas o facto de existir uma consciência nacional em Angola, em vez de uma pertença tribal somente (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, 1972/74)


1. Comentário (ao poste P24128) (*), assinado pelo Fernando de Sousa Ribeiro, que integra a nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018; foi alf mil, CCaç 3535 / BCaç 3880 (Angola, 1972 / 74):

Fernando de Sousa
Ribeiro
Alguns anos depois da independência de Angola, ouvi um alto dirigente do MPLA dizer que o governo angolano deveria agradecer às Forças Armadas Portuguesas o facto de existir uma consciência nacional em Angola, em vez de uma pertença tribal somente. 

Explicou ele que, no serviço militar prestado nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas, foram postos em contacto angolanos das mais diversas etnias e origens geográficas, o que os levou a descobrir que o que os unia era mais do que o que os separava.

Em Angola não havia "pelotões nativos", "comandos africanos" ou "companhias indígenas", cujos membros pertenceriam, na sua maioria ou mesmo na sua totalidade, à etnia A ou à etnia B. Havia apenas militares regulares, que eram jovens como nós, cumpriam o serviço militar obrigatório como nós e no fim passavam à "peluda" como nós. 

Assim como nas companhias e pelotões metropolitanos eram indiferenciadamente incorporados minhotos, alentejanos e transmontanos, também nas companhias e pelotões angolanos eram incorporados, sem distinção, ovimbundos, bacongos e quiocos. 

Nos últimos anos da guerra, esta mistura foi levada ainda mais longe, com a incorporação de militares angolanos em unidades e subunidades metropolitanas, que saíam de cá incompletas. Foi o que se passou com o meu batalhão, que teve alfacinhas, tripeiros e beirões misturados com luandenses, malanjinos e beguelenses. Tudo misturado. 

O resultado foi francamente positivo, na minha opinião.


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.Caç. 3535, B.Caç. 3880


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24033: (De)Caras (194): O mecânico-desempanador Mota, da CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), mais conhecido por "Matraquilho" (Fernando de Sousa Ribeiro)

1. Comentário do Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Angola, Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), ao poste P24012 (*)

É a primeira vez que encontro uma referência à especialidade de desempanador. Para mim é uma completa novidade, não sabia que existia semelhante especialidade. Que eu saiba, no meu batalhão em Angola,  não havia nenhum mecânico desempanador, porque todos acabavam por sê-lo, mais cedo ou mais tarde.

Na região dos Dembos, em todas as colunas auto seguia obrigatoriamente um mecânico, porque a vetustez das viaturas e o acidentado do terreno a isso obrigava. 

O "desempanador-mor" da minha companhia era um soldado mecânico chamado Mota (ainda está vivo, e espero que por muito mais tempo ainda), que resolvia sempre todos os problemas da maneira mais criativa possível. Servia-se de paus de fósforos (para substituir algum parafuso partido, por exemplo, renovando os paus quando eles mesmos também se partiam), chicletes (nomeadamente para vedar alguma fuga de óleo ou de combustível), etc. 

Com ele, todas as viaturas chegaram sempre ao seu destino pelos seus próprios meios. Uma vez, partiu-se a mola do acelerador de um unimog, mola esta que tinha por função manter o pedal do acelerador levantado. O Mota resolveu o problema substituindo a mola partida pelo elástico que tirou das suas próprias cuecas!

27 de janeiro de 2023 às 03:05

2. Comentário do editor LG:

Uma história incrível, Fernando, essa do Mota, o mecânico "desenrascador" e "desempanador". Que importa que não tivesse o "diploma" nem o "título"?! 

Também os houve na Guiné, havia mecânicos das Daimlers, por ex., que conseguiam manter operacionais essas relíquias da II Guerra Mundial... O Mota, mesmo que  vocês tenham estado em Angola, merece um poste no blogue dos amigos e camaradas da Guiné. Uma homenagem a todos os nossos mecânicos. Tens uma foto dele ou com ele? Candando (abraço, em angolês). 

Luís

3. Resposta do Fernando Ribeiro:

Data - sábado, 28/01/2023, 03:01

Caro Luis,

A única fotografia que tenho do mecânico Mota é esta (à esquerda), que data de 2016 e foi feita no convívio do meu batalhão realizado aqui no Porto. Ninguém o conhecia por Mota, mas sim pela alcunha de Matraquilho.

Quando a minha companhia chegou a Zemba, estavam num canto do bar dos soldados uns matraquilhos estragados. O Mota foi pedir ao capitão, Lamas da Silva, licença para reparar os matraquilhos. O capitão respondeu-lhe que não tinha que lhe dar licença nenhuma, porque os matraquilhos não faziam parte do espólio da companhia e, por isso, não tinham dono. Acrescentou que, se o Mota quisesse ficar com os matraquilhos, que ficasse, e fizesse deles o que muito bem entendesse. 

Isto foi música para os ouvidos do Mota, que tratou logo de reparar os matraquilhos e pô-los a render. E como renderam! Zemba era um cu-de-judas onde não havia comerciantes, nem "meninas", nem nada onde a malta pudesse gastar o seu dinheiro, a não ser o bar dos soldados. 

Os matraquilhos do Mota foram por isso um enorme sucesso, que a malta toda usava de manhã até à noite, metendo todas as moedas necessárias para jogar. O Mota a partir de então passou a ser conhecido pela alcunha de Matraquilho, o mecânico que personificava o portuguesinho desenrascado.

Um abraço, Fernando Ribeiro

4. Novo comentário do editor LG:

O teu Matraquilho faz-me lembrar, com as devidas distâncias (até geográficas e históricas...) o MacGyver, o herói de uma série que passou na RTP, em 1987, e era muito popular... É caso para perguntar quem imitou quem... Entre um e outro há uma distância de 15 anos... 

Lembras-te das aventuras do MacGyver?

(i) Aqui vai um excerto da RTP > Programas TV

"As aventuras de MacGyver: a sua mente é um autêntico canivete suíço

Richard Dean Anderson é Macgyver (foto à esquerda, cortesia da RTP), um agente astuto e muito inteligente, que opta por resolver situações de conflito sem recurso às armas e à violência. Um herói que arrisca a sua vida em delicadas operações de salvamento, utilizando como únicas armas, os utensílios que existem à sua volta" (...)

(ii) Na Wikipédia também se pode ler:

MacGyver (Profissão: Perigo no Brasil) foi uma série de televisão americana de ação-aventura criada por Lee David Zlotoff (...) . MacGyver durou 7 temporadas, de 1985 a 1992, no canal ABC nos Estados Unidos. A série foi filmada em Los Angeles  (...) e  em Vancouver (...) . O último episódio foi exibido a 21 de maio de 1992.

A série segue o agente secreto Angus MacGyver, interpretado por Richard Dean Anderson, que trabalha como “um solucionador de problemas” para a Fundação Phoenix em Los Angeles e como agente para o Departamento Governamental de Serviços Externos (DXS), ambas fictícias. 

Educado como cientista, MacGyver serviu na Guerra do Vietnã como técnico da brigada antibombas ("Countdown"). 

Muito versátil e possuidor de um conhecimento enciclopédico de ciências físicas, MacGyver resolve problemas complexos ao criar coisas a partir de objetos comuns, grande parte das vezes com a ajuda do seu canivete suíço; MacGyver também porta consigo fósforos e fita adesiva em alguns episódios. Prefere resolver suas missões sem violência e não gosta de usar armas de fogo devido a uma morte acidental que envolveu um de seus amigos de infância. (...)

[ Seleção / revisão e fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23752: Fotos à procura de...uma legenda (166): Que garrafa de... "bioxene" segura na mão o nosso camarada João Silva (1950-2022) e os demais elementos do grupo, na foto do Natal de 1973, no CIM de Bolama ? (Valdemar Queiroz / Fernando de Sousa Ribeiro)

Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de 1973 > O João Silva, em primeiro plano, à esquerda, segurando na mão  uma garrafa que, ao nosso editor, pareceu de espumante, mas não devia ser...


Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de 1973 >  Já agora quem seria este capitão matulão, em segundo plano, do lado direito?



Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de1973 >  "Foto de grupo, cada militar segura uma garrafa de espumante que, se presume, foi-lhe oferecida"... (Detalhe)

Fotos (e legendas): © João Candeias da Silva / António Duarte (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dois comentários, ao poste P23750 (*),  de leitores que estão sempre atentos ao detalhe e que, neste caso, não viram garrafas de espumante nenhumas...  

Vamos aceitar o desafio do nosso querido camarada Valdemar Queiroz que, além de leitor compulsivo do nosso blogue, é catedrátrico em matéria de passatempos do tipo "Descubra a  Diferença"... (Sabemos que o nosso blogue tem-lhe dado... anos de vida, a ele que, sofrendo de uma DPOC, vive sozinho trancado em casa, e que em matéria de "bioxene", já bebeu os DOC todos que tinha a beber, diz ele, com o seu proverbial bom humor de caserna).

(i) Valdemar Queiroz

Bem, no tempo que passei no CIM de Contuboel não tínhamos praia mas tínhamos rio. Também não nos foi oferecido garrafas de bioxene com fitinhas de Natal, mas foram igualmente tempos que nem parecia que estávamos na guerra da Guiné, como nestas fotos se pode observar.

E a propósito de garrafas de bioxene com fitinha de Natal que aparecem na fotografia, não parecem ser de espumante que seriam maiores e de rolha bem diferente, e nota-se não serem todas da mesma marca.

Vale uma carica a quem descobrir de que bioxene se trata, 'bora lá. (**)
(ii) Fernando de Sousa Ribeiro:

Ao olhar de lince do Valdemar não escapa nada. As garrafas parecem ser de "espumante" JB, Drambuie, VAT69, etc.



quarta-feira, 29 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23395: A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (1): Luanda, Depósito de Adidos de Angola, o oficial de dia e o preso cabo-verdiano (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, 1972/74)

1. Comentário ao poste P23391 (*), que o nosso editor LG considerou como uma "verdadeira história pícara" e, como tal, merecedora de ser publicada, em poste, na montra principal do nosso blogue. 

 Afinal, a nossa guerra também passou por aqui, pelas Ruas Escuras, os Bairros Altos, os Cais do Sodré, as Ilhas de Luanda, os Cupelons, os Bataclãs, os Depósitos de Adidos... , sítios por onde passou muita "malandragem" eonde também também havia "minas & armadilhas".

Histórias de "a(r)didos e mal pagos", pode ser um bom título para uma nova série, que hoje inauguramos... com uma história deliciosa, com princípio, meio e fim,  do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780. História deliciosa, contendo também uma profunda lição de humanidade e de solidariedade.

E, a propósito, recorde-se aqui dois dos nossos mestres do pícaro, o saudoso Jorge Cabral e o "bandalho" do Zé Ferreira da Silva. Iremos repescar um ou outro poste, já publicado, destes e doutros autores,


A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (1): Luanda, Depósito de Adidos de Angola, o oficial de dia e o preso cabo-verdiano 

por Fernando de Sousa Ribeiro 


Os militares que se deslocassem a título individual de e para Luanda e tivessem que passar alguns dias na cidade, fosse em serviço, em consultas no Hospital Militar ou em rendição individual, ficavam no Depósito de Adidos de Angola (DAA), que era um quartel situado próximo do aeroporto de Luanda.

Não havia qualquer semelhança entre o Depósito de Adidos de Angola e o Campo Militar do Grafanil; o DAA era um quartel e o Grafanil era uma espelunca. Quando passei um mês em Luanda em consultas externas de Psiquiatria, foi no DAA que fiquei colocado. Até fiz lá um serviço de oficial de dia.

Um dia, um capitão pertencente aos quadros do Depósito de Adidos de Angola comunicou-me que eu teria que fazer um serviço de oficial de dia na unidade. Eu respondi-lhe:

— Se tiver que fazer o serviço, faço, mas olhe que eu estou aqui em Luanda a frequentar as consultas de Psiquiatria. Não sei se estou em condições mentais de desempenhar devidamente as funções.

Disse-me o capitão:

— Não ficou internado, pois não? Então está em condições de fazer o serviço.

E acrescentou, em tom apaziguador:

— Não se preocupe, porque não vai acontecer nada. Aqui nunca acontece nada. Isto não é uma unidade operacional, é um simples lugar de passagem. O que você tem que fazer é tomar nota de quem é que chega para cá ficar e quem é que se vai embora, a fim de mantermos um registo permanentemente atualizado de quem se encontra cá colocado e quem deixou de estar. Mais nada. Você até se vai aborrecer. Aqui nunca aconteceu nada e não vai ser agora que vai acontecer.

Nunca tinha acontecido nada, mas eu quase fiz que acontecesse, graças ao meu talento para me meter em sarilhos.

Estava eu sentado à secretária de oficial de dia e com a cabeça na lua quando, a meio da manhã, chegou uma escolta com um soldado, preso e algemado, para ser metido na prisão do quartel. Recebi o preso, assinei a papelada que tinha que assinar, os militares da escolta retiraram as algemas ao preso e foram-se embora. Fiquei com o preso à minha frente.

Dei uma vista de olhos pelos papéis e verifiquei que o preso tinha acabado de chegar da Metrópole, mas era cabo-verdiano. Perguntei-lhe:

— O que foi que aconteceu para você estar aqui nesta situação?

Ele respondeu-me que era de Cabo Verde, mas vivia na Metrópole e, por isso, foi incorporado no serviço militar na Metrópole. Depois de ter feito a recruta e a especialidade, foi colocado no RAP 2, em Vila Nova de Gaia, até que foi mobilizado para Angola em rendição individual.

Para se despedir da Metrópole, resolveu ir às "meninas" da Rua Escura, no Porto, apesar de estar sem dinheiro. Quando a profissional que o atendeu descobriu, no fim do serviço, que ele não lhe iria pagar, saiu para a rua e fez tamanho escarcéu, dizendo que não estava ali para trabalhar de graça, que apareceu o chulo dela, seguindo-se uma cena de pancadaria entre o chulo e o cabo-verdiano. Entretanto alguém chamou a Polícia Militar, que levou o cabo-verdiano sob detenção. E ali estava ele, diante de mim, depois de ter feito a viagem de avião de Lisboa para Luanda sempre vigiado e algemado.

Assim que me contou a sua história, o cabo-verdiano pediu-me, com todo o descaramento:

— Meu alferes, eu preciso de contactar uma pessoa que está aqui em Luanda, para que saiba que eu estou cá. O meu alferes dá-me licença que eu saia? Eu prometo que volto. Prometo. É só falar com a pessoa e volto assim que puder. Prometo.

Eu disse-lhe que sim!

Logo que se foi embora um soldado que eu não conhecia de lado nenhum, para falar com uma pessoa que eu não sabia quem era e num lugar que ele não me revelou qual era, é que me dei conta da asneira que tinha acabado de cometer. Pensei: «Bonito serviço! Então eu deixo sair livre como um passarinho um preso, que momentos antes estava algemado e sob escolta?! E se ele não voltar, o que é que me vai acontecer? Isto de nomearem um maluco para oficial de dia só podia dar mau resultado».

Não deu mau resultado. Por volta das duas horas da tarde, o cabo-verdiano apareceu-me à porta do gabinete, dizendo:

— Meu alferes, já me pode prender.

Dei um suspiro de alívio que se deve ter ouvido na cidade inteira.


Fernando de Sousa Ribeiro, 
ex-alferes miliciano da CCaç 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 28 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23391: A galeria dos meus heróis: uma história pícara de três “a(r)didos” - II (e última) Parte (Luís Graça)