1. Mensagem de Joaquim Sabido (ex-Alf Mil Art, 3.ª Cart/Bart 6520/73 e CCaç 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974), com data de 11 de Agosto de 2010:
Caríssimo Camarigo Carlos Vinhal;
Em anexo envio um relato de duas situações vividas já no pós 25 de Abril.
Se o meu Camarigo vir que este escrito pode conter algum interesse para conhecimento e informação aos demais Camarigos, podes "postá-lo".
Porque não juntei fotografia com a farda militar quando me apresentei à Tabanca, e porque, posteriormente, por ti tal me foi solicitado, seguem duas fotografias do tempo da vida militar, uma tirada cá e outra na Guiné, que foi batida após o regresso de uma patrulha, talvez em Jemberém, ou em qualquer outro local, sinceramente não me recordo.
Com um Abraço Camarigo, do
Joaquim Sabido
Évora
Licenciamento/desmobilização dos Comandos Africanos
Meus Caros Camaradas e Amigos;
Recebemos, há dias, remetido pelo nosso sensato e ponderado Camarigo Carlos Vinhal, um e-mail com a entrevista que o Senhor Coronel Fabião deu, há alguns anos atrás, à Senhora jornalista Maria João Avilez.
Confesso que nunca tinha lido esta entrevista, mas nela verifico a existência de, pelo menos, algumas omissões, designadamente, quanto à questão do licenciamento da Tropa Africana e do consequente assassínio de alguns desses militares que foram nossos Camaradas de armas. Assim, por ter tido conhecimento directo dessa fase, em virtude de me encontrar de serviço dia sim, dia não, tendo como incumbência a guarda ao Palácio, vi, ouvi e vivi algumas coisas. Para conhecimento e eventuais reflexões dos meus Camarigos, nomeadamente, para a “velhice” que já regressara com a missão cumprida, relato sucintamente o seguinte:
1 – Relativamente ao licenciamento/desmobilização dos Comandos Africanos, que então foi levada a efeito, omitiu o então Sr. Governador:
Quando da primeira vez que o Senhor Governador se deslocou ao quartel dos Comandos Africanos das NT, com a proposta para que eles voluntariamente e sem qualquer contrapartida, entregassem as armas e as munições que tinham em seu poder – era essa a questão fundamental para o alegado licenciamento – tal foi peremptoriamente negado pelos elementos dos Comandos Africanos. Como o Senhor Governador insistia na necessidade da entrega das armas, nesse dia, teve que de lá “fugir” – é esta a palavra correcta – entrando no carro à pressa, sob vaias, tendo, inclusivamente, apanhado alguns “calduços” e umas quantas “palmadas”, tendo outros sido distribuídos, democraticamente, pelo seu ajudante de campo o então Senhor Capitão da Força Aérea, Faria Paulino.
Então, regressaram ao Palácio em marcha acelerada, tendo eu, de imediato, sido chamado ao gabinete do Senhor Ajudante de Campo, de quem recebi instruções no sentido de reforçar a guarda para essa noite, já que o Senhor Governador esperava um eventual ataque ao Palácio. Mais me tendo sido ordenado que, batesse e arrasasse, com o armamento que havia disponível no Palácio, o Bairro do Pilão, porque era de lá que o esperado ataque partiria.
Na verdade, aqui fiquei com muitas e sérias dúvidas quanto à disponibilidade que, quer eu, quer o restante pessoal que integrava a guarda ao Palácio - que era composto por dois pelotões da CCaç 4641 -, teríamos para começar a fazer fogo sobre um Bairro onde residia inúmera população civil: crianças, mulheres e homens. Mas a ordem era mesmo essa e todos nós ficámos inquietos (por outro lado, pensávamos: - Não nos “lixámos” na mata, “lixamo-nos” em Bissau?) é a verdade. Conversei então com o nosso Capitão Miliciano Amâncio Fernandes, Comandante da 4641, que estivera em Mansoa, tendo-me ele aconselhado calma e ponderação e que aguardássemos pelo evoluir da situação durante o decurso da noite.
Chegou o novo dia e, felizmente, nada de grave aconteceu, para além dos habituais “tirinhos” que sempre se faziam ouvir naquele emblemático Bairro de Bissau.
Certo é que, ainda hoje me questiono e até agora não encontrei resposta, como é que teríamos respondido perante uma situação em que evoluísse um possível e então pelo Senhor Governador esperado ataque ao Palácio, provindo e com “pavio” naquele Bairro? Certamente que nos teríamos que proteger e defender, mas daí até dar cumprimento à ordem que verbalmente me fora transmitida, para arrasar com o Bairro, ia e vai uma grande distância.
Então como é que o Senhor Governador conseguiu serenar o pessoal e proceder ao almejado licenciamento/desarmamento? De uma forma simples, levou uma mala com notas de “peso” e pagou uma determinada verba por cada uma das armas entregue pelos elementos dos Comandos Africanos, a verba a que cada um deles teria direito foi encontrada em função do posto que os militares ocupavam na hierarquia militar e dos anos de serviço prestado. Se a memória não me falha, os menos graduados, os soldados com menos tempo de serviço receberam mil pesos cada um para entregarem as armas, inicialmente, fora ponderado o pagamento da quantia de 500 pesos, como valor base. Tal não aconteceu com as milícias nem com outros elementos que estiveram entre e com as NT, conforme o Camarigo C. Martins já aqui referiu, já que quando saíram de Gadamael, tiveram que ser elementos do PAIGC a dar-lhes protecção, devido ao nosso abandono à sua sorte dos elementos que integraram a Milícia.
E foi desta forma, que se processou o tão propalado desarmamento/licenciamento dos militares dos Comandos Africanos. Sendo certo que eles não pretendiam entregar as armas nem as respectivas munições, porque estavam certos do desígnio que os esperava.
2 – Conforme decorre da entrevista, ao Senhor Governador Carlos Fabião foi, pelos elementos do PAIGC que vieram para Bissau, garantido que nenhuma retaliação sob qualquer forma ou pretexto seria exercida sobre os nossos Camaradas. Mas, afinal, conforme consta e do que se tem conhecimento, tal “promessa” não foi cumprida pelo PAIGC.
O que mais me espanta na entrevista, é que o triste final destinado aos nossos Camaradas, já estava anunciado e era do conhecimento de todos em Bissau, pelo menos, sabia-se, isto é, era voz corrente na Cidade, entre os Militares Africanos do Exército Português que nos afirmavam: -
Vocês vão embora e nós vamos no Morés e corta cabeça.
Parece que o Senhor Governador apenas ouviu uma parte e satisfez-se com a palavra dessa parte. Será que nunca procurou, ou não quis ouvir aquilo de que todos falavam?
Por outro lado, na entrevista, disse o Senhor Coronel Carlos Fabião que os Militares Africanos do Exército Português lhe terão dito que não pretendiam vir para Portugal, pois ficavam lá, na sua terra porque ali ninguém lhes faria mal. Não referindo, no entanto, quem lhe terá dito tal, pois todos, mas todos os Militares com quem tive oportunidade de conversar, me manifestavam a sua pretensão em vir para Portugal, atendendo ao que os esperava, ou seja, a morte já anunciada e por isso de todos era conhecida.
A este pretexto, e para confirmar o que digo, posso referir pelo menos duas situações:
i) - A primeira ocorreu no final de um dia, já ao anoitecer, em que fui chamado pelo meu Camarada que se encontrava no posto de sentinela junto à porta principal do Palácio, ao cimo da escadaria, devido ao facto de cá em baixo se encontrar um indivíduo que se locomovia em cadeira de rodas e que dizia estar armado e que iria rebentar com a frontaria do Palácio.
Ali acorri, abordei o indivíduo e, após algum tempo de conversa, ele mostrou-me o que trazia sob a manta que lhe cobria as pernas e que eram, umas quatro ou cinco granadas de mão, para além da pistola e mais não me disse, pois era sua pretensão falar com o Senhor Governador. Então, fui ter com o Cap. Faria Paulino, que comigo se dirigiu para junto do indivíduo e foi apenas perante o Capitão é que o indivíduo se apresentou: - era 1.º Sargento Comando, encontrava-se paraplégico devido a ferimentos que sofrera em combate e, já que ninguém queria saber da sorte dele(s), pretendia, pelo menos, que o Senhor Governador lhe garantisse por escrito, que a mulher e os filhos, após ele ser
levado para o Morés e lhe cortarem a cabeça, continuariam a receber do Estado Português uma verba a título de pensão. Se assim não fosse, ele morreria já ali, mas pelo menos rebentaria com a fachada principal do Palácio. Após cerca de duas intermináveis horas de conversa com o nosso Primeiro, o Cap. Faria Paulino conseguiu convencê-lo de que lhe agendaria uma reunião, num outro dia, com o Senhor Governador porque nesse dia e a essa hora, ele não se encontrava no Palácio, tinha saído de helicóptero e como já era quase noite não iria regressar.
ii) - Num outro dia, em que não me encontrava de serviço, passeava em Bissau com o então Capitão Pára Valente dos Santos, mais conhecido na “guerra” como o “Astérix”, e encontrámos um grupo de cinco elementos, trajando já civilmente e que ao encontro dele/nós vieram. Eram Militares que pertenciam ao Grupo de Combate do então Capitão Marcelino da Mata - que então já se encontrava em Portugal. Todos eles, sem excepção, manifestaram ao Cap. Valente dos Santos, que com eles estivera e combatera em muitas Operações, o perfeito conhecimento que tinham do que lhes iria acontecer. Rogaram o favor de que o Capitão intercedesse junto de quem tivesse competência para lhes conceder a necessária autorização no sentido de conseguirem vir para Portugal.
A resposta que o Capitão Valente dos Santos lhes deu, foi a seguinte: Estivera presente em reuniões com o Senhor Governador, com o Comandante-Chefe (o então Senhor Brigadeiro Figueiredo) e com os representantes do MFA na Guiné, e as instruções que havia eram no sentido de que, apenas beneficiavam de autorização de transporte para Portugal, os Oficiais das Tropas Africanas.
Tive oportunidade de, logo após o encontro supra descrito, conversar com o “Astérix” e questionei-o do porquê de não se possibilitar a ida dos Camaradas que quisessem ir para Portugal, independentemente do posto que tinham na hierarquia militar, tendo-me ele respondido, que eram ordens recebidas dos Comandantes do MFA, no Continente, com as quais, fiquei certo, ele próprio não concordava, devido ao facto de ser, também ele, conhecedor do que o futuro reservava a esses nossos Dignos Camaradas.
Não posso deixar de dizer que, com estes relatos, não é minha intenção desprestigiar a boa imagem que o Senhor Coronel Fabião tenha deixado, nem, muito menos, beliscar sequer, a memória do último Governador da Guiné, pois aprendi a respeitá-lo quer como Militar, quer como Homem, durante aquele período de tempo em que desempenhei funções na guarda ao Palácio e, depois, já em Portugal, devido a algumas posições que ele assumiu no desempenho das altas funções que lhe foram cometidas. Quanto refiro, faço-o sempre com o devido respeito.
Com a Camariga saudação e um fraterno Abraço, do
Joaquim Sabido
Évora
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 20 de Julho de 2011 >
Guiné 63/74 - P8574: Os nossos médicos (41): Por fim, e não menos importantes, os nossos anestesistas (C. Martins / Joaquim Sabido / J. Pardete Ferreira)
Vd. último poste da série de 12 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8663: (Ex)citações (147): Guidaje – 1973. Esclarecimentos (José Manuel Pechorro)