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sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26104: Notas de leitura (1739): João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Nunca imaginei que me iria dar a esta investigação sobre a vida e obra de João Barreto. O Dr. Google, sempre tão prazenteiro, fechou-me todas as portas, mas foi ali, depois de muita divagação, que cheguei ao Arquivo Histórico da Presidência da República onde, pasme-se, estava o nome de João Vicente Sant'Ana Barreto, que tivera uma proposta de condecoração para Cavaleiro da Ordem de Avis. Felizmente que havia um dossiê e nele fiz a primeira descoberta de que João Barreto fora promovido a tenente-médico em 1916 e enviado para Cabo Verde. Depois houve que folhear o Boletim Oficial da Colónia e descobrir a sua chegada, o seu estágio na cidade da Praia e os anos que passou na ilha do Fogo.Há ainda que vasculhar na imprensa cabo-verdiana da época se escreveu textos sobre a sua arte, a epidemiologia. No início de 1919 chega à Guiné, percorrerá vários lugares e localidades até assentar em Bolama e dirigir o laboratório central de análises do Hospital Civil e Militar, foi aí que começou a sua vida de autor, um cientista muito comunicativo, capaz de escrever artigos de divulgação, de comprovado rigor. Reformou-se por razões de saúde em outubro de 1931, vou agora começar à procura do que é que ele fez de 1932 a 1940, ano em que faleceu, com 52 anos.

Um abraço do
Mário



João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica

Mário Beja Santos

Quando apresentei na Sociedade de Geografia de Lisboa, no passado dia 10 de outubro, o meu estudo sobre João Barreto adverti quem me escutava que já sabia um pouco mais sobre a sua vida e obra, mas persistiam lacunas e um ambiente de nevoeiro à volta dos seus últimos anos de vida.

Permitam-me que vos conte os primórdios desta investigação. O editor e nosso confrade Daniel Gouveia telefonou-me um dia a perguntar se eu ia ao lançamento de um estudo sobre a História da Guiné de João Barreto, respondi que nada sabia, senti a curiosidade acicatada, perguntei-lhe a quem me devia dirigir, que eu contatasse a Casa de Goa, local do lançamento do trabalho. Dado o consentimento, lá fui para os lados de Alcântara, nem pressentia que iria conhecer um edifício em vias de demolição devido às obras do metro. Tocou-me a explanação do neto de João Barreto que só soubera da existência da História da Guiné há muito pouco tempo, adquirira um dos exemplares num alfarrabista que mandara fazer uma edição fac-similada para distribuir por familiares e amigos. Vi-me de repente instigado a perorar sobre o conteúdo da História da Guiné, aliás a única História até hoje existente, edição de 1938, obviamente a sofrer as rugas do tempo, poucos anos depois da edição de autor começavam os trabalhos de Vitorino Magalhães Godinho, Duarte Leite, Fontoura da Costa, Teixeira da Mota e Damião Peres, entre outros, que alteraram profundamente os conhecimentos sobre a nossa presença, o acervo literário, mexeram-se nos arquivos, sabe-se hoje muito mais, embora quem quer que se venha a acometer ao estudo da História da Guiné deverá futuramente que fazê-lo em equipa multidisciplinar envolvendo a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Portugal, Senegal, Guiné Conacri, todos estes países deixaram rasto na chamada Senegâmbia.

Foi então que o neto de João Barreto, Aires Barreto me perguntou se eu tinha disponibilidade para investigar o que este médico epidemiologista, licenciado em 1913 na Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa, com altíssima classificação, fizera na Guiné e, se possível, qual a sua atividade em Portugal, depois de reformado. Aceitei o desafio e estou agora em condições de dizer que este médico nascido em Margão foi professor universitário em Nova Goa, aí apresentou, com recurso a moderníssimas técnicas de investigação, um estudo sobre a peste na Índia Portuguesa, fez estudos complementares em Lisboa, onde obteve boa classificação (área em que ainda há lacunas), foi nomeado tenente-médico para o Quadro de Saúde de Cabo Verde em Guiné, em junho de 1916, trabalhou em Cabo Verde de 1916 a início de 1919, na cidade da Praia e na ilha do Fogo, não se lhe conhece obra científica, a não ser os relatos mensais exigidos por lei sobre o estado da saúde pública na ilha onde passou tanto tempo. Na Guiné exerceu vários mistérios, em Bafatá, Cacheu, Farim, Bissau e Bolama. Enquanto delegado de saúde em Cacheu, foi louvado por ter coordenado com êxito uma campanha contra a peste. Dirigiu o laboratório central de análises de Bolama, encontram-se as suas apreciações em vários Boletins Oficiais da província da Guiné. Por volta de 1926 começa a publicar relatórios e artigos, é submetido a uma Junta de Saúde em 1931, e reformado.

Há passos da sua vida que me parecem inexplicáveis. O antigo governador da Guiné, Leite Magalhães, a quem prefacia a sua história e refere somente 12 anos de Guiné; em vários currículos também só se fala da sua presença na Guiné, parece que o autor pretendeu um manto de silencia sobre a sua estadia em Cabo Verde. Só conhecia uma fotografia dele, já na maturidade, era então para os seus familiares a única fotografia conhecida, veio publicada num conceituado jornal goês, Diário da Noite, no início de 1941, o seu falecimento (faleceu em Lisboa em 1 de dezembro de 1940, com 52 anos).

Há tempos, a bibliotecária da Biblioteca da Sociedade de Geografia trouxe uma história da Escola Médico-Cirúrgica de Goa sobre os seus vultos mais relevantes. Foi com enorme satisfação que encontrei um jovem médico, indumentado com bata profissional, já a enviei ao neto, que rejubilou. Prometo dar mais informações sobre o que se vier a descobrir quer quanto ao que se escreveu e não vier mencionado, e sobretudo, saber se este médico e investigador amador, difundiu nos anos que viveu em Lisboa entre 1932 a 1940, mais informações sobre a Guiné que seguramente muito amou – 12 anos ali não é amor impune.

A cidade de Bolama dos tempos de João Barreto
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Nota do editor

Último post da série de 28 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26088: Notas de leitura (1738): Quando se ensinava a literatura da Guiné-Bissau nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20389: Historiografia da presença portuguesa em África (188): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (4): "Portugueses e Espanhóis na Oceânia", por René Pélissier (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
O historiador René Pélissier procede a uma comparação de duas colonizações ibéricas, face às resistências armadas em duas ilhas da Oceânia: Timor para os portugueses, Ponape para os espanhóis, contextualiza os dois impérios na curva descendente, a tentativa expansionista da Espanha nas Filipinas e a atitude portuguesa, de manutenção defensiva, Lisboa não podia ir mais longe, o foco vital, naquela altura, era a África e a situação financeira mantinha-se caótica. O historiador desvela o modo distinto como procederam os colonizadores espanhóis e portugueses, evidentemente a Espanha veio a perder as Filipinas, Guan e as Antilhas espanholas, o Timor português permaneceu incólume, a atitude da repressão portuguesa foi suficientemente brutal a ponto dos poderes gentílicos terem ficado definitivamente erodidos.
Uma obra para ler cuidadosamente, dá para entender esta faceta tão cara ao colonialismo português: as alianças gentílicas contra o insurreto, transformado em inimigo do colonizador e dos outros régulos.

Um abraço do
Mário


A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (4)

Beja Santos

René Pélissier
O mais recente livro de René Pélissier em Portugal intitula-se “Portugueses e Espanhóis na Oceânia, duas formas de resolver insurreições”, Principia / Tribuna da História, 2018. O autor justifica assim a substância do seu trabalho: “Trata-se de examinar e comparar, durante um curto período (1887-1899), as atitudes e atividades militares de duas colonizações ibéricas, face às resistências armadas e rebeliões de sociedades ou autoridades indígenas que pretenderam subjugar em duas ilhas da Oceânia: Timor para os portugueses, Ponape para os Espanhóis”. Como é óbvio, o foco desta leitura passa pela questão colonizadora, os métodos usados para a pacificação de gente insubmissa. O autor compara o potencial militar espanhol e português no Pacífico, as duas potências coloniais estavam na curva descendente, com as finanças praticamente falidas, a Espanha sonhava com a expansão, Portugal com a retenção, os seus efetivos tinham recrutamentos diferentes, O efetivo português era multifacetado em termos de origem (muito poucos metropolitanos, indiano ou sino-portugueses de Macau e, após 1878, algumas tropas africanas vindas de Moçambique). O jogo de alianças tinha a ver com o génio colonial português baseado na manipulação dos chefes gentílicos, em caso de necessidade pagava-se ao inimigo dos insurretos nesta ou naquela ocasião, compensava-se o aliado com o saque, assim se procedia com os guerreiros das montanhas, os régulos (“liurais”) e os seus nobres, hostes sempre provisórias. René Pélissier lembra que na época Timor era uma ilha de cortadores de cabeças inveterados que adoravam bater-se pelo saque e guarnecer de crânios as fortificações das suas aldeias. A administração podia reunir, sob a sua bandeira, 15 ou mesmo 20 régulos, qualquer coisa como 10 mil homens armados, mais o milhar de moradores de choque e uma escassa centena de soldados regulares de apoio (moçambicanos e artilheiros). Para quem já estudou as campanhas de pacificação do Capitão Teixeira Pinto, há pouca novidade.

O governo português vivia num período singularmente crítico, tinha-se perdido o Brasil e a quase totalidade do seu primeiro império, o Oriental (salvo os entrepostos da Índia, Macau e uns pequenos retalhos na Insulíndia), apostava-se decididamente em África, ainda houve o sonho de criar um território homogéneo de Angola a Moçambique, mas a Grã-Bretanha lançou o Ultimato, encurtou-se o sonho para Angola e Moçambique. Os espanhóis sentiam-se inquietos com a presença britânica e alemã na vizinhança, houve mesmo um contencioso com Berlim, quando esta anunciou a posse das Carolinas, Madrid reagiu e mandou ocupar, assim se criou Ponape. Observa o autor: “Sem o saber, o governador das Carolinas Orientais tinha acabado de desembarcar num vespeiro a 3800 km de Manila, ou seja, a 15 dias de distância por navio-correio a vapor. A distância até à capital das Filipinas é quase igual à que separa Timor de Macau: aproximadamente 3600 km”.

1887 foi um ano sangrento para os governadores espanhol e português. A 3 de março de 1887, o governador de Timor foi morto pelos seus auxiliares, em Dili; a 4 de julho do mesmo ano o governador espanhol das Carolinas Orientais foi abatido pelos seus novos colonizados. Recorde-se a existência de diferenças nos dois processos coloniais. Em Ponape, a colónia era de fresca data, havia a ingerência de estrangeiros, desde os baleeiros aos comerciantes, contenda entre capuchinhos e missionários metodistas, era um poder colonial frágil que obrigou à mobilização de efetivos para um regresso em força. O novo governador de Timor, o Capitão-de-Fragata Rafael Jácome Lopes de Andrade possuía apenas um vapor em mau estado, duas companhias de soldados africanos, alguns soldados europeus e maratas (de Goa), num efetivo total provável de 250 homens. Empreendeu uma pequena campanha vitoriosa na Costa Norte e tomou medidas promissoras de apaziguamento, perdoou a vários régulos insubmissos. Em Ponape, andava-se a ferro e fogo, os governadores de Timor envolveram-se em companhas, agregaram auxiliares indígenas, intimidaram, incendiaram, usaram os métodos mais radicais. Em Lisboa, numa década de desespero financeiro, em que se chegou a pensar em confiar Timor a uma companhia majestática segundo o modelo moçambicano, seguia-se com admiração o que os governadores obtinham, a preços low cost.

René Pélissier desvela dois modelos militares e coloniais antagónicos, em Ponape uma política colonial amorfa ou inibida, em Timor um modelo de conquista impiedoso. E fala de José Celestino da Silva, um coronel de Cavalaria, como o grande obreiro desse processo de pacificação, um governador que se tornaria “rei de Timor”, uma invejável longevidade de governação, queria ser obedecido por todos, obrigar a população a produzir café, e foi bem-sucedido. O autor dá-nos um relato desenvolvido das campanhas, uma sequência de sucesso até se chegar ao maior desastre dos portugueses, o aniquilamento da coluna do Capitão Câmara, em 1895, o autor observa que foi o maior desastre dos portugueses na Oceânia e provavelmente de todos os exércitos coloniais do Pacífico Sul antes da II Guerra Mundial: 5 oficiais e 4 sargentos decapitados, juntamento com 19 soldados brancos, indianos ou africanos, uma boa centena de moradores e um número desconhecido de auxiliares deixaram igualmente os crânios no terreno, perderam-se espingardas, três canhões, um obus e muito mais. Celestino da Silvo recompôs-se e limpou a honra, foi implacável na punição. No ano seguinte obteve-se autonomia administrativa, Lisboa decretou que Timor passaria a ser um distrito autónomo separado de Macau, embora Macau continuasse a pagar um forte subsídio a Dili, o défice orçamental timorense era catastrófico.

A Espanha envolveu-se em mais guerras, os EUA deram-lhe o golpe de misericórdia, em dado momento, Madrid vendeu o que restava dos seus arquipélagos na Oceânia aos alemães por 25 milhões de pesetas, perdera as Filipinas, Guan e as Antilhas espanholas. O novo colonizador de Ponape revelou-se tão brutal como os portugueses em Timor. No somatório destas insurreições juguladas, tanto em Ponape como em Timor, os chefes gentílicos saíram diminuídos, o sistema quase feudal das duas ilhas não voltaria a erguer-se. O método de alianças e a brutalidade na repressão foram ingredientes da colonização portuguesa, os timorenses acataram a soberania e a bandeira, ficarão do lado português quando os japoneses ocuparem Timor, em fevereiro de 1942.
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Nota:
Informação do tradutor Daniel Gouveia:
A Editora Tribuna da História/Principia pode enviar por correio todas as encomendas com 10% de desconto e oferece os portes a quem encomendar indicando que vem da parte de Daniel Gouveia.
O procedimento é o seguinte: os interessados enviam um email para principia@principia.pt a dizer que têm interesse em comprar o livro “Portugueses e Espanhóis”, na sequência da informação que receberam de Daniel Gouveia. A Principia responde enviando as informações para pagamento por transferência bancária ou por Multibanco e pedindo a morada para envio. O preço do livro será 9€ sem mais custos.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20366: Historiografia da presença portuguesa em África (187): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (3): "Racismos, Das Cruzadas ao Seculo XX", por Francisco Bethencourt (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18441: Bibliografia de uma guerra (86): “África, Quatro Ases e uma Dama”, por Fernando Farinha, Daniel Gouveia, Conde Falcão, Pedro Cunha e Maria Morais; Programa Fim do Império, Âncora Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Projeto bem esgalhado, este, imagens da guerra e da paz, da extrema tensão e violência à transbordante atitude do cuidado e registo da ternura. É só de lamentar não aparecerem imagens da guerra e da paz na Guiné onde se combateu, o mais surpreendente é que imagens não faltam. E o projeto é bem coroado com aquela dama que nos explica o porquê de uma escultura em pedra para homenagear que lá longe combateu, e que podemos venerar em Oeiras.
Um acervo de imagens onde há relicários como as fotografias de Fernando Farinha ou o constante olhar deslumbrado de Daniel Gouveia.
Um livro que vale muitíssimo a pena por isso.

Um abraço do
Mário


África, quatro ases e uma dama

Beja Santos

O título do livro, tratando-se de uma coleção que se prende com testemunhos da presença portuguesa no espaço imperial português, não deixa de ser intrigante. No introito, é referido que dos quatro ases de um baralho de cartas, dois são negros, cor fria (ou ausência de cor), “espadas” e “paus”, e podem ser relacionados com violência, guerra; os outros dois são vermelhos, cor quente, “copas” e “ouros”, podendo lembrar afetos e riqueza. Terá havido de tudo isto nessa errância portuguesa; e quando à dama, acolhe-se o testemunho de uma escultora que talhou na pedra uma homenagem ao militar português. É um livro de imagens selecionadas de diferentes títulos. Logo o ás de espadas, a figura central é o grande repórter de guerra Fernando Farinha, um nome obrigatório da guerra de Angola.

Fernando Farinha, ex-sargento miliciano do Grupo de Dragões de Angola, foi jornalista e fotojornalista em Angola e Lisboa. O ás de ouros cabe por inteiro a Daniel Gouveia, que foi alferes miliciano no Norte de Angola e que publicou nesta mesma coleção dois livros primorosos, um dos quais integra um cd com 198 fotografias. Não se admirará o leitor de ver nestas imagens o feitiço africano, a comoção muitas vezes contida no encontro de culturas, no registo da solicitude ou pelo deslumbramento da natureza. O ás de paus coube ao Coronel de Cavalaria Conde Falcão, deixa-nos fundamentalmente lembranças de Nancatári, Norte de Moçambique, com ligações a Mueda e Montepuez. E se até agora tínhamos o registo da guerra, o ás de copas é atribuído a Pedro Cunha que fotografou em Moçambique e Guiné, afetos e valores no pós-guerra, são imagens que devemos associar a países independentes. A dama de copas é a escultora Maria Morais que nos irá falar e mostrar um conjunto escultórico que homenageia os combatentes que morreram em África e fala-nos demoradamente do embondeiro.
É este, em síntese, o aliciante de “África, Quatro Ases e uma Dama”, por Fernando Farinha, Daniel Gouveia, Conde Falcão, Pedro Cunha e Maria Morais, Programa Fim do Império, Âncora Editora, 2017.

O acervo de Fernando Farinha, insista-se, fala do vendaval angolano, logo uma fotografia no rio Lifune, cenário de dramática jornada integrada na operação Viriato, da reconquista de Nambuangongo, assistimos igualmente a trabalhadores bailundos a abandonarem fazendas, registos épicos das tropas a retomar posições quando a guerrilha debandou, os grupos especiais preparados para o combate, e também os Dragões de Angola e os seus cavalos.

Daniel Gouveia tem outro registo. Aliás, basta ler o que aqui escreve a preludiar as suas sugestivas imagens: “Ideias estereotipadas eram destruídas num simples relance. Por exemplo, que os nativos eram pouco asseados. Mentira. A dada altura, transplantou-se uma população de 700 almas que estava sendo incomodada pelos grupos independentistas e forçada a apoiá-los em logística e recrutamento de jovens para futuros guerrilheiros. Foram trazidos para junto do nosso quartel, até aí deserto de população civil. As instalações militares situavam-se no alto de uma colina. No fundo do vale, 200 metros abaixo, passava um ribeiro. Pois as mulheres, todas as manhãs, faziam essa viagem de ida e volta duas vezes. A primeira, para trazer água para dar banho às crianças. Só depois disso voltavam, para ir buscar água para a comida”.

Conde Falcão entremeia viaturas nas picadas, cenas de aldeamento, somos confrontados com uma árvore enorme envolvida por planta parasita, muitas crianças. Com Pedro Cunha temos testemunhos do quotidiano, é de uma enorme beleza a imagem que nos deixa de pescadores no rio Cacheu.

Monumento 'Presença do Soldado Português em África' - inaugurado em 21 de Junho de 1997 . Localizado no Jardim do Ultramar, em Oeiras.
Foto: Com a devida vénia a Maria Morais

E chegamos a Maria Morais que nos conta com enorme delicadeza a evolução do seu projeto, a sua matéria-prima foram três grandes blocos de pedra semi-rijo que vieram de uma pedreira de Porto Mós. Trabalho de fôlego, como ela descreve: “O material eleito foi a pedra; cinzelar a pedra requer, para além de força de braços, a utilização de máquinas rebarbadoras pesadas, martelos pneumáticos, retificadoras, freses diamantadas, escopros e macetas, um local sujeito ao ruído provado pelo rasgo desferido na pedra pelo movimento mecânico, assim como requeria igualmente um local arejado que permitisse evacuar as constantes de nuvens de pó que me cobriram”.
E quanto ao resultado, a escultura que hoje podemos contemplar em Oeiras, dá uma explicação: “Procurei transmutar para a escultura em pedra as memórias de África, através das minhas memórias. No fundo, este conjunto escultórico é uma colagem tridimensional dessas memórias perpetuadas naquele material nobre – a pedra. O embondeiro aparece numa atitude tutelar, pela sua grandeza, magnificência. As pedras verticais e oblíquas representam capim, tantas vezes trilhado pelos nossos homens e quem sabe se, por entre esse capim, não terá ficado para sempre o murmúrio do adeus sem regresso de muitos deles”.
Espraia-se pelo assombro com que olha o embondeiro, conhecido pelos nomes de adansónia, calabaceira, bombácea, imbondeiro e mais, e dá-nos informações úteis, vale a pena registar algumas: “Dependendo da sua idade, esta árvore pode atingir entre 5 a 25/30 metros de altura; o seu diâmetro pode alcançar até 7/11 metros. No Zimbabué existe um embondeiro cujo diâmetro corresponde ao abraço estendido de 30 homens. O tronco é oco e resistente ao fogo. Nos meses de maior pluviosidade serve de reservatório de água. Algumas espécies podem armazenar até 120 mil litros de água, constituindo assim uma fonte de subsistência rural para as povoações limítrofes. Abriga inúmeros seres vivos nos buracos dos seus longos e esguios troncos, mas é o morcego que poliniza a sua única flor anual. Uma flor de rara beleza formal, grande e pesada, com vistosos pedúnculos, pétalas brancas sedosas e com estames aglomerados esfericamente, que nas extremidades terminam num pompom de cor púrpura”.

Grupos especiais em operação

O engenho das crianças não tem limites

Netinha conduzindo a sua avó cega

O Programa Fim do Império foi coordenado até há pouco tempo pelo Coronel Manuel Barão da Cunha e teve a ele associado a Liga dos Combatentes, a Comissão Portuguesa de História Militar e a Câmara Municipal de Oeiras.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18271: Bibliografia de uma guerra (85): “O céu não pode esperar”, por António Brito; Sextante Editora, 2009 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17998: Agenda cultural (609): Tertúlia do Programa Fim do Império, 1.º Encontro no Clube do Alto da Barra, dia 24 de Novembro, 6.ª feira, às 15h00 (Manuel Barão da Cunha)

Tertúlia do Programa Fim do Império
Clube do Alto da Barra

1.º Encontro: dia 24 de Novembro, 6.ª feira, 15h00, no salão do Clube

Integrando apresentação de livros, com participação de autores:
da coleção Fim do Império, da autoria do editor Daniel Gouveia, frequentador do Clube, alferes miliciano em Angola, elemento do Quinteto Académico, 5.º/Arcanjos e bons demónios, reedição, de DG Edições, e 19.º/Cartas do Mato, de Âncora Editora (cada exemplar custa 12€, mas quem comprar os dois só paga 20€, sendo 20% para o CAB);



e “Caminhando pelas ilhas açorianas”, dos sócios eng.ª química Maria Antonieta e farmacêutico dr. Eduardo Barata (combatente em Angola, professor da Academia Sénior de Oeiras).


O Clube do Alto da Barra (CAB) fica situado no complexo urbanístico Alto da Barra, na extremidade mais próxima de Carcavelos e da universidade em construção, em frente à Feitoria do Colégio Militar e praia da Torre. 
O complexo é constituído por cinco blocos, dois mais próximos da avenida marginal (B e E) e três na retaguarda (A, C e D). 
O CAB tem a entrada próximo do bloco D. Entra-se no complexo junto ao bloco A, após rotunda debaixo da Marginal, para quem vem de Cascais, e próximo do INATEL; ou junto ao bloco C, após saída da Marginal, para quem vem de Lisboa e após semáforos.

Informação encaminhada, como sempre, pelo Coronel de Cav Ref, Manuel Barão da Cunha 
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17994: Agenda cultural (608): Uma grande festa de amor, amizade e camaradagem, a do lançamento do livro "A Caminho de Viseu", do Rui Alexandrino Ferreira, nas instalações do RI 14, Viseu, em 4 do corrente - Parte II

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17688: Notas de leitura (990): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

"Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”
Autor: Daniel Gouveia - Âncora Editora, 2015


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,
Daniel Gouveia foi vasculhar a correspondência que enviou à sua dama e deu-lhe forma de uma soberba viagem humana, em pontos do Norte de Angola. Não enfatiza os tiroteios das emboscadas, o pavor dos fornilhos, as provações de imensas patrulhas, por todo aquele território imenso. Dá-nos a revelação, sem uma ponta de jactância, de que esteve ali a aprender e a cuidar em consonância com as suas possibilidades.
Em vez do tumulto ou da crispação, a sua narrativa é bonacheirona, todo o seu olhar é amplo por onde aquela terra o permite, pode sufragar as pitadas teóricas que levava de etnologia e etnografia.
Este livro é um testemunho de crescimento, onde não faltam fotografias prodigiosas, imagens que vão ao encontro do texto, são o rosto de todo esse processo de aprendizagem que constituiu um privilégio para muitos combatentes, o saber de experiência feito.

Um abraço do
Mário


Cartas do mato, por Daniel Gouveia (3)

Beja Santos

De Daniel Gouveia já aqui se saudou o seu notável “Arcanjos e Bons Demónios – Crónicas da Guerra de África 1961-75”, DG Edições, 3.ª edição, 2011. Em abono dessa sua preciosa narrativa, vamos continuar a dar atenção a “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, Âncora Editora, 2015.

O que distingue este escritor dos seus pares, é o permanente estado de espírito, o sentido da observação, a vontade de aprender, a capacidade de se deslumbrar, de com pouco fazer muito, estar atento aos problemas da sua gente e das populações. Já está em Quiximba desde Julho de 1968, em Maio do ano seguinte inicia-se a Operação Robusta, que deslocará quatro mil homens e mulheres, sustentáculo de numerosos grupos do MPLA. Vamos ficar a dever a este escritor magníficos parágrafos, é grande a expectativa que reina no povoado, desabafa na carta para a sua dama:
“Para mim a coisa terá ainda mais interesse: desiludido pelo contacto com populações que os padres, os chefes de posto, o transístor e a tropa se encarregaram de deteriorar, do ponto de vista etnográfico, vou voltar a ter matéria de estudo. Sabendo como as populações africanas são ligadas à terra onde nasceram, sabendo como em tantos pontos se fracionam e individualizam de região para região, vai-se assistir ao transplante de um grupo étnico para uma região que não é sua, onde não tem, onde a língua é diferente, como diferentes são a paisagem, o clima, os recursos. Acrescentam-se problemas políticos. Essas famílias vêm com uma acusação às costas. Serão controladas militarmente, num regime de semi-internamento, de prisão sem grades”.

Aquilo que ele chama deportação em massa acontece dias depois. “O que a administração civil tinha preparado para os receber revelou-se insuficiente. A maior parte não coube nos abrigos rudimentares de capim. Ficaram no chão, ao relento, e de manhã as camisas dos que nem uma manta tinham podido trazer colavam-se-lhes ao corpo, completamente encharcadas do cacimbo”. Começa a adaptação, quem chega vai preparando a comida, recebeu panelas, pratos, talheres, púcaros, enxadas e duas catanas. Vai nascer vida: “As famílias ocupam os talhões que a máquina niveladora lhes dividiu e estão a construir casa própria, de pau-a-pique e capim, antes da definitiva, de adobes. Vêem-se em cada talhão uma pequena cabana de capim, um monte de imbambas (tarecos) onde não falta, às vezes, uma bicicleta ferrugenta ou uma máquina de costura, e a família propriamente dita: o pai a afiar uma catana para cortar mais paus e mais capim, a mãe a regressar do rio com uma panela de água à cabeça, um filho nas costas e outro na barriga, os miúdos de roda do pilo, a pilar mandioca no jeito caraterístico e ancestral de espetar o rabo e encurvar os rins quando o pilão vem abaixo”. Nosso alferes faz perguntas, medita nas respostas, procura perscrutar o que virá mais adiante. A sanzala vai crescendo, as operações continuam, não se vive só com a preocupação de realojar as 1140 pessoas da dita “Operação Robusta”.

O novo destino da Unidade do nosso alferes é Marimba, três casas de comerciantes brancos, a Casa da Administração, o Armazém do Algodão (empresa COTONANG), a casa do guarda do armazém (branco), o posto da Junta Autónoma das Estradas e o Quartel. A missão da tropa é estar, patrulhar, cumprimentar o soba, nosso alferes irá comandar o destacamento de Mangando, a 50 km de Marimba. Por lá irá aparecer o padre Campos, a capelanar. Não se perde a ocasião para descrever uma brejeirice, contada pelo próprio padre Campos:  
“Ouvia em confissão uma mulher. A certa altura, o filho que ela trazia às costas aparece a espreitar, por trás da cabeça dela. Encara-o com o padre, estranha-lhe o claro das feições e começa num berreiro. A mãe, sem deixar de contar os seus pecados, introduz a mão no decote, saca uma bem fornecida e avantajada mama, passa-a por debaixo do braço, mete o mamilo na boca do miúdo, que se calou depois de uns grunhidos de satisfação, continuando a confissão, imperturbável”.
A guerra de nosso alferes é agora diferente: é a guerra de informação, ambiente de fronteira, diplomacia a nível internacional, troca de salamaleques com os sobas e as rainhas nativas. É nestes termos que se pode também avaliar como se distinguiam os três teatros de operações, o que ele vai dizer era impensável na Guiné:  
“Militarmente, comando uma área correspondente a metade do Algarve, com este quartel, onde está apenas o meu pelotão, e mais outro mesmo sobre a fronteira, na margem de cá do rio Cuango, num sítio chamado Tembo Aluma. Do outro lado, uma povoação no Congo-Kinshasa, da qual podemos ver as sanzalas. Um pouco mais a Sul, vê-se o quartel da UPA de Quizamba. O quartel do Tembo é ocupado por dois pelotões de tropa indígena (GE), constituindo o Grupo Especial n.º 205. São armados por nós, mais ou menos mercenários, absolutamente fiéis na medida em que têm a cabeça a prémio do lado de lá da fronteira”.

Ainda irá a Marimba, mas Mangando marcou-o profundamente, a sua capacidade de observar e ironizar continua num ponto elevado, um exemplo:
“O ‘pretoguês’ ainda é mais atrasado que o do Tomboco ou Quiximba. Nas sanzalas ninguém fala senão mahungo ou quimbundo, e os que se abalançam a articular a língua de Camões dão completos espetáculos. Habituados a que se fale com eles na segunda pessoa, respondem do mesmo modo, tratando por tu e tudo: 
- Noss’Arfer vais descurpar, mas eu tens que ir embora. 
O alferes Alhinho, perguntando ao seu lavadeiro porque é que a roupa não estava pronta, visto tê-la entregado no dia anterior, ouviu a seguinte resposta: 
- Dormiste no Omo, noss’Arfer… 
Queria ele dizer que a roupa ficara, de um dia para o outro, mergulhada no detergente OMO”.

Ficou dito atrás que comanda GE. Dedica-lhes a seguinte observação:  
“É curiosa a sensação, quando lá vou e recebo as honras militares devidas, de que comando um bando de assassinos. Mas que hei de fazer? Meteram-mos na mão. Não os posso modificar na sua essência étnica, velha de séculos: um grupo de aguerridos mahungos, que ainda limam os dentes em bico para atemorizar o adversário, a quem o meu Governo deu instrução militar, armas e uniformes, é certo, mas mahungos de cabeça aos pés, para quem a guerra, quanto mais cruel, mais digna é. São ótimos soldados. Esforçados, obedientes, de uma resistência inaudita, qualquer deles excelente pisteiro”.
Vai dando notícias do estado dos movimentos de libertação, naquela época o vento soprava de feição para o lado português, naquela região, as autoridades congolesas estavam dispostas a impedir a presença da UPA, que não dava mostras de largar a fronteira. É impossível ler estes troços de cartas sentindo tédio ou procurar analogias com o que sobre a guerra se escreveu, o sulco que se gravará nas nossas memórias é de uma prosa bonacheirona, não há travos de azedume, calhandrice, maledicência. Nosso alferes procurou sempre tirar bom partido dos processos de aculturação, a seu favor e dos outros, tratando com dignidade até as confusões do uso atrabiliária da língua portuguesa, e assim nos despedimos saudando a obra e recomendando-a de forma incondicional:
“Ao pôr do sol, o João, lavadeiro da messe e moço de recados, pede licença para entrar no quarto dos alferes, mas fica à porta respeitoso. 
- Que é que queres? 
- Venho buscar o Pedro Marques. 
- Quem? 
- O Pedro Marques, noss’Arfer… 
- Mas não há cá ninguém com esse nome… 
- Esse Pedro Marques aí, noss’Arfer… P’ra acender… 
E apontava para o candeeiro PETROMAX que estava na mesa-de-cabeceira”.
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Nota do editor

Postes da série de:

14 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17669: Notas de leitura (988): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17681: Notas de leitura (989): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17681: Notas de leitura (989): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

"Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”
Autor: Daniel Gouveia - Âncora Editora, 2015


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,
É a escrita de um septuagenário experimentado, os seus livros de guerra distinguem-se dos demais por revelarem um ser curioso, deslumbrado com a Natureza, vai aprendendo a olhar e a interessar-se pelo Outro, aquela guerra foi a sua matéria-prima para aprender a crescer. Não está desatento ao fator bélico, não é mordaz ou cínico ou calhandreiro ou está tomado por acessos de azedume, não, é medularmente construtivo, divertido e convivente. É esse o vigor que perpassa pelas cartas que ele selecionou e que enviou à sua dama. No meio de uma chuva imensa, conta entusiasmado que presenciara um espetáculo magnífico, talvez uma hora antes de a clareira se alargar​ e​ formigueiros inteiros muda​v​ am para os sítios altos, aranhas passavam carregando sob as patas um saco com os ovos, gafanhotos, lagartas buscavam lugar seguro contra a subida das águas. E estava sempre a aprender com o guia Teixeira que lhe dizia que ia chover muito e apontava para a bicharada em fuga.
Um homem que escreve assim tem o coração pacífico, aprende a superar os antolhos com uma perna às costas.

Um abraço do
Mário


Cartas do mato, por Daniel Gouveia (2)

Beja Santos

De Daniel Gouveia já aqui se saudou o seu notável “Arcanjos e Bons Demónios – Crónicas da Guerra de África”, DG Edições, 3.ª edição, 2011. Em abono dessa sua preciosa narrativa, vamos agora dar atenção a “Cartas do Mato – Correspondência Pacífica de Guerra”, Âncora Editora, 2015. Por uso e costume, o centro das nossas atenções vai para o que se escreve sobre a guerra da Guiné, mas faz-se sempre o reconhecimento de que só ganhamos em comparar o que é comparável em toda a literatura da guerra; em comparar e distinguir, pois claro, cada teatro tem as suas especificidades, houve diferentes hostilidades. Mas ao comparar e distinguir também elevamos o nosso olhar para um patamar de princípios, de ética, de fusão da camaradagem: os valores e os sentimentos universais, aquilo que é transversal no combatente, seja a descoberta dos novos ambientes, as formas de adaptação, o quinhão da solidariedade, as angústias e os medos, a repartição dos farnéis, o combate contra a solidão, e o medo das picadas, a angústia das esperas, o caminhar dentro das florestas húmidas, a reação à emboscada; e a caraterização dos protagonistas, o cozinheiro, o padre, o apontador de bazuca, o oficial e o sargento, a ansiedade na chegada do correio.

Os meses passam, Daniel Gouveia está em Quiximba, anda à procura de soluções práticas, uma delas passa pelo uso do apito: “Comprei um apito de árbitro, para evitar berrar ordens, sobretudo nas paradas dos quartéis alheios, quando a tropa anda dispersa a falar com os conterrâneos. Tenho um código de apitadelas e aquilo funciona como um relógio, com uma eficácia de que nem eu suspeitava. Uma apitadela curta e duas longas e tenho toda a minha gente a correr para os Unimogs, estejam na cantina, na caserna ou nas latrinas”. Vai encontrando soluções expeditas para evitar acidentes e simultaneamente ter as armas prontas as funcionar. Sem descurar a guerra e a logística, é um alferes profundamente atento a brejeirices e dá conta de divertidos entremeses culturais, caso de um soldado cuja mulher tinha ido a França e lhe mandara um postal ilustrado, ele queria saber o conteúdo:
“Vendredi = Sexta-feira
Ma cheri marrie
je ofere-ça a mon marrie que bocú eme vu, toutjours, e jame múa no 
pa te obilie 
je te envie compliments escuzemuá 
bocú
rvoá macheri 
mom bena mó”
(Com boa vontade, poderia traduzir-se assim: Sexta-feira/Meu querido marido/ofereço isto ao meu marido que amo muito, sempre e jamais te esqueço/mando-te cumprimentos, desculpa/muito/adeus meu querido/meu bem amor). Está bem integrado, partilha as festas dos seus homens, ridiculariza o empolamento dado pelos relatórios oficiais, ele encontrara ninharias e a PIDE destacava que a unidade “apreendera grande quantidade de material ao inimigo, numa operação de limpeza a umas grutas aonde se encontraram vestígios de permanência de um numeroso grupo. Nessa operação foram recuperadas 10 enxadas indígenas, dez metropolitanas, dinheiro e documentos ao inimigo”. E comenta, ladino: “Tudo aldrabice. As enxadas eram três, o dinheiro era uma moeda de cinquenta centavos e os documentos eram uma ficha de recenseamento local e uma guia para consulta no hospital de São Salvador”.

São deliciosos os seus comentários com o guia Teixeira, andavam em patrulha e detetaram o rasto de uma manada de burros-do-mato:
“- São poucos. Trazem cinco ou seis crias. O chefe é este – aponta uma pegada – e é muito velho. Aqui escorregou um. Aqui uma cria correu para alcançar a mãe.
Já vou percebendo alguma coisa, quando os sinais são nítidos. A vista vai-se treinando. Às vezes encontro um rasto e chamo o Teixeira para interpretar. Outras, arrisco eu a interpretação e ele vai corrigindo:
- Teixeira, olha, pacaça do ontem.
- Do hoje, meu alferes…
- Cabra do mato, da água para aquela mata, parando de vez em quando a olhar para trás, porque o vento estava contra e só trazia o cheiro do que estivesse à frente.
- Não, meu alferes. Olhava para trás porque desconfiava da onça no rasto.
- Mas não há pegadas de onça…
- Cabra do mato passou sobre esta lama, marcou as patas dela. A onça passou ao lado, no chão seco, não marcou.
- Então como é que sabes que era onça?
- Este arbusto tem pelo de onça. Vê, meu alferes?
- Vejo…
É assim que vou fazendo a minha aprendizagem de pisteiro”.

Vai de férias e volta a Quiximba, dá notícias da rotina, da chegada do cinema ao refeitório, dos autos, das colunas, faz um comentário duríssimo aos camionistas: “São uma raça especial de gente, rude e grosseira, o rebotalho humano que já não tem onde cair, nem sequer numa terra como Angola, onde qualquer paspalho subsiste, e agarram-se à última das últimas tábuas de salvação: guiar camiões pelas zonas de guerra, estabelecendo contacto entre as povoações e os centros urbanos e levando os abastecimentos à tropa. Por um lado, são admiráveis, pelo que suportam, por aquilo a que se sujeitam a troco de 6.000$00 por mês, melhor dizendo a 1$20 por quilómetro. Por outro lado, já pouco têm a perder e gente desta só se recruta nas camadas marginais da sociedade. Donde, a violência de atitudes, a falta de educação e até hostilidade em relação ao resto das pessoas”.

Inaugura-se a capela de Quiximba, o padre Campos, antes de benzer a capela, dirige-se às tropas nestes termos: neste momento, não chegou ainda às unidades o modelo oficial em português, da bênção, porque agora só se faz em português, de maneira que vai ser em latim, vocês não vão perceber nada, mas também é só cinco minutos…

Aprende a dar injeções, nem aqui dá tréguas à brejeirice: “Cheguei a combinar com o enfermeiro Bessa o truque de, no último momento, ele passar-me a agulha e ser eu a espetá-la sem o paciente saber. Mas a notícia espalhou-se em menos de um fósforo e bastava eu estar na enfermaria à hora dos tratamentos, para logo desaparecerem os doentes que tinham de levar injeções".

Estamos em Maio vão chegar 350 famílias que viviam no Quanza Norte, virão fazer sanzala para o Quiximba. Chama-se a “Operação Robusta”. É um dos grandes textos de Daniel Gouveia, como veremos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17669: Notas de leitura (988): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17669: Notas de leitura (988): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

"Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”
Autor: Daniel Gouveia - Âncora Editora, 2015



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,
Este alferes que cumpriu o serviço militar no Norte de Angola não é, no blogue, um forasteiro. Já aqui se apreciou a sua gema literária "Arcanjos e Bons Demónios - Crónicas da Guerra de África", ficou uma enorme vontade de ler mais.
Entende-se a experiência e os conhecimentos que são vazados nesta correspondência, era aluno de Românicas, foi pianista no Quinteto Académico, multiplica-se em atividades, até a musicologia do fado não lhe escapa. Faz jus ao título da obra: correspondência pacífica, porque é um homem de cuidados, há no que escreve a curiosidade de um antropólogo, preza sem prosápias cuidados que até se estendem à enfermagem.
Este livro é não só um belo regresso a narrativas onde não há amargor, desquites ou maledicências. Vale a pena continuar. Atenção, vejam com cuidado a alegria daquela malta do nosso tempo a exibir o correio recebido, nunca vi fotografia igual.

Um abraço do
Mário


Cartas do mato, por Daniel Gouveia (1)

Beja Santos

De Daniel Gouveia já aqui se saudou o seu notável “Arcanjos e Bons Demónios – Crónicas da Guerra de África”, DG Edições, 3.ª edição, 2011. Em abono dessa sua preciosa narrativa, vamos agora dar atenção a “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, Âncora Editora, 2015. Por uso e costume, o centro das nossas atenções vai para o que se escreve sobre a guerra da Guiné, mas faz-se sempre o reconhecimento de que só ganhamos em comparar o que é comparável em toda a literatura da guerra; em comparar e distinguir, pois claro, cada teatro tem as suas especificidades, houve diferentes hostilidades. Mas ao comparar e distinguir também elevamos o nosso olhar para um patamar de princípios, de ética, de fusão da camaradagem: os valores e os sentimentos universais, aquilo que é transversal no combatente, seja a descoberta dos novos ambientes, as formas de adaptação, o quinhão da solidariedade, as angústias e os medos, a repartição dos farnéis, o combate contra a solidão, e o medo das picadas, a angústia das esperas, o caminhar dentro das florestas húmidas, a reação à emboscada; e a caraterização dos protagonistas, o cozinheiro, o padre, o apontador de bazuca, o oficial e o sargento, a ansiedade na chegada do correio.

Todos os escritores são diferentes, e dentro deste gozo da personalidade Daniel Gouveia tem opções claras, mesmo como agora em que se socorre de estratos de correspondência: vê à sua volta e transmite apreciações construtivas, é cuidador, tem bom ouvido para o chasquear dos outros, adapta-se perguntando, está mortinho por saber, daí a sua admiração pelo pisteiro de Tomboco, localiza as viagens, dá nota das chegadas, não esconde a satisfação pela pilhéria, nunca o iremos ver alcandorado em triunfos militares, na sua narrativa é impensável a pesporrência e nunca descuida qualquer comentário crítico, a propósito. Tudo começa no Grafanil (a sua comissão militar é em Angola, naquele amplo território denominado Zaire, acima de Ambrizete e não muito longe de S. Salvador. Foi em rendição individual, conheceu o seu pelotão a bordo do Vera Cruz e escreve:
“… Conheci, finalmente, o meu pelotão! É constituído, na sua maioria, por transmontanos, rijos como penedos, rudes e simples. São mais ou menos pequenitos de estatura, mas que peitaças!”.

Pois no Grafanil já há hinos e quadras, segue-se para Tomboco, o pisteiro Teixeira é uma fonte de sabedoria para conhecer a selva. Informa quem ama que lhe vai falar do pingómetro, um tal aparelho que serve para medir pingos, foi inventado pelo Capelão, o Padre Campos, havia o grande problema de saber quando é que o depósito de água estava vazio. Mostra os desenhos da invenção do padre e escreve:
“É fácil, como se vê: se está cheio, a pedra está em baixo! Se o calhau está próximo da roldana, é bom ir ligando o motor, pois já ninguém se atreve a meter-se no duche. A medida-padrão do pingómetro é o furco, uma medida regional da terra do capelão que equivale à distância entre o polegar e o indicar no máximo do seu afastamento”. 
Assim tornava-se compreensível dizer que faltam “três furcos para acabar a água” ou que “daqui a dois furcos já há água nos quartos”. As suas pitadas de humor fazem ressaltar o seu espírito faceto, a estampada ingenuidade de quem ouve e não sabe pôr em palavras rigorosas, é diversão sem humilhação:
“… Em certas circunstâncias usa-se o very-light, um artefacto pirotécnico de luz verde, vermelha ou branca que fica a pairar no céu por uns momentos, iluminando ou dando sinal para qualquer ação. Claro que os soldados recebem instrução sobre isso. Mas ontem verificou-se que não lhe ensinamos devidamente a palavra.
Um soldado estava de sentinela, à noite, vê uma estrela cadente particularmente intensa. Deixou um camarada no posto e veio a correr, muito aflito, avisar os oficiais: 
- Meu Capitão, meu Capitão! Vi agora mesmo um pirilaipe! Ainda gozámos, pois o capitão insistiu: 
- O que é que tu viste? - Um pirilaipe meu Capitão”.

Meses depois está no Lufico, a 80 Km de Tomboco, e escreve deslumbrado:
“… Uma coisa aqui é soberba: a paisagem. Vassalo, como sou, da Natureza, encontrei neste quartel perdido do Norte de Angola todo o esplendor africano que não poderia encontrar em todos os filmes sobre a selva, juntos. O acidentado do terreno coloca toda esta exuberância vegetal em cenários sucessivos de colinas e vales, com maciços de palmeiras a bordejar os rios turbulentos de cascatas e rápidos. Os cabeços, de vegetação mais rala, estão, no entanto, povoados de monumentais embondeiros cujos ramos, quase nus, se organizam numa incomparável filigrana quando o sol, feito enorme bola de fogo, se lhes põe por detrás. Colocaria aqui, sem hesitar, o presépio do Menino Jesus de raça negra”. 

Segue para Zau-Évua, a 90 Km de Tomboco, houvera uma emboscada em Quibala, 100 Km ao Sul de Zau-Évua, com 7 mortos e 11 feridos. Novo comentário, tal a embriaguez da paisagem: 
“A toda a volta do quartel é uma interminável planície, verde-acastanhada do capim a ficar seco, onde se implantam, como ilhas, alguns morros colossais e dispersos, só rocha, dos quais um grupo de 9, cujas cristas lembram o dorso de elefantes, deu o nome ao local”.

A 9 de Junho está em S. Salvador do Congo, a capital do distrito do Zaire. A sua descrição mostra o seu permanente olhar divertido, espraia-se na apresentação do espaço e situações:
“Ainda existe, morando na cidade, em casa construída pelo Governo e com uma pensão vitalícia, a última rainha do Congo, D. Isabel, uma negra de meia-idade, afável e senhora do seu papel, que não come comida se não cozinhada por si, desde que o marido, o rei do Congo, morreu envenenado há alguns anos.
A cidade – se é que, em tamanho, tal se lhe pode chamar – é formada por ‘parte branca’ e ‘parte preta’. A parte branca tem uma vintena de casas civis, dois quartéis, edifícios da administração, arame-farpado e postos de vigia a toda a volta. A pista de aviação atravessa-a de meio a meio, já que assenta no que deveria ter sido uma das avenidas. Assim, há ruas que desembocam diretamente na pista, há lojas cuja montra e entrada dão para ela”.

Em Julho estão em Quiximba e comenta:
“O Quiximba é muito bonito, mas também é muito frio. Estamos no cacimbo. Autêntico Inverno. Anda-se de mãos nos bolsos, ponta do nariz gelada, camisola de gola alta, meias de lã. À noite, quatro mantas e pijama de flanela, com camisola interior e meias calçadas para não ter de inventar uma botija”.
E começa a poetar, Quiximba vai dar muito que falar.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17663: Notas de leitura (987): “Portugal e o Império Africano - Séculos XIX e XX”, coordenação de Valentim Alexandre, Edições Colibri, 2013 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17406: Notas de leitura (962): “Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011 (3) (Mário Beja Santos)




1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Por vezes, perseguimos um livro, infatigavelmente, dispomos de informação de que há para ali filigrana. Outras vezes, acontece que nos oferecem um livro e ele fica para ali, à espera de uma oportunidade de ser desbastado. Foi o que me aconteceu com este extraordinário "Arcanjos e Bons Demónios", uma leitura obrigatória. Neste tempo que se fala a todo o instante em resiliência, assertividade, solidariedade, na ética do cuidado, esta estupenda obra de Daniel Gouveia é um encadeado de descobertas: do homem em si, perante aquela turbamulta vegetal, aquele enredado de usos e costumes, a construção da amizade, a proximidade da paz naquela tantã da guerra.
Memórias de um septuagenário sem rancores e azedumes, fascinando-se e fascinando-nos, como nos mostra no último episódio, com o milagre da vida a nascer.
Por favor, não percam este livro.

Um abraço do
Mário


Arcanjos e bons demónios: histórias de cuidado, de fraternidade e horror (3)

Beja Santos

“Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011, é um livro notável, seja qual for o prisma com que encararmos estas crónicas em que um alferes descobre um continente, novas dimensões da solicitude, impensáveis usos e costumes, mas também o medo, a camaradagem e o amor ao próximo. Digamos que são memórias a partir da senectude de alguém que se temperou em múltiplos ofícios, desde velejador oceânico, passando por gestor comercial à tradução edição de livros. Percebe-se que houve uma laboriosa congeminação para ter chegado a este documento ímpar. É timbre da melhor literatura de guerra pôr o homem perante os seus desafios, por caminhos em que se vê que ele está a crescer e que pela vida fora nada superará o que ali aconteceu, de armas na mão ou a ajudar os outros. Daniel Gouveia concebe as suas crónicas naquele saboroso estilo da narrativa das mil e uma noites, do tipo na sequência do capítulo anterior até chegarmos a um derradeiro episódio que nos deixa com vontade de saber mais.

É um bom observador, vejamos como ele descreve os transportadores do mato: “Eram desabridos nos gestos e grossos de aspeto. Grandes barrigas, fraldas da camisa de fora, palito ao canto da boca. Camionistas. Quase todos em segunda vida, que a primeira fora interrompida por um qualquer tropeço, em fêmea ou em artigo da Lei, compelindo-os a manterem-se longe da sociedade. Descarregavam a rudeza no ajudante, invariavelmente negro, com quem compartilhavam a cabina num mutismo quilométrico (preto era para trabalhar, não para conversar), dias e dias na picada, das grandes cidades aos destinos sertanejos”.
Noutro parágrafo, dilucida-se o que parece um contrassenso, mas não é: "África tropical e abrasadora! Quem disse tamanha mentira não experimentou, de certeza, uma época de cacimbo no planalto. Por causa desse lugar comum, agora as famílias não acreditavam nas cartas que referiam rondas feitas de capote e luvas, quartos de sentinela a bater com os pés no chão e de mãos nos bolsos. Havia quem improvisasse um garruço com uma toalha ou a rede mosquiteira, por baixo do quico, a tapar as orelhas e a aconchegar o pescoço. A névoa gelada corria pela madrugada, em gotinhas que se agarravam aos pelos da cara, ao cano da espingarda, pingavam do nariz”.

A descrição do “Alfacinha” é antológica, é para mim inconcebível que uma futura antologia com as melhores páginas da literatura da guerra não o inclua: “Filho do Casal Ventoso, sarralhâro-mecânico de profissão, arrastava as sílabas, o andar e, ocasionalmente, as mãos por cima do que não era seu. Esse pecadilho valera-lhe algum cadastro anterior ao serviço militar e, depois de mobilizado, o desterro para a selva. Inicialmente colocado na guarnição da cidade grande, aí se bandeara com uma quadrilha de outros camaradas de armas e de ferramentas, especializada em assaltos a ourivesarias. O tribunal militar brindou-o com uma pena relativamente leve mas, à cautela, transferiu-o para longe de montras (…) Usava uns óculos escuros à piloto comercial, oferta de ‘uma gaja da TAP que o gramava’. Por baixo do uniforme, um Cristo crucificado, ao dependuro de grosso cordão de ouro, fazia rondas por entre os cabelos do peito (…) Maravilhou todos quando se encravou a fechadura da caixa lateral de uma Berliet, onde se guardava a ferramenta. Não havia chave que demovesse a lingueta do bloqueio em que se obstinava. O Alfacinha andava por ali, pediu licença para tentar, rodou o que a chave consentia, encostou o ouvido à caixa dando à chave. Levantando-se, pediu, solene: - Um momentinho só… Foi à caserna, voltou com qualquer coisa escondida na mão, desprezou a chave, mandou o pessoal arredar-se. De novo acocorado sobre a caixa, deu uns trejeitos de pulso, um soco na tampa e zás, a caixa abriu-se”. Tudo vai correr mal a este Alfacinha, envolveu-se em mais um assalto a uma ourivesaria, foi descoberto por causa de um botão de camisa, imagine-se.

É um livro esplêndido, caleidoscópico, onde não falta, em doses comedidas, o terror e o horror, caso dos Grupos Especiais, autóctones vestidos de camuflado com os dentes incisivos limados em V invertido: “Tribos do mais recôndito interior, onde o pretexto da guerra se sobrepunha ao pormenor de contra quem a fazer, nada sabiam de política, nem de independência – sempre tinham sido independentes e continuavam a ser –, nem de exploração da mão-de-obra indígena. O branco tinha ali chegado em pouquíssima quantidade e quase só para caçar ou recolher diamantes. Viviam com as famílias em aldeias fortificadas, cumprindo o serviço de uma forma muito agradável, em que o quartel e o lar se misturavam. A principal missão era patrulhar a fronteira, descobrir trilhos de infiltração, movimentos inimigos”.

Houvera uma fuga de dois ex-guerrilheiros, um grupo especial foi no seu encalço. Eis a descrição do depois: “Quando os carros chegaram, o comandante da aldeia mandou buscar os prisioneiros. Aquilo que saiu de uma das casas foram dois farrapos humanos, magríssimos, quase nus, de mãos atadas à frente, arrastando passos curtos e denunciadores do padecimento que o simples andar provocava. A tortura sofrida às mãos dos captores estava patente, numa extensão que não poupara nenhuma parte do corpo. A pele castanha tinha largas zonas rosa-vivo, de epiderme arrancada a pancadas sabia-se lá de quê. As orelhas tinham parcialmente desaparecido. De um e de outro lado da cara pendia o que delas restava, em formas irregulares, de mistura com pastas de sangue seco. As cabeças estavam assimétricas. Quando os capturados tentaram ver a que nova situação eram expostos, levantaram os olhos tumefactos e piscos para a tropa com quem tinham convivido em tão boa harmonia, voltando a pousá-los no chão”.

É impossível suster a leitura, salta-se de capítulo para capítulo e apetece regressar ao princípio. Não querendo ser abusivo, está ali a guerra toda, com um capelão caçador, as abelhas mortais, um médico espantoso no zelo e na deferência com os seus doentes e o nosso alferes a meter uma velhota com um dedo escavacado num avião.

É no derradeiro capítulo que temos uma descrição a que se pode chamar uma obra-prima absoluta, uma parturiente aos gritos com um filho atravessado. Enfermeiro e alferes travam-se de argumentos rotundos:  
“Olhando-se para a barriga da mulher, via-se que a criança estava atravessada, nunca em posição de ser expulsa. A esperança começou a diminuir. O enfermeiro alvitrou uma cesariana. 
- Você está maluco! Ninguém aqui tem competência para isso. 
- Então, meu alferes: é só abrir, tirar a criança, fechar com costuras em vários planos e pronto. 
- E se corre mal? Se é preciso uma transfusão? 
- Meu alferes, assim morre-nos a mulher nas mãos. 
- E você já alguma vez fez uma cesariana? Se fizer, o mais certo é a mulher morrer na mesma. 
- Sempre se safava a criança… 
- E o que é que o marido vai pensar disso, quando vir a mulher toda esquartejada? 
- A gente feche-a bem fechadinha. Dizemos que morreu e só depois é que a abrimos para sacar o filho. 
- Ouça lá: e se, por acaso, se vier a saber que um enfermeiro que era trolha na vida civil e um alferes com estudos de letras mandaram uma mulher para o galheiro com uma cesariana, o que é que acha que acontece?”.

Lá vai a desgraçada de jipe, à noite, a caminho do hospital, o alferes fica martirizado com a única solução que encontrou. Duas horas depois é acordado, quando chega à porta de armas ouve-se um choro de um recém-nascido. Pode não ter sido milagre, mas que houve um milagre da vida houve: “O condutor do jipe, de conluio com o enfermeiro, tinha resolvido acelerar para ver se a preta morria mais depressa. Quase por piedade. Para lhe acabar com o sofrimento. Secretamente, para não terem de fazer a viagem toda. Só que o jipe, lançado pela picada, voou a certa altura e aterrou uns metros adiante. Com a violência do embate, uma das molas da frente partiu-se. A negra deu um grito interminável. O enfermeiro voltou-se e apontou-lhe a lanterna ao rosto. Baixou o foco da lanterna para a barriga e reparou que tinha mudado de feitio. O vulto da criança, de atravessado, tinha passado a empinado para a frente, como devia ser”.

E aqueles militares rodeiam o enfermeiro que fazia sair com todo o cuidado a criança, aplaudiam e encorajavam. E desta forma memorável termina um dos livros mais belos que me foi dado conhecer do muito que tenho lido nesta literatura da guerra: “Imaginou a cena vista de muito alto, como no cinema (…) A música podia ser de Haendel ou de Bach, com muitos metais glorificando, em acordes maiores, a vitória da vida. A câmara ia subindo sempre, até aquele presépio bélico se resumir a um ponto luminoso no negrume geral da tela”.
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

22 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17387: Notas de leitura (960): “Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

26 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17396: Notas de leitura (961): “Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17396: Notas de leitura (961): “Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011 (2) (Mário Beja Santos)




1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Não se devem poupar encómios a processos literários que ganharam por mérito próprio lugar ao sol, direito à intemporalidade da leitura e da consulta. São crónicas avulsas de um septuagenário, com lago e diversificado currículo, até com pergaminhos de escritor, que desvia as suas memórias de acontecimentos que experimentou em Angola. Usa habilmente a terceira pessoa do singular, o que provoca uma agradável aproximação, ele encarrega-se de animar tudo quanto viu e sentiu com uma prosa vivacíssima, sem enxúndia, ali se vão encruzilhar muitas dores, muito rocambolesco, muito tédio, até medo - estão ali os sentidos, as matas, os gritos medonhos de tudo quanto vivemos e jamais esqueceremos.
É um livro excecional, de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


Arcanjos e bons demónios: histórias de cuidado, de fraternidade e horror (2)

Beja Santos

“Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011, é um livro notável, seja qual o prisma com que encararmos estas crónicas em que um alferes descobre um continente, novas dimensões da solicitude, impensáveis usos e costumes, mas também o medo, a camaradagem e o amor ao próximo. Digamos que são memórias a partir da senectude de alguém que se temperou em múltiplos ofícios, desde velejador oceânico, passando por gestor comercial à tradução e edição de livros. Percebe-se que houve uma laboriosa congeminação para ter chegado a este documento ímpar. É timbre da melhor literatura de guerra pôr o homem perante os seus desafios, por caminhos em que se vê que ele está a crescer e que pela vida fora nada superará o que ali aconteceu, de armas na mão ou a ajudar os outros. Daniel Gouveia concebe as suas crónicas naquele saboroso estilo da narrativa das mil e uma noites, do tipo na sequência do capítulo anterior até chegarmos a um derradeiro episódio que nos deixa com vontade de saber mais.

O talento da escrita, em literatura da guerra, é pôr de forma compreensiva e impressiva os homens no meio, meio que significa populações amigas ou colaboradoras com inimigo, um inimigo à espreita, uma natureza tropical, o recurso a guias para explorar a imensidão das matas e procurar as bases de guerrilha… E embevecer-se com os prodígios dessa mesma natureza, estar de olhar atento às singularidades e vicissitudes do meio que podem ser os diamantes; apurar as insuficiências e até as pesporrências de oficiais mais graduados que teciam as suas guerras em gabinetes climatizados em frente a mapas onde se marcavam posicionamentos das nossas tropas e dos nossos inimigos. Naquele vastíssimo teatro de guerra angolano, algo se passava um tanto comum aos outros teatros, como Daniel Gouveia observa:
“Mandava-se combater sem a noção de como estava instalado e armado o inimigo. Essa era a origem da velha querela entre a infantaria de linha e os comandos ou os paraquedistas. Os infantes viviam abarracados em destacamentos infectos no meio do sertão, andavam em pelotões de 20 e poucos indivíduos. Os comandos e paraquedistas aquartelavam-se nas grandes cidades, no ar condicionado e a rancho melhorado, eram chamados por rádio, transportados de helicóptero, e à chegada eram informados de onde estava o inimigo, quantos eram e de que armamento dispunha”. O que podia dar fiascos, quando os infantes desconheciam na íntegra o contingente que tinham pela frente.

Raras vezes se encontra um texto tão acutilante sobre a delicadeza e a atividade nevrálgica do guia, sobre o qual espirravam todas as acusações, tantas vezes descabidas, quando não se atingia o objetivo. Quem era este homem? “O guia era uma entidade curiosa, simultaneamente respeitada e marginalizada. Era um civil, sujeito à disciplina militar porque integrado na tropa, no entanto, liberto de outros serviços, a não ser o de a conduzir. Era natural dali, ali tinha a família, casa, filhos. Os batalhões iam e vinham, no remoinho das rendições, o guia ficava. O comandante de pelotão dava-lhe ordens, objetivos de percurso, mas na prática subordinava-se-lhe, na medida em que o pelotão ia por onde o guia quisesse. A soldadesca tratava-o com à-vontade, sentindo-se acima como militares de linha, pois o guia não tinha posto ou, quando muito, teria o de soldado raso. Contudo, nem sobre o mais humilde dos soldados tinha o guia qualquer autoridade, ficando muitas vezes impunes as piadas a ele dirigidas, por muito que se irritasse”.

E há aquela operação em que toda a tropa do nosso alferes conheceu o inferno da sede, com todas as suas chamas. É este o condão do autor, ir compassando uma dor que cresce e se enovela, os corpos exaustos, as passadas cada vez mais lentas, os carros que vêm buscar os homens extenuados e desidratados, então, o animalesco da sobrevivência impôs-se:
“Quando o pó, elevando-se do horizonte, anunciou a coluna, o pessoal começou a movimentar-se. Mas não da forma habitual, preparando o material para o embarque. Puseram-se de pé, espreitando a estrada, deixando a arma encostada à mochila. No pelotão guarnecendo as viaturas, ninguém trazia cantil, dado a viagem ser curta. E ficaram admirados de ver os camaradas precipitarem-se de mãos nuas estendidas, deixando o equipamento no chão, rostos ansiosos, olhar desvairado, correndo de carro para carro, pedindo água insistentemente. À frente de um dos veículos, gerou-se um tumulto estranho. O condutor e quem vinha ao lado saltaram dos lugares e atiraram-se a um soldado, derrubando-o.
Foi ver o que se passava. Já era um magote agitado, aglomerando-se à frente do carro, os que queriam ver não deixando ver o que se não via. O alferes comandante da coluna estava lá. Quando avistou o seu congénere, desabafou: 
- Eh pá, eu nunca vi uma coisa assim! Um dos teus gajos atirou-se ao radiador para beber água. Está com as mãos todas queimadas.
Sentado no chão, olhando as mãos cheias de bolhas, o soldado chorava convulsivamente, na mais completa confusão mental. O condutor explicou-se, também ele aturdido: 
- Tivemos de o tirar dali à força! É que ele era bem capaz de beber água a ferver, se lá chegasse…”.

Daniel Gouveia parece ter tido o dom de encontrar capelães caçadores, participar na construção de novas povoações para onde foi arrastada a população à força, assistiu a atos heróicos de pilotos da Força Aérea que não se escusavam, mesmo face a enormes riscos, a ir buscar feridos. Também lhe coube na rifa um soldado doente que de G3 em punho queria matar tudo e todos. É um retrato espantoso, de humanidade e de transe num quase salve-se quem puder, o que se passou com o “Panóias”:
“Soldado raso, ensimesmado e tristonho, sofria de epilepsia e crises de nervos. A reclusão no arame farpado, alternada com o atabafo da mata e a angústia das minas e emboscadas na picada, opunham-se à largueza plácida do seu Alentejo natal, de onde trouxera a alcunha e a misantropia. Várias vezes recambiado para o hospital do setor, como lá nunca tinha ataques, regressava com pareceres vagos de que talvez não fosse nada de cuidado”.

Sofre porque lhe tiraram a arma, uma inútil medida de precaução, armas é o que não falta nas casernas. No regresso de uma coluna, o capitão descobre que o quartel vive em estado de sítio. Ninguém sabe como descalçar a bota até que um amigo do Panóias se oferece para evitar desastres. “Também alentejano, pegador de toiros, possuía um arcaboiço invejável e o destemor gerado nas lides da arena”. Lá se foi aproximando do Panóias, contou-lhe umas lérias e convenceu-o a irem até ao Paiol, disse-lhe que era ali que estava o capitão. “Colocou-se atrás do amigo, marchando a passo certo com ele. Tirou as mãos dos bolsos. Juntou uma à outra. Levantou-as, como num gesto de triunfo, mas foi com a força bruta de quem assenta o batoque num tonel que as descarregou na cabeça do conterrâneo”. O Panóias foi metido num avião, a evacuação era inescapável. “O piloto estupefacto viu meterem-lhe no aparelho um homem de olhar parado, sem uma gota de sangue, amarrado como um salpicão porque, à falta de colete-de-forças, usou-se a corda suficiente para embalar o Panóias como encomenda garantidamente inofensiva a bordo de um avião, na viagem que foi, para ele, o adeus às armas”.

(Continua)
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Nota do editor

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segunda-feira, 22 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17387: Notas de leitura (960): “Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Sim, é verdade, os teatros de guerra distinguem-se à légua, quando se fala de manchambas, mainatos, embondeiros ou pacaças, sabemos que esta linguagem não é aplicável ao território guineense, onde não há montanhas, nem abismos, nem se fazem viagens de centenas de quilómetros.
A guerra de Daniel Gouveia passou-se em Angola, mas o escritor teve a varinha mágica de versar as coisas num contexto tal que ninguém fica de fora, somos empurrados em todas estas viagens, peripécias, bizarrias e acontecimentos épicos, como será a última história de uma parturiente que tinha o seu bebé atravessado, lá foi de jipe até ao hospital, as esperanças eram poucas, o jipe deu uma sacudidela mais violenta, a criança empinou-se para a frente, houve um final feliz.
É um livro testemunho de alguém que deve ter uma visão positiva da vida, que não conhece rancores e tem as melhores memórias de se ter feito homem no meio daqueles arcanjos e bons demónios.

Um abraço do
Mário


Arcanjos e bons demónios: histórias de cuidado, de fraternidade e horror (1)

Beja Santos

“Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011, é um livro notável, seja qual for o prisma com que encararmos estas crónicas em que um alferes descobre um continente, novas dimensões da solicitude, impensáveis usos e costumes, mas também o medo, a camaradagem e o amor ao próximo. Digamos que são memórias a partir da senectude de alguém que se temperou em múltiplos ofícios, desde velejador oceânico, passando por gestor comercial, à tradução edição de livros. Percebe-se que houve uma laboriosa congeminação para ter chegado a este documento ímpar. É timbre da melhor literatura de guerra pôr o homem perante os seus desafios, por caminhos em que se vê que ele está a crescer e que pela vida fora nada superará o que ali aconteceu, de armas na mão ou a ajudar os outros. Daniel Gouveia concebe as suas crónicas naquele saboroso estilo da narrativa das mil e uma noites, do tipo na sequência do capítulo anterior até chegarmos a um derradeiro episódio que nos deixa com vontade de saber mais.

Crónicas montadas numa grande capacidade de observação e de confessado deslumbramento. Logo a descrever uma queimada:
“A queimada era a grande convulsão da planície. A hecatombe dos pequenos e lentos: caracóis, formigas, pássaros ainda no ninho, cágados surpreendidos longe do seu pântano. A muralha de fogo avançava, crepitante, atirando ao ar palhas a arder, folhas, cinzas, em turbilhões desencontrados, com um ruído de trovão contínuo, pontuado por estoiros de troncos a rachar. Uma dança de vermelhos e amarelos, golfando fumo que coava o sol numa luz acastanhada e sombria. E castanho era o cheiro que inundava o ar e alarmava os bichos. A frente de chamas agitava-se, qual pano de fundo no drama dos que não tinha uma toca suficientemente funda. Por cima revoluteavam as águias, sacudidas pela turbulência, antes de picarem sobre alguma cobra ou rato em fuga louca, desvairados pelo ardor nos olhos”.

Dotado de uma grande capacidade de olhar e exprimir sentimentos, é fluente e impressivo a contar-nos as dores da morte, o rescaldo na desgraça, os imprevistos de uma agonia, a tentativa de fotografar uma onça na armadilha. Em vagas sucessivas, o leitor é introduzido na fauna e na flora, acompanha quase por dentro os estrépitos do confronto entre o homem e o bicho. O pelotão em patrulha dera com o rasto de pacaças e o guia pontificou, tinham passado havia pouco minutos, seriam uns vinte animais, com crias, estavam a cinquenta metros dali. Não se pode perder o episódio.
“- Como é que sabes isso tudo? 
- Meu alferes, o excremento ainda fumega. O trilho largo assim… São umas vinte, mais ou menos. Vê estas bostas mais pequeninas? São das crias. 
- E como é que sabes que estão a cinquenta metros? 
- O meu alferes não ouve? 
- Ouço o quê? 
- Este barulho, de vez em quando, de paus a partir… São elas a andar, devagarinho. Enquanto pastam, pisam ramos secos, partem paus. Olhe! Ouviu agora?”.

Toda a boa literatura é uma história bem contada, é o que encontramos aqui, já não se pode lagar o texto, o guia explica o que vai fazer, a tropa dispõe-se na defensiva, o guia deita-se a bater com as mãos e os pés no chão e a imitar o grito da cria de pacaça quando é atacada. O que se segue atabafa os sentidos:
“Passaram uns segundos, durante os quais nada se ouviu senão a restolhada e guinchadeira do guia, no que mais parecia um ataque epiléptico. Os primeiros risos dos soldados foram, porém, apagados por um ruído surdo, levantando-se progressivamente do interior da mata. Primeiro era um trovão longínquo, em crescendo contínuo. Depois o chão começou a tremer e o trovão a aproximar-se, acompanhado do estralejar de ramos partidos e vergastadas de arbustos. O que se ouvia contrastava com a quietude absoluta do que a vista registava, num ambiente irreal de tensão avolumada a cada instante. A seguir, as folhas das vergônteas mais finas entraram em vibração. Por fim, o barulho atroador e o tremer do solo assemelhavam-se ao metropolitano a entrar na estação. De repente, a ramaria baixa que limitava a clareira abriu-se num rompante e dela saiu um turbilhão de patas e chifres com 400 quilos de carne lançada a toda a força. Vinha num trote rapidíssimo, com o focinho rente ao chão, narinas e olhos dilatados, resfolegando. Ouviu-se um tiro e aquela visão aterradora desmoronou-se, percorrendo os últimos metros já desarticulada e rojando os flancos, em espasmos de agonia. Os animais que vinham atrás eram muito menos corpulentos e, tal como o guia previa, mal chegavam à clareira, guinavam, em fuga precipitada, para a esquerda e para a direita, deitando um último olhar apavorado ao chefe morto”.

Não se trata das descrições de uma guerra com um recurso ao teatral, à bazófia, ao caricatural ou chocarreiro. O que se escreve vem da inspiração de olhar seres humanos, brancos ou negros, na sua inteireza, procurar entender as normas culturais do residente ou do militar que ali aterrou, vem da predisposição de estar aberto à sabedoria dos outros, daí as peças saborosas da conversa do alferes com aquele guia que sabe quando passou o javali, que estudou as folhas, e que por ali passou uma cabra-do-mato perseguida por uma onça. O alferes recebe uma soberana, a rainha D. Isabel, dos Marimbas, com poder de vida ou de morte sobre os súbitos, entrou no quartel a dançar, acompanhada pelo seu séquito. “Com uma desenvoltura de negar os seus 80 e tal anos, comandou uma rodopiante coreografia de requebros de anca e revoluteios de braço, com a qual o grupo franqueou a distância entre a porta de armas e o centro da parada, no meio de nuvens de pó levantadas pelos pés descalços”. Alguém advertiu ao alferes que devia mandar vir duas cervejas para a rainha. Conversaram, o alferes entendeu a parte diplomática: mandasse o alferes nos portugueses e a deixasse a ela mandar nos pretos, que se haviam de entender muito bem, pois isso de perder poder não agrada a ninguém e era melhor ajudarem-se nesse particular. A conversa terá corrido bem, despediram-se com a garantia mútua de paz e concórdia, e o cantineiro lá explicou ao alferes porquê mandar servir duas cervejas bem frescas à rainha:
“Saiba que para esta gente é má educação oferecer apenas uma unidade seja do que for. Porque isso é oferecer o mínimo. Se queremos mostrar verdadeiro gosto em presentear, tem de ser, pelo menos, duas unidades. De outra maneira estamos a insultar a pessoa”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17383: Notas de leitura (959): Prefácio de António Graça Abreu, ao livro "Guiné: um rio de memórias", de Luís Branquinho Crespo, lançado em Leiria no passado dia 6 com a presena do presidente da Câmara Municipal local, Raul Castro, também ele ex-combatente