sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17681: Notas de leitura (989): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

"Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”
Autor: Daniel Gouveia - Âncora Editora, 2015


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,
É a escrita de um septuagenário experimentado, os seus livros de guerra distinguem-se dos demais por revelarem um ser curioso, deslumbrado com a Natureza, vai aprendendo a olhar e a interessar-se pelo Outro, aquela guerra foi a sua matéria-prima para aprender a crescer. Não está desatento ao fator bélico, não é mordaz ou cínico ou calhandreiro ou está tomado por acessos de azedume, não, é medularmente construtivo, divertido e convivente. É esse o vigor que perpassa pelas cartas que ele selecionou e que enviou à sua dama. No meio de uma chuva imensa, conta entusiasmado que presenciara um espetáculo magnífico, talvez uma hora antes de a clareira se alargar​ e​ formigueiros inteiros muda​v​ am para os sítios altos, aranhas passavam carregando sob as patas um saco com os ovos, gafanhotos, lagartas buscavam lugar seguro contra a subida das águas. E estava sempre a aprender com o guia Teixeira que lhe dizia que ia chover muito e apontava para a bicharada em fuga.
Um homem que escreve assim tem o coração pacífico, aprende a superar os antolhos com uma perna às costas.

Um abraço do
Mário


Cartas do mato, por Daniel Gouveia (2)

Beja Santos

De Daniel Gouveia já aqui se saudou o seu notável “Arcanjos e Bons Demónios – Crónicas da Guerra de África”, DG Edições, 3.ª edição, 2011. Em abono dessa sua preciosa narrativa, vamos agora dar atenção a “Cartas do Mato – Correspondência Pacífica de Guerra”, Âncora Editora, 2015. Por uso e costume, o centro das nossas atenções vai para o que se escreve sobre a guerra da Guiné, mas faz-se sempre o reconhecimento de que só ganhamos em comparar o que é comparável em toda a literatura da guerra; em comparar e distinguir, pois claro, cada teatro tem as suas especificidades, houve diferentes hostilidades. Mas ao comparar e distinguir também elevamos o nosso olhar para um patamar de princípios, de ética, de fusão da camaradagem: os valores e os sentimentos universais, aquilo que é transversal no combatente, seja a descoberta dos novos ambientes, as formas de adaptação, o quinhão da solidariedade, as angústias e os medos, a repartição dos farnéis, o combate contra a solidão, e o medo das picadas, a angústia das esperas, o caminhar dentro das florestas húmidas, a reação à emboscada; e a caraterização dos protagonistas, o cozinheiro, o padre, o apontador de bazuca, o oficial e o sargento, a ansiedade na chegada do correio.

Os meses passam, Daniel Gouveia está em Quiximba, anda à procura de soluções práticas, uma delas passa pelo uso do apito: “Comprei um apito de árbitro, para evitar berrar ordens, sobretudo nas paradas dos quartéis alheios, quando a tropa anda dispersa a falar com os conterrâneos. Tenho um código de apitadelas e aquilo funciona como um relógio, com uma eficácia de que nem eu suspeitava. Uma apitadela curta e duas longas e tenho toda a minha gente a correr para os Unimogs, estejam na cantina, na caserna ou nas latrinas”. Vai encontrando soluções expeditas para evitar acidentes e simultaneamente ter as armas prontas as funcionar. Sem descurar a guerra e a logística, é um alferes profundamente atento a brejeirices e dá conta de divertidos entremeses culturais, caso de um soldado cuja mulher tinha ido a França e lhe mandara um postal ilustrado, ele queria saber o conteúdo:
“Vendredi = Sexta-feira
Ma cheri marrie
je ofere-ça a mon marrie que bocú eme vu, toutjours, e jame múa no 
pa te obilie 
je te envie compliments escuzemuá 
bocú
rvoá macheri 
mom bena mó”
(Com boa vontade, poderia traduzir-se assim: Sexta-feira/Meu querido marido/ofereço isto ao meu marido que amo muito, sempre e jamais te esqueço/mando-te cumprimentos, desculpa/muito/adeus meu querido/meu bem amor). Está bem integrado, partilha as festas dos seus homens, ridiculariza o empolamento dado pelos relatórios oficiais, ele encontrara ninharias e a PIDE destacava que a unidade “apreendera grande quantidade de material ao inimigo, numa operação de limpeza a umas grutas aonde se encontraram vestígios de permanência de um numeroso grupo. Nessa operação foram recuperadas 10 enxadas indígenas, dez metropolitanas, dinheiro e documentos ao inimigo”. E comenta, ladino: “Tudo aldrabice. As enxadas eram três, o dinheiro era uma moeda de cinquenta centavos e os documentos eram uma ficha de recenseamento local e uma guia para consulta no hospital de São Salvador”.

São deliciosos os seus comentários com o guia Teixeira, andavam em patrulha e detetaram o rasto de uma manada de burros-do-mato:
“- São poucos. Trazem cinco ou seis crias. O chefe é este – aponta uma pegada – e é muito velho. Aqui escorregou um. Aqui uma cria correu para alcançar a mãe.
Já vou percebendo alguma coisa, quando os sinais são nítidos. A vista vai-se treinando. Às vezes encontro um rasto e chamo o Teixeira para interpretar. Outras, arrisco eu a interpretação e ele vai corrigindo:
- Teixeira, olha, pacaça do ontem.
- Do hoje, meu alferes…
- Cabra do mato, da água para aquela mata, parando de vez em quando a olhar para trás, porque o vento estava contra e só trazia o cheiro do que estivesse à frente.
- Não, meu alferes. Olhava para trás porque desconfiava da onça no rasto.
- Mas não há pegadas de onça…
- Cabra do mato passou sobre esta lama, marcou as patas dela. A onça passou ao lado, no chão seco, não marcou.
- Então como é que sabes que era onça?
- Este arbusto tem pelo de onça. Vê, meu alferes?
- Vejo…
É assim que vou fazendo a minha aprendizagem de pisteiro”.

Vai de férias e volta a Quiximba, dá notícias da rotina, da chegada do cinema ao refeitório, dos autos, das colunas, faz um comentário duríssimo aos camionistas: “São uma raça especial de gente, rude e grosseira, o rebotalho humano que já não tem onde cair, nem sequer numa terra como Angola, onde qualquer paspalho subsiste, e agarram-se à última das últimas tábuas de salvação: guiar camiões pelas zonas de guerra, estabelecendo contacto entre as povoações e os centros urbanos e levando os abastecimentos à tropa. Por um lado, são admiráveis, pelo que suportam, por aquilo a que se sujeitam a troco de 6.000$00 por mês, melhor dizendo a 1$20 por quilómetro. Por outro lado, já pouco têm a perder e gente desta só se recruta nas camadas marginais da sociedade. Donde, a violência de atitudes, a falta de educação e até hostilidade em relação ao resto das pessoas”.

Inaugura-se a capela de Quiximba, o padre Campos, antes de benzer a capela, dirige-se às tropas nestes termos: neste momento, não chegou ainda às unidades o modelo oficial em português, da bênção, porque agora só se faz em português, de maneira que vai ser em latim, vocês não vão perceber nada, mas também é só cinco minutos…

Aprende a dar injeções, nem aqui dá tréguas à brejeirice: “Cheguei a combinar com o enfermeiro Bessa o truque de, no último momento, ele passar-me a agulha e ser eu a espetá-la sem o paciente saber. Mas a notícia espalhou-se em menos de um fósforo e bastava eu estar na enfermaria à hora dos tratamentos, para logo desaparecerem os doentes que tinham de levar injeções".

Estamos em Maio vão chegar 350 famílias que viviam no Quanza Norte, virão fazer sanzala para o Quiximba. Chama-se a “Operação Robusta”. É um dos grandes textos de Daniel Gouveia, como veremos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17669: Notas de leitura (988): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Para quem andou em Canquelifá e Buruntuma, ou mesmo na praia de Varela ou Bolama, qualquer semelhança com Quanza Norte ou Quanza Sul é pura fantasia.

Mas o olhar do Alferes sobre os MOTORISTAS (brancos, logicamente), como autêntica escumalha, era o mesmo olhar que todos os alferes em geral, mais intelectualizados, tinham sobre todos os brancos, futuros retornados.

Claro que sobre esta estirpe de gente, de uma maneira mais fina, são as observações de escritores como por exemplo Lobo Antunes.

Mas sobre os brancos e brancas de Angola, nada como as observações de qualquer vendedeira do mercado do Bulhão que tinham muitas vizinhas e antigas colegas, que retornaram de Angola.

Mas esta do Alferes Daniel Gouveia, sobre os motoristas de Angola está bem esgalhada.

Obrigado BS, não perco uma deste nosso camarada.