Queridos amigos,
Encontrar uma fotografia em que apareço ao lado do consagrado ambientalista Gonçalo Ribeiro Telles, com quem tive a honra de participar em colóquios e debates, foi o ponto de partida para recordar um passeio por ele guiado nas imediações da sua casa, na Rua de São José, igualmente neste local funciona a sede do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas. O passeio começou propriamente junto da Sociedade de Geografia de Lisboa, falou-se da vida animada em torno da Rua dos Condes (Cinema Condes, Cinema Olímpia, Odéon, Coliseu) das muitas casas apalaçadas entre a Rua de São José e Rua de Santa Marta, parou-se no Pátio do Tronco, onde Camões esteve preso, andou-se pelo Largo da Anunciada, passou-se a Rua do Telhal, muitos comentários houve da Igreja de São José dos Carpinteiros e Gonçalo Ribeiro Telles apontou para todas as tasquinhas e foi lembrando que estávamos igualmente num velho itinerário utilizado pelos saloios que depois das suas vendas na Praça da Ribeira subiam as Portas de Santo Antão até perto do Conde Redondo e daqui para São Sebastião da Pedreira. Passeio magnífico, e parece-me bem apropriado recordar tão prestimoso guia, um dos sábios mais gentis, disponíveis e desafetados que conheci. Talvez por ser sábio...
Um abraço do
Mário
Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (2)
Mário Beja Santos
Convidado para coordenar uma semana cultural bancária, de um sindicato sediado na Rua de São José, logo me ocorreu sugerir uma visita-guiada a esta rua e imediações, encontrar significados para este itinerário, a sugestão foi aceite e não me ocorreu melhor guia do que um seu perfeito conhecedor e intérprete, Gonçalo Ribeiro Telles. Em sua casa debatemos várias hipóteses sobre edifícios a visitar. Ainda se pensou começarmos pelo Largo de São Domingos, entrar no Palácio Almada, depois no Teatro Nacional D. Maria II, entrar na Casa do Alentejo, seguir para a Sociedade de Geografia de Lisboa, e foi nesta digressão que o Gonçalo Ribeiro Telles me fez descer à terra e lembrar que um passeio com paragens, entradas e saídas, comentários, ou era uma visita de um dia inteiro, com petiscos pelo meio, ou havia que moderar os ímpetos. E assentámos nessa moderação de ímpetos. Depois de termos saído da Sociedade de Geografia de Lisboa, de ele ter feito comentários ao Teatro Politeama, falou da vida cultural da Rua dos Condes, olhando com tristeza a degradação a que chegara o Odéon (felizmente que está a ser requalificado, a sua bela fachada permanecerá), levou-nos até ao Pátio do Tronco onde o autor d’Os Lusíadas, depois de uma rixa valente, entrou na prisão que existia neste local. E prosseguimos para o Largo da Anunciada.
Gonçalo Ribeiro Telles
Na minha memória, o que havia de mais significativo no Largo da Anunciada era um bebedouro mandado fazer pela Liga Protetora dos Animais, ali bem perto da Companhia das Águas de Lisboa, a ervanária (que ainda hoje existe) e a Igreja de São José da Anunciada onde, nos meus trinta anos, fui ao velório do Dr. Cícero Galvão, que fora meu responsável no meu primeiro emprego, quando trabalhei em mecanografia. A Igreja sempre me pareceu uma coisa insípida. O guia confirmou. É uma estrutura do século XIX com um padrão arquitetónico fora do tempo, o anacronismo estampa-se no próprio altar com as suas colunas em volutas, como se estivéssemos no barroco. Foi entrada por saída, mas ainda deu para descobrir uma curiosidade, o interior da lanterna parece insinuar que estamos a olhar para o céu infinito, onde Deus nos espreita. E partimos seguidamente para a Rua de São José, o Elevador do Lavra ter-nos-ia propiciado ir ver o Jardim do Torel, mas não havia tempo, passou-se pela casa apalaçada onde a administração dos CTT pontificava (curiosamente, anos depois desta quinzena cultural bancária ali fui assistir ao lançamento do selo que homenageou José Saramago, guardo o selo e o autógrafo do homenageado), seguia-se a Cooperativa Militar fundada pelo rei D. Carlos, atravessava-se a Rua do Telhal, o guia aponta para o andar onde funcionava uma Liga de Cegos, vai apontando para as tasquinhas, comenta a importância das travessas que vão sulcar todo o trajeto até Santa Marta, mostra pormenores deliciosos como belos azulejos incrustados na parede de edifícios.
Um curioso painel de azulejos do século XVIII embutido na fachada de um prédio
Uma das travessas que se alongam em direção à colina que vai do Torel ao Campo dos Mártires da Pátria
Guardo memórias muito agradáveis de passeios que aqui dei para bisbilhotar bricabraque e antiguidades. Trabalhei no Ministério do Comércio Interno e Ministério do Comércio e Turismo entre 1975 e 1977, muitas vezes fiz jornada contínua entre as nove e as cinco e meia, para ter o prazer de andar aqui à caça de pechinchas, algumas vezes fui bem-sucedido. Este universo mudou, mas ainda encontrei uma recordação, há mais de vinte anos comprei aqui uma bela lâmpada Arte Deco ao sogro do senhor que aparece na fotografia, falámos de tudo um pouco, a pandemia afetou profundamente este tipo de negócios, mas ele gosta a valer do que faz.
Casa das Conchas, na Rua de Santa Marta, já foi estabelecimento de comes e bebes, hoje é loja de bricabraque
Estamos em frente ao Hospital de Santa Marta, os participantes começam a dar sinais de cansaço. Ainda bem que o guia prescindiu de irmos visitar os belos azulejos que forram as paredes do claustro do antigo convento. Aqui expirou em 1986 o meu querido amigo Ruy Cinatti, este troço da Rua de Santa Marta está a ser alvo de muitas intervenções no presente e a casa apalaçada da Universidade Autónoma mantém a cara lavada. Lembrei-me de que aqui existia a União Gráfica e o jornal onde publiquei poesia no fim da adolescência. E subimos em direção ao Conde Redondo, o guia vai mostrar o itinerário seguido pelos saloios em direção a São Sebastião da Pedreira, a Estrada de Benfica e depois as portas, que davam pelo nome de Brandoa.
Prédio Arte Deco na Rua de Santa Marta, bem requalificado
E aqui acaba o passeio, para nosso pesar. Entrega-se uma singela lembrança ao mais proveitoso dos guias e cada um segue o seu destino. Nunca cansado de ver a Rua Rodrigues Sampaio, era ali que eu ia entregar os meus artigos para o Jornal de Notícias e muitas vezes pedia licença para entrar no Hotel Império, dali segui até ao Cinema Tivoli e fui visitar o Palácio Lambertini onde em 1974 trabalhei na Direção-Geral de Preços, até seguir para o Ministério do Comércio Interno, no Terreiro do Paço. E nunca me canso de ver o Hotel Vitória, uma das obras-primas de Cassiano Branco. Agora é só pensar no próximo passeio.
Enfiamento junto de Santa Marta para São Sebastião da Pedreira
Palácio Lambertini
Hotel Vitória, 1936, hoje instalações do PCP
____________Nota do editor
Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22203: Os nossos seres, saberes e lazeres (451): Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (1) (Mário Beja Santos)