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sábado, 22 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22218: Os nossos seres, saberes e lazeres (452): Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Encontrar uma fotografia em que apareço ao lado do consagrado ambientalista Gonçalo Ribeiro Telles, com quem tive a honra de participar em colóquios e debates, foi o ponto de partida para recordar um passeio por ele guiado nas imediações da sua casa, na Rua de São José, igualmente neste local funciona a sede do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas. O passeio começou propriamente junto da Sociedade de Geografia de Lisboa, falou-se da vida animada em torno da Rua dos Condes (Cinema Condes, Cinema Olímpia, Odéon, Coliseu) das muitas casas apalaçadas entre a Rua de São José e Rua de Santa Marta, parou-se no Pátio do Tronco, onde Camões esteve preso, andou-se pelo Largo da Anunciada, passou-se a Rua do Telhal, muitos comentários houve da Igreja de São José dos Carpinteiros e Gonçalo Ribeiro Telles apontou para todas as tasquinhas e foi lembrando que estávamos igualmente num velho itinerário utilizado pelos saloios que depois das suas vendas na Praça da Ribeira subiam as Portas de Santo Antão até perto do Conde Redondo e daqui para São Sebastião da Pedreira. Passeio magnífico, e parece-me bem apropriado recordar tão prestimoso guia, um dos sábios mais gentis, disponíveis e desafetados que conheci. Talvez por ser sábio...

Um abraço do
Mário


Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (2)

Mário Beja Santos

Convidado para coordenar uma semana cultural bancária, de um sindicato sediado na Rua de São José, logo me ocorreu sugerir uma visita-guiada a esta rua e imediações, encontrar significados para este itinerário, a sugestão foi aceite e não me ocorreu melhor guia do que um seu perfeito conhecedor e intérprete, Gonçalo Ribeiro Telles. Em sua casa debatemos várias hipóteses sobre edifícios a visitar. Ainda se pensou começarmos pelo Largo de São Domingos, entrar no Palácio Almada, depois no Teatro Nacional D. Maria II, entrar na Casa do Alentejo, seguir para a Sociedade de Geografia de Lisboa, e foi nesta digressão que o Gonçalo Ribeiro Telles me fez descer à terra e lembrar que um passeio com paragens, entradas e saídas, comentários, ou era uma visita de um dia inteiro, com petiscos pelo meio, ou havia que moderar os ímpetos. E assentámos nessa moderação de ímpetos. Depois de termos saído da Sociedade de Geografia de Lisboa, de ele ter feito comentários ao Teatro Politeama, falou da vida cultural da Rua dos Condes, olhando com tristeza a degradação a que chegara o Odéon (felizmente que está a ser requalificado, a sua bela fachada permanecerá), levou-nos até ao Pátio do Tronco onde o autor d’Os Lusíadas, depois de uma rixa valente, entrou na prisão que existia neste local. E prosseguimos para o Largo da Anunciada.
Gonçalo Ribeiro Telles

Na minha memória, o que havia de mais significativo no Largo da Anunciada era um bebedouro mandado fazer pela Liga Protetora dos Animais, ali bem perto da Companhia das Águas de Lisboa, a ervanária (que ainda hoje existe) e a Igreja de São José da Anunciada onde, nos meus trinta anos, fui ao velório do Dr. Cícero Galvão, que fora meu responsável no meu primeiro emprego, quando trabalhei em mecanografia. A Igreja sempre me pareceu uma coisa insípida. O guia confirmou. É uma estrutura do século XIX com um padrão arquitetónico fora do tempo, o anacronismo estampa-se no próprio altar com as suas colunas em volutas, como se estivéssemos no barroco. Foi entrada por saída, mas ainda deu para descobrir uma curiosidade, o interior da lanterna parece insinuar que estamos a olhar para o céu infinito, onde Deus nos espreita. E partimos seguidamente para a Rua de São José, o Elevador do Lavra ter-nos-ia propiciado ir ver o Jardim do Torel, mas não havia tempo, passou-se pela casa apalaçada onde a administração dos CTT pontificava (curiosamente, anos depois desta quinzena cultural bancária ali fui assistir ao lançamento do selo que homenageou José Saramago, guardo o selo e o autógrafo do homenageado), seguia-se a Cooperativa Militar fundada pelo rei D. Carlos, atravessava-se a Rua do Telhal, o guia aponta para o andar onde funcionava uma Liga de Cegos, vai apontando para as tasquinhas, comenta a importância das travessas que vão sulcar todo o trajeto até Santa Marta, mostra pormenores deliciosos como belos azulejos incrustados na parede de edifícios.
Um curioso painel de azulejos do século XVIII embutido na fachada de um prédio
Uma das travessas que se alongam em direção à colina que vai do Torel ao Campo dos Mártires da Pátria

Guardo memórias muito agradáveis de passeios que aqui dei para bisbilhotar bricabraque e antiguidades. Trabalhei no Ministério do Comércio Interno e Ministério do Comércio e Turismo entre 1975 e 1977, muitas vezes fiz jornada contínua entre as nove e as cinco e meia, para ter o prazer de andar aqui à caça de pechinchas, algumas vezes fui bem-sucedido. Este universo mudou, mas ainda encontrei uma recordação, há mais de vinte anos comprei aqui uma bela lâmpada Arte Deco ao sogro do senhor que aparece na fotografia, falámos de tudo um pouco, a pandemia afetou profundamente este tipo de negócios, mas ele gosta a valer do que faz.
Casa das Conchas, na Rua de Santa Marta, já foi estabelecimento de comes e bebes, hoje é loja de bricabraque

Estamos em frente ao Hospital de Santa Marta, os participantes começam a dar sinais de cansaço. Ainda bem que o guia prescindiu de irmos visitar os belos azulejos que forram as paredes do claustro do antigo convento. Aqui expirou em 1986 o meu querido amigo Ruy Cinatti, este troço da Rua de Santa Marta está a ser alvo de muitas intervenções no presente e a casa apalaçada da Universidade Autónoma mantém a cara lavada. Lembrei-me de que aqui existia a União Gráfica e o jornal onde publiquei poesia no fim da adolescência. E subimos em direção ao Conde Redondo, o guia vai mostrar o itinerário seguido pelos saloios em direção a São Sebastião da Pedreira, a Estrada de Benfica e depois as portas, que davam pelo nome de Brandoa.

Prédio Arte Deco na Rua de Santa Marta, bem requalificado

E aqui acaba o passeio, para nosso pesar. Entrega-se uma singela lembrança ao mais proveitoso dos guias e cada um segue o seu destino. Nunca cansado de ver a Rua Rodrigues Sampaio, era ali que eu ia entregar os meus artigos para o Jornal de Notícias e muitas vezes pedia licença para entrar no Hotel Império, dali segui até ao Cinema Tivoli e fui visitar o Palácio Lambertini onde em 1974 trabalhei na Direção-Geral de Preços, até seguir para o Ministério do Comércio Interno, no Terreiro do Paço. E nunca me canso de ver o Hotel Vitória, uma das obras-primas de Cassiano Branco. Agora é só pensar no próximo passeio.
Enfiamento junto de Santa Marta para São Sebastião da Pedreira
Palácio Lambertini
Hotel Vitória, 1936, hoje instalações do PCP
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22203: Os nossos seres, saberes e lazeres (451): Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 15 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22203: Os nossos seres, saberes e lazeres (451): Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Sucede que aqui há uns tempos, ao selecionar imagens para ilustrar um episódio da Rua do Eclipse, encontrei uma fotografia de um dos colóquios em que participei ao lado de Gonçalo Ribeiro Telles, e dei comigo a pensar no agradável convívio que ele proporcionara a largas dezenas de participantes de uma tal quinzena cultural bancária, seguramente no início da década de 1990, tudo à volta da Rua das Portas de Santo Antão até ao Conde Redondo, enfim, as imediações da sede do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, foi um comentador brilhante, coube-lhe escolher os edifícios, fazer os comentários em torno do planeamento urbano, explicou-nos a importância daquele itinerário que possuía uma linearidade que escapava à generalidade dos peões - o caminho percorrido pelos saloios que vinham da Praça da Ribeira e que seguiam em direção às Portas de Benfica.
Para meu enlevo, cirandou-se dentro da Sociedade de Geografia de Lisboa, e agora, ao refazer o percurso de há trinta anos atrás não deixei de me alegrar por ver requalificações e intervenções que alteraram muito positivamente esta zona de Lisboa, que estava profundamente degradada. E, claro está, parei junto da porta do prédio onde Gonçalo Ribeiro Telles vivia na Rua de São José, e recordei com saudade o visionário e lutador por melhor ambiente que perdemos recentemente.

Um abraço do
Mário


Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (1)

Mário Beja Santos

Conheci nos anos 1970 Gonçalo Ribeiro Telles quando para mim já era inevitável a estreita aliança entre os modos de consumo e ambientalmente sustentáveis, questão imperativa e indiscutível. Deu-me oportunidade de conversarmos a tal propósito, o rumo dos acontecimentos associativos levou-nos a conviver em conferências e debates, muito aprendi com ele, ensinou-me a olhar a organização de uma rua, os formatos de uma paisagem, o significado das hortas urbanas, o cruzamento das parcelas ou componentes que enformam o que designamos por qualidade de vida. E os anos passaram.

Aí por 1991 ou 1992, o presidente da Direção dos Bancários Sul e Ilhas, Barbosa de Oliveira, pediu-me para conversarmos. Fui à Rua de São José e aí o dirigente sindical convidou-me para coordenar uma quinzena cultural bancária, eu que escolhesse o mote e propusesse os eventos respetivos. Foi então que me surgiu a ideia de propor como tema inicial uma viagem à volta da sede do sindicato, e assomou-me a sugestão de perguntar ao Gonçalo Ribeiro Telles, que vivia nas redondezas da sede do sindicato, se aceitava ser guia e mestre de conferência de uma visita, sugeri que começássemos na Rua das Portas de Santo Antão e prolongássemos até à Rua de Santa Marta. Contrapropôs que se fizesse uma descrição da linearidade do percurso e a sua história e que se escolhessem edifícios de referência, uns com valor patrimonial arquitetónico de significado, outros associados à memória dos lugares.

Juntaram-se quase uma centena de participantes no passeio de rua e as apreciações finais correram na sede do sindicato. No final, para minha gratificação, ouvi desses mesmos participantes comentários elogiosos ao pioneiro da política ambiental em Portugal. Do resto da quinzena, onde participaram Jacinto Batista, jornalista emérito que coordenou uma visita-guiada ao mundo jornalístico e sindical no coração do Bairro Alto, sessões de cinema que contaram com o apoio do último cineclube de Lisboa, o ABC, e algo mais aqui não tem sentido relevar, homenageia-se o arquiteto paisagista e pioneiro do ambientalismo em Portugal, falecido em 2020, com 98 anos de idade. Começámos na Sociedade de Geografia, um pouco antes houve pormenores explicativos de um enfiamento de caminhos, explicação que nos deixou de boca aberta: quem comerciava na Praça da Figueira e arredores, gente saloia, seguia com as suas carroças pela Rua das Portas de Santo Antão, Rua de São José, Rua de Santa Marta, e ali no Conde Redondo fazia-se uma deriva para São Sebastião da Pedreira, e encaminhava-se para as Portas de Benfica, nós que atendêssemos que era quase tudo a direito. Quanto aos problemas ambientais, eles vinham de longe, foram-se montando, século após século, obstáculos para as linhas de água, e os resultados estavam à vista com as inundações. Feitos comentários à Casa do Alentejo e à Igreja de São Luís dos Franceses, houve paragem na Sociedade de Geografia, fundada em 1875, incorporada no edifício do Coliseu dos Recreios. Referiu a esplêndida arquitetura de ferro, com destaque para a Sala Portugal, não esqueceu a Sala dos Padrões e a Sala da Índia, e para minha satisfação subiu-se à biblioteca, espaço imprescindível para quem estuda História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa. É uma biblioteca riquíssima, foi integrando várias bibliotecas, espólios e fundos, possui um acervo riquíssimo de cartografia antiga e atual, provas fotográficas de indiscutível valor e fez-se um curto passeio pelo espólio do museu, muitos dos participantes andavam maravilhados.
Entrada para a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa
Arquivo de cartas geográficas junto da Biblioteca
Sala da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa
Retrato do Almirante Gago Coutinho na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa
Busto em mármore do Marquês Sá da Bandeira, foi ele quem decretou a abolição da escravatura, também à entrada da Biblioteca.

Subimos uma rampa junto ao coliseu para visualizar e admirar o Teatro Politeama, inaugurado em 6 de dezembro de 1913, estiveram no ato o presidente Arriaga e o primeiro-ministro Afonso Costa. Tem conhecido consideráveis modificações no seu interior, aqui atuaram na década de 1930 artistas musicais de renome quando a Sociedade de Concertos de Lisboa, fundada por Viana da Mota, aqui teve a sua sala de grandes récitas, o Teatro Nacional de São Carlos entrara em obras, não se encontrou sala com melhor acústica do que esta.

Velha fotografia do Ateneu Comercial de Lisboa
Ateneu Comercial nos bons tempos de atividade, hoje está em profunda decadência e vai ser hotel de luxo. Houve paragem e comentários em frente ao antigo Palácio dos Condes de Povolide, Gonçalo Ribeiro Telles referiu as consequências do terramoto que fizeram desabar o primeiro andar e daí a alteração de estilos entre o nível ao rés-do-chão e o andar superior. Naquele tempo da semana cultural bancária ainda existia a Cervejaria Solmar, espaço obrigatório para os amantes da marisqueira de bolsa abonada.

Prédios renovados na Rua de São José, quase em frente da Cooperativa Militar, no início da Rua de São José

O nosso guia falava de igrejas, de palácios, de configurações ajardinadas, não esqueceu mesmo fazer referências ao Elevador do Lavra, sugeriu que mais tarde organizássemos um outro passeio como a descida da Calçada de Santana, começando pelos Jardins do Torel e vizinhança, e passando a Rua do Telhal, deparou-se diante da Igreja de São José dos Carpinteiros, também sofreu com o terramoto esta igreja iniciada no século XVI, guarda o que resta do acervo da Casa dos 24, quando faleceu o arquiteto paisagista, foi aqui que a Câmara Municipal abriu em sua homenagem uma exposição referente à sua obra

Fachada da Igreja de São José dos Carpinteiros
Interior da Igreja de São José dos Carpinteiros
Um belo azulejo de uma loja que já teve outro passado.

Nova paragem, o nosso guia comenta a natureza destas travessas longilíneas, o seu casario de antanho, o tipo de comércio existente, naquele tempo predominavam lojas de antiguidades e de bricabraque, mas também comércio de comidas, e observou que tinha para ali referência a muitas tascas e tasquinhos, bem conhecidos pelos saloios que precisavam de amesendar, bebericar e até satisfazer necessidades, a viagem era longa até chegar aos seus destinos. Também aqui se faz um alto, a viagem prossegue para a semana, este itinerário histórico da Lisboa antiga tem muito mais para contar.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22182: Os nossos seres, saberes e lazeres (450): Quando vi nascer a Avenida de Roma (7) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22018: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (44): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Tudo leva a crer que os cinquentões enamorados tiveram umas férias da Páscoa a preceito. Houve mau tempo durante dois dias, mas não foi suficiente para os desmoralizar, foram ver exposições, andaram à cata de surpresas em alfarrabistas e adelos. Aqui não se fala numa reunião de trabalho onde houve discussão acalorada entre os diretores da associação, mais adiante se explicará porquê. Annette anda mordida pela curiosidade, pede imagens antigas, talvez seja uma forma de ela se querer identificar com coisas do passado neste amor transbordante. É ciosa em querer compreender tudo quanto está a pôr em ordem na comissão do Paulo, houve que remexer numa ferida, as dolorosas recordações de uma tragédia que ocorreu em Canturé, no regulado do Cuor, em 15 de outubro de 1969, tudo tão doloroso que ainda havia a mágoa de não ter agido com a devida solicitude em saber da sorte dos seus sinistrados depois da guerra, Paulo sente que falhou aos cânones da camaradagem, nunca nos largámos nas horas amargas, Paulo seguiu para a frente, e hoje continua a sofrer pela incúria praticada.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (44): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, a viagem para Lisboa correu lindamente e no horário previsto, vim diretamente para o trabalho, comi uma sopa e dois pães, não tive mãos a medir na elaboração de papelada e na organização da agenda para as próximas semanas. Por muito que te tenha agradecido as férias encantadoras que vivi a teu lado, quero deixar por escrito todo o meu sentimento de gratidão, o dia de Páscoa foi inesquecível, os teus filhos muito afáveis e adorei conhecer a tua irmã por adoção, os esclarecimentos que ela me deu sobre a tua infância e juventude enterneceram-me, bebi-lhe todas as palavras, assim se desenhou no meu espírito uma Annette voluntariosa, a lutar pela sua autonomia, conhecedora de um dom especial para as línguas e pelo gosto de viajar, algo que é obrigatório para ter sucesso na vida de intérprete internacional.

Cinjo-me, tão-só nesta carta, ao que tu me pediste quanto a fotografias espúrias do que era a minha vida profissional, que tipo de recordações te podia enviar sobre as minhas estadias em Bruxelas e mais adiante lembraste a necessidade de criar uma atmosfera para tudo quanto se passou depois da mina anticarro de Canturé, em 15 de outubro de 1969.

Vou tentar sumular os meus procedimentos de viagens a Bruxelas antes de te conhecer. Estive em Bruxelas pela primeira vez em 1978, Portugal batera à porta das Comunidades Europeias, logo estabeleceu que os diferentes ministérios enviariam peritos para ações de sensibilização. O ministro António Barreto, titular do Comércio e Turismo, que criara no ano anterior uma lei orgânica contemplando um departamento do consumidor, escolheu-me para o programa respetivo. Visitei os serviços da Comissão Europeia, então a funcionar na Rue Guimard, num local aprazível entre o Parque Real e a área do Parlamento Europeu. Depois de uma ensaboadela, fui lançado em serviços convergentes com política do consumidor, nomeadamente na área da Saúde e Ambiente. Tive reuniões de trabalho com as quatro associações europeias do tempo, e imediatamente encontrei afinidades com o dirigente das cooperativas europeias, Albrecht Schöne, e dos sindicatos socialistas, André Cornerotte, hoje uma amizade inquebrantável. Visitei igualmente organizações não-governamentais ligadas à defesa de direitos de cidadania e a vários lobbies empresariais acreditados pela Comissão Europeia, entre eles o da indústria farmacêutica.

Tive um dia de folga, de carta na mão palmilhei Bruxelas e comecei a interiorizá-la. Graças aos programas de televisão, entre 1979 e 1984, aqui vim a reuniões de autores e apresentadores de programas televisivos de consumidores, sempre à minha custa reservei um dia para curtas viagens na Flandres e na Valónia, aliás duas destas reuniões irão ocorrer em Paris e Veneza. Depois chegamos à adesão e com ela a participação em reuniões quer como funcionário público quer como membro da Confederação Europeia dos Sindicatos. Se na primeira condição a ajuda de custo era satisfatória, na segunda era quase simbólica e tive que me adaptar à escolha de modestos hotéis e mesmo de albergues, almoçava nas cantinas, havia por vezes jantares de trabalho e senti-me na obrigação de propor jantares com colegas, designadamente quando tínhamos tarefas em comum. Envio-te hoje um pequeno rol de papéis avulsos que falam de Bruxelas ou das reuniões em estações televisivas portuguesas, até descobri a imagem de um encontro internacional de educação do consumidor, que se realizou em Lisboa, meses antes de eu elaborara documentação para professores, este encontro servia igualmente para testar da validade na área de ensino, fiquei feliz com os elogios recebidos. Eu penso é que tu queres fotografias com o quarentão, encontrei uma de um colóquio em que participei com um investigador que admiro profundamente, o arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Teles, o programa não era fácil nem para ele nem para mim, tínhamos que discretear sobre os imbricamentos entre as políticas ambientais e as medidas de consumo, as formas de agir comum. O trabalho que tive nessa ocasião preparou-me para uma reflexão que mantenho em continuidade: como ultrapassar os compartimentos estanques das análises de ambientalistas e defensores de consumidores, os primeiros projetam o seu trabalho na produção e param no mercado, enquanto os defensores dos consumidores começam no mercado e dissecam a problemática do consumo, desde os direitos de informar e formar até às leis de proteção nesta vertente da cidadania no consumo.

Junto duas imagens referentes a duas recrutas que dei no regresso da guerra da Guiné, em Mafra, a futuros oficiais milicianos. Antes de partir para a guerra eu tinha como profissão a mecanografia, era devoradora de tempo, não podia imaginar ter meios para tirar rapidamente primeiro o bacharelato e depois a licenciatura, encontrei um expediente que foi um contrato até cinco anos com o Ministério do Exército, teria que dar recrutas durante um período e depois seria colocado em Lisboa, tive muitíssima sorte, depois de dar instrução fui colocado numa entidade chamada Agência Militar, um autêntico banco, era o oficial que ia buscar dinheiro aos milhões ao Banco de Portugal. Passei a ter tempo para estudar na biblioteca e voltar cedo para casa para continuar a estudar. Em cerca de três anos, e tendo repetido cadeiras para melhoria de nota, estava licenciado e fui mesmo colocado como professor na variante de História de Arte, veio o 25 de Abril e a minha vida mudou de rumo, o rumo em que nos descobrimos naquele acaso feliz da reunião na Rue Froissart, que mudou as nossas vidas, por sua vez.

Vamos agora para o que me pedes sobre a tragédia da mina anticarro, procurei dar-te elementos no dia em que almoçámos em Antuérpia, tive que amenizar o discurso quando vi muita mágoa no teu rosto enquanto te contava as peripécias vividas. Depois da explosão, verifiquei o caos à volta, havia um ferido grave, o condutor, e mais seis feridos, não era fácil avaliar o que era uma mera contusão de ferimentos graves. Senti angústia e perplexidade em quase todos os meus camaradas, recorri ao que estava mais sereno, Mamadu Djau, dei-lhe a incumbência de ir procurando tratar com primeiros-socorros quem deles necessitava e havendo condições arrumar os bidons de combustível, os sacos de arroz, as caixas, tudo quanto saltara da viatura com o impacto da explosão. Retirei-me sozinho e trouxe atrás de mim três crianças, na marcha senti dores excruciantes no joelho direito e pressenti que tinha perdido a visão do olho esquerdo, levara com uma lufada de terra e ácido ou talvez mesmo de explosivo, sentia tudo em carne viva. E assim chegámos a Finete onde Bacari Soncó me ajudou a lavar o rosto e percebi que não tinha perdido a visão completa do olho esquerdo. Formou-se um contingente para ir buscar os feridos, e lá fui aos tombos pela bolanha de Finete, o canoeiro atravessou o Geba, o comerciante José Maria andava ali perto e levou-me à sede do batalhão. Jantavam e conversavam acaloradamente na messe dos oficiais, quando me viram sentiram que tinha havido uma desgraça, quando se entra chamuscado e a coxear algo de sinistro aconteceu. O segundo comandante dirigiu logo as diligências necessárias para chegar rapidamente apoio a Finete, o médico levantou-se da mesa, mandou chamar o enfermeiro e dois maqueiros, em minutos estavam todos de mochila às costas. Este mesmo segundo comandante teve com os sinistrados uma afabilidade inesquecível: mandou recolher pedaços de bifes e meter em pães, arranjou-se um saco de fruta, achocolatados e outras atenções. E regressámos a Finete, o principal desvelo foi para o condutor, de nome Manuel Guerreiro Jorge, o estado era deplorável, não eram só as fraturas expostas, entrara em falência, cerca de uma hora depois de chegarmos a Finete o médico fechou-lhe os olhos. Havia soldados marcados por estilhaços, o estado de Cherno Suane era muito grave, um duplo traumatismo craniano, ele seguia no guincho e foi disparado para cima de um morro de bagabaga. O cabo Alcino Barbosa coxeava, veio-se a apurar que era uma fratura de calcâneo. Minha adorada Annette, quando tudo isto te contei naquele pequeno restaurante não longe da Catedral de Nossa Senhora em Antuérpia, envolvidos por uma temperatura amena, procurei não te incomodar muito, voltei a Missirá, conversei com o régulo em particular, e tive a única crise de choro convulsivo, limpei ao rosto e disse ao régulo que não se atormentasse, a vida recomeçaria, houvera um revés, mas eu continuava pronto para me manter no posto, ele iria ver em breve, só precisava de ir a Bissau tratar dos olhos e comprar óculos novos, viria rapidamente, muito antes de, a contragosto, partir de Missirá para Bambadinca.

Annette, por razões de pudor eu sou muito sumário nesta descrição, podia falar-te numa emboscada que aconteceu e muito mais. Como companheira que me estás destinada até ao fim dos meus dias quero que saibas do meu remorso em não ter acompanhado, como era meu dever, quando regressei a Portugal, os meus camaradas feridos, à semelhança do que pude fazer com os guineenses mutilados. É amargor que guardo e que te confesso.

Vou ter uns dias atribulados pela frente, mas prometo continuar à noite a juntar mais papéis para te enviar rapidamente. E quero falar das férias, pois claro, e terminar dizendo-te como me sinto muitíssimo bem na tua Bruxelas, se acaso for essa a decisão que tomarmos nos próximos anos. Bien à toi, Paulo.

(continua)

Não resisti a comprar este bilhete-postal de um jovem numa banheira com desentupidor na mão, em plena Feira da Ladra, indiferente ao bulício que por ali vai. Pena de não ter ido lá neste dia para ter sido eu a tirar esta imagem…
Quando olho estas imagens pergunto-me o que a vida trouxe de muito bom às suas vidas depois das guerras em que participaram. Só muito raramente encontro um ou outro dos meus instruendos. Um deles é o Dr. João Nabais, homem de museus, outro tem o nome épico de Vasco da Gama, homem da Figueira da Foz que já visitei. É mais uma lição da vida: a muito nos aproxima e com a mesma força nos afasta.
Estava feliz neste tempo, o meu livro sobre educação do consumidor custara-me os olhos da cara, mas ainda hoje é uma referência. Annette se olhares para o ano ali está escrito 1998, conheci-te no ano seguinte, só pasmo como a fotografia esconde os já inúmeros cabelos brancos

Referências de alojamentos pobretanas que me davam condições de trazer lembranças para os filhos
Os debates televisivos sobre consumo e qualidade de vida eram então frequentes. Fiz sempre o possível para nunca dizer não a quem me convidava
Gonçalo Ribeiro Telles tinha um dom muito especial na comunicação, era um encanto poder conversar com ele em colóquios ou sessões de trabalho. Era o exemplo vivo de que os sábios são intrinsecamente simples
Annette, pode ser que aconteça na nossa vida, irmos aos Bijagós, aqui te deixo uma recordação e um bilhete-postal de um pôr-do-sol na Ilha de Bubaque, com infinito amor
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21997: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória