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terça-feira, 24 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26952: Agenda cultural (891): "Querido Pai, uma conversa entre ausentes - Cartas da guerra, 1961-1975", por Ana Vargas e Joana Pontes; Tinta da China, Julho de 2025


A correspondência entre pais mobilizados e os seus filhos menores durante a guerra colonial

Prefácio: Aniceto Afonso
Julho de 2025 | 304 PP | 17,2 X 21,4 cm
ISBN: 978‑989‑671‑951-7

Envios a partir de 03/07/2025

********************

A história que aqui se conta é a da relação dos militares mobilizados para a guerra colonial portuguesa com os filhos menores que deixaram na Metrópole ou que vieram a nascer na sua ausência, vivida através da correspondência. Em aerogramas escritos e desenhados, o militar vai desempenhando o seu papel de pai. Os filhos, por seu lado, consoante a idade, vão respondendo da maneira que conseguem, por vezes com a ajuda das mães, dos irmãos ou de outros familiares. Esta troca de correspondência revela as inquietações de ambos os lados e oferece‑nos uma reflexão muito particular sobre a ideia de família numa sociedade em mudança, a par dos valores e dos contextos sociais que marcaram uma época fundadora na história do país.

«As cartas entre pais e filhos, normalmente ainda crianças, levam e trazem emoções especiais e sentimentos íntimos que devemos olhar com delicadeza e compreensão. Fazer História obriga‑nos a considerar também estes casos singulares das relações com as crianças, o que nem sempre é um caminho fácil.»

Aniceto Afonso, Prefácio

A devida vénia a TINTA DA CHINA
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Nota do editor

Último post da série de 22 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26947: Agenda cultural (890): Lançamento do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial": Lourinhã, 21 de junho de 2025: fotogaleria

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Guiné 71/74 - P26782: (De)Caras (231): O meu "mano" José Pedro Silva, sold, Pel Caç Nat 56 ... Ou a amizade não tem cor (Aníbal Silva, ex-fur mil SAM, vagomestre, CCAV 2483, Nova Sintra e Tite, 1969/70)



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CCAV 2483 e Pel Caç Nat 56 > c. 1º semestre de 1969 > Partida de futebol... (Os "manos Silva", Aníbal e Zé Pedro, são os dois militares da ponmta direita, na foto ao alto)



Sobrescrito da carta enviada ao José Aníbal Soares da Silva, fur mil, SPM 5698 (Nova Sintra)


Rementente da carta, José Pedro da Silva, soldado nº 27/0612, SPM 3978 (Bolama)



Carta do José Pedro Silva para o fur mil vagomestre Aníbal Silva:

Transcrição ("ipsis verbis):  

São João, 19 de janeiro de 1970

Inesquecível mano Aníbal:

Em primeiro de tudo desejo-lhe que esta minha
linhas lhe encontra com uma ótima saúde e 
felicidades.

Pois meu querido mano eu juntos
dos meus colegas e amigos do Pelotão, eu vou indo
menos graça a Deus o bom criador do Mundo.

Pois mano, por intermédio des-
tas minhas duas linhas, venho pedir grande fa-
vor de mandar-me oferecer 6 barries vazio, pa-
ra poder arranjar uma coisa, náo te esque-se por 
amor de Deus, por cabeça das suas famílias.

Pode entregar o nosso amigo Oliveira, ou Braz para
me guardar, até quando aparecer culuna para cá.

Mais nada por hoje obrigado,
Recebe abraço forte do seu irmão Zé Pedro.
Dê-me os meus cumprimentos para todos amigos de N. S.


Fotos (e legendas) Fotos (e legenda): © Aníbal Silva  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem de Aníbal Silva, ex-fur mil SAM, vagomestre, CCAV 2483 (Nova Sintyra e Tite, 1969/70); técnico de seguros, reformad0, vive em Arcozelo, Vila Nova de Gaia:

Data - 08/05/2025, 22:34

Assunto -. A Amizade Não Tem Cor


Caro Luís Graça

No poste  P26664 do dia 8 de Abril (*), fiz referência à enorme empatia que havia entre os militares da minha Companhia (Ccav 2483) e o pessoal do Pelotão de Caçadores Nativos 56.

Foram só três meses de convívio diário, mas suficiente para criar grandes amizades. Em Junho de 1969 o Pel Caç Nat 56 deixou-nos, tendo sido destacados para S. João, distante de Nova Sintra, mais ou menos 18 km e frontal a Bolama. 

Uma das amizades que restou, foi comigo e com o soldado nativo, de seu nome José Pedro da Silva. Como eu era tratado por Silva, o Zé Pedro associou o seu nome ao meu e dizia que eu era seu mano, irmão e também primo. 

Ver em anexo a sua carta de 19 de janeiro de 1970, em que começa com um "Inesquecível Mano" e na qual me pede 6 barris de vinho, obviamente vazios, para fazer cadeiras de baloiço. 

Não me recordo, mas muito provavelmente satisfiz o seu pedido, até porque os amigos são para todas as ocasiões.

Em dezembro de 1970 estava eu em Bissau na Comissão Liquidatária e numa deslocação ao Serviço de Saúde, instalado no Hospital Militar, onde fui resolver um auto relacionado com a enfermagem, ao passar por uma das enfermarias, ouvi chamar aos berros e repetidamente " Ó primo Silva".

Pareceu-me ser a voz do Zé Pedro, aproximei-me e era de facto. Estava internado para ser operado, extração de vários estilhaços que tinha nas costas. Seguiu-se um abraço emocionado. 

Na foto o Zé Pedro é o nativo à direita, junto a mim.

Um abraço de amizade

Aníbal Silva

(Revisão / fixação de texto: LG)

________________

Notas do editor LG:


(*) Vd. poste de 8 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26664: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (6): Pelotão de Caçadores Nativos 56 - Primeira vez debaixo de fogo e Emboscada virtual

(**) Último poste da série > 8 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26663: (De) caras (230): Dois manos ribatejanos que passaram por Mansabá, o Ernestino e o Nelson Caniço, um alferes e outro furriel, ambos de cavalaria, e hoje médicos

quinta-feira, 31 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23129: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (2): Carta à Luizinha

Empada - José Teixeira escrevendo

Em mensagem do dia 30 de Março de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos esta Carta à Luizinha para a série Cartas de amor e paz em tempo de guerra:


Cartas de amor e paz em tempo de guerra (2)


3 - Carta à Luizinha

Chamarra, 6 de fevereiro de 1969

Minha querida Luisinha

A noite de ontem foi vivida no seio da mata. Chegou-nos uma informação de que íamos ser atacados, pelo que decidi partir a meio da tarde com parte dos meus homens, e internar-me na floresta, perto do local de onde costumamos ser atingidos. De vez em quando aparecem ao cair da noite, e raras vezes, de manhã cedinho. Prevenir é sempre o melhor remédio… lá fomos nós dormir ao relento, o que por estas bandas até se torna agradável se não houver mosquitos a apoquentar-nos.

Deitado na terra húmida deixei-me envolver pela noite estrelada e um sentimento de autoconfiança veio substituir a confusão e o medo que antes sentia ao caminhar por entre lianas entrelaçadas pendentes de altas árvores com copas gigantescas talvez centenárias. O negro da noite estendeu-se sobre a terra como um abismo insondável, envolvendo-me. Quanto mais profundas são as trevas mais sombria se torna a minha vida e a minha alma. Porém, a escuridão da noite estrelada, sem a luz da lua por perto, assemelhava-se a um tecido negro e transparente onde miríades de pequeninas luzinhas bailavam no cosmos. O negro da noite ganhou vida e me convidou a retornar ao presente. Por vezes, o céu cobria-se de nuvens e o mundo ficava envolvido num negro tão negro que os nossos olhos como que cegavam. Nessas ocasiões vemos com os olhos da alma que nos convida a sermos persistentes e a mantermo-nos ainda mais atentos ao que nos rodeia.

Na alta madrugada, tempo em que o perigo tinha passado, deixei-me passar por um leve sono.

O dia preparava-se para sair do ventre da noite quando acordei. No cosmos, os astros já tinham perdido o seu inebriante brilho. As estrelas perdiam os seus raios de luz e ganhavam uma cor prateada que o sol nascente, a pouco e pouco fez desaparecer. Apenas uma a mais brilhante atraiu a minha atenção. Um fino raio da sua luz penetrou através dos olhos do meu coração. Deixei-me embalar por esta estrela que me ousara fitar de tão longe, rompendo a densa ramagem da floresta. A lesta imaginação, de uma mente perdida de saudade, leva-me, num ápice, até à minha terra, até junto de ti. Talvez tu, meu amor, te tivesses levantado cedo, como é teu costume, para te dedicares aos livros, e ao veres a estrela da manhã te lembrasses de mim e me encomendasses nas tuas orações a Nossa Senhora.

O sol renascido vertia mil raios de luz e calor, sobre a verdura da copa das árvores que nos protegiam, enquanto a límpida e fresca água do rio murmurava suavemente, espreguiçando-se nas margens do tarrafe em tempo de maré vazante, onde milhares de coloridos caranguejos se passeiam lentamente em busca do pequeno-almoço, tornando as margens num tapete natural de inimaginável beleza. Uma brisa leve e suave bateu-me na face amenizando o extremo calor matinal que o sol teima em projetar. Assim, mal dormidos e mal acordados levantamos a emboscada e seguimos alegres e confiantes o caminho de regresso a casa.

A receber-me, com um monte de roupa lavada e passada a ferro com todo o esmero, estava a minha lavadeira, a Binta. Os seus olhos escuros e penetrantes refletem tranquilidade. A paz em tempo de guerra. Os seus lábios parecem talhados em pedra púrpura, tão precisos são os seus contornos, assim como a fina linha dos seus grandes olhos, debaixo de umas sobrancelhas naturais e bem delineadas, pregadas numa face de tal forma bem desenhada pelo artificie divino que a tornam na mais bela mulher africana que conheci até hoje. As maçãs do seu rosto, de um preto rosado vivo e macio, dão-lhe um toque especial, que aliado ao seu aberto e transparente sorriso a tornam divinal.

Não tenhas ciúmes, minha querida Luisinha. A Binta vai casar brevemente com o Braima, filho do chefe de uma tabanca, não muito longe daqui, que está sob a minha proteção, com quem gosto de jogar às cartas enquanto conversamos sobre o mundo que nos rodeia. O mundo aqui, é muito pequeno, está fechado dentro de duas fiadas de arame farpado. Não fora a guerra que nos atormenta e estaríamos no paraíso, onde toda a gente se conhece e se dá bem, partilha alegrias e tristezas e o pão vai chegando para matar a fome.

Fico-me por aqui, contigo no coração. Sinto tanta necessidade dos teus abraços, do teu sorriso, de te poder dizer olhos nos olhos – amo-te.

E para que não fiques preocupada, os “nossos amigos” devem ter mudado de ideias ou passaram ao largo sem nos incomodar.

Um terno beijinho do teu
Zeca.
Algures no Sul da Guiné

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Nota do editor

Poste anterior de 4 DE JULHO DE 2017 > Guiné 61/74 - P17544: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (1): Navio Niassa, 5 de Maio e Bissau/navio Niassa, 7 de Maio de 1968

sábado, 25 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22845: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XV: Dezembro de 1966: a Op Harpa em que é ferido com gravidade o Quebá Soncó, que depois irá para o hospital de reabilitação de Hamburgo, na Alemanha


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadicna) > CCAÇ 1439 (1965/67) > Missirá > O alf mil João Crisóstomo e o régulo do Cuor, Malan Soncó, alferes de 2ª linha.

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)
(a viver em Nova Iorque desde 1977, 
depois de ter passado por Inglaterra e Brasil)



1. Continuação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)

Parte XV: Memórias do Quebá Soncó



Dias 2, 3 e 4 de Dezembro de 1966

Realizou-se a Op FIFA no Chão Balanta que consistiu em emboscadas e batidas na região de Colicunda, Durante as emboscadas não houve contacto com o IN.

Foram capturados três elementos , sendo dois de menor idade e entregues ao posto Administrativo e o terceiro entregue ao BCAç 1888.


Dia 7 de Dezembro de 1966

Eu fiz parte desta operação, mas não me recordo de pormernores, excepto do momento em que Quebá Soncó foi ferido. Por isso transcrevo o que consta do relatório até esse momento, e falarei/lembrarei depois Quebá Soncó.

(...) A CCaç 1439 realizou a Op Harpa na região a N de Cherel, a fim de explorar uma informação dum prisioneiro que disse conhecer a casa de mato de Cubadjal.

O prisioneiro que serviu de guia não colaborou devidamente com a tropa, tendo conduzido por um itinerário muito vigiadoo pelo IN. Desta forma as NT foram detectadas a cerca de 1.000 metros do acampamento por uma a sentinela dupla que se encontrava colocada sobre uma árvore absolutamente camuflada. À aproximaçnao das NT a sentinela disparou várias rajadas de P. M. alertando desta forma todo o acampamento. Quando as NT, numa tentativa de aproximação rápida do referido acampamento o mesmo encontrava-se abandonado. Feita uma batida, foi encontrada uma tabanca a qual tinha sido da mesma forma abandonada." (...) 

"Resultados obtidos: Destruiram-se 13 casas de mato no acampamento IN e 10 casas na tabanca satélite.

Foi destruida grande quantidade de arroz e capturados 4 pentes de munições cal 7.9.

Baixas estimadas em número não estimado."


E o relatório diz então que, "quando a sentinela disparava sober as NT ( portanto no início da aproximação) foi atingido numa perna o caçador auxiliar contratado Quebá Soncó, evacuado para o HMP". 

E o relatório prossegue:

(...) "Mais uma vez foi distinguido o 1º cabo nº 5939264, Dionísio Lopes Ferreira, tendo demostrado a sua competência e sangue frio,  não abandonado o ferido mesmo debaixo de fogo IN,  prestando uma assistência permanente e cuidadosa." (...)

Lembro bem esses momentos e a dedicação e sangue frio do cabo enfermeiro, como vem descrito.

O que discordo é do momento e situação em que isso aconteceu. Se isto tivesse sucedido durante a aproximação, não teria havido mais esse assalto ao campo inimigo, deixando o enfermeiro a cuidar de Quebá Soncó.

Estas “rajadas de metralhadora” e o ferimento de Quebá Soncó foram depois do assalto quando já regressávamos e de repente começou um forte tiroteio, que era a uma distância razoável e que durou algum tempo. 

 Lembro-me que estava a disparar a minha G3 como um louco para onde me parecia vir o fogo IN, quando o o Quebá Soncó, que estava mesmo ao meu lado esquerdo,   foi ferido. E lembro que o fogo, embora de longe, ainda continuou por algum tempo, e de ver o enfermeiro Dionísio, ainda o tiroteio não tinha acabado, a ajudar o Quebá Soncó e logo a pedir que chamassem um helicópetro para o evacuar para Bissau.

Não sei se Quebá Soncó era considerado “caçador auxiliar contratado”. Ele era o filho do régulo de Missirá, Malan Soncó, a quem na devida altura iria suceder como régulo de Missirá. O que sei é que ele estava sempre connosco,  sempre com um grande sorriso contagiante e sempre voluntário inspirando com o seu exemplo o resto do pessoal da tabanca. 

Depois do meu regresso a Portugal,    escrevemo-nos por algum tempo. A sua volta à Guiné, em outubro de 1967.   simultânea com a minha ida para a Inglaterra,  ocasionou a perda de contactos. Mas lembro-o sempre assim, amigo e brincalhão também. E assim continuou, mesmo depois de ter sofrido a amputação duma das pernas. 

Uma das cartas que seguem, foi escrita já depois de ter regressado à Guiné  (, datada de Bambadinca, 18 de outubro de 1967). A outra carta que junto também, escrita quando ele estava na Alemanha Ocidental (, Hamburgo, 6 de agosto de4 1967), é uma boa amostra da sua jovialidade. Nunca mais o esquecerei. Já falei de Quebá Soncó numa outra ocasião (Vd. poste P21797)  (**)

Acabada a Guiné, quando voltei, logo que fui a Lisboa  fui visitá-lo ao Hospital Militar Principal.  Ficou contente de me ver e mostrou vontade de conhecer Lisboa antes de partir para a Alemanha onde ia para lhe porem uma perna artificial. E, mesmo na condição em que ele estava, de muletas  – ele insistia que não era problema e se podia movimentar – eu peguei nele e de taxi andei com ele  dum lado para outro  e mostrei-lhe Lisboa tanto quanto pude fazer.  Ele não o esqueceu e  depois de voltar à Guiné escreveu-me uma carta lembrando isso, carta essa que faz parte  do mencionado Poste de 23 /01/21 (**).


Dia 17 de Dezembro de 1966

No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta. Noto que esta operação é quase uma repeticão de uma que teve lugar em 10 de Junho, operação GOLO 1. A região era realmente muito perigosa, como tristemente e à custa de muitas mortes nas NT,  se viria a  confirmar depois da CCaç  1439 ter voltado, acabado o seu tempo de comissão na Guiné. E por isso a  frequente presença da CCaç 1439 nesta região, durante a nossa “comissão”.

Para que conste  transcrevo o relatório:

(...) "No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta, que  consistiu em montagem de emboscadas a N de Chubi e Sée seguida de batida às tabancas de Bissá, Funcor, Blassé, Sée e Chubi.

Durante esta operação não foram detectados quaisquer elementos supeitos. Verificou-se que a população  manifesta desejos de melhor colaborar com a tropa, dando a impressão de fadiga de descontentamento perante as atitudes do IN que visita aa tabancas, exigiundo tudo inclusive bufalos. As NT através de palestras e pequenos serviços de enfermagem continuous a exercer influência psicológica no seio da população.

 Dia 23 de Dezembro de 1966 : Ataque a Missirá (vd. próximo poste, Parte XIX)

 



Carta do (António Eduardo) Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo,  Datada de Hamburgo, 6 de agosto de 1967. Reprodução de alguns excertos:

(...) "Sr. Crisóstomo, recebi a sua carta, há já algusn dias, mas foi-me impossível respodner-lhe mais cedo, do que peço muita desculpa. (...) Fui operado à bexiga, pois apareceram-me uns micróbios nela: não é nada de grave, pois há me levanto e não dói quase nada..

"Logo que cheguei à Alemanha, dali por poucos dias, deram logo a perna [prótese] e agora ando a treinar a andar. Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês. Ainda me custa um bocadinho mas, depois de estar mais habituado,já não me vai custar tanto. No princípio custava-me muito mais porque a perna [prótese] estava um pouco grande, mas depois tiraram-lhe 2 centímetros e agora isto vai bem".

E depois acrescenta: "Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês."

Sabemos que partiu para a Alemanha a 23/6/1967, pela carta que escreveu nessa data ao João Crisóstomo, a despedir-se dele e a agradecer-lhe a sua amizade (**).   Deve ter regressado a Lisboa em setembro de 1967. Esteve no Depósito Geral de Adidos à espera de transporte para Bissau aonde chegou a 3 de outubro de 1967, conforme aerograma datado de Bambadinca, 18 desse mês e ano.

Sobre o hospital disse ainda o seguinte:

(...) "Isto aqui é muito bonito e muito bom. Eu logo que possa sair para a rua, ponho-me logo a mexer pois as meninas aqui são muito boas e andam quase todas de mini-saia (...)

"A assistência médica aqui é tão boa como em Portugal ou ainda melhor, estamos todos muito satiosfeitos (...).

"Sr. Crisóstomo, como o Sr vai para Inglaterra e não pode ir ver-me ao hospital em Lisboa, eu fico muito triste, palavra de honra. Aproveito para lhe desejar boa viagem e muitas felicidades na Inglaterra" (...)

 



Aerograma do Quebá Soncó, para o João Crisóromo, datada de 18 de outubro de 1967, quando o destinatário já estava em Inglaterra. Num português quase impecável, o remetente dá conta do seu regresso a Bissau, depois de ter estado internado no Hospital de Reabilitação de Hamburgo, Alemanha  (então Ocidental) e pede desculpa de não ter podido responder mais cedo ao João Crisóstomo:

 " (...) estive muito tempo no Depósito Geral de Adidos  [em Lisboa] e só cheguei a Bissau em 3 do corrente ".

E acrescenta: 

"Já estive com a minha família que ficou não só muito satisfeita por me ver como também ficou muito agradecida ao amigo João Francisco  [Crisóstomo ] pelas atenções que teve comigo quando da minha estadia na Metrópole. Eu também nunca esquecerei a sua amizade e toda a vida hei de recordar os belos passeios que me proporcionou"


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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terça-feira, 16 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19983: (Ex)citações (354): Como é que a máquina burocrática do exército fazia chegar, à família, a notícia funesta da morte ou desaparecimento em combate de um militar ? O caso do sold at cav nº 711/65, José Henriques Mateus, desaparecido no rio Tompar, afluente do rio Cumbjiã, no decurso da Op Pirilampo, em 10/9/1966 (Jaime Silva, seu colega de escola, no Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

Brasão da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67)


José Henriques Mateus (Lourinhã, Areia Branca, 1944 - Guiné, Rio Tompar, região de Tombali, 1966)


I. A notícia do desaparecimento do soldado n.º 711/65 José Henriques Mateus, sold at cav, CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido no rio Tompar, em 10/9/1966(*)



por Jaime Silva [, foto à esquerda, 2014]


1.O DEPÓSITO GERAL DE ADIDOS CENTRALIZAVA A INFORMAÇÃO (**)


Os Serviços da República Portuguesa, através das Forças Armadas, tinham um Serviço especializado para este efeito. A primeira comunicação da morte ou acidente de um militar ocorrida durante a sua Comissão no Ultramar era da responsabilidade do Comandante da Unidade a que pertencia o Militar em questão. 

Este, via rádio, comunicava as circunstâncias da ocorrência ao superior hierárquico que, por sua vez, encaminhava o "assunto" para o departamento responsável, o Depósito Geral de Adidos.

A partir desse momento todas as formalidades eram da sua competência:

i) informar todos os departamentos governamentais e das Forças Armadas com responsabilidades na condução da Guerra;

ii) enviar um "telegrama à família", via CTT, a dar a notícia (nunca as Forças Armadas de Portugal enfrentaram diretamente as famílias para lhes darem essa notícia, escudaram-se nos carteiros, mas isso é outra história!);

iii) realizar o funeral na respetiva Província onde ocorreu o acidente (por vezes, sobretudo no início da Guerra, os miliares eram sepultados nos cemitérios locais);

iii) trasladar o caixão chumbado com o corpo do militar para Portugal e realizar o funeral no cemitério da sua freguesia (até 1968 as famílias dos militares tinham que pagar ao Estado as despesas com o transporte do caixão);

iv) tratar de enviar à família a mala com o seu espólio (quase sempre, era o melhor amigo que realizava esta "operação");

e, v) tratar da documentação a enviar à família para que esta pudesse receber a "pensão de sangue", quando tinha direito (nem todas as famílias, apesar da morte dos filhos no Ultramar, tiveram direito a essa "pensão").

2. O CASO CONCRETO DO SOLDADO N.º 711/65, MATEUS - S.P.M. 3008:

Oficialmente a notícia do desaparecimento do soldado José Henriques Mateus seguiu a rotina habitual:

(i) O Comandante da Companhia enviou para o Comandante de Batalhão a notícia do desaparecimento do Mateus e este fez seguir a informação para o Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG) que se limitou a enviar, via rádio, a informação para o Depósito Gerald e Adidos, sediado em Lisboa.

A partir daqui os militares da Secretaria adstrita ao Comando do Depósito Gerald e Adidos, na altura chefiada pelo Coronel de Infantaria Amândio Ferreira, põe em marcha um conjunto de procedimentos de rotina:

1.º Através do Ofício N.º 1893/B - P.º 183 e datado de Lisboa, 14 de setembro de 1966, informa:

a) Chefe da 1.ª Seção da Rep. do Gabinete do Ministro do Exército;

b) Chefe da Rep Geral DSP/ME;

c) Chefe do Serv. Inf. Pública das Forças Armadas do Dep. da Defesa Nacional;

d) Chefe do Estado Maior do QG/GML;

e) Chefe da Repartição de Sargentos e Praças DSP/ME;

f) Chefe da Agência Militar;

g) Comandante do R.C.7 (Leiria).


2.º Depois, dá conhecimento, a partir de Lisboa, ao Chefe de Estado Maior do Quartel General do CTI da Guiné que informou aquelas entidades oficiais do teor do seguinte rádio:


"ASSUNTO: DESAPARECIMENTO DE PRAÇA NO ULTRAMAR

“Para os devidos efeitos, transcrevo a V. Exa. o rádio N.º 1859/A de 12.9.66 do CTI da Guiné, que é do teor seguinte:


“DESAPARECIDO OPERAÇÕES 10.19.00SET66 JOSÉ HENRIQUES MATEUS SOLDADO 6951665 CCAV 1484/RC 7 NATURAL FREGUESIA CONCELHO LOURINHà FILHO JOAQUIM MATEUS JÚNIOR E ROSA MARIA RESIDENTE LUGAR DA AREIA BRANCA CONCELHO LOURINHÔ.

Informo V.Exa. que foi enviado telegrama à família do desaparecido comunicando a ocorrência”.

"O comandante
Amândio Ferreira
Coronel de Infantaria".


Exemplo de um telegrama  enviado à família de um outro militar, o fur mil João Carlos Oliveira Martinho, neste caso com data de 26 de maio de 1973, às 12h32, assinado pelo Comandante do Depósito Geral de Adidos, Ajuda Lisboa. (A família do Mateus deve recebido um, de teor similar,  7 anos antes.)

"Nº 602787. Sua Excia Ministro Exército tem pesar comunicar falecimento seu filho furriel miliciano João Carlos Oliveira Martinho ocorrido dia 25 corrente Guiné por motivo combate defesa da Pátria Sua Excelência apresenta mais sentidas condolências

"Comandante Depósito Geral de Adidos
Lisboa".


O fur mil cav Martinho pertencia ao EREC 8740/73, sediado em Bula, e morreu em combate em 25 de maio de 1973.




II. Depoimento de José Francisco Couto [, ex-sold at cav, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67, natural do Bombarral, vive há muito no Canadá] (***):

O soldado n.º 699/65 – S.P.M. 3008, José Francisco Couto, natural de Baracais, freguesia da Roliça, concelho do Bombarral, foi camarada de pelotão do Mateus e seu amigo. Participou na “Operação Pirilampo”, assistindo ao desaparecimento do Mateus quando ambos atravessavam o Rio Tompar. Escreveu dois Aerogramas à mãe do Mateus. 

Durante a consulta do espólio do Mateus,  encontrei entre a sua correspondência dois aerogramas enviados à mãe do Mateus pelo José Francisco Couto. Neles, lamentava as circunstâncias da morte do filho e afirmava que a iria visitar logo que regressasse da Guiné, uma vez que eram naturais de concelhos vizinhos.

Transcrevo o segundo aerograma que enviou à mãe do Mateus em 8 de novembro de 1966:


Catió,  8 Nov966

Prezada Senhora:

É com os olhos rasos de lágrimas que novamente me encontro a escrever-lhe, sendo ao mesmo tempo a desejar-lhe uma feliz saúde, a si e aos seus filhos, que eu cá vou indo na graça de Deus.

Sei, senhora Rosa, que ao receber esta minhas notícias mais se recorda da tragédia que lhe roubou o seu querido filho, pois é com mágoas no coração que lhe respondo a tudo quanto me pergunta e peço a Deus que não a vá magoar mais com tudo o que lhe possa dizer. Pois compreendo que, além da minha dor ser enorme, a sua não tem palavras, pois o destino foi traiçoeiro. Sim, a Senhora pede-me que lhe explique como tudo se passou. Pois sou a dizer-lhe tudo o que sei.

Foi uma das saídas que nós tivemos, durante o dia tudo se passou da melhor maneira na graça de Deus e nós nos sentíamos satisfeitos, mas no regresso tivemos que atravessar um rio e a corrente era enorme, como enorme era o peso que trazíamos.  [E foi aí] que ele [, o seu filho,]  ao passar, a corda se partiu e foi quando ele foi parar ao fundo sem mais ninguém o ver. 

[Logo] quatro camaradas nossos, mal pressentiram o que se estava a passar, atira[ra]m-se à água e mergulharam ao fundo para ver se o encontravam,  correndo o rio de cima para baixo e vice versa mas o resultado foi o que Senhora já sabe. Não o conseguiram encontrar pois a corrente o arrastaria logo, foi como um balde de água fria que caiu sobre nós e todos os esforços que juntos fizemos foram negativos. 

Esta é apenas a verdade que podem contar à Senhora [e] aos seus filhos. Sim, também me diz que apareceu alguma coisa dele, e é certo, mas não o que a Senhora me diz. Apareceu, sim, o que lhe vou contar.

Passados alguns dias nós voltámos a passar por lá, e foi nessa altura [que] um dos alferes encontrou uma parte da camisa e a carteira no bolso, pois a parte da camisa era só [a] da frente e tinha o bolso onde estava a carteira, que o alferes tem para lhe enviar tudo junto, [o] que resta do seu querido filho. 

E a Senhora não precisa de tratar nada, pois a companhia já tratou de tudo, também tratou dos papéis para a Senhora ficar a receber algum dinheiro que bastante falta lhe fará. 

E, assim, minha Senhora, não quero alongar mais as minhas notícias pois elas só lhe levam mágoas. No entanto, mais uma vez lhe digo, a companhia está a tratar de todos os assuntos e lhe enviará todas as suas coisas. 

Sem mais me despeço, com muitas saudades para os seus filhos, um aperto de mão para todos, para a Senhora também deste que chora também a sua dor.

José Couto 


[Revisão / fixação de texto: JS/LG]


3. Nota adicional de JS:

O Mateus nasceu, na Areia Branca, Lourinhã, a 17.10.1944, e foi meu colega da escola primária, no Seixal, Lourinhã. Assentou praça no RI 7 em Leiria no dia 4 de maio de 1965 com a idade de 21 anos e, numa altura em que, como me disse o seu irmão Abel, era o “homem da casa” e o “braço direito da mãe”, uma vez que o pai já tinha falecido e tinha, ainda, mais duas irmãs e um irmão para ajudar a criar. 

Sobre as dificuldades das famílias em criar os seus filhos naquela época em que os trabalhadores do campo labutavam de “sol a sol” para ganharem uma “côdea”, são contas de outros rosário. A mãe do Mateus não escapava a estas dificuldades. Nem nestas circunstâncias o Governo de Portugal tinha alguma consideração: Ala para a guerra. Quem fica, que se amanhe! (****)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado

Comentário de LG:

Jorge: Para já, o meu/nosso muito obrigado por este inventário, doloroso mas precioso, tratando-se de camaradas mortos, por afogamento, no CTIG... Mas, se eu bem li os teus postes [...], há mais um caso omisso: o sold at cav, José Henriques Mateus (1944-1966), que pertenceu à CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), e que desapareceu em combate em 10/9/1966, no rio Tompar, afluente do rio Cumbijã, no decurso da Op Pirilamp, no setor de Catió, região de Tombali... Estive há tempos, na sua terra, Areia Branca, Lourinhã, justamente a participar numa homenagem póstuma à sua memória... Houve camaradas da sua companhia que chegaram a ponderar a hipótese de ele não ter morrido, mas antes ter sido feito prisioneiro pelo PAIGC... A verdade é que o corpo nunca foi encontrado. 
(...)

(**) Vd. poste de 11 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13127: Homenagem póstuma, na sua terra natal, Areia Branca, Lourinhã, 11 de maio próximo, ao sold at cav José Henriques Mateus, da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido em 10/9/1966, no Rio Tompar, no decurso da op Pirilampo. Parte VIII: Como é que a funesta notícia chegou à família ?... Através do carteiro... (Jaime Bonifácio Marques ds Silva)

(***) 10 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13123: Homenagem póstuma, na sua terra natal, Areia Branca, Lourinhã, 11 de maio próximo, ao sold at cav José Henriques Mateus, da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido em 10/9/1966, no Rio Tompar, no decurso da op Pirilampo. Parte VII: Dois importantes depoimentos de camaradas e amigos do Mateus, o sold at cav, José Francisco Couto (Bombarral e Canadá e o ex-fur mil radiomontador Estêvão Alexandre Henriques (Lourinhã) (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

(****) Último poste da série > 3  de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19943: (Ex)citações (353): Uma achega referida à circunstância da morte em combate de Guerra Mendes, comandante do PAIGC (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705)

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19237: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 71: A última carta (, "de amor, ridícula"), com data de 9 de junho de 1974, escrita sem saber que a sua mâe já tinha morrido no dia 1... Foi também a única, em centenas, que nunca chegaria ao destino...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > O Dino, no rio Fulacunda, junto ao "porto fluvial"

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita
, "Em Nome da Pátria"), do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):

José Claudino da Silva, chapeiro em Amarante
Quase a chegar ao fim da sua viagem pelas memórias de Fulacunda, socorrendo-se do seu "roteiro literário-sentimental", o autor evoca aqui, no capº 71,  "a última carta" que escreveu à sua Amélia, namorada e futura esposa, com data de 9 de junho de 1974, sem saber que a sua mãe tinha morrido no dia 1...

Passa por alto ou por cima de acontecimentos (coletivos) como o 25 de Abril e a retração do dispositivo das NT ou os primeiros contactos "pacíficos" com o PAIGC em Fulacunda.

Recorde-se, por outro lado  que o autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. 

O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. 


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cap 71º


71º Capítulo > A ÚLTIMA CARTA

Estou muito perto de terminar esta partilha confidencial de emoções que guardei, sem nunca ter intenção de divulgar. Entre o drama e a comédia, tentei dar-vos uma visão dum soldado que escreveu apenas por amor, num tempo de guerra.

A partir de Março de 74, e talvez por influência da mãe e do irmão, a Amélia deixou de guardar o correio que lhe enviava. Embora eu continuasse a escrever, já não o fazia tão assiduamente. 

No meu mapa, não está marcado que tenha escrito, por exemplo, no dia 25 de Abril de 1974. Sei que festejei esse acontecimento em Fulacunda mas não me lembro como foi.

Ora, como é lógico, e partindo do princípio que me norteou, não quero citar nada que não possa provar. Contudo, mesmo assim, ainda consegui reaver alguma correspondência sem grande relevância,  excepto a última que escrevi.

Esta última carta tem 12 páginas que perfazem um total aproximado de 2700 palavras. Como digo, a última que escrevi na Guiné. Sendo a última, vou transcrever algumas frases, aleatoriamente:


“Fulacunda Domingo 9 de Junho de 1974.

Desejo que esta carta te encontre de boa saúde, eu não me sinto muito bem.
Ficarei bem se amanhã conseguir falar-te.

Quando a gente está na cama doente é que pensa em mais coisas.
Sofri mais nestes 24 meses na Guiné que no resto da minha vida”.


Com 2700 palavras fazem-se muitas frases, mas nesta carta quase adivinhando o que poucas horas depois iria suceder, estão também alguns desabafos e um estranho balanço amoroso.

Confio no vosso sentido de humor ao lerem o que vos ofereço e lembro-vos que as cartas de amor são sempre ridículas.

“Quando vim para aqui não queria ocultar-te nada no entanto tive de ocultar-te muitas coisas. Ataques que sofríamos e não queria que ficasses em cuidado porque na verdade passamos muitos perigos. Estou até a recordar-me de uma vez em que fui para o mato numa operação para assaltarmos um acampamento de terroristas mas que só por felicidade eles não estavam lá. Mas bem isso não te interessa.

Se tu tens razões para pensar que eu tenho outra eu quero que sejas sincera e me digas se eu tenho ou não razões para pensar que tens outro.

Primeiro: Pouco depois de eu vir para aqui num aerograma dizem-me que tens outro namorado.

Segundo: Numa visita que a minha avó fez a tua casa vê um rapaz a sair de lá.

Terceiro: Quando fui de férias e nos chateamos, logo que te deixei, ficaste pouco aborrecida o que demonstra pouco interesse.


Desculpem, mas estou confuso, não tenho o quarto motivo. Não interessa! Adiante!

Quinto: Nunca atendeste um pedido meu com a solicitude que devias.

Sexto: As cartas que me escrevias e muito mais os aéros, chegavam a ter três semanas de atraso e mais, sem que te preocupasses com isso.

Sétimo: Em 24 meses recebi cinco fotografias e isto porque te supliquei quase sempre que as mandasses.

Oitavo: Tu não respondias em condições às minhas cartas mostrando dessa maneira um total desinteresse por aquilo que te mandava.

Ainda teria muito mais coisas para te dizer…”


Francamente!... A guerra colonial, comparada com a minha guerra amorosa, ficou nitidamente a perder.

Atenção! Na quinta página ainda afirmo que esta ingrata me vai pagar com juros. Pois, mas na sexta página, depois de dizer que ela até havia de morrer, digo:

“Tens beijos de fogo que me acendem o coração.

Vou dormir e nem quero sonhar contigo.

Já dormi e fui ver se a chamada que marquei para falar contigo pode ser feita. Por acaso pode por isso amanhã às 14H30, quatro horas e meia da tarde aí na Metrópole vou tentar mais uma vez falar-te”.


Esta última carta devia ser a única a não chegar ao destino. Nas páginas 9 e 10 escrevi a história da Bela Adormecida. Na página 11 tem um poema da minha autoria, para ser cantado na música de Gianni Morandi “Non son degno di te”[1964] [Vd. vídeo no You Tube, disponível aqui, com legendas em português do Brasil]

Ultimo parágrafo:

“Havias de ter os lábios gelados quando beijares outro que não fosse eu, havias até de te transformar numa estátua de gelo”.

“Dino”


Acham que foram as bombas, os tiros, em suma, a guerra… que me fizeram sofrer mais?

(Continua)

3. Nota detalhada dobre o autor e sinopse dos postes anteriores [vd. aqui]
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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18042: Notas de leitura (1020): “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena”, organização de Iva Cabral, Márcia Souto e Filinto Elísio, Editora Rosa de Porcelana, 2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Trata-se mesmo de um livro inesperado, de uma coletânea de cartas que Amílcar Cabral enviou à colega, namorada e mulher Maria Helena Ataíde Vilhena Rodrigues entre 1946 e 1960.

O aspeto nuclear que detetei nesta epistolografia é a mentalidade e o processo cultural de um jovem educado em Cabo Verde que se insere gradualmente no meio académico, associativo e político. Numa toada crescente iremos ver enfatizadas as questões raciais, a vida colonial, o entusiasmo em poder ser útil aos outros. Leremos vezes em conta exaltação da Humanidade e da africanidade. Mas esse mesmo processo tem um poderosíssimo reverso na medalha, o amor incondicional de Amílcar por Lena, aqui exaustivamente documentado.
É mesmo a outra face do homem que se tornou num dos mais significativo líderes revolucionários africanos.

Um abraço do
Mário


De Amílcar Cabral para Maria Helena: 
Somos dois seres válidos e desejosos de ser úteis

Beja Santos

Vamos falar de um livro inesperado, “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena”, organização de Iva Cabral, Márcia Souto e Filinto Elísio, Editora Rosa de Porcelana, 2016. Amílcar Cabral chega a Lisboa em 1945, e depois de algumas vicissitudes inscreve-se no Instituto Superior de Agronomia. É aqui que vai conhecer Maria Helena, que será sua mulher, suprema confidente, companheira de ideais. A seleção de cartas (que vão de 1946 a 1960) permitem-nos acompanhar um amor em construção e perceber as frases sublimes que Amílcar escreve a Lena em 30 de Julho de 1960, já está decidida a clandestinidade e ele escreve à mulher para que esta tome decisões práticas, que irá enunciar detalhadamente. Mas o importante é a abertura e o termo da missiva:

  “A minha posição é a tua, a tua posição é a minha (…) só há um caminho, aquele que, decididamente, vamos continuar a percorrer juntos. Além de toda a falta que fazemos um ao outro, enquanto estiveres aí, longe de mim, ser-me-á sempre difícil trabalhar como julgo que posso, ser completamente útil, livre das amarguras da saudade e da intranquilidade”.

Depois do rol de tarefas que cabem a Lena executar antes de partir para Paris, Amílcar despede-se:

“Por hoje, paro aqui. Cheio de saudades mas cheio de esperanças no futuro, na vida vida que vamos construir. E a certeza, a consciência, a alegria de que esta carta é talvez a mais bela carta de amor que já te escrevi”.

O Amílcar Cabral que chega a Lisboa é já medularmente culto, de uma cultura europeia irrepreensível. Sintomático o que escreve em Outubro de 1946, na fase de aproximação, a relação é muitíssimo tenra: “Como tenho por norma teimar na realização dos meus desejos…”. Feita a aproximação, há o envio de poemas, são cartas súplices de quem pede companhia e confessa solidão, agora já se tratam por tu, analisam os seus sentimentos, sempre que Lena se ausenta para o Norte Amílcar fica desasado e confessa que precisa como de oxigénio das suas cartas. Canta a sua felicidade pela revelação amorosa, toda esta correspondência revela uma cabeça bem estruturada, não há uma rasura, um voltar atrás. Ela disserta sobre o racismo, e quando ela lhe confidencia que há pessoas que a interrogam sobre a natureza da relação que estabeleceu com Amílcar ele responde no processo da construção amorosa e na confiança inquebrantável que se estabeleceu entre os dois.

Em termos económicos, Amílcar vive precariamente e nas férias grandes de 1948 vai trabalhar na Caixa de Previdência dos Metalúrgicos, conta o seu ramerrame, manda-lhe sonetos, escreve em Francês, quer insistentemente saber o que ela faz e como está, revela-lhe os seus padrões morais e o porquê da sua fidelidade, porque é que ele não frequenta “tais sítios”:

“E não frequento, não só porque tu não gostas, pois antes disso já não frequentava, mas também porque eu não quero. Há uma razão muito forte: é que tenho em mim alguma coisa que me não pertence, que recebi dos meus antepassados e que tenho que legar aos meus filhos – alguma coisa que não tenho o direito de destruir. Sei que me compreendes”.

Ao longo de Agosto desse ano Amílcar desnuda os seus sentimentos: quer ir viver para África, diz expressamente “tenho de ir para África”, pretende ser útil à humanidade, mas acrescenta: “Mas tu estarás comigo. Eu não vou deixar que tu fiques. Eu farei tudo, tudo para que me acompanhes sempre. Que será vida para mim, sem ti?”. As juras de amor intensificam-se, o par entrou em fusão. Muitas vezes Amílcar escreve-lhe da Leitaria da rua dos Lusíadas, vive num quarto alugado na Calçada da Tapada.

A ternura pela mãe Iva, a quem ele trata por mamã, é inexcedível. Julião Soares Sousa foi quem desfez o mito de que a pessoa mais importante na vida do jovem Amílcar fora o pai, Juvenal Cabral. Nesta correspondência, reserva-lhe uma magra referência, aliás para exaltar Iva que vai a casa do ex-marido para o tratar, gesto que sensibiliza Amílcar. Em 1949, no livro de curso, dedicará à mãe o mais terno dos seus poemas:

“P’ra ti, Mãe que me deste / A tua alma viva / E o teu Amor profundo, / Maior que o próprio Mundo! / Aceita este tributo, / Que tudo quando eu for, / Será do teu amor, / -Tua Carne, Mãe, teu fruto! / Sem ti, não sou ninguém. / Sou só – porque és Mãe”.

É um jovem adulto muito informado, é longa a carta em que fala detalhadamente sobre o apartheid sul-africano. Confessa o seu orgulho nos negros que estão a triunfar nos Jogos Olímpicos desse ano em Londres. Gosta de futebol, alinha na equipa de Agronomia, vai ao estádio da Tapadinha, mas o seu clube preferido é o Benfica.


Há alterações profundas na correspondência a partir de 1950, a crítica ideológica é latente, Amílcar interessa-se pela filosofia e discreteia sobre a morte, pondo em paralelo a morte com a luta do amor contra o ódio, fala cada vez mais no progresso, na humanidade, na insensibilidade com os excluídos. Cresce o seu interesse pelos assuntos familiares. Mudou de quarto, vive na Avenida Casal Ribeiro, reparte o alojamento com Marcelino dos Santos. Começa a dactilografar cartas. Os assuntos raciais ganham substância, estuda-os, diz-se seguidor das doutrinas da ONU.

Parte primeiro para a Guiné, vai cheio de projetos, descreve a Granja de Pessubé, de que é diretor. Em 1953, em pleno recenseamento agrícola, à sua responsabilidade, escreve-lhe à peça de Farim, e desabafa: “Céu encoberto, chuva constante, calor, muito calor. Sempre a tua presença, até no gesto do bocado que se leva à boca. Querendo que assistas às minhas conversas, sentindo-te assistir a todos os meus atos”.

E depois Angola, em Catumbela, estamos em 1955, trabalha em Cassequel, suspira de amor, observa a miséria, e diz abertamente: “Miséria contra a qual hei de lutar”. Lê com entusiasmo Jorge Amado, talvez a série de livros “Subterrâneos da liberdade”, cita com abundância esse mundo brasileiro, tem imagens poéticas: “a luz do luar e luz do sol, do luar do amor e da esperança num céu grávido de estrelas, de sol nascendo da terra, das entranhas da terra, do coração dos homens e das mulheres que lutam, do olho simples e interrogativo das crianças desamparadas”.

O lutador pela liberdade está formado, é a fase em que investirá no nacionalismo angolano. Lena é tratada como “minha companheira querida do meu coração”. E assim chegamos à carta de 30 de Abril de 1960, em breve se reunirão em Conacri. Nada mais é incluído nesta correspondência selecionada por Iva Cabral e outros. Anos depois, em Argel, consumar-se-á a rutura.

O que há de fundamental nestas cartas de amor é percebermos como houve um projeto a dois, uma extraordinária mobilização para derrubar preconceitos e assumir riscos. E acompanhar o elevado grau de cultura daquele jovem que vinda dos meus meios liceais cabo-verdianos e amou Lisboa e se transformou na cumplicidade com Lena, a colega que dava pelo nome de Maria Helena Ataíde Vilhena Rodrigues, a destinatária que guardou esta admirável epistolografia.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18032: Notas de leitura (1019): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (11) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 4 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17544: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (1): Navio Niassa, 5 de Maio e Bissau/navio Niassa, 7 de Maio de 1968


Empada - José Teixeira escrevendo

1. Em mensagem do dia 29 de Junho de 2017, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos as duas primeiras "Cartas de amor e paz em tempo de guerra", série que esperamos seja continuada.

Meus caros amigos editores:

Junto mais um texto com um tema novo e pouco trabalhado – Cartas de amor.
Espero que gostem.

Abraço do
Zé Teixeira


Guiné > Bissau > 29 de dezembro de 1971 > Chegada do
T/T Niassa. Foto do ex-al mil, António Sá Fernandes,
CART 3521 (Piche) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão)
(1971/73).
Cartas de amor e paz em tempo de guerra (1)


 1 - Barco Niassa, 5 de maio de 1968

Minha querida

Pára! Senta-te no sofá e procura concentrar-te em mim, pois neste momento, eu, o teu amor,  estou junto a ti, de alma e coração, na amurada do Niassa.

A minha maior preocupação é saber como estás. Calculo que tiveste de fazer um enorme esforço para voltares a ti, já que a minha partida para a Guiné te desorientou. Conheço-te o suficiente para avaliar o teu sofrimento. Creio que tu sofreste mais, com a minha partida, que propriamente eu.

Agora confia na tua força de vontade para voltares a ser, tal como és:  alegre, comunicativa, sempre bem-disposta, com Fé em Deus, que te diz que o teu amor voltará, disposto a amar-te ainda mais. Voltarei para construirmos o nosso futuro em felicidade.

Parto para esta guerra confiado no amor que me dedicas e essa confiança será o meu alento para as lutas na Guiné. Neste momento sinto mais medo da luta que terei de travar comigo mesmo que propriamente da guerra que terei de fazer, ou seja,  a luta contra os bandoleiros que infestam a Província. Conto com a tua ajuda moral e sobretudo espiritual para vencer todas as batalhas que terei de travar para bem do nosso futuro. Deste modo, com a tua ajuda, daqui a vinte meses, estarei junto a ti, com Missão Cumprida,  para não mais me afastar.

Sabes! Estou contente comigo mesmo. Não contava com tanta resistência de minha parte, na despedida. Parti confiante. Os únicos momentos em que vacilei, foi quando me despedi da minha mãe. As lágrimas teimavam em descer pela face, mas consegui segurar-me. Também me custou separar-me de ti. Ainda estou a ver-te sentada no cais de Campanhã a dizer-me adeus, com o teu sorriso de dor e coração apertado.

Não sei como classificar esta viagem em que vamos metidos num porão enorme, como animais para o matadouro. São centenas e centenas de jovens de olhar perdido e estômago revoltado. O cheiro a vómito é abafador, tal como calor que nos persegue dia e noite.

Quinta feira ao fim da tarde sentia uma grande dor de cabeça. Havia algo dentro de mim que não estava bem. Faltava-me a tua presença, sempre querida. Isolei-me na proa do barco, no meio de centenas de camaradas. Então tu apareceste através do telegrama que recebi com a tua mensagem de amor. Não calculas quanto me soube a tua presença ali a meu lado. Como adivinhaste que eu precisava de ti? Sabes, o telegrama veio na hora certa.

As viagens marítimas são formidáveis, mesmo num barco carregado com cerca de mil e oitocentos homens. O ambiente por vezes até parece um arraial minhoto. Muitos encostam-se à amurada e espraiam o olhar no vazio dos céus e mar que nos rodeia. De algum modo estou gostando e espero repeti-lo dentro de vinte meses no sentido inverso. Aí, sim, cantaremos de alegria.

Dizem que estamos a chegar, mas sei que não vou desembarcar hoje, Domingo, em Bissau. Dizem que vamos partir noutro barco e desembarcar algures nas margens do Rio Cacheu. Conto desembarcar com o pé direito, sem foguetes ou balas a assobiar por cima da cabeça.

Confiado no grande amor que me dedicas, fico-me por aqui, com desejos que te encontres bem, na companhia da tua família.

Recebe um grande abraço e muitas saudades do que te quer de alma e coração.
Teu Jorge.

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2 - Bissau, Niassa, 7 de maio 1968

É meia noite. Como ainda não desembarquei, vou escrever mais um pouco, enquanto o Vítor não desembarca. Pedi-lhe para levar esta carta com ele para pôr no correio.

Está um calor sufocante e uma barafunda enorme. Malas, sacos, embrulhos, homens aos magotes desnorteados. Ordens e contra ordens. Tudo anda aos trambolhões na proa do barco. A minha Companhia deve desembarcar amanhã de manhã para uma lancha e subir o Cacheu.

Minha querida:

Só agora, longe de ti, em terras que não conheço, sinto bem quanto te amo. Não calculas quanto tenho sofrido nestes dois últimos dias. Como vou eu aguentar cerca de dois anos sem te ver, sem a tua presença?

Éramos tão felizes, mas a felicidade não pode durar sempre.

Desculpa este desabafo. Apetece-me chorar. Mas não. Um homem nunca chora.

Um grande abraço e um grande beijo deste que te ama com todo o coração.
Teu Jorge.
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