Mostrar mensagens com a etiqueta répteis. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta répteis. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21556: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (12): A cobra e o seu matador....



Guiné > Região de Quínara > Buba > Foto de Boaventura Alves Videira, enfermeiro,  
CCS/BCAÇ 1861 (Buba, 1965/67), com um cobra pitão (ou "irã-cego"), enviada através do endereço do nosso camarada Júlio César [membro da nossa Tabanca Grande desde Julho de 2007, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659 / BCAÇ 2905, Cacheu, 1970/71]. Como comentámos na altura, parece tratar-se de uma cobra pitão africana, uma Phyton sebae, popularmemte conhecida como "irã cego". na Guiné-Bissau... 

Pode atingir os 6 metros de comprimentos, não é venenosa e não constitui um perigo real para os seres humanos... A nossa malta na Guiné chamava-lhe erradamente jibóia... (As jiboias só existem no Novo Mundo, ou seja, na América Central e na América do Sul).

Foto (e legenda): © Boaventura Alves Videira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) é um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª  C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; 

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem 15 referências no nosso blogue; vive em Esposende, é professor reformado.


A cobra e o soldado António Cruz… 

por Carlos Barros (*)


Nova Sintra, um destacamento desterrado no sector do Quínara, com uma população escassa, apenas algumas “cubatas” ladeavam, interiormente,  o nosso aquartelamento militar.

Todas as manhãs, por escala, grupos de militares deslocavam-se a um poço para trazer água nuns bidões geralmente para a cozinha,  embora houvesse um outro poço, protegido em cimento armado e com um tampo em cimento, para tapar a abertura do mesmo, perto do aquartelamento,  que era para a população se reabastecer..

Numa manhã, pelas 10 horas, o furriel Barros, acompanhado de quatro soldados, deslocaram-se num Unimog com quatro bidões para se reabastecerem no poço..

Chegados ao local, em direcção à estrada de Lala, a viatura parou e algo nos apareceu à nossa frente: Nada mais, nada menos, que uma cobra com quase quatro metros de comprimento. Era comprida mas bastante estreita. 

Foi um pânico momentâneo e o ofídio abriu a boca, tentando atacar, ou melhor, ameaçar! O soldado António Cruz, num ápice, pega na G3 e dispara quatro tiros, a pequena distância,  tendo dois deles, atingido a coluna do bicho e um outro perto da barriga. Com a boca ferida, escorrendo sangue, a cobra ficou paralisada e nós acabamos por matá-la.

Enchemos os bidões de água, pegamos na cobra já morta e trouxemos para o aquartelamento, onde os nossos companheiros nos esperavam porque a notícia já tinha chegado…Era o regresso a pé. À frente da viatura.

Foi o espanto geral quando, no aquartelamento, mostrámos o nosso “troféu”. E lá contámos a história, sendo o herói o soldado Cruz,  do 3º grupo de combate, que revelara uma afinada pontaria…

A cobra foi mostrada em procissão, a todos os militares e até o Capitão Cirne se revelou espantado com a rapidez e coragem do Cruz, soldado muito alegre e sempre bem humorado, com ele presente nunca havendo tristezas.

O primeiro sargento “Rasteiro” soube da notícia, mas não saiu da secretaria,  talvez tivesse medo da cobra morta…

Passados vinte minutos, fizemos uma cova funda, no meio do capim, e enterrámos a cobra que, penso,  não chegou a beber a água onde nós nos abastecemos….

O furriel Barros levou os soldados para a cantina e pagou umas cervejas e umas "fantas", servidas pelo simpático Gonçalves, o “cantineiro” de Nova Sintra.

Para ilustrar a história para os nossos vindouros, tirámos uma fotografia,  numa máquina fotográfica Olimpus Pen F que nos foi emprestada. 

Em Bissau, o rolo foi revelado e concretizou-se assim o registo desta história,  bem real,  e que poderá ser testemunhada por alguns militares que foram protagonistas nesta situação, com um desfecho natural porque foi em legítima defesa, numa contexto em que era necessária uma intervenção rápida e eficaz.

Esta história poderia ter outro desfecho?

Naturalmente que poderia,  contudo, ao vermos aquele enorme ofídio em posição de ataque, houve a natural resposta que terminou com a morte trágica do animal.

Nova Sintra, 1973 
 Carlos M. Lima Barros,
 ex-furriel miliciano

2. Comentário do editor LG:

O autor da série não nos mandou a foto da tal cobra com "quase quatro metros de comprimento". Pelo comprimento poderia ser uma cobra pitão-real (Python regius), um das mais pequenas dos pitões... Mas não costuma ultrapassar os dois metros... (lê-se no portal do Jardim Zoológico). Provavelmente, seria um exemplar, juvenil, do "irã-cego" (ou pitão africano), da qual temos, no nosso blogue, várias  estórias...
 
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21533: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (11): O morcego e a cria, ou um "desastre.. da caça"

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4514: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (12): O embaixador Manuel Amante, com saudades do Geba, fala da onça e do irã-cego

1. Mensagem de Luís Graça com data de 9 de Junho de 2009, enviada a Manuel Amante

Camarada Manuel Amante:
Diz à Carla que fui ao blogue dela recuperar uma pequena preciosidade... Um texto (belíssimo) sobre o Irã-cego... Está incluído num poste, nosso recente, sobre cobras... na Série Fauna & flora... (**) Qualquer dia vou lá recuperar um texto teu (fantástico), sobre os Bijagós, e me deres autorização... É uma pena o blogue da Clara estar agora inactivo...

Mantenhas. Aparece.
Luís Graça
(Bambadinca, Xime, Mato Cão, Ponta Varela, Ponta do Inglês, Enxalé, Porto Gole, Finete, Missirá, Fá, Santa Helena, Mero... CCAÇ 12, 1969/71...
Estive lá em Março de 2008, mas infelizmente não matei saudades do Rio Geba, do trajecto Bissau-Xime-Bambadinca, este último agora muito assoreado...).


2. Mensagem de Manuel Amante (*), em Macau, com data de 9 de Junho de 2009:

Caro Luís,
Acredita que é raro o dia que não visito a Tabanca Grande. E sempre que posso faço a sua divulgação junto de pessoas amigas.
O nosso blogue tornou-se referência para alguns estudiosos e interessados em saber o que foi a guerra na Guiné-Bissau.

Talvez uma tentativa de se procurar saber o porquê de tanta violência que assola este país que nos é muito caro e do qual nos lembramos com carinho e alguma nostalgia todos os dias. Custa-nos a todos entender esta situação absurda e de como a eliminação voraz de oponentes acabou por fazer doutrina.

Estou em Macau faz um ano. Represento os Países de Língua Portuguesa, enquanto Secretário Geral Adjunto, no Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (http://www.blogger.com/www.forumchinaplp.org.mo).

Passei os primeiros anos da minha infância, no sul da Guiné, perto da estrada entre Empada e Dersalame, mais propriamente em Binhal, onde havia uma única casa comercial, que era do meu Pai. O trecho escrito pela minha filha, curiosa pelas coisas da terra que lhe viu nascer, foram factos aflorados pela minha mãe, desterrada, por força do casamento, ainda jovem, nesse lugar ermo e cheio de animais próprios da fauna do sul da Guiné. Era normal escutar e sentir, após o escurecer, as onças e lobos em certas noites perto da varanda. Tudo leva a crer que o animal que abocanhou de um salto, vindo da mata, o meu cão que estava comigo na varanda da casa, no crespúsculo, terá sido uma das onças que andavam nos arredores. Até hoje pergunto porque terá escolhido o cão e não a mim que era do mesmo tamanho. Ainda conservo ténues imagens de Binhal, do longo acesso, ladeado de árvores, que dava para a estrada, da tabanca distante a cerca de um quilómetro, das grandes árvores, dos tambores desta em noites de festa, dos animais domésticos, de obrigatoriamente se trancar as portas e janelas com o escuro de breu.

Na realidade a minha Mãe diz que vivemos todo o tempo em Binhal com uma grande jibóia, possivelmente albina, pelas discrições, no tecto da casa. Nesta não havia tecto falso pelo que se viam as estruturas de madeira das traves e as telhas. Mas devia ser uma jibóia discreta porque raras vezes se via ou se fazia sentir. Sempre se sabendo que estava lá. Era voz corrente dos empregados que era o irã cego que guardava os moradores da casa. No dia em que nos abandonou o homem grande, de porte sábio, alvitrou de que era altura de irmos embora porque algo de muito sério e triste iria acontecer naquela região que a tornaria deserta e desesperaria os seus habitantes. A família transferiu-se para Empada a nove quilómetros e algum tempo depois, por força das circuntâncias, para Bissau. A luta de libertação tinha-se iniciado e essa região foi onde ela teve um arremedo de grande intensidade. Onde a mobilização das populações foi a maior.

A Carla deixou de poder manter o blogue porque não lhe restava tempo entre o trabalho, estudos e vida familiar. Espero que após o Curso possa retomar o que deixou.

Estive há dois anos e meio em Bissau. Mas não deu para ir aos lugares que tanto queria. Acabei por ficar dois dias com o meu Primo Manuel Simões, em Jugudul. O assoreamento do Geba a partir de Bambadinca era inevitável. A intensa circulação das lanchas pelo Geba acima sempre ia ajudando a desassorear essa via de abastecimento e evacuação de produtos agrícolas e de gado. A circulação de passageiros era considerável. Quase toda a movimentação de população civil e militar se fazia por Bambadinca ou então pelo Xime depois da abertura da estrada alcatroada. A duração era de 5 a 7 horas, dependendo da hora em que se partia por força da maré ou aproveitando-se dela ou ainda de alguma paragem no Xime. Os Bijágos eram um lugar que conhecia bem desde miúdo e navegava por lá sem problemas de maior. Navegação, dependendo das marés e dos canais e do mar às vezes bem encapelado. Mas, mais tarde, gostava mesmo era de navegar no Geba, apesar de alguns sustos e percalços de uma avaria à noite, sem máquina, em pleno Mato Cão em que fomos bordejando ora uma margem ora outra levados pela corrente. Numa outra vez, ainda em Mato Cão, à tarde, um incêndio na casa das máquinas.

Estarei em Portugal a partir de 15 de Junho. Espero poder estar convosco desta vez.

Aceita um forte abraço
Manuel Amante


3. Comentário de CV:

Caro Manuel Amante, uma vez que estará já em Portugal, não quer participar no nosso IV Encontro em Ortigosa? Veja pormenores no Poste > Guiné 63/74 - P4482: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real, 20 de Junho de 2009 (6): As inscrições terminam a 15 de Junho (A Organização).

Se não puder estar presente no Almoço, apareça pela tarde e passará uns momentos de convívio connosco até ao fim do dia. Teremos muito gosto na sua presença.
__________

Notas dos Editores:

(*) No poste com data de 27 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima..., podemos ler esta mensagem de Manuel Amante:
Caro Luís Graça,
Há muitos meses que venho acessando, diariamente, por vezes mais do que uma vez, o que se tornou recanto de milhares de militares que passaram pelo TO da Guiné.

Também fui militar (73/74), de recrutamento local, no CIM de
Bolama onde fiz a recruta e especialidade antes de ser colocado no QG (Chefia dos Serviços de Intendência) em Bissau.

No momento de ser incorporado, tal como muitos da minha geração, estava relativamente familiarizado com as questões de foro castrenses. Não se podia viver na Guiné e ficar alheio ao que se passava e à inutilidade que essa guerra significava em termos de vidas humanas.


- Nota de Luís Graça, no mesmo poste, sobre o Embaixador Manuel Amante:

Entre outros cargos e funções, foi conselheiro do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Cabo Verde (2005), embaixador de Cabo Verde no Brasil (1992/2002) e em Angola (1995/99), observador internacional da OUA no processo de democratização da África do Sul (1993/94), diplomata em Moscovo, colocado na embaixada de Cabo Verde (1986/90) bem como na missão permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas, em Nova Iorque... Enfim, um invejável currículo para quem, tendo nascido na Guiné, ainda em 1973/74 estava nas fileiras do Exército Português, mas já era, muito provavelmente, simpatizante ou militante do PAIGC... (LG)

(**) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4484: Fauna & flora (20): Histórias de grandes serpentes: da jibóia de 7 metros (Paulo Raposo) ao irã-cego (Clara Amante)

Vd. último poste da série de 8 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4483: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (11): Macau: A. Graça Abreu com José Martins, ex-Cap CCAÇ 16 (Bachile, 1971)

terça-feira, 9 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4484: Fauna & flora (20): Histórias de grandes serpentes: da jibóia de 7 metros (Paulo Raposo) ao irã-cego (Clara Amante)


Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo, de óculos escuros, com o Furriel Ribas, à sua esquerda, e alguns soldados, observando uma jibóia morta pelas NT... "De sete metros!"...

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados




1. Havia jibóias na Guiné, no nosso tempo ? Assunto controverso, avaliar pelos comentários que já suscitou o poste do Miguel Pessoa (*). Pelo menos, não voavam, isso garante o nosso piloto, mas que se atravessavam no caminho dos bissalanquenses da BA 12, isso garante-nos a também strelada sargento pára-quedista Giselda Antunes Pessoa... 

O Paulo Raposo, por sua vez, conta-nos que matou uma, medonha, com sete metros de comprimento... O Mário Fitas também viu serpentes gigantes lá para os lados de Cufar... A Clara Amante, que viveu na Guiné, em criança, fala-nos com magia do irã-cego... E muitos de nós têm histórias de cobras, pequenas e grandes, venenosas e não venenosas, para contar...Com tudo isto, vamos aumentando o bestiário da Guiné... (LG)



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66), Os Lassas > "Foto que me foi concedida pelo Manuel Brita, condutor das Fox, e que esteve em Cufar no tempo do António Graça de Abreu" [1973/74].
Foto (e legenda): © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


1. Mansoa: Baptismo de fogo

por Paulo Raposo

Excerto de um livro, policopiado, do nosso camarada de Montemor-O-Novo, Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, Galomaro e Dulombi (1968/70).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997 (**)

O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passàmos:
Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66), Os Lassas > "Da esquerda para a direita: Soldado que não recordo o nome, de camuflado o Fur Mil Enf Juvenal, o Fernando que nos acompanhou desde Bissau, Mário Fitas, Fur Mil Op Esp, e Olindo, apontador de bazuca da minha secção".
Foto (e legenda): © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.
O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passamos:


(i) Após a nossa chegada a Mansoa, foi-nos distribuído o material de guerra. Já armados, fomos para uma bolanha, nome que se dava a um grande charco de água, que enchia com a chuva.

Esta bolanha ficava para além de uma companhia de balantas, que fazia a protecção do nosso quartel. Naquela zona de Mansoa, sair fora do arame farpado tinha riscos.Este exercício tinha como objectivo habituarmo-nos a estar debaixo de fogo. Deita-se um grupo de combate, e por cima deste, faz-se fogo. Aconteceu que logo no primeiro exercício, quando estava o primeiro grupo de combate deitado, há um disparo que sai mais baixo e vai ferir em ambas as pernas um soldado. Depressa foi chamada uma viatura, para o levar rapidamente para o Hospital. Para aquele rapaz, a comissão terminou ali.

Este acidente foi muito desmoralizante para os restantes e mais nenhum outro exercício foi feito. Perguntei-me nessa altura como iria sair dali.

(ii) Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.

Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada.

Recuperados da emoção, os homens começaram o seu trabalho e eu dirijo-me para um tronco de árvore, que estava caído, para me sentar. Ao aproximar-me do tronco, este mexe-se. Era uma jibóia, com sete metros de comprido. Enfiei-lhe um carregador em cima e ela continuava bem viva.

O Cabo enfermeiro Luís agarra num tronco de um ramo verde, e, pondo-se à frente dela, bate-lhe continuamente na cabeça, até a cobra se ver perdida.Uma vez perdida, morde-se a ela própria, para não se humilhar à mão do enfermeiro Luís. (...)


2. O irã-cego
por Clara Amante


Amante da Rosa > "Meu Cabo Verde. História e Estórias. Minhas raízes, família e recordações. A Guiné. Pensamentos e Imagens. Sem ordem cronológica". Um blogue no feminino. Carla. Cabo Verde. Ilha de Santiago. Praia... A Carla é filha do nosso amigo e camarada Manuel Amante, membro da nossa Tabanca Grande.... Já aqui transcrevemos um poste, desse blogue, em que se falava de nós, do nosso blogue (***) . Infelizmente, o blogue Amante da Rosa deixou de estar activo, embora continue em linha... Tomo a liberdade de recuperar uma belíssima história ali publicada, com recordações de infância da Guiné (****).

Acordou alagada da sesta… maldita humidade. Abriu os olhos ainda tempo de ver o Irã que deslizava, entre uma trave e outra, no tecto do quarto, para desaparecer no escuro da telha enegrecida. Em que buraco se metia? Lembrou-se…

“- Matem a cobra!
- Não. Senhora…
- Mata a cobra… Anselmo?! Há uma cobra no tecto da casa!
- Senhora é o guardião… não.
- Guardião…?
- Sim, Senhora, guarda a casa.
- Anselmo… É uma cobra branca.
- Não… É Irã Cego… é poderoso e vai protegê-la a si e aos meninos.”


A humidade… nem sabia se estava acordada. Nunca a tinha visto assim… Gorda e branca. Ela… O Guardião. O Irã Cego. A cobra albina que vivia no telhado da casa. Foi regressando devagar daquela letargia do sono. Como foi que vim parar neste fim de mundo? O mato, os bichos, o raio das cobras e o bucho cheio ano sim ano… Não, nada de lástimas! Calor… parece que o diabo se entretêm a chupar ar. Ai Guiné! Ai Mindelo... Irã Cego… as minhas crianças aqui em baixo deste tecto. Ninguém num raio de quilómetros e ele que se mete no mato dias a fio. Deve estar nalguma tabanka. Um banho... preciso de um banho. Mãe… e tu que nunca mais chegas. O Nhelas, lá para o Sul sem conseguir fugir - do contrato da roça.

Nando, embarcado sabe-se lá onde. Os meus irmãos espalhados em tudo o que é fim de mundo. A onça… é preciso ver se os meninos estão cá dentro… a onça que quase leva o Canelito. Bendito cachorro... e ele ainda a gritar pelo pobre do bicho... sozinho em frente da casa. Isto é o fim do mundo. Irã… que me vale Deus aqui. Irã Cego! O guardião da casa que engole os ovos das galinhas é quem nos protege. E a minha terra lá tão longe. O vento… que falta faz o vento, Mãe. Banho… aquele banho semanal que nos davas com a água que trazias de casa d’inglês. Anselmo… é preciso ir ao poço... A onça que deve andar à caça… E ele que não chega metido nesse mato sem ninguém. Como foi… ah… Dava tudo para sentir aquele cheiro de colónia inglesa do Nana... Cheiro nauseabundo com que ele chega… Meu Nana… como fui acabar tudo com ele. Lembranças não levam a nada e o que foi foi… deve ser do calor, estás a enlouquecer, Vinda. Valha-me a cobra para nos proteger e…
- Dona Vinda…? - o chamado urgente sacudiu-a.
- Sim, Anselmo...
- É o Irã... Irã Cego fugiu para o mato.
- ...
- Senhora… não é bom.

[Revisão / fixação de texto: L.G.] (*****)________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 7 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4477: FAP (29): Encontros imprevistos (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

(**) Vd. poste de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

(***) Vd. poste de 27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...

Vd. também 28 de Maio de 2007> Guiné 63/74 - P1789: Blogues que nos citam (2): Amante da Rosa ou a Geração das Flores da Revolução de Bissau

(****) Vd. poste de 14 de Novembro de 2006 > O despertar de uma sesta, no fim do mundo dos anos 50, visto num quadro de Paulo Rego (Clara Amante)


(*****) Vd. último poste desta série > 16 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4038: Fauna & flora (19): Também os babuínos dizem Nós na pidi paz, ka misti guerra (Joana Silva)

Vd. também poste de 25 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3793: Fauna & flora (16): Relações amistosas com o Macaco-cão na zona de Cufar (Mário Fitas)

Escreve o L.G., em comentário ao poste do Miguel Pessoa:

(....) Há uma diferença (até no comprimento) entre a jibóia (nome científico, Boa constrictor) e a pitão, jibóia africana ou irã cego (na Guiné-Bissau) (nome científico, Python sebae)... Esta última, sim, é a maior cobra da África subsahariana. Quando adulta, pode atingir os 6 metros e ultrapassar os 100 quilos de peso... Habita a floresta-galeria, as matas e só ocasionalmente a savana. A sua dieta é constituída por aves, pequenos roedores e ainda mamíferos de média dimensão. Pode viver trinta anos e não está em risco de desaparecer.

Já a jibóia p.d. (que está no nosso imaginário, pela pomada jibóia e não só...) é centro e sulamericana.Boa constrictor deve o seu nome à forma como mata as suas vítimas, por constrição, sufocando a presa, técnica usada pelas cobras não venenosas.Contrariamente a muitos mitos populares, é pacífica e fugidia, evita sempre o contacto com animais de grande porte, incluindo o homem... Em média anda nos três metros...É sobretudo caçadora nocturna, alimentando-se de roedores e aves...

Por sua vez, o nosso amigo Nelson Herbert, hoje cidadão norte-americana, mas born in Bissau, acrescenta o seguinte:


(...) Tem razão o Luís Graça. O familiar mais próximo da jiboia sul americana, na Guiné é o Irã Cego. De criança,sempre ouvi dizer que o unico Ser que esse tal de Irã Cego de facto temia, imaginem!, eram aItálicos formigas...(qual quê: formiguinhas). Aquelas típicas da Guiné, conhecidas pela sincronização das dolorosas dentadas e a acrobática posição de pino. Melhor, aquelas que mordem a vítima, de pernas pro ar ! Curioso, né ! Mas existe uma explicação lógica ! É que engolida uma ave, um réptil ou atéum cabrito (a lenda fala de bois), o bicharoco necessita de algumas espaçosas horas para a digestão da presa...tanta é a languidez ...

É pois nesses momentos que o bicho, ele mesmo, torna-se presa fácil das formigas. Aliás, não é por acaso que na Guiné, em tudo que seja , terreno por excelência de pastagens, por perto existe sempre um "morro de baga baga"...não vá pois o Irã Cego tecer das suas !

Ainda relativamente a esse bicharoco, baptizado de Irã Cego, por conseguinte, à luz de algumas crenças e crendices, nossas ( guineenses), um animal outrora venerado, senão temido, Amílcar Cabral faz referência, em alguns dos seus escritos, às dificuldades enfrentadas no início da guerrilha, no aliciamento de alguns guerrilheiros para operações, que tivessem por cenário...qualquer mata cerrada, tida por santuario dos Irãs Cegos. Cabral mobiliza esse exemplo, para exemplificar o quanto o obscurantismo poderia em certa medida comprometer o avanço da guerrilha nas matas da Guiné. (...)