sábado, 17 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25852: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte V: mortos em Moçambique

 




Concelho de Fafe - Lista dos mortos durante a guerra colonial, no TO de Moçambique  no período de 1962 a 1975 

Capa do livro
Fonte: SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In: Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 62-63,

1. Estamos a reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor), excertos do extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva, sobre os 41 mortos do concelho de Fafe, na guerra do ultramar / guerra colonial. Nesta parte são os respeitantes ao TO de Moçambique (pp. 62-67).





Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal [ Excertos ] - Parte V (pp. 62-67)




Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): (i) foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii) tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii) viveu em Angola até 1974; (iv) licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v) professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte; (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem cerca de 90 referências no nosso blogue.


C. MOÇAMBIQUE


QUADRO 3 – Lista dos mortos de Fafe em Moçambique


(...) Ao analisarmos o quadro referência com a identificação dos nomes dos militares de Fafe mortos, verificamos que:

  • Em Moçambique morreram catorze fafenses;
  • Podemos verificar, também, que quatro militares morreram já depois da Revolução de 25 de Abril de 1974: Manuel Martins Carneiro, de Fareja, em 2.7.1974, Agostinho Soares Carvalho, de Arões S. Romão, em 2.7.1974, Francisco Jorge Gonçalves Carvalho, de Moreira do Rei, e o Alferes Norberto Salgado, de Arões S. Romão, em 22.2.1975.
  • As causas da morte foram: (i) 9 em combate; (ii) 2 por acidente;  (iii) 1 por doença; e (iv) 2 por causa desconmhecida;
  • Acidentes: um com arma de fogo; outro, outro por outros motivos;
  • Combate: inclui um caso de ferimento mortal por mina  antipessoal;  
  • Causa desconhecida,  inclui um desaparecido em combate (fur mil op esp / ranger, João Manuel de Castro Guimarães).

Quanto ao posto e especialidade: 

  • um oficial, alferes miliciano com a especialidade de intendência;
  • um furriel miliciano;
  • três cabos, tendo dois a especialidade de atirador e um outro sem especificação, mas pertencente a uma companhia de artilharia;
  • e oito soldados: destes, três sem anotação da especialidade, um é soldado comando, um sapador, um spontador de morteiro, um atirador e um condutor auto rodas.

Podemos verificar que ficaram sepultados dois militares em Moçambique: um, no cemitério de Lourenço Marques, o Manuel Moreira Fernandes, de Travassós (28.3.1962); e outro, o Avelino Ribeiro Cunha, de Fafe, em Nampula (cemitério de S. João de Brito, em 23.6.1966).

A primeira morte de um militar de Fafe em Moçambique ocorreu, ainda, antes de rebentar oficialmente a guerra em Moçambique. Foi em 28 de março de 1962 que o 1.º cabo Manuel Moreira Fernandes Cunha, nascido em 26 de março de 1939, na freguesia de Travassós e recenseado pela freguesia de Santos o Velho, 2.º Bairro de Lisboa, com o número mecanográfico NIM 60-A-2946:  morreu por motivo de acidente (queda acidental em buraco em 26 de março de 1962, segundo informação por email do Arquivo Geral do Exército, de 24 de outubro de 2013). Ficou sepultado em Moçambique (cemitério de Lourenço Marques), de acordo com a informação do irmão.

O último jovem a morrer em Moçambique foi o Agostinho Soares Carvalho, natural de Arões S. Romão, filho de José Oliveira Carvalho e Rosa Soares. Foi soldado comando da Companhia n.º 2045, morto por ferimentos em combate perto de Vila Paiva de Andrade, a caminho da Gorongosa. Faleceu já após o 25 de Abril, em 9 de julho de 1974. Está sepultado no cemitério de Santa Cristina de Arões.

Antes de embarcarem para o Ultramar já eram casados quatro destes fafenses:

  • O soldado Sapador Albino Freitas Novais, de Estorãos, casado com Maria das Dores Castro, pertenceu à CCS do Batalhão n.º 288, vindo a morrer em 3.11.69 em consequência de ferimentos em combate ocorrido no Norte, no subsetor de Macomia, e está sepultado no cemitério de Fafe. 
  • O soldado António Joaquim Machado, de Regadas, casado com Emília da Glória Cura Grade, pertenceu à CCAÇ n.º 1618, faleceu a 14.6.67, em consequência de ferimentos em combate ocorrido no Norte, na Missão do Imbuo, e está sepultado no cemitério de Sôsa – Vagos. 
  • O soldado atirador Manuel Martins Carneiro, de Fareja, casado com Maria da Conceição Fernandes, pertenceu à 1.ª CCAÇ do BCAÇ n.º 5016 aquartelado em Honde, faleceu a 2.7.1974, em consequência de ferimentos em combate e está sepultado no cemitério de Atães – Guimarães. 
  • E o 1.º cabo Luís Mário Carvalho Cunha, de Antime, faleceu em consequência de ferimentos provocados por rebentamento de mina.
De todos os militares de Fafe casados antes de embarcarem para Moçambique, tive a oportunidade de consultar o processo de Luís Mário Carvalho Cunha por deferência do seu filho, que agradeço.

  • O Luís Mário Carvalho Cunha nasceu a 18 de setembro de 1944 na freguesia de Fafe, filho de José da Cunha e Maria da Carvalho, exercia a profissão de tecelão, casou em 18 de abril de 1964 com Palmira Gonçalves e, antes de ser mobilizado, tinha dois filhos, um rapaz de dois anos e uma rapariga de um. 

Foi alistado em 19 de julho de 1965 e incorporado em 25 de janeiro de 1966 no RI 8, fez o juramento de Bandeira em 30 de abril e terminou a recruta a 28 de maio de 1966, sendo transferido par o RAP2 onde, a 25 de maio, concluiu a especialidade de atirador de artilharia, seguindo para Viana do Castelo para o RC 9, para fazer parte da CART 1595 /BART 1893, sendo promovido 1.º cabo em 28 maio 1966 com a especialidade de atirador.

Nomeado para servir no Ultramar nos termos da alínea e) do art.º 3.º do dec. 42937 de 22.4.1960, embarcou em Lisboa a 7 de setembro e desembarcou em Moçambique em 28 do mesmo mês, sendo a sua companhia colocada em Révia Muoco.

Do relatório de operações datado de 6 de novembro de 1967 e realizado pelo alferes do 3.º Gr Comb da CART 1595 e encarregado da missão consta:

1. Resumo:

06 novembro de 1967 –Quando na execução do Quadro de movimento n.º 06/67 de 20 de outubro / 67 do BART 1893, se efetuava a escolta do Muoco das viaturas utilizadas no transporte da CCAÇ 1797, tendo sido detetada uma mina Acarr (anticarro) colocada pelo IN na respetiva picada a cerca de 2 km do aquartelamento da CART, recebi ordem para ali me deslocar acompanhado de um furriel da mesma. 

Quando decorriam os preparativos para o levantamento da referida mina, foi acionada fora da picada, e a cerca de 2 metros daquela, uma mina Apess (anti pessoal), resultando daí terem ficado feridos as praças: 1.º cabo n.º 01464366, Luís Mário Carvalho Cunha, 1.º cabo n.º 00816366, Luiz Martins Gonçalves, 1.º cabo 05861366, Alberto da Cunha Ribeiro e o soldado n.º 03221466, António Ribeiro Gonçalves, desta companhia, vindo o primeiro a falecer em consequência dos ferimentos recebidos.

3.Comentários

O IN colocara a mina Apess para que, após o rebentamento da mina Acarr, que seria provocada na passagem da viatura, fosse aquela acionada pelo pessoal ao saltar da viatura antes de tomar as devidas posições (de segurança e contra ataque) no terreno.

O Oficial encarregado da missão

Laurénio Monteiro Ferreira da Silva - Alf Mil Art


  • O oficial morto em Moçambique foi o Alferes Miliciano Norberto Luís Seara Salgado, nascido em 8.2.1951 na freguesia de Arões S. Romão, filho de Armando Salgado e Rosa de Jesus Salgado. 

Foi incorporado em 23 de janeiro de 1973 na EPI (Escola Prática de Infantaria em Mafra) e jurou Bandeira em 12 de fevereiro, sendo transferido para a EPAM (Escola Prática de Administração Militar) em Lisboa, onde terminou o 2.º  ciclo do COM (Curso de Oficiais Milicianos) a 7 de julho, sendo promovido ao posto de asp alf  mil e colocado na EPAM. 

A 10 de janeiro de 1974 é nomeado para prestar serviço no Ultramar, em Moçambique, vindo a falecer em 22 de fevereiro. 

De acordo com os registos enviados pelo Arquivo Geral do Exército, as causas da morte foram por: Acidente por outros motivos (final do relatório).

(Continua)


(A seguir, em próximo poste: 8. Testemunhos de ex-combatentes de Fafe participantes na Guerra)

(Seleção, revisáo / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25821: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte IB: mortos na Guiné

Guiné 61/74 - P25851: Ser solidário (271): 25.ª Expedição da Missão Dulombi à Guiné-Bissau. Reportagem da jornalista Carolina Cunha da CMTV, que pode ser vista no Youtube

1. O nosso camarada Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912 (Dulombi, 1970/72) enviou-nos o link do Youtube para a reportagem da 25.ª Expedição da Missão Dulombi à Guiné-Bissau, mais exactamente a Dulombi, intitulada "Dulombi, Missão de Vida", da jornalista da CMTV, Carolina Cunha, que acompanhou Gil Ramos, filho do Antigo Combatente Fernando Ramos da CCAÇ 2700, já falecido.
Gil Ramos, voluntário, juntamente com outras pessoas de boa vontade, ali iniciou uma obra que já se vê e que continua, perpetuando assim a memória de seu pai naquela localidade guineense.



REPORTAGEM CMTV: Gil Ramos e a sua Missão Dulombi falam das origens da Organização, dos trabalhos presentes e do futuro da aldeia de Dulombi na Guiné-Bissau.
Acompanhando a 25ª Expedição à Guiné-Bissau, a jornalista Carolina Cunha fez um retrato de uma aldeia mágica e das atividades da pequena organização criada pelo vilacondense Gil Ramos.

©CMTV 2024
©DULOMBI 2024
Todos os direitos reservados.

Os frames abaixo reproduzidos, retirados
  com a devida vénia da reportagem da CMTV à 25.ª Expedição da Missão Dulombi à Guiné-Bissau, apresentam quatro personagens ligadas a Dulombi e à causa do voluntariado que ali tem obra feita: 
O antigo Combatente Fernando Ramos da CCAÇ 2700 que esteve em quadrícula em Dulombi entre Maio de 1970 e Março de 1972, durante uma visita à terra que lhe ficou no coração. 
Gil Ramos, filho do Fernando Ramos, que tem feito obra de voluntariado em Dulombi, diz querer continuar, porque acha que seria essa a vontade de seu pai. Será também uma forma de homenagear a sua memória.
Além deste Jardim de Infância, a que foi dado o nome de Fernando Ramos, construído de raiz para o efeito, Gil Ramos e a sua Missão Dulombi, recuperou a Escola Primária local, danificada por um temporal.
Amadu Colubali que é o responsavel pelo funcionamento e manutenção do Jardim de Infância Fernando Ramos, que é frequentado por meninas e meninos de Dulombi a partir dos dois anos de idade.
Uri Colubali é o homem mais velho de Dulombi. Diz que conheceu Fernando Ramos no tempo da guerra e está muito grato ao filho, Gil Ramos, pelo que tem feito pela população de Dulombi.

O melhor mesmo é ver a reportagem, porque além da alegria expontânea das crianças de Dulombi, ficamos a conhecer uma quantidade de pessoas que se voluntarizam para em Dulombi cuidar da saúe e do bem estar daquele povo que tendo tão pouco, com pouco se contentam.

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Nota do editor

Último post da série de 2 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25593: Ser solidário (270): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (8): Arquitectos da natureza (Renato Brito)

Guiné 61/74 - P25850: Os nossos seres, saberes e lazeres (641): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (166): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 5 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Fica-nos a resignação de que o tempo não dá para tudo, se é verdade que se viu o passadiço das Fragas de S. Simão, um ponto alto das belezas naturais de Figueiró dos Vinhos, não se pôs os pés sem criado passadiço do Penedo do Granada, no vale do Cabril, seja como for ainda se foi ao Moinho das Freiras, que tem muito para ver com as ondulações do Zêzere entre as fragas e penedias. Chega-se a Figueiró dos Vinhos, já se tinha saudado o pintor Malhoa, havia que escolher entre o Convento de Nossa Senhora do Carmo e a igreja matriz, preferiu-se esta, guarda no seu interior, mesmo à entrada do lado esquerdo uma terna lembrança da gente do concelho que tombou lá na Flandres. E subiu-se às Fragas de S. Simão e dali se desceu à praia fluvial, tudo beleza magnânima, um curso de água esplendente protegido pelo arvoredo, cada vez que percorro estas imagens pergunto-me se os nossos artistas paisagistas conhecem este rincão e o gravam nos seus quadros, é natureza propícia para fascinar artistas (e dos visitantes já não falo, andam por ali esmagados e a gozar com aquelas penedias que na primavera se enchem de pedreiras, parecem andorinhas, vieram fazer ninho).

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (166):
Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior – 5


Mário Beja Santos

O tempo não é elástico, terá de ser breve a itinerância por Pedrógão Pequeno, regressar a Figueiró, percorrer as Fragas de S. Simão e abalar para o último dia da romagem de saudade, ver obras na Charola de Tomar. Escreve-se este parágrafo com uma ponta de nostalgia, vontade não faltava, embevecido pelas belas imagens o livro Tojos e Rosmaninhos, uma poesia sem graça nenhuma e um desenho de primeira categoria que, havia vontade de fazer o Vale do Cabril quase nos termos em que Alfredo Keil, que vinha acompanhado do cenógrafo Luigi Magnini, andarilhou, os seus desenhos são de facto soberbos, mostram a rudeza daqueles rochedos declivosos que mergulham no Zêzere, é um passei como poucos. Paciência, fica para a próxima, até houve o cuidado em trazer calçado apropriado para a caminhada. Aqui se deixa a menção a este livro, hoje é uma preciosidade para bibliófilos, e algumas imagens sugestivas de quem andou desde Ferreira do Zêzere e Dornes até ao Cabril.

Imagem de uma festa local
Mais festa, desta vez em Pedrógão Pequeno. Olho para a varanda daquela casa e recordo com muita saudade uma varanda quase igual que o senhor Carlos Paulino, carpinteiro e residente na Ribeira de S. Pedro, Figueiró dos Vinhos, executou para uma casa que tive em Casal dos Matos, Pedrógão Grande
Num determinado ponto no bairro do Cabril, onde vivi, avistava-se a ligação da Ribeira de Alge ao Zêzere, a pouca distância da barragem do Cabril, tendo no alto destas penedias o chamado Penedo do Granada, diz a tradição que cantado por Camões
Vim despedir-me do Moinho das Freiras em Pedrógão Pequeno. É um belo recante onde se avista o Zêzere sinuoso que vai a caminho de Constância e aqui entra no Tejo. É um território que tem conhecido incêndios uns atrás dos outros, mas a natureza reocupa-se mais cedo do que a gente pensa, deixa à mostra os fraguedos e as encostas enchem-se de flores silvestres para nos recordar que a primavera é multicolorida e odorosa
Pormenor do altar-mor da igreja matriz de Figueiró dos Vinhos, tendo no centro a pintura O Batismo de Cristo, de José Malhoa
Mudei de concelho, faço uma nova visita de médico a Figueiró dos Vinhos, a praia fluvial de Ana de Aviz ainda está adormecida. A pretexto de tomar um café ainda voltei à igreja matriz, mais um desses templos que vêm do século XIII e conheceram sucessivas reconstruções, entre 1898 e 1904 houve obras de remodelação sobre a direção do arquiteto Ernesto Reynaud, parece que mexeu em tudo menos no pórtico renascentista. As Fragas de S. Simão são verdadeiramente um contraponto, estou agora no miradouro a contemplar as imponentes fragas, a vista pode descer até à praia fluvial ou ao mesmo nível lá do alto, ver na correnteza a aldeia de xisto de Casal de S. Simão. Inaugurou-se há pouco um passadiço que nos leva até à praia fluvial, sempre entre estas fragas e penedos. Ficará para uma próxima viagem a ida ao Casal de S. Simão.
Aqui, gravitamos entre a rudeza agreste e uma paisagem agrícola que se impões no vale. Ao longo do percurso encontramos áreas naturais, com vegetação muito próxima daquela que seria a vegetação climácica, há resquícios de Laurissilva, formação vegetal que em tempos ocupou parte de Portugal continental. Desce-se à procura da praia fluvial, o percurso encanta, há aqui pormenores que devem fascinar pintores amadores de tendência impressionista, naturalista, romântica.
No cimo da ponte que nos vai ligar à praia fluvial, tendo tido a sorte de um potente raio de luz que se rasgou de um céu cinzento, aqui temos as águas da Ribeira de Alge que vêm da praia fluvial e no verão lá mesmo no fundo é possível encontrar campistas a gozar as delícias desta natureza.
Aqui é a praia fluvial, ainda ninguém se quer banhar nesta água gelada, as comportas estão abertas, lá vai esta água em cachão, barulhenta, em festa, deixam-na a correr em total liberdade. E aqui me despeço do pinhal do interior, também tenho muitas saudades de Tomar e estou bem curioso em ver a limpeza ao exterior da Charola que vem do século XII.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 10 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25827: Os nossos seres, saberes e lazeres (640): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (165): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 4 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25849: Parabéns a você (2299): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apont Met da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 10 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25825: Parabéns a você (2298): Alberto Nascimento, ex-Soldado CAR da CCAÇ 84 (Bissau, CTIG)

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25848: Manuscrito(s) (Luís Graça) (253): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - II (e última) Parte


Lisboa > Hospital Real de Todos os Santos (1492 - 1775)  <c.  1ª metade do séc. XVIII > Por menor de Painel de azulejos de oficina de Lisboa,  existente no Museu da Cidade, Lisboa. (Com a devida vénia...)



I Parte

1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade

2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"

3. O movimento de concentração hospitalar

II Parte

4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O provedor

4.2. O almoxarife

4.3. O hospitaleiro e o vedor

4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar


Artigo originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, 



O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo:

II (e última) Parte (a)


4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O Provedor


À frente do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS) (também conhecido na cidade pelo Hospital dos pobres) estava o provedor, o official principal, que deveria ser "pessoa honrada, e de bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo" (Regimento...,1984: 35). 

De preferência, a escolha deveria recair num membro do alto clero ou, em último caso, um leigo solteiro, letrado, que fosse da confiança pessoal e política do rei, ou seja, da corte.

De facto, por ser "couza tam grande, e de tão grande maneo" (sic), o hospital deveria ser administrado com "muy grande recado", tanto no que tocava ao "serviço de nosso Senhor", como no que dizia respeito à "conservação da mesma Caza" que - sublinha enfaticamente o outorgante do seu regimento - foi "feita para obras de piedade, e de serviço de Deoz " (Regimento...,1984: 35). Daí o provedor dever "ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos".

A avaliar pelo menos pelo espírito e letra do citado regimento as principais funções do provedor (Quadro 2, em baixo) não seriam então muito diferentes daquelas que hoje em dia são atribuídas à actual figura do presidente do conselho de administração   dos nossos hospitais.

Repare-se que a preocupação em atribuir explicitamente ao provedor a função de zelar pelo cumprimento da missão do HRTS enquanto instituição. Mais concretamente:

  • Assegurar a realização da triagem dos doentes, de modo a que no hospital não fossem admitidos doentes incuráveis ou vítimas da peste (estes últimos serão posteriormente referenciados para a Casa da Saúde, em Alcântara, nos arredores da cidade);
  • Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não pudessem deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios;
  • Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas (um problema que se vai agravar na Lisboa das Descobertas);Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes.



A partir de 1564, com a passagem da administração do hospital para a Misericórdia de Lisboa, o título de provedor passa a ser substituído pelo de enfermeiro-mor:

Essa tradição irá manter-se até 1913, ano da criação dos Hospitais Civis de Lisboa e da extinção do cargo de enfermeiro-mor;

Em 1913, a nova primeira figura do hospital passa a chamar-se director.

Em 1927, em plena ditadura militar, o cargo de enfermeiro-mor é restabelecido e manter-se-á durante o Estado Novo (Graça, 1996).

O mesmo Capítulo III do Regimento do HRTS define a área de influência do estabelecimento, o qual devia cobrir a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".

Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo terror da peste.


4.2. O Almoxarife

O almoxarife - que devia ser "homem de bem, e de fiança, e bemcriado" (Capº VIII, pp. 57 e ss.) estava encarregue fundamentalmente dos seguintes funções:

  • Contabilidade e tesouraria (cobrança de receitas, em dinheiro e em géneros, pagamento de despesas, incluindo os vencimentos e salários, ou seja as "tenças, e mantimentos dos Officaes e Capellaes, e mercieiros e todas as outras pessoas q no dito Esprital servirem", p. 58), no que era auxiliado por um escrivão;
  • Aprovisionamento do hospital, ou seja, o "carrego de (...) comprar todas aquelas couzas q se houveremm de comprar por grosso, e em quantidade".


O regulamento vai ao pormenor de estipular que o almoxarife "não faça despesa de nenhuma couza grande nem pequena, salvo por assinados (...) e mandados do Provedor" e na presença do "Escrivãoq temos ordenado da receita e despeza do dito Almoxarife" (p. 58), "sob pena de perdimento do Officio e mais qualquer outra q for nossa merce" (p. 57).

Este escrivão seria já um precursor do moderno contabilista. Competia-lhe fazer a escrituração de três livros diferentes:

  • "Terá livro bem decracrado de todas as rendas, bens propriedades, e fazenda qualquer outra" do hospital bem como o nome daqueles "a quem sam aforadas, e emprazadas", etc. (Capº VIII, p. 61);
  • Terá ainda um livro da despesa diária;
  • Bem como um livro de registo anual de "todolos meninos Engeitados" (p. 62).

Esta figura é distinta do outro escrivão (tabelião ou protonotário) a que se refere o Capº I, "que ha de haver (...) dante o Provedor do dito Esprital". Não era residente no hospital e nem sequer tinha direito a remuneração:

"Este não hade haver mantimento algum pelo Proveito do seu Officio, hade escrever em todolos feitos q se tratarem perante o Provedor, fara as Escrituras demprazamentos das propriedades e todo o mais q a isto pertencer, segundo q agora já o faz" (p. 20).

4.3. O Hospitaleiro e o Vedor

A minúcia do regulamento é de tal ordem nem sequer deixou de fora as funções de categorias de pessoal que corresponderiam hoje ao agrupamento do pessoal operário e auxiliar dos nossos estabelecimentos hospitalares, tais como:

  •  o despenseiro (Capº VI), 
  • a costureira ( ou alfayata ) (Capº XIII) 
  • e a lavadeira (Capº XIV).

Ainda ao nível dos serviços de apoio, havia a figura do vedor (Capº V, p. 51) a quem cabia "a principal parte do Governo do dito Espitral, e da boa Ordem e Conservação das couzas delle". As suas funções seriam, pois, de intendência e supervisão dos serviços hoteleiros (e, em particular, da alimentação dos doentes e do pessoal).

Parte das tradicionais funções da gestão hoteleira também eram da competência do hospitaleiro (ou espritaleiro) (Capº XI) e da hospitaleira (ou espritaleira) (Capº XV).

Essas funções eram basicamente as de administrar o serviço de rouparia e de limpeza, mas também de supervisão e avaliação do serviço de enfermagem:

"O dito Espritaleiro he obrigado a prover muy a meude e ao menos duas vezes no dia se os Enfermeiros cumprem o q por bem de seus Officios devem, e se fazem de dia, e de noute as piedades, e serviço dos doentes, q por bem de seus Regimentos sam obrigados, segundo a necessidade, q a cada hum tever, e na quello q vir, q não cumprem segundo sua obrigaçam os amoestará, q se emmendem, e fará saber ao Provedor o que não fizerem bem feito, ou de todo não cumprirem para nisso prover, e fazer como o cumpram, e fação o q nisso são obrigados" (pp. 78-79).

O hospitaleiro tinha ainda o "carrego da Caza dos pedintes, andantes, q se hamde recolher na Caza q para elles he ordenada no dito Esprital" (p. 80). 

É provável que houvesse conflito de papéis entre o hospitaleiro e o vedor: em todo o caso o primeiro tinha originalmente um estatuto remuneratório superior ao segundo.


4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

Quanto aos praticantes da arte de curar, ou prestdaores de cuidados de saúde (como diríamos hoje), o regulamento do hospital previa originalmente as seguintes categorias:

  • Um físico
  • Dois cirurgiões
  • Dois ajudantes de cirurgião
  • Um boticário
  • Três ajudantes de boticário
  • Doze enfermeiros (dos quais três com a categoria de enfermeiro-mor)
  • Um barbeiro-sangrador
  • Uma cristaleira (mulher encarregue de ministrar clisteres)

Todos eles deveriam residir no Hospital, à exceção de um dos cirurgiões e do barbeiro-sangrador.

Ao físico cabia fazer a "visitaçãode todos os doentes (...), duas vezes no dia (...), pela menhã em sahindo o sol, e à tarde até às duas" (Capº IV, p.47), tanto nas enfermarias como nas "outras casas". 

Nesta visita diária, era acompanhado pelo provedor, além do vedor e do hospitaleiro, pelo enfermeiro-mor da respectiva enfermaria e, ainda, pelo cirurgião e pelo boticário (ou seu ajudante).

Este capítulo é notável pela concepção que já havia na época do que deveria ser a organização do trabalho em equipa no hospital. Na prática, não sabemos como as coisas funcionavam. Em todo o caso, na visita diária aos doentes internados, o enfermeiro-mor (categoria equivalente ao actual enfermeiro-chefe) levava uma "taboa" donde constava o nome e o número da cama dos enfermos:

"Feita a vezitação dos pulsos dos doentes" e vistas "as agoas [ urina ] de cada hum q lhe serão dadas pelos Enfermeiros pequenos" (prática a que se resumia, então, e no essencial, o diagnóstico clínico), o físico "bem considerando (...) sobre o remedio de cada hum paciente, ordenará as mezinhas de cada um, segundo q lhe melhor parecer, e as mandará compoer, e ordenar ao Boticário ".

Este último, por sua vez, "traerá consigo huma imenta comprida da folha de papel de marca grande encarnada" na qual o Físico (ou o boticario, se "for melhor Escrivão, e mais despachado" do que aquele) "assentará as receptas e mezinhas, q ordenar para cada hum doente em titulo apartado", isto é, "purgas apartadas por sy e de todas outras qualidades de mezinhas, debaxo doutro titutlo", por "serem tam desvariadas (umas) das outras". De qualquer modo, o físico devia "assinar (...) na dita imenta as ditas receptas" (p. 48).

O enfermeiro-mor, por sua vez, registava na respectiva "tavoa (...) debaixo do titulo" de cada doente, a dieta prescrita pelo físico, "para por aly se mandar fazer o comer na Cozinha pelo Veador". Esta prescrição era igualmente assinada pelo físico ou pelo cirurgião.

O físico tinha ainda que fazer o que hoje chamaríamos o serviço de banco de urgência (ou, talvez melhor, de consulta externa), nomeadamente "ver todolos enfermos q á porta do Esprital vierem, e de aly á porta lhe ver suas agoas, e tomar seus pulsos, e dar todo conselho, e remedio, q para suas curas lhe parecer compridouro". Devia ainda "vezitar os doentes das Boubas em todo aquello, q á Fizica tocar, e remedialos ha, e curará o melhor q poder na casa apartada, q para oz ditos doentez hordenamos no dito Esprital" (p.49).

Notável é também, para a época, a preocupação do legislador com a eficiente utilização dos recursos, e nomeadamente dos medicamentos, obrigando o físico a "sempre prover a imenta das receptas das mezinhas para saber se gastaram todas, por q ás vezes se manda fazer huma mezinha, e o paciente a não toma". Ou seja, já na época se punha o problema da aderência à terapêutica e da sobremedicação. Ora, para que tal não aconteça, o médico "proverá sempre as ditas receptas, e aproveitará as mezinhas o melhor q se possa fazer e falloha de maneira q se não possa fazer couza indevida e seja tudo aproveitado como devem " (p. 49).

O regimento do físico aplicava-se igualmente ao cirurgião (Capº XII). No hospital estava prevista existência de dois celorgiaes, um dos quais residente e com funções de ensino:

Que "o dito Celorgiam q hade viver dentro no Esprital leya cada dia huma lição aos seus dous mossos q hade ter, e q hamde ser pagos das rendas do Esprital, para aprenderem theorica, e pratica , e poderam ficar ensinados para o serviço do dito Esprital" (p. 83). Esta disposição prefigura já a criação da primeira escola de cirurgia do país e do internato complementar de cirurgia.

Os dois cirurgiões eram, tal como o físico, obrigados a visitar duas vezes ao dia "todos os enfermos (...) q de Cilurgia ouverem de ser curados" (p. 83).

O enfermeiro-mor (Capº X), que chefiava cada uma das enfermarias, tinha "cuidado principal da cura, e da vizitação dos doentes", devendo ser "homem caridoso, e de boa condição, e sem escândalo". Na época, e durante muito tempo, os enfermeiros eram recrutados entre o pessoal religioso, nomeadamente das ordens hospitaleiras.

Os enfermeiros tinham o "carrego de todo o serviço dos doentes" (que deviam servir "com toda caridade , e amor q devem por Deoz, e por os proximos"), incluindo a higiene pessoal do doente, a muda das camas, a limpeza das enfermarias e dos "ourinoes". Esta última (duas vezes por semana no verão e uma por semana, no inverno) era sobretudo uma tarefa dos seus ajudantes (ditos enfermeiros pequenos ), bem como dos escravos (que, trazidos de África, chegaram a constituir 10% da população de Lisboa da época).

Nesta altura, já existia (ou estava previsto) o trabalho nocturno e por turnos em enfermagem, tal como se depreende deste capítulo: "Item sam obrigados os ditos Enfermeiros mayores, e asy os pequenos (...) de Vellarem todas as noutes agyros todos os Enfermos de suas Enfermarias" (p. 71).

Além disso, retirar, amortalhar e enterrar os mortos com discrição e dignidade era uma responsabilidade da enfermagem. 

Assim, em caso de falecimento de algum doente, os enfermeiros "tiraloham do leito onde gouver pelo corredor q está detraz dos leitos por q os outros doentes os não possam ver, nem recebam com isso torvaçam , e levarão o tal finado á Igreja" e dali para o cemitério, depois de prestado o serviço fúnebre religioso (pp. 72-73).

A administração aos doentes das "purgas, lamedores, unções" e demais mezinhas, prescritas pelo médico (a que se resumia, no essencial, a panóplia terapêutica da época), também era tarefa dos enfermeiros. 

Tinham, além disso, um armário onde guardavam "alguns repairos convem a saber dasucar rosado, e agoas de cheiro, e outros cordiaes, e asy cheiros para os darem aos doentes de noute, e de dia quando lhe parecer necessario".

O fornecimento desses produtos ("couzas do repairo dos doentes") era decidido pelo provedor e pelo físico, de acordo com o que era de "mais proveito para os doentes, segundo as suas paixões, e Enfermidades" (p. 75).

Competia ainda ao enfermeiro estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937. 21-22).

Por fim, era esperado que o enfermeiro cumprisse as suas tarefas, não apenas com "muy grande cuidado", como também "com toda boa vontade, e mansidam, e sem escandalo dos doentes, e com toda a caridade, e consolando-os em suas paixões, e muy ameude lhe lembrando, q se encomendem a Nosso Senhor e a nossa Senhora" (p. 76).

Pelo perfil exigido a alguns dos oficiaes do esprital, presume-se que, pelo menos, o hospitaleiro, a hospitaleira, os enfermeiros e as enfermeiras fossem originariamente recrutados entre o pessoal das ordens religiosas. O restante pessoal seria laico.

Noutros estabelecimentos hospitalares de menor dimensão e importância, o número de oficiais (grandes e pequenos) era mais reduzido (caso de Coimbra, Porto, etc.)

Na cidade de Coimbra, e antes da fundação do primeiro hospital geral, em 22 de Outubro de 1508, na sequência da política de centralização de D. Manuel I, terão existido pelo menos 17 pequenos estabelecimentos assistenciais (na maior parte, hospícios e albergarias), segundo a pesquisa documental feita por Ferrão (199?). Coimbra era então uma cidade que, após a reconquista cristã, em 1064, se irá desenvolver à sombra do Mosteiro de Santa Cruz (fundado em 1130) e, mais tarde, da Universidade (que se instala definitivamente nas margens do Mondego em 1531)

O Hospital da Conceição e da Convalescença, em Coimbra, que resultou da fusão dos demais estabelecimentos assistenciais até então existentes, com excepção do Hospital e da Albergaria de Milreus e da Gafaria de S. Lázaro, situava-se na Praça Velha. Com portal virado para poente, sobrepujando uma varanda de parapeito, possuía três naves. Mais tarde, começou a ser conhecido por Hospital da Praça (Ferrão, 199?, p. 73).

De menor dimensão do que o HRTS, regia-se por um regulamento semelhante, embora as necessárias adaptações. Dirigido por um provedor, de nomeação régia, o hospital de Coimbra tinha também menor número de oficiais do que o de Lisboa (Ferrão, 199?):

  • O hospitaleiro exercia as funções inerentes à enfermagem, além de ter a seu cargo a despensa e a tesouraria;
  • Ao escrivão competia a contabilidade hospitalar e a fiscalização património;
  • Quanto ao capelão, além da assistência religiosa, tinha também a seu cargo o registo dos doentes.

"O tradicional arcão ferrageado, onde se arrecadavam os dinheiros da instituição, possuía três chaves das quais, uma, estava nas mãos do Provedor e as restantes, uma nas mãos do Hospitaleiro e a outra nas do Escrivão" (Ferrão, 199?74).

O hospital tinha, pelo menos, um físico que, durante o dia, devia visitar os doentes, pelo menos duas vezes. O recurso ao barbeiro-sangrador e ao cirurgião era feito de acordo com as necessidades. Também não havia botica própria.

Em 1548, por provisão régia de 24 de Junho, a administração do hospital geral de Coimbra é confiada aos cónegos seculares de S. João Evangelista (ou Lóios, como eram popularmente conhecidos). O seu provedor passou então a ser recrutado entre gente desta congregação. Vinte e cinco anos depois da instalação definitiva da Universidade em Coimbra, o Hospital da Conceição e da Convalescença passa a funcionar como hospital escolar.

Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ainda em 1830 existia a figura da cristaleira, no Hospital de São José, e durante muito tempo foi um ofício mecânico exercido cumulativamente com o de parteira. No Séc. XVIII uma cristaleira chegava a fazer 400 clisteres por mês!5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar

As diferenças de estatuto do pessoal hospitalar eram já visíveis ao nível remuneratório (vd. Quadro I, em anexo):

  • No ano de abertura do HRTS, em 1504, o leque remuneratório, em dinheiro, seria originalmente de 15 para 1;
  • A remuneração média anual rondaria os de 3$800 réis (Máximo 30 mil, mínimo 2 mil);
  • E o total dos encargos com os seus mais de cinquenta oficiais grandes e pequenos ultrapassava os 250$000 por ano, não contando com outros custos com o pessoal que incluíam formas de pagamento indirecto, em géneros (alojamento, alimentação e até vestuário).

De acordo com a estrutura da despesa do hospital europeu no Antigo Regime, os encargos com pessoal do HRTS deveriam representar cerca de 15 por cento do total.

O orçamento global deste hospital deveria, pois, ser superior a 1600$000 réis; e mais de 60% das receitas seriam muito provavelmente consagradas a custear os encargos com a alimentação tanto dos doentes como do pessoal. Sabemos que, com o tempo, as despesas aumentaram exponencialmente, e o nº oficiais grandes e pequenos terá atingido as 8 dezenas em meados do séc. XVIII (Alberto et al, 2021).

De qualquer modo, no HRTS (que era originalmente sustentado pela fortuna pessoal do rei, distinta do erário público), havia dois tipos de remuneração em espécie:

  • A tença, anual, para os oficiais grandes e pequenos (pessoal dirigente, capelania, prestadores de cuidados, pessoal de apoio);
  • A soldada ou salário, para certas categorias do pessoal menor, afectas às actividades de apoio, como o atafoneiro, a amassadeira e a forneira, que eram pagos à jorna ou ao dia, não devendo por isso pertencer ao quadro de pessoal (como diríamos hoje) do HRTS;
  • Refira-se ainda a existência de mão de obra-escrava, de origem africana, que exercia funções de ajudante de lavadeira e que tinham apenas direito a pagamento em géneros (alimentação, alojamento e vestuário).

O provedor (o equivalente hoje ao presidente do conselho de administração do hospital) ganhava dez vezes mais (30$000 réis) do que o barbeiro-sangrador—o único, juntamente com um dos cirurgiões, que não tinha, de resto, direito nem a alojamento nem a alimentação, sendo os seus serviços requisitados sempre que necessários (tal como os serviços do atafoneiro ou moleiro, da amassadeira e da forneira, os quais eram pagos à jorna)

O físico, por sua vez, ganhava três vezes mais (18$000 réis) do que um enfermeiro-mor (responsável por uma enfermaria de homens), e o boticário 1,25 vezes mais (15$000 réis) do que o cirurgião residente. Este último, que também tinha funções de ensino, tinha uma tença seis vezes superior (12$000) ao do seu ajudante (o equivalente hoje a um interno de cirurgia).

Além do provedor, o restante pessoal dirigente era letrado, ou pelo menos tinha que saber ler e escrever, auferindo o dobro (12$000 réis, no caso do almoxarife, do escrivão e do hospitaleiro) da remuneração dos oficiais menores como o cozinheiro e o despenseiro, e o triplo ou até mesmo o quádruplo das demais categorias de pessoal subalterno (por ex., porteiro, lavadeira, costureira).

O almoxarife, o escrivão, o hospitaleiro e até mesmo o vedor (que auferia apenas 8$000 réis por ano, além de alojamento e alimentação, como os restantes oficiais) teriam hoje o estatuto remuneratório do director de serviços, do chefe de divisão ou do chefe de repartição na função pública.

No que respeita ao pessoal médico e paramédico, o físico estava, pois, acima do boticário, e este do cirurgião, em termos de estatuto remuneratório. Abaixo do meio da tabela, vinha o enfermeiro-mor que ganhava um pouco menos (6$000 réis) que o primeiro capelão (6$300 réis) e o dobro da cristaleira (que ministrava os clisteres ou purgas), da enfermeira (responsável por uma enfermaria de mulheres), do ajudante de boticário e do barbeiro-sangrador. Estranha-se, por outro lado, a não existência de um cristaleiro.

O regimento também é omisso quanto ao montante da remuneração da hospitaleira. Em todo o caso, o estatuto remuneratório das mulheres era claramente inferior ao dos homens, se compararmos quatro ocupações femininas (enfermeira, cristaleira, costureira e lavadeira) com outras tantas ocupações masculinas de qualificação mais ou menos equivalente (enfermeiro, barbeiro-sangrador, despenseiro, cozinheiro).

Estas diferenças de estatuto remuneratório reflectiam, antes de mais, a hierarquização social (e sexual) dos titulares de cargos e dos ofícios, com destaque para o provedor, que era recrutado de entre gente da corte ou do alto clero, e para o físico, que muito provavelmente seria o único a deter um título universitário (bacharel ou licenciado) e que, além disso, devia gozar, também ele, da protecção do próprio rei ou, pelo menos, do seu físico-mor.


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Referências Bibliográficas (a rever)

BASTO, A. M. (1934) - História da Misericórdia do Porto, Vol. I. Porto: Santa Casa da Misericórdia do Porto.

CORREIA, F.S. (1981) - Misericórdias. In: Dicionário de História..., op. cit.. 1981. Vol. IV, 1981. 312-316.

CORREIA, F.S. (1984) - Prefácio. In: Regimento..., op. cit. 1984

Dicionário de História de Portugal (Dir. de J. Serrão) (1981). Porto: Figueirinhas.

Dicionário da História de Lisboa (Dir. de Francisco Santana e Eduardo Sucena). Lisboa: 1994.

FERRÃO, A. S. S. (199?) - Os hospitais de Coimbra. Gestão Hospitalar. 199? 73-79.

FERREIRA, M. E. C. (1981) - Capital. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 462-465.

FERREIRA, F.A. G. (1990) - História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

GRAÇA, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa (Textos, T 1238 a T 1242).

LEMOS, M. (1991) - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, 2 Volumes. Lisboa: D. Quixote; Ordem dos Médicos (1ª ed., 1899).

NETO, M. L. A. M. C (1981) - Assistência Pública. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 234-236.

PINA, L. (1938) - Aspectos da vida médica portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Casa Holandesa.

Regimento do Hospital de Todos-os-Santos (1984). Lisboa: Hospitais Civis de Lisboa (facsimile da 1ª edição, 1946).

 
(Importante, para a revisão que estou a fazer, o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia. Estamos ainda a lê-lo.)


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(a) Fonte / Source: Versão adaptada e actualizada de: GRAÇA, L. (1994) - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994) 26-31.

Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional

 

Categoria (ou 'título')Remuneração

anual em espécie

Remune-

ração em géneros

Perrfil psicoprofissional (Requisitos)
  UnidadeTotal  
Pessoal dirigente     
Provedor130$00030$000A"Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo"
Almoxarife112$00012$000A"Homem de bem, e de fiança, e bemcriado"
Escrivão112$00012$000A 
Protonotário1??  
Hospitaleiro112$00012$000A+B"Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança"
Hospitaleira1??A+B"Muito diligente, e destra no serviço"
Vedor18$0008$000A+B"Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber"

Sub-total

7 74$000  
Pessoal de capelania     
1º Capelão16$3006$300A+B 
2º Capelão16$0006$000A+B 
Ajudante22$0004$000A+B 

Sub-total

4 16$300  

Pessoal    médico e paramédico

     
Físico118$00018$000A 
Cirurgião interno112$00012$000A 
Cirurgião externo16$0006$000  
Ajudante  de cirurgião22$0004$000A+B 
Boticário

1

15$00015$000A"Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado"
Ajudante de boticário33$0009$000A+B 
Enfermeiro- mor  (ou chefe)46$00024$000A+B"Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo"
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar)72$00014$000A+B 
Enfermeira-mor   (ou chefe)13$0003$000A+B 
Enfermeira  auxiliar12$0002$000A+B 
Barbeiro-sangrador13$0003$000  
Cristaleira13$0003$000A+B 

Total

25 113$000  
Pessoal operário e auxiliar     
Despenseiro16$0006$000A+B 
Cozinheiro16$0006$000A+B 
Ajudante de cozinheiro33$0009$000A+B 
Porteiro14$0004$000A+B 
Costureira14$0004$000A+B 
Lavadeira14$0004$000A+B 
Ajudante de lavadeira1(a)(a)A+B+C 
Atafoneiro1(b)(b)  
Amassadeira1(b)(b)  
Forneira1(b)(b)  
Outros (eventuais)43$00012$000A+B 

Sub-total

16 45$000  
Total geral52 248$300  

Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário

 

Quadro 2 - Funções do provedor do HRTS

Funções

Descrição

Gestão financeira

Gerir as receitas (rendas, doações, exploraçãodirecta) e as despesas (tenças, alimentação, mesinhas)

Gestão patrimonial

Arrendar, aforar e emprazar o património

Reparar e conservar os equipamentos e instalações

Controlo contabilístico

Autorizar, assinar e fiscalizar todos pedidos de despesa, e nomeadamente os do almoxarife

Conferir e assinar semanalmente os respectivos livros

Poder hierárquico e disciplinar

Exercer o poder hierárquico ("ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos")

Admitir, avaliar, suspender e substituir os funcionários

Manter a ordem e a disciplina, bem como controlar a assiduidade do pessoal

Triagem dos doentes

Assegurar que seja feita a triagem dos doentes, de modo a que no hospital não sejam admitidos doentes incuráveis, de acordo com o exame médico

Garantia de acessibilidade

Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não possam deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios

Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas

Qualidade dos cuidados

Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes ("de modo a que sejam muy curados, e providos em suas necessidades, e consolados com boas palavras ")

Participar na visita diária aos doentes

Prevenção dos riscos

Prevenir as infecções hospitalares, através nomeadamente da permanente limpeza e asseio das enfermarias

Eficiência

Assegurar a eficiente utilização dos recursos (incluindo os medicamentos e outros materiais consumíveis)

Fonte: Adapt. de Regimento do HRTS (1984)



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