Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"
Impunidade e justiça
Ele não morreu nem matou ninguém. Do mal, o menos. Atrás de mim, ele esbracejava como um possesso. Mesmo sem nada ouvir, não tenho dificuldade em traduzir as palavras que esses gestos significavam:
- Anda para a frente, lesma, mexe-te filho da puta, ó velho do caralho!
O carro vinha mesmo em cima do meu, ameaçando, já não digo abalroar-me, mas tocar-me. Seguia pela marginal do Douro, do Freixo a Entre-os-Rios, estrada com muitas curvas e quase sempre com traço contínuo. Sessenta, setenta era a velocidade do meu carro, velocidade legal e perfeitamente adequada ao trajeto.
Acima desse limite, tornava-se não só ilegal como perigosa. O gajo queria passar sem mal nem morte e só não o fazia, mesmo nas curvas e no risco contínuo, porque a fila de carros em sentido contrário tornava a manobra impossível. Então, o bode expiatório do seu desespero era eu. Atirava-me com gestos obscenos e gritos que eu não ouvia perfeitamente condizentes com o fácies de atrasado mental que eu conseguia enxergar pelo retrovisor.
Da minha parte, em nada alterei a minha postura e a minha marcha. Até que a estrada se desfez, por momentos, das curvas, mantendo, no entanto, o risco contínuo. Vi logo que o animal aproveitaria aquele momento, a despeito de um carro que surgira de repente ao fim da reta. E como já conheço estas diárias aberrações mentais que infestam as nossas estradas de Norte a Sul, vi logo que ele ia esboçar o gesto de travagem brusca à minha frente. Claro que tomei as devidas precauções.
Ele não morreu nem matou ninguém, mas uns quilómetros à frente, ali para os lados de Gramido, afocinhou na valeta encolhendo a frente do carro até meio capot. Reconheci a pobre viatura e reconheci o gajo a olhar com ar de lorpa para o carro vermelho. Vi que não havia vítimas. Apesar de o ter observado somente através do retrovisor e de ele me ter parecido um néscio e um atrasado mental, a sua figura, fora do carro, era a de um gajo vulgar e normal. Para tristeza minha.
Como são os sentimentos humanos! Como pude eu sentir tão grande satisfação ao vê-lo estampado! Penso que esta minha pequena perversão não existiria se houvesse vítimas, mesmo que a única vítima fosse a própria alimária. Mas quando vi que era só chapa, soltou-se-me uma destas espontâneas e fundas gargalhadas que não sabemos de onde vêm, mas vêm certamente do eterno conflito entre a impunidade e a justiça, quando esta sai vencedora.
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Nota do editor
Último post da série de 4 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25807: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (29): "Um bramido de raiva"
2 comentários:
Ahahahah esta só foi chapa, e nunca mais inventam um 'passa por cima', ideia com muitos direitos de autor.
Valdemar Queiroz
Caríssimo Adão Cruz, retratista da fauna humana, que tão bem sabe observar e transmitir.
Desta vez "saiu em rifa" um espécime bastante vulgar, o "artista" que se cola à nossa viatura e destila toda a sua frustração por haver mais pessoas, não ser só ele a circular.
Claro que, em boa verdade, não sabemos o que motivara a pressa, o querer afastar os obstáculos do seu caminho. Sabemos que se comportava de modo agressivo, irracional, insultuoso e, pelo relato, deve ter esboçado a cena da travagem após a ultrapassagem. Mas podia, talvez, até ter alguma urgência.
Agora, a "sensação de justiça" experimentada por quem foi tão incomodado, não tem nada, quanto a mim, de "pecaminoso".
É um sentimento humano perfeitamente legítimo.
Hélder Sousa
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