sábado, 21 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13315: IX Encontro Nacional da Tabanca Grande (39): Heróis da batalha de Gadamael encontraram-se em Monte Real, no dia 14 de junho... O que veio de mais longe, dos EUA, é o lourinhanense Mateus Oliveira, da CCP 122 / BCP 12 (Bissalanca, BA 12, 1972/74)... Mais uma prova de que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca...é Grande!








IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 >  Uma beleíssima sequência documental de um inesperado encontro de dois homens que há 41 anos atrás estavam em Gadamael, em 2 de junho de 1973, tentando rechaçar o prolongado ataque ao aquartelamento, naquela que poderá ter ficado para a história como "a batalha de Gadamael"....O J. Casimiro Carvalho (,à esquerda) veio da Maia, onde mora. Foi fur mil op esp da CCAÇ 8530 (1972/74), a companhia que esteve em Guileje até 22/5/1973 e que, por ordem do então comandante  do COP 5, o major art  Coutinho e Lima (, também presente do nosso encontro), foi mandanda retirar para Gadamael, juntamente com a restante guarnição militar. À direita, o Mateus Oliveira, a viver nos EUA  desde 1977, se não erro. É meu conterrãneo, da Lourinhã, e fui eu  que o apresentei ao J. Casimiro Carvalho bem como ao António Martins de Matos.



 IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 > Mais dois bravos de Gadamael: à diereita , o ex-ten pil António Martins Matos (hoje ten gen ref) e o ex-paraquedista Mateus Oliveira (CCP 122/BCP 12, Bissalanca, BA 12, 1972/74).


IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 >  Pedaço da camisola do António Martins de Matos  onde está estampada uma imagem de um FIAT G-91/ R 1, com os seguintes dizeres adciionaiis  "FAP 1973O- BA 12 Esq 121 Tigers Bissalanca"...


 IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 > Ao centro, o António Martins de Matos, ladeado à sua esquerda pela nossa única camarada presente neste convívio, a Giselda Pessoa (srgt enf paraquedista, Bissalanca, BA 12, 1972/74) e, à direita, pelo  António José Brito da Silva (Madalena / Vila Nova de Gaia), que foi fur mil da CCAÇ 3414 (Bafatá e  Sare Bacar, 1971/73).


IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 >  Outro herói da natalha de Gadamael, aqui à esquerda, o Manuel Reis, ex-mil da CCAV 8530 (1972/74). Foi lapso meu, não o apresentei pessoalmente ao Miguel Oliveira. Restantes camaradas: sentados, Rogé Guierreiro (Cascais) e Xico Allen(V. N. Gaia)... De pé, à esquerda,o Zé Manel Matos Dinis (Cascais).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.



 IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 >  Da esquerda para a direita, Júlio da Costa Abreu (Holanda), seguido do seu cunhado Mateus Oliveira (EUA) e da Giselda Pessoa (Lisboa)... Falaram, por certo de Gadamael, que os três conheceram, o Júlio em 1965/66, quando 1º cabo comando do Gr Cmnds Centuriões, mais o Mateus  e a Giselda em 1973...  

Foto: © Miguel Pessoa (2014). Todos os direitos reservados. [Legenda de L.G.]


Leiria > Monte Real > Palace Hotel Monte real > 8 de junho de 2013 > VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Almoço convívio > Dois heróis de 1973, batendo a pala um ao outro: o antigo ten pilav António Martins Matos (hoje ten gen pilav ref; era o asa do Miguel Pessoa, quando este foi abatido por um Strela sob os céus de Guileje, em 25/3/1973) e o ex-fur mil op esp J. Casimiro Carvalho, o "grande pirata de Guileje" que merecia uma cruz de guerra em Gadamael (dois meses a seguir)...

Foto: © Miguel Pessoa (2013). Todos os direitos reservados. [Legendas: LG]


Nota do editor:

Sobre a "batalha de Gadamael" há inúmeros postes no nosso blogue... Seria impossível citá-los todos... Ficam aqui algumas referências,  a talhe de foice (**)... Recorde-se que neste lugar, na região de Tombali, junto à frinteira com a Guiné Conacri, travou-se uma das batalhas mais encarniçadas e sangrentas da guerra da Guiné (1963/74), a seguir à retirada de Guileje (em 22 de Maio de 1973), entre 31 de Maio e as duas primeiras semanas de Junho de 1973.  O papel da FAP e do BCP 12 na vitória sobre o PAIGC, em Gadamael, foi decisivo e é hoje unanimemente reconhecido.

Sobre o topónimo Gadamael temos mais de 260 referências, no nosso blogue (II Série)... Mas não nos é possível, de momento, destrinçar o que relativo aos acontecimentos de maio/junho de 1973. Além disso, temos um marcador  "dossiê Guileje/Gadamael", com 17 referências (***)...

 ____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13305: IX Encontro Nacional da Tabanca Grande (38): "Caras novas" em Monte Real... E algumas de camaradas que ainda não se sentam à sombra do nosso poilão

(**)   Vd. postes da série Dossiê Guieje / Gadamael 1973:

24 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3789: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (2): Esclarecimento adicional de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

25 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3790: Dossiê Guileje / Gadamael (3): "Um precedente grave" (Diário, Mansoa, 28 de Maio de 1973) ... (António Graça de Abreu)

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

29 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3816: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (5): Strellado nos céus de Guileje, em 25 de Março de 1973 (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav)

1 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3982: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (7): Ferreira da Silva, ex-Capitão Comando, novo comandante do COP 5 a partir de 31/5/1973

15 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4035: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (8): Amigo Paiva, confirmas que fomos vítimas de ameaças e pressões (Manuel Reis) 

23 de abril de 2009 >  Guiné 63/74 - P4239: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (9): Eu, a FAP, o BCP 12 e a emboscada de 18 de Maio (João Seabra)


11 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3872: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (21): Resposta de António Martins de Matos a Nuno Rubim

12 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3881: Considerações sobre o P3853: Apontamentos sobre Guileje e Gadamael (Vasco da Gama)

23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3783: FAP (1): A diferença entre o desastre e a segurança das tropas terrestres (António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res)

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13314: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (12): O crioulo (e as suas virtualidades)


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72) > s/d> O Alf Mil Capelão Arsénio Puim, expulso do Batalhão e do CTIG em Maio de 1971.


Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada Arsénio Puim, com data de 19 do corrente

Assunto: O crioulo da Guiné

Luís Graça

Envio um pequeno trabalho com algumas considerações pessoais sobre o crioulo da Guiné, um assunto que me cativou na minha estadia neste território, para publicação no blogue, se achares que tem interesse.

Um abraço, Arsénio Puim



2- Memórias de um capelão > O Crioulo da Guiné

Um aspecto da cultura guineense que logo me chamou a atenção e despertou muito interesse durante a minha estadia na Guiné, na zona de Bambadinca, foi, precisamente, o crioulo falado pelos nativos deste território.

O crioulo, ou kriol, na língua nativa, é apenas um dos sistemas linguísticos da Guiné, pois que as populações autóctones falam, em primeira mão, a língua gentílica da sua etnia e, com alguma frequência, o português, de sabor acrioulado, simplificado nas suas regras gramaticais e com um sotaque mais afim do brasileiro. Isto leva-me a dizer que o povo da Guiné, falando habitualmente três línguas e, às vezes, conhecendo ainda alguma das línguas de outras etnias, é um povo poliglota.

O crioulo nasceu da confluência do português com as línguas indígenas e a idiossincrasia dos aborígenes. É, portanto, uma herança do país colonizador, moldada pelo povo indígena à sua medida e ao seu sabor.

Os nativos consideram-no a língua dos «criston» (os cristãos), um termo que na Guiné tem uma referência específica à etnia papel, a qual se concentra sobretudo em Bissau, e aos caboverdeanos, muito abundantes neste território.

Mas nos tempos actuais quase todas as etnias falam o crioulo, nomeadamente os papeis, os fulas, os mandingas, e os caboverdeanos, ainda que com algumas pequenas variações e peculiaridades.

Referiu-me o sr. Jamil, conhecido comerciante libanês que residia então no Xitole, que na Guiné há o crioulo fula e o crioulo papel, além do crioulo de Cabo Verde. Esta análise corresponde aos dois dialectos que alguns investigadores consideram integrar o crioulo guineense: o dialecto de Bissau / Bolama, a que se pode associar o crioulo de Cabo Verde, e o dialecto de Bafatá, que será o referido crioulo dos fulas. Na opinião dos investigadores, há ainda o dialecto crioulo do Cacheu, território situado a norte, com influência do francês, pela proximidade do Senegal.

Entre os vários fenómenos linguísticos que determinaram o processo de formação e evolução do crioulo guineense em relação à língua mãe, e o caracterizam sobremaneira, julgo poder destacar dois que lhe estão especialmente presentes: o primeiro é a eufemização sonântica, de acordo com o profundo sentido musical africano, o que lhe confere uma sonoridade e um ritmo próprios.  Na verdade, é agradável ouvir, por exemplo: «djúbi si na chúbi» – vai ver se está a chover; «cá bu tchora, fidjo» – não chores, filho; «ami cá sibi»– eu não sei.

O outro fenómeno é a descomplexificação linguística, nomeadamente pela eliminação das clássicas e complicadas regras gramaticais, tanto morfológicas como sintáticas, da língua portuguesa. No crioulo não há artigos, nem variações de género e número dos nomes, e os verbos só tem uma forma gramatical para todas as pessoas, tempos e modos, correspondente à 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo: ami ná bai, bu ná bai, i ná bai – eu vou, tu vais, ele vai. (O na é a partícula usada na forma afirmativa, enquanto a negativa se faz com a partícula , como vimos nas últimas duas frases crioulas acima. É toda uma simplificação que roça mesmo a ingenuidade linguística e lhe dá um engraçado sabor infantil, cheio de expressividade.

E para essa ingenuidade e graça da linguagem crioula, concorre ainda a genuinidade e primitivismo do seu léxico e da construção fraseológica: corpo sta bom? (como está?); ermon di amanhã – depois de amanhã; mussa piquenino – doi um pouco; e sobretudo o pluriuso da pitoresca palavra manga, com o significado de muito, grande quantidade, nos mais diversos casos – manga di patacão, manga di giro, manga di mama firme, manga di sabe (saber muito), manga di mofineza na cabeça (ser atrasado mental), manga di cabeça grande (estar embriagado), manga di cú piquinino (ter medo) e até manga di sàtice ( grande chatice).

A Guiné, e a generalidade dos países africanos, adoptaram, para uso oficial, a língua do país colonizador, mas também é certo que essas, muitas vezes, não são as línguas mais faladas pelo povo e que, por outro lado, se tem vindo a desenvolver, em algumas regiões, movimentos linguísticos e literários de tendência indígena.

Amílcar Cabral, com a sua visão larga e profundo conhecimento da cultura indígena, já estatuíra no seu programa para a Guiné a adopção do crioulo, desenvolvido e com codificação escrita , como língua comum do povo do território.

A sua morte criminosa, e desastrosa para a independência da Guiné e para a causa africana, parece, no entanto, não ter enterrado este projecto cultural, já que o crioulo faz parte do currículo da escola primária deste país, juntamente com o português. E o crioulo continua a ser a língua corrente e generalizada da Guiné: na vida do dia a dia, nas escolas, nas Igrejas e até na política interna.

Por tudo isto, não me custa admitir que o kriol, com todas as suas virtualidades, constitua no futuro - e de alguma maneira já hoje - a grande língua do país da Guiné Bissau, ao lado do português, para uso oficial.

Arsénio Puim

2. Comentário de L.G.:

Há mais de um ano que eu não tinha notícias do nosso amigo e camarada Puim. O último mail dele (27/3/2013) dizia o seguinte (transcrevo um excerto): 

"Amigo Lus Graça: Os meus votos de Boa Páscoa para ti e tua família. Informo o meu amigo que nos últimos tempos tenho tido alguns problemas de saúde (...) e até estive há poucos meses em Lisboa fazendo tratamento (...).. Correu bem, (...) e estou a sentir-me bastante bem. Dizem que o barro de Santa Maria, que é a minha ilha, é rijo. Confio que sim. Um abraço - Arsénio Puim".

A prova de que o barro da ilha de Santa Maria é bom, aqui está hoje. Temos Puim, e a garantia de que as memórias do nosso alferes capelão vão continuar a chegar e ser publcadas no nosso blogue... Bravo!... Um xicoração fraterno! Luís

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Nota do editor:

Vd, postes anteriores da série > 

14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais

(...) Este é o primeiro duma série de pequenos relatos, para este histórico blogue de Luís Graça, respeitantes à minha vivência como alferes capelão do Batalhão 2917, que acompanhei desde a Serra do Pilar até Bambadinca, no centro da Guiné, entre Dezembro de 1969 e Maio de 1970.

É meu propósito essencial rememorar e partilhar com os antigos companheiros do Batalhão, por quem tenho muito apreço, alguns factos e acontecimentos que nos são comuns, sem nunca pretender atacar quem quer que seja. (...)

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau

(...) No dia 2 de Março de 1970, o BART 2917, em que me integrava como alferes-capelão, já deixara a Pesada [, o RASP 2,] em Gaia, e encontrava-se na linda e pequena cidade de Viana do Castelo, para fazer o IAO.

Foram dois meses e meio de intenso treino operacional, incluindo um acampamento, em princípios de Março, na serra, para as bandas de Santa Luzia, em que também participei. Um ambiente duro, onde faltava tudo o que pudesse saber a conforto. E, sobretudo, que frio, meu Deus, durante a noite! (...)

21 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4989: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71)(3): De Bissau a Bambadinca, a cova do lagarto


(...) Às duas horas da manhã do dia 31 de Maio de 1970 deixámos Bissau, numa LDG, e continuámos a subir o Rio Geba, em geral bastante largo e de margens baixas e arborizadas, pela calada da noite, estranhamente muito fria. Cinco horas de viagem, sem qualquer incidente, até ao Xime, onde ficou já a Companhia 2715.

No dia anterior tinha-se realizado a entrega das armas aos membros do Batalhão. Todos em fila, um por um. Quando chegou a minha vez, recusei receber a G3. Uma questão, simplesmente, de missão específica do capelão e de consentaneidade com as suas funções, enquanto sacerdote ao serviço da Igreja - expliquei.
- Você é testemunha de Jeová? – atalhou um oficial superior que superentendia ao acto.
- Não, sou padre católico – retorqui. (...)


(...) É natural que uma parte importante dos textos publicados por ex-combatentes da Guiné, no histórico Blogue de Luís Graça, incida sobre variadas situações de combate vividas pelos próprios ou pelos companheiros, em ataques, assaltos, emboscadas e demais operações militares dum teatro de guerra. São experiências, frequentemente, de grande dureza, muita tensão e perigosidade, que eu não tive.

Ao capelão militar é atribuída uma função específica, que é prestar assistência religiosa aos militares do Batalhão e testemunhar, na medida do possível, os valores do Evangelho, e ele não é, compreensivelmente, um combatente da guerra, independentemente da justeza ou não desta, posição que eu assumi e demarquei logo de início, renunciando à posse de arma de combate, que me era proposta. Nem, de resto, a preparação elementar ministrada no Curso de Capelães Militares durante um mês e meio, na Academia Militar da Rua Gomes Freire, me habilitava para esse desempenho. (...)

12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba 

(...) Considero a Guiné uma terra bonita, pela beleza simples da sua paisagem e as suas singularidades muito próprias, pelo seu complexo faunológico, bastante rico e interessante, nomeadamente no domínio das aves, pela sua flora, com variadas espécies arbóreas, onde sobressaem as palmeiras esguias e esbeltas, disseminadas por toda a selva, emprestando-lhe um tom de exotismo tropical. Mas um dos aspectos mais bonitos, para mim, do território da Guiné são os seus rios, com a sua rede extensa de afluentes e pequenos cursos, principalmente na época das chuvas, que deslizam em admiráveis serpenteados entre a selva luxuriante e as bolanhas que alagam e fertilizam.

São disso um exemplo os dois grandes rios que passam na zona interior: o Corubal e o Geba. O primeiro, que nasce na Guiné Conacri e vai desembocar no Geba, a sul do Xime, é navegável até à região do Xitole. A partir daqui, surgem alguns rápidos: primeiro, em Cusselinta – bonita estância onde um longo braço do rio forma uma piscina natural com condições privilegiadas – e, depois, já de proporcões maiores, na pitoreca zona do Saltinho. (...)



(...) Esta foi a minha viagem de eleição no território da Guiné, pela sua originalidade, pela sua distância e pelo seu encanto. O Geba estreito constituiu, de facto, o troço mais palpitante, nomeadamente o Mato Cão – até o nome não sabe bem – onde, desta vez, não estava o nosso alferes Cabral, de Missirá, para ver o barco passar e nos proteger. O trajecto do Geba largo, até ao Xime, eu já o tínha percorrido, em LDG, quando o nosso Batalhão deixou Bissau e veio para Bambadinca, mas era de noite e foi às escuras.

A viagem do «Bubaque», desde as 10 horas às cinco da tarde - não sei se parámos em algum porto intermédio, como o Xime, já não me lembro - correu muito bem, com muita ordem, boa convivência e sem qualquer problema. Foi um espectáculo permanente oferecido aos nossos olhos e que, como em outras ocasiões, me fez pensar e sentir: que pena a guerra!... (...)

2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz

(...) Mancaman vivia na tabanca do Xime, contígua ao quartel onde estava estacionada a CART 2715 (**). De trinta e poucos anos, magro e um pouco alto, filho do chefe da tabanca - Mancaman (pai). Era mandinga, do que se orgulhava, por reconhecer a supremacia histórica e cultural desta etnia no quadro guineense e africano.

Não gostava dos Fulas e apreciava o espírito laborioso e a coragem dos Balantas. Falava, com muita graça e expressividade, o português, além do crioulo, o mandinga e o fula. Inteligente, muito humano e sabedor no que toca à guerra da Guiné, nas suas duas faces. Era-nos dedicado, correcto, amigo. E pertencia mesmo às milicias populares, armadas pelo exército português. (...)

(...) Belmira é uma guineense mandinga que vivia em Bambadinca. De vinte e poucos anos, inteligente, alegre, era lavadeira no Quartel.

Vive só e pobre, com o seu filho, de cor mestiça, cujo pai é um soldado português pertencente a uma unidade antiga de Bambadinca. Por causa disso, tem problemas na tabanca. As pessoas olham mal as mulheres que têm filhos de brancos e ostracizam-nas. (...)

20 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6193: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (9): Os padres missionários italianos de Bafatá

(...) A Igreja na Guiné, em princípios da década de 70, tinha como autoridade eclesiástica máxima o Perfeito Apostólico (não era Bispo, nem a Guiné era então Diocese, ao contrário do que acontece hoje), com sede em Bissau e dependente directamente do Papa, em Roma.

Também em Bissau, e arredores, viviam os Padres Franciscanos, exercendo ao mesmo tempo o professorado no Liceu. Mais para o interior do território, haviam-se fixado os Padres Missionários Italianos, que tinham a sede em Bafatá e, se não erro, uma pequena extensão em Catió.

Para além destes, havia os capelães militares, dependentes do Vicariato Castrense, em Lisboa, em comissão de serviço temporária, por força da guerra existente, dispersos e isolados pelos quartéis do mato, onde às vezes existiam também minúsculos núcleos de cristãos nativos.

2 de maio 2010 > Guiné 63/74 - P6292: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (10): Samba Silate

(...) Um dos lugares tristemente célebres da guerra da Guiné, que eu tive oportunidade de visitar nos princípios de 1971, chama-seSamba Silate. Fica a poucos quilómetros de Amedalai, para o lado do Geba, entre Bambadinca e o Xime. Na continuação da tabanca estende-se, até ao rio, uma grande bolanha, tida como das melhores da Guiné. Para lá do Geba, fica Mato Cão e Madina.

Dantes, Samba Silate foi uma grande tabanca balanta e um importante centro de produção de arroz. Mas na altura em que lá estive, era uma terra desabitada e completamente inculta. Dizia-se que qualquer tentativa dos Fulas para o seu aproveitamento seria gorada pelos Balantas.(...)

14 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9195: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (11): O nosso Natal de 1970, em Bambadinca 

(...) De todos os Natais que, na minha já longa vida, passei, em localidades e situações muito variadas, não foram menos marcantes e significativos os dois Natais que vivi na Tropa, como alferes capelão.

O primeiro, a que já me referi num texto que escrevi neste blogue há uns três anos, foi vivido no Regimento de Artilharia Pesada 2, na Serra do Pilar, em Gaia. (...)


Guiné 63/74 - P13313: Notas de leitura (603): "Prisão de África", o terror na Guiné-Conacri depois da operação Mar Verde, por Jean-Paul Alata (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Pouca atenção é dada ao que se passou na Guiné-Conacri depois da operação Mar Verde.
O ditador Sékou Touré apercebeu-se que naquela invasão a população se revelara amorfa, ninguém mexeu uma palha, nem mesmo os guerrilheiros do PAIGC, a resistência foi dada por cubanos e alguma tropa fiel ao presidente. A reação foi brutal, as prisões encheram-se de suspeitos em tenebrosos complôs, pura maquinação dos delírios de Sékou Touré.
É nesse contexto que “Prisão de África” é de leitura obrigatória, é um clássico do terror mais profundo e mais hediondo, todas as ditaduras podem ser aferidas pelas sevícias e mentiras montadas nestas confissões arrancadas com choques elétricos e esmagamento de membros.

Um abraço do
Mário


O terror na Guiné-Conacri depois da operação Mar Verde

Beja Santos

É curioso como quase todos aqueles que escrevem a favor ou contra os acontecimentos da operação Mar Verde obliterem as consequências que teve a operação em Conacri na vida interna daquele país. Sumariamente, foram libertados os prisioneiros de guerra portugueses, afundadas lanchas pertencentes a duas marinhas, lançou-se o pânico entre as forças militarizadas e as milícias da Guiné Conacri, falharam vários objetivos, entre eles a colocação no poder dos oposicionistas de Sékou Touré. Todo o efetivo do pelotão de Comandos Africanos, tendo à frente o tenente Januário, que dera ordem de deserção, foi fuzilado. Morreram a combater ou foram fuzilados todos os oposicionistas da Guiné-Conacri recrutados por toda a parte graças às diligências de Alpoim Calvão. A política externa portuguesa sofreu um dos maiores abalos possíveis, foi um sem retorno da argumentação anticolonial, a imagem do governo de Lisboa nunca mais recuperou. Mas o que se silencia foi a repressão feroz que o ditador Sékou Touré pôs em movimento, irão assistir-se a atos hediondos, interrogatórios degradantes, as prisões políticas irão encher-se até dos amigos íntimos do ditador. Para se conhecer a extensão desses atos de barbaridade e insânia, é indispensável ler “Prisão de África”, por Jean-Paul Alata, Edição Livros do Brasil, 1976.

No prefácio, o escritor Jean Lacouture procura enquadrar a repressão e as monstruosidades de Sékou Touré no contexto mais vasto do espezinhamento dos direitos humanos em África. O Tchade, a República Popular do Congo, os Camarões, a República da África Central, o Zaire, a Guiné Equatorial, são exemplos de cadeias cheias de oponentes, prisões arbitrárias, condenações à morte sem culpa formada, todos estes governos torcionários são aparentados na paródia da Justiça. Fabrica-se uma intentona é já estão previamente decididas condenações à morte. Jean-Paul Alata era um alto responsável político da Guiné-Conacri. A pretexto da operação Mar Verde, passou 54 meses num campo concentracionário, Boiro. Foi acusado de ser cúmplice da CIA, da rede SS-Nazi e das forças da oposição internas. Em Boiro, foi torturado, viveu em condições sub-humanas, misturado com operários, agricultores, altos funcionários, artesãos, ministros, até membros da esquerda europeia. Alata era uma figura singular: branco, de origem corsa, quis ser africano porque tinha nascido em África, apoiou entusiasticamente a Guiné independente, casou com uma guineense. Foram-lhe conferidas as mais altas responsabilidades, enquanto diretor-geral dos assuntos económicos e financeiros da Presidência, tutelava vários ministérios, era uma das raríssimas pessoas que podia telefonar a qualquer hora do dia ou da noite a Sékou Touré.

Os complôs quase sempre forjados começaram logo em 1960, mais o mais repressivo foi desencadeado pela invasão de 22 de novembro de 1970. Nessa mesma noite, Alata pôs-se à frente de efetivos da Guiné-Conacri para reagir à invasão. A população não reagiu à agressão, o ditador apercebeu-se da solidão do seu regime. Ainda tentou fazer imaginar que se tratava de uma agressão puramente do exterior, mas sabia-se que centenas de oposicionistas tinham colaborado com os portugueses, então maquinou um complô em que falsos fiéis do regime estavam ao serviço de potências colonialistas, daí a vaga de prisões, logo 92 condenações à morte, 67 condenações a trabalhos forçados em regime de prisão perpétua, etc.

Entrevistado em 1977 pela Radio-France International, Alata faz uma reflexão sobre a invasão de 1970. Os cubanos tinham tido um comportamento valoroso ao defender a estação da rádio, segundo ele foram os cubanos que impediram os invasores de ocupar a estação emissora. Do PAIGC ninguém se mexeu, diz mesmo que foram desarmados como meninos de coro. As tropas portuguesas, diz ele, libertaram os prisioneiros no campo do PAIGC de Ratoma e reembarcaram tranquilamente, os guerrilheiros do PAIGC não deram qualquer resistência.

E começou a vaga de detenções, criara-se uma comissão de inquérito conduzida por Ismaël Touré, familiar do ditador. “Prisão de África” é um livro arrebatador, prende o leitor logo na primeira página: “13 de janeiro de 1971. Não me mexo. Massa inerte espalhada no cimento gretado da cela 23, há quase dois dias que não movo o mínimo membro. Há dois dias que não como nem bebo. O meu espírito esvaziou-se de toda a substância num instante em que o guarda fez soar a pesada alavanca de ferro. A noite é total. A cela está tão escura como a fossa que aguarda os supliciados. Perco-me no passado remoto”. E rememora a sua infância. Seguem-se os interrogatórios. Ismaël Touré lança a acusação: “Construiu a sua vida no nosso país com base num embuste. Afirma haver-se demitido da administração francesa para ficar na Guiné independente e servi-la. Levou a hipocrisia ao extremo de se converter espetacularmente ao islamismo e escolher uma mulher guineense. Conseguiu iludir o nosso presidente por uns tempos. Quer reabilitar-se revelando a verdade a seu respeito e dos seus cúmplices?”. Alata nega as acusações, volta para o cárcere, é assaltado pela felicidade que julga perdida: “Uma pessoa julga reunir um capital incomensurável de recordações felizes. Convence-se de que poderá viver delas, de que, nas horas de amargura, lhe agradará reavivar tanto amor e ternura. Ora, cada vez que revolve essas recordações felizes, é como se lhe dilacerasse o coração”. Descreve as conversas ciciadas de cela para cela, vai sabendo de mais detenções e condenações à morte. Sujeito a tortura, fisicamente despedaçado, aceita assinar a condenação que os carrascos lhe puserem em frente. Por ironia, a acusação é tão infantil que os algozes resolvem inverter o processo, Alata vai ser confrontado com outros acusados e desmonta atos de corrupção dos seus próprios inquiridores. Sékou Touré chega a telefonar-lhe a agradecer-lhe a colaboração, a pedir-lhe mais sacrifícios, o ditador é tão “magnânimo” que o informa que vai receber a visita da mulher e do filho que entretanto nasceu.

“Prisão de África” está primorosamente escrito, é uma narrativa do terror, da suprema humilhação, do medo visceral, do desespero e a raiva de perder os entes queridos. Ao lermos estes interrogatórios, recordamos outras prisões africanas, europeias, americanas, asiáticas, a monstruosidade de fazer um ser humano um farrapo, agarrado à pura sobrevivência. O prisioneiro Jean-Paul Lata vai rebatendo e mostrando as contradições das diferentes acusações. Descreve as celas com os seus percevejos, odores mefíticos, interrogatórios em que o ser humano se desfaz em urina e fezes. Os meses passam, há nova revoada de prisões, a Guiné Conacri transformou-se num campo de concentração. Alata vai mostrando aos seus carrascos como todas aquelas declarações forjadas são ridículas. Altas personalidades são enforcadas e os seus corpos balouçaram todo o dia sob a Ponte Tumbe, foi o carnaval em Conacri, megeras dançavam à volta dos cadáveres, exibiam os órgãos sexuais dos executados nas extremidades de longas varas.

E um dia, Jean-Paul Alata é libertado e parte para a Europa, sente-se guineense excluído, expulso da terra onde criara as suas raízes, separado da mulher que ama, o exílio principiado e com ele uma luta muito prolongada… Tudo começara a pretexto da operação Mar Verde, é bom não esquecer.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13307: Notas de leitura (602): "Onde se fala de Bissau", do princípio dos anos 50, da UDIB... Um excerto do próximo livro de Lucinda Aranha dedicado a seu pai Manuel Joaquim, empresário e caçador em Cabo Verde e Guiné (Lucinda Aranha)

Guiné 63/74 - P13312: Manuscritos(s) (Luís Graça) (33): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte VI): O novo bairro da Ajuda (1965/68), um "reordenamento" na estrada para o aeroporto...


Guiné-Bissau > Bissau > Localização do bairro da Ajuda, a oeste da cidadezinha colonial do nosso tempo, mais ou menos a seis quilómetros do centro, a caminho de Brá e do aeroporto, que fica a noroeste . Adaptado, com a devida vénia do mapa da Google.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, no pós.independência. O bairro da Ajuda fica a seguir Missirá, a noroeste do centro histórico de Bissaum, mais iou menos a meia dúzia de quilómetros. Em frente ao bairro da Ajuda, do lado esquerdo da estrada que liga o centro de Bissau ao Aeroporto ( hoje, avenida Francisco Mendes, que parte do centro urbano). ficava o HM 241,  infelizmente conhecido de alguns de nós. (Antigo Pavilhão  de Tisiologia, depois da independência Hospital 3 de Agosto; foi desenho pelos arquitetos do Gabinete de  Urbanização do Ultramar,  Lucínio Cruz e  Mário de Oliveira (1951/53: fica hoje relativamente perto da Cooperação Portuguesa, e da Universidade Lusófona; em frente ao antigo HM 241, fica a Mesquita, no bairro da Ajuda).



Fonte: © Ana Vaz Milheiro (2012) (Reproduzido com a devida vénia)



1. Manuscrito(s) (Luís Graça)

Nota de leitura >  Ana Vaz Milheiro – Guiné-Bissau: 2011. Lisboa, Circo de ideias, 2012, 52 pp. (Viagens, 5)

Parte VI (*)

Continuação das nossas notas de leitura desta brochura da investigadora e professora do ISCTE -IUL, Ana Vaz Milheiro (que é também crítica do jornal "Público" e que, sabemo-lo, também utilliza
o nosso blogue como fonte de informação e conhecimento, graças ao seu valioso espólio documental sobre a ex-Guiné portuguesa).

Como temos referido em postes anteriores desta série, este livrinho, profusamente ilustrado com fotografias da autora, a cores,  resulta de uma singular viagem à Guiné-Bissau, durante 10 dias, de 2 a 10 de outubro de 2011, .feita por ela e por outro colega arquiteto, bem como pelo  antropólogo  Eduardo Costa Dias, nosso grã-tabanqueiro.

Reproduzimos, com a devida vénia, um excerto de um artigo que a autora publicou no "Público",  que é uma boa síntese da leitura desta cidade lusófona onde foi procurar e estudar a tão esquecida, tão maltratada (e às vezes subvalortizada pelos próprios  portugueses e guineenses) arquitetura colonial, e em particular a do Estado Novo:

(...) "A arquitectura que procurava foi produzida durante o regime do Estado Novo por arquitectos sediados em Lisboa e que trabalham para o Ministério das Colónias (depois de 1951, Ministério do Ultramar) como funcionários públicos. Nomes que raramente se citam e que correspondem a visões mais conservadoras, como João Aguiar, Lucínio Cruz, Eurico Pinto Lopes ou Mário de Oliveira, até aos “quase modernos”, casos de João Simões, Fernando Schiappa de Campos, Luís Possolo, António Seabra, António Sousa Mendes, Emília Caria, António Moreira Veloso, Alfredo Silva e Castro."

Recorde-se que esse Gabinete (originalmente, GUC - Gabinete de Urbanização Colonial) foi criado em 1944 pelo então ministro das colónias, Marcelo Caetano. Mas voltemos à Ana Vaz Milheiro:

(...)" Todos trabalharam para a Guiné. Mas é esta arquitectura, para lá de algumas estruturas fortificadas mais antigas (casos do fortim e Cacheu ou do forte de Amura, em Bissau), do edificado de sabor oitocentista (presente em Bafatá, por exemplo, ou na antiga capital Bolama), e dos equipamentos promovidos pela Primeira República, a expressão dominante.

"Percorrer Bissau, capital desde 1941, é visitar uma cidade jardim africana que mantém intacta a escala doméstica, ou melhor, uma City Garden nos Trópicos. Sucessivos bairros residenciais foram dando à cidade o perfil que hoje ostenta, desde o primeiro bairro de inspiração deco, composto por um conjunto de casas cúbicas para funcionários públicos erguidas antes de 1945, com terraços visitáveis, passando pelas casas construídas pelo arquitecto Paulo Cunha em 1946 (hoje figura quase omitida pela historiografia de arquitectura, mas personagem central na realização do famoso Congresso de 1948), terminando no bairro com casas de dois pisos para os funcionários dos Correios. A cidade é portanto um laboratório de habitação de promoção pública construída entre o final da Segunda Guerra e a década de 1960." (...) 

É bom ler-se e reler-se este parágrafo, sobretudo  aqueles de nós que têm de Bissau, cidadezinha colonial, memórias fragmentadas, umas mais doridas, outras mais  reconfortantes, já que foi para todos nós, ex-combabentes que estiveram no mato, uma placa giratória, um cais de partida, um local de passagem, de lazer, de escape, de "desenfianço", enfim, também um refúgio, "far from the Vietnam", como eu gostava de dizer nos meus escritos da época. Mas o que é que eu conhecia de Bissau ? O que é nós conhecíamos de Bissau ? A zona portuária, a baixa, o Chez Toi, o Pelicano... Fora do alcatrão, o máximo a que nos aventurávamos era o Pilão (Cupelom)... Fiquei lá uma noite e ninguém me cortou o pescoço...

Retomando o artigo da nossa Ana Vaz Milheiro:

(...) "Menos visíveis, porque em zonas periféricas e portanto sujeitas a maiores transformações, são as experiências no domínio da casa para as populações africanas realizadas pelos arquitectos que trabalham a partir de Lisboa e que se iniciam no final dos anos de 1950. Levantamentos sobre a casa guineense, nas suas diversas configurações étnicas, são conhecidos desde 1948. Orlando Ribeiro, em missão geográfica pelo território, em 1947, também se interessou pelo assunto.

"Mas os arquitectos propõem, na sequência dos seus próprios estudos, novos bairros e casas (melhoradas em termos de organização funcional, mas realizadas em sistema de auto-construção). A casa é então, e segundo defendem, um “meio civilizador” e portanto central. Facilmente reconhecível é o bairro de Santa Luzia, uma das primeiras experiências em alojamento para africanos impulsionadas pelo Estado Novo e, mais tarde, o bairro da Ajuda, erguido na década de 60. Este último destina-se aos desalojados do incêndio que, no início de 1965, destrói parte dos assentamentos informais que circundam a capital da Guiné. Em 1968, estão já terminadas 140 casas, ocupando um rectângulo de 300 por 700 metros. É traçado pelos serviços das Obras Públicas guineenses. Os fundos são angariados localmente e os trabalhos contam com o apoio das forças militares que, em plena guerra colonial, procuram cativar as populações." (...) 

[Fonte: Ana Vaz Milheiro: Viagem à arquitectura portuguesa da Guiné-Bissau. Público,  25/11/2012]

Já aqui falámos, em poste anterior, do bairro de Santa Luzia (onde estavam instalados o Quartel General e o a sede das Transmissões; as instalações do QG dariam  depois lugar, no pós-independência,  ao Hotel 24 de Setembro) (ª)... Já o bairro da Ajuda era, segundo penso,  menos conhecido de (e frequentado por) pela malta da tropa... Daí que valha a pena, reproduzir na íntegra a curta informação, telegráfica, que nos dá a nossa cicerone, a páginas 24 do seu caderno de viagem:



[Fonte: Ana Vaz Milheiro – Guiné-Bissau: 2011. Lisboa: Circo de ideias. 2012, p. 24. Reproduzido com a devida vénia...]


Informações a reforçar: (i) o  planeamento  do bairro da Ajuda  já não é da responsabilidade do Gabinete de Urbanização do Ultramar, sediado em Lsiboa, mas sim das Obras Públicas locais; e (ii) os trabalhos de construção têm o apoio dos militares... Estamos no ínício da "acção psico-social" e dos reordenamentos das populações, no interiro da Guiné, que vão contar com o apoio técnico e logístico do famoso BENG 447... Mas em 1966 discutia-se, na Câmara de Bissau, a hipótese de mandar arrasar e reordenar o famigerado Cupelom, suspeito de ser um "ninho de terroristas" (***)...

O nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé ligou, em tempos,  o nome do administrador Guerra Ribeiro (de seu nome completo Manuel da Trindade Guerra Ribeiro, que foi igualmente administrador de Bafatá, antes de o ser de Bissau) "à construção do Bairro-de-Ajuda, o único bairro digno deste nome na periferia da antiga Bissau construído na base de trabalho obrigatório" (****). De qualquer modo, antes do bairro da Ajuda, já aqui  foi referido o bairro, mais antigo, de Santa Luzia. É de 1948, ao tempo do Sarmento Rodrigues.
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Notas do editor:

(*) Vd., poste anteriro da série > 31 de maio de  2014 >  Guiné 63/74 - P13217: Manuscrito(s) (Luís Graça (31): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte V): O bairro de Santa Luzia, de 1948: uma das nossas primeiras experiências de alojamento para populações nativas

Último poste da série > 12 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13271: Manuscrito(s) (Luís Graça) (32): Estavam lindos os jacarandás quando deixei Lisboa... (Luís Graça)


(...) O Guerra Ribeiro, Administrador da Circunscrição, depois Conselho de Bafatá nos anos 60, era o terror dos nativos "indígenas" que viviam nos arredores ou visitavam a cidade, por força de uma medida administrativa que mandava prender e açoitar todos os nativos que nela entrassem de pés descalços.

A medida era inédita, controversa e paradoxal, porque no seu ambiente natural, salvo raras excepções (personalidades politicas ou religiosas), o nativo guineense, em geral, não usava sapatos no seu dia-a-dia e, também na fase inicial da colonização, o uso de sapatos entre o "gentio" ou era mal visto ou simplesmente proibido pela administração.

E, de repente, nos anos 60, o Administrador de Bafatá confundiu a mentalidade dos nativos com esta medida que intrigava muita gente e teria sido motivo para o surgimento de casos caricatos que ainda hoje se contam e são motivo de divertidas gargalhadas.

Com esta medida histórica, quem tivesse que passar por Bafatá, por qualquer motivo, sabia de antemão ao que era obrigado, mesmo que, por isso, tivesse que arrastar os pés ou andar como um coxo, porque os cipaios de Guerra Ribeiro estavam lá para fazer cumprir a ordem.

Assim, na região de Bafatá a história do uso de sapatos está intimamente ligada ao nome de Guerra Ribeiro, e a maioria dessas pessoas compravam o seu par de sapatos exclusivamente para satisfazer o Senhor Administrador de Bafatá.

O nome de Guerra Ribeiro está também ligado a construção do Bairro-de-Ajuda, o unico Bairro digno deste nome na periferia da antiga Bissau construido na base de trabalho obrigatório.

É por estas e outras coisas que, hoje, face a situação actual do pais, muita gente questiona (em especial os mais velhos) se não era melhor manter a ordem e a disciplina coloniais.

Um abraço amigo, Cherno Baldé (...)

Guiné 63/74 - P13311: Convívios (607): Recordando os 1.º e 2.º Convívios da BAC 1 (Guiné, 1968/70), realizados em 1989 e 1991 (José Diniz de Souza)

1. Mensagem do nosso camarada José Diniz de Souza e Faro, ex-Fur Mil Art do 7.º Pel Art (CamecondePichePelundo e Binar, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2014:

Caros Carlos/Luís,
Com as minhas saudações, começo por transcrever as palavras do meu camarada artilheiro, Vasco Pires: "Éramos poucos e dispersos, e dispersos continuamos, talvez por isso a nossa história seja tão pouco conhecida, digamos mesmo, quase esquecida." 

Felizmente realizamos dois encontros de Artilheiros, graças ao esforço do camarada, Jacinto Rocha, que consegui contactar-nos quase vinte anos depois.
O primeiro encontro foi realizado em Coimbra conforme a convocatória e ao todo compareceram cerca de 35 artilheiros, alguns com família.

O segundo encontro organizado pelo Coronel Moura Soares, na altura comandante do Quartel de Oeiras, onde foi realizado uma missa em memória dos camaradas mortos em combate e descerrada uma placa com os nomes dos mesmos que está salva erro na parada principal do quartel.
O almoço com a presença dos familiares, foi oferecido pelo o Comandante da Unidade Coronel MOURA SOARES sendo realizado nas instalações de Parede com cerca de 53 Artilheiros.

Com esta achega nós os artilheiros passaremos a ser mais conhecidos na Tabanca Grande e com a divulgação das fotos possamos ser reconhecidos pelos nossos camaradas das companhias por onde passamos de norte a sul da GUINÉ.

Com a ajuda do Coronel Moura Soares que foi um dos comandantes da BAC 1, então capitão, vou ver se consigo o mais breve possível divulgar a história da Artilharia na Guiné.

Caso concordarem, agradeço a publicação depois do devido tratamento editorial, da convocatória e as fotos em anexo.
Caso necessário algum esclarecimento estou ao vosso dispor.

E SIGA A ARTILHARIA que a Stª Bárbara nos proteja.

Com os meus sinceros agradecimentos e abraços
José Diniz Sousa e Faro
Artilheiro Veterano


Convocatória para o 1.º Encontro dos Artilheiros da BAC 1 (Guiné, 1968/70), realizado no dia 29 de Abril de 1989

Foto de família do 1.º Encontro dos Artilheiros da BAC 1 (Guiné, 1968/70) realizado no dia 29 de Abril de 1989

Em primeiro plano, à esquerda J. Mendes e à direita Mendes de Almeida. Em segundo plano: Diniz S. Faro e A. Glória

A partir da esquerda: A. Glória, Diniz S. Faro e J. Mendes




Segundo Encontro dos Artilheiros da BAC 1 (Guiné, 1968/70), realizado no dia 20 de Abril de 1991

Foto de família

Sentado à esquerda o Cor Moura Soares


Quartel de  Oeiras - A partir da esquerda: M. Almeida; Robalo (de costas) Cor M. Soares; Diniz S. Faro e Caetano.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13259: Convívios (606): X Encontro do pessoal da CART 1742 (Os Panteras) levado a efeito no passado dia 13 de Junho em Leça da Palmeira e Perafita - Matosinhos (Abel Santos)

Guiné 63/74 - P13310: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (28): O dia em que o Trovoada caiu ao poço

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 3 de Junho de 2014:

Caros amigos e ilustres editores do Blogue:
Aqui vai mais um “salpico” que espero os vá encontrar de boa saúde, harmonia e bem-estar. 

Abração.
Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

28 - O Trovoada no fundo do poço! Os morcegos alvoraçados e o Grilo a gritar!

É verdade, o “Trovoada” (Zé) caiu ao poço, bem fundinho, ali a uns escassos quilómetros do Olossato, para os lados de Maqué, e em pleno terreno da guerrilha.
Esta, como se sabia, era já ali, era só passar o arame farpado do aquartelamento.
Foi um grupo constituído por cerca de trinta homens, à lenha e, como era habitual e necessário: a lenha e o efetivo militar.
Desta feita foram então para os lados de Maqué, aí a uns 3-4 quilómetros e o local era o de uma Tabanca abandonada e, assim, provavelmente, um bom sítio para encontrar alguma lenha.

Eu, no entroncamento do carreiro para Maqué com a estrada Bissorã-Olossato e no “intervalo” (se é que haviam intervalos) de uma operação. Na foto, vê-se, em segundo plano, se não é o celebre poilão de Maqué, é outro lá perto. Toda a Companhia (e pelo que as conheci) tinham o seu fotógrafo. Na minha era o Correia radiotelegrafista. Ainda hoje nos Convívios lá anda ele a fotografar a tudo que mexe.

Uma parte do grupo procedia à recolha daquilo que podia então servir de lenha e a outra parte fazia a necessária segurança.
O “Trovoada”, elemento dos que garantiam a segurança aos esgravatadores da lenha, com tão redobrada atenção, acabou por vislumbrar uma bananeira e então há que ir buscar um cacho que tanto jeito fazia para tirar a barriga de misérias.
Pensou e melhor o fez; foi buscar um cacho e trouxe-o para junto do “Grilo” a quem se propunha dividir as bananas, mas o “Grilo”: - “Dividir o quê? Vou é lá buscar um cacho também pr’a mim”.

E assim, com a companhia do amigo do batedor “Trovoada” foi lá arrancar um cacho, só que o “Trovoada”, que ia à frente, pois sabia onde elas estavam, pisou capim de raiz falsa, que, para grande azar dele, cobria um poço que outrora abastecia, com certeza, a referida tabanca, agora, e como disse, abandonada.

Pamba!!... tchoc, tchoc… 

O “Grilo” gritou logo, ante o desaparecimento relâmpago do seu companheiro de safra e do consequente estoiro, o qual também surpreendeu toda a gente que logo constatou que alguém tinha caído a um poço, provavelmente.

- “É o Trovoada, é o Trovoada”, grita o “Grilo”

O “Trovoada” qual voz do outro mundo, e passados uns segundos, diz lá de baixo e para sossego do alvoraçado “Grilo”.
- “Oh Grilo, eu estou bem!!”

Pois, não estava muito mal, depois de tirar a medida à altura da água, segurou-se como pôde e ficou à tona, contou ele depois, cá em cima e já algo refeito do susto.

O preto, o padeiro civil, que era também parte interessada na recolha da lenha, como já se vê, propôs-se a ir lá baixo buscar o “Trovoada”. Mas como? E com quê?


Já bastava um no fundo do poço. Uma outra versão do Black and White, podia acontecer.
Alguém se lembrou de que só com uma corda é que ele saía dali e então um pequeno grupo foi buscá-la ao aquartelamento do Olossato.

O Pinto (paz à sua alma – faleceu há meia dúzia de anos-) condutor da Unimog que iria trazer a lenha, mais 2 ou 3 elementos voaram para o aquartelamento. É verdade, por ali havia uma corda aí com 30 metros. Vá lá, vá lá…
Para lamento do “Trovoada” o Pinto, que até voou, demorou tempos infinitos.

Chegados ao local da tragédia, há que içar o “Trovoada” que apesar de tudo até nem era dos mais nervosos.

- Cara-ho (!) lá em baixo andavam morcegos que voavam à frente do meu nariz”.

O “Trovoada” a sacudir-se todo de alto abaixo, e alguém pergunta :
- “Oh carago (carago é favor) e a G3?… e as cartucheiras?”
- “ Ficaram lá no fundo!”, diz o “Trovoada” com ares de “eu é que já me safei!! Que se f… o resto…”

Bom, aí é que o preto padeiro, que estava ansioso por mostrar serviço (de coragem), com a ajuda da dita corda, amanda-se pelo poço abaixo e no regresso surge ele do poço com a arma e as ditas cartucheiras do “Trovoada”, sorridente e a mostrar toda a sua cremalheira branca encaixilhada por grossos lábios à boa maneira da natureza nativa, e com cara de quem acabou de fazer qual truque de magia.
E ele que ansiava ser protagonista.

Tudo acabou em bem, afinal, e para o Olossato veio a lenha e também vieram os cachos de bananas do “Trovoada” e do “Grilo“, que tanto custaram a apanhar, principalmente ao primeiro. Este quase que arranjou foi lenha para se queimar (afogar).

O preto padeiro, esse, nunca mais deixou de arreganhar a tacha.

Eu e o meu amigo Zé “Trovoada”, passados 48 (!) anos de o Zé ter caído ao poço, ou, (soa melhor), ter saído do poço, algures na Guiné. (foto tirada agora no último Convívio da 816 (10/5/2014)

Rui Silva
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12601: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (27): Operações Vacas

Guiné 63/74 - P13309: In Memoriam (191): José Henriques Mateus (1944-1966): O discurso do nosso camarada, ex-alferes paraquedista (BCP 21, Angola, 1970/72), Jaime Bonifácio Marques da Silva, na cerimónia de homenagem realizada na Areia Branca, Lourinhã, em 11/5/2014




Vídeo 2' 01'' (Luís Graça, 2014). Alojado em You Tube > Nhabijoes

Lourinhã, Areia Branca, 11 de maio de 2014. Homenagem ao José Henriques Mateus (1944-1966), desaparecido em combate em 10/9/1966, no sul da Guiné, durante a guerra colonial. Discurso de Narciso Cruz, empresário agricola, em nome da comissão organizadora local. 



Vídeo 0' 30'' (Lu+ís Graça, 2014). Alojado em You Tube > Nhabijoes.


Lourinhã, Areia Branca, 11 de maio de 2014. Homenagem ao José Henriques Mateus (1944-1966), desaparecido em combate em 10/9/1966, no sul da Guiné, durante a guerra colonial.  Toque militar,  a cargo de um  terno de clarins da banda do exército, Serra da Carregueira.



Discurso do nosso camarada Jaime Bonifácio Marques da Silva na cerimónia de homenagem ao sold at cav, José Henriques Mateus (1944-1966), que pertenceu á CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), e que desapareceu em combate  em 10/9/1966, no rio Tompar, setor de Catió, região de Tombali, sul daq Guiné (*)... 

O Jaime Bonifácio Marques da Silva é natural de Seixal, Lourinhã, foi colega de escola do Mateus, vive em Fafe (, onde foi professor de educação física e autarca, com o pelouro da cultura, e onde é mais conhecido como Jaime Silva). Fez a guerra colonial em Angola, como alf mil paraquedista, BCP 21 (1970/72). É membro da nossa Tabanca Grande. (**)


Parte1

1. Saudações [...]

2. Nota introdutória

Fará no próximo dia 10 de setembro 48 anos que o Lourinhanense José Henriques Mateus, nosso conterrâneo, desapareceu na sequência de uma operação de combate, denominada “Operação Pirilampo”, durante a travessia do rio Tompar na Guiné.

Em 1966, Portugal confrontava-se, já há cinco anos, com uma Guerra que se desenrolava em África em três teatros de operações diferentes: Angola (1961), Guiné (1963) e Moçambique (1964).

3 .Poderemos interrogar-nos hoje, cinquenta e três anos depois do início da Guerra em Angola e quarenta após o seu final da oportunidade de resgatar, sob o ponto de vista da evocação da História da Guerra Colonial, a memória daqueles que foram obrigados a fazer a guerra, sacrificando, muitos deles, a sua própria vida em nome de Portugal, como foi o caso do José Henriques Mateus, nosso conterrâneo e, cuja memória hoje evocamos.

A Comissão Organizadora, acredita que esta evocação histórica da memória dos que tombaram em nome de Portugal em África tem todo o sentido e justifica-se, sobretudo perante as novas gerações.

Acreditamos que o resgate da memória das causas, consequências e incidências vividas pelos combatentes durante esta Guerra, e neste caso particular, pelos ex-combatentes naturais do concelho da Lourinhã, é um ato de cidadania e deve ser uma obrigação, não só das instituições governamentais e militares a nível nacional, regional e local, bem como da sociedade civil.

É, em nosso entender, um exemplo de cidadania a homenagem prestada hoje pelo povo da Areia Branca perante o sacrífico de um dos seus “filhos da terra”, o Soldado  nº 711/65 José Henriques Mateus.

4. A propósito da evocação da memória e da necessidade e obrigação da sociedade lutar contra o esquecimento daqueles que serviram e tombaram em nome de Portugal nas várias frentes de combate ao longo da nossa História, escreveu Jorge Espinha, no Jornal “Público” em 18 de outubro de 2013:

“No próximo mês de agosto fará cem anos que começou uma das maiores tragédias que se abateu sobre o continente europeu. Morreram nessa guerra milhares de portugueses (10 mil).

Devíamos refletir um pouco na maneira despiciente como comemoramos o imenso sacrifício humano das guerras em que Portugal participou.

Aqui, comemorar significa, relembrar, estudar, tentar perceber o que aconteceu e como o que aconteceu moldou o nosso país. (…) A Guerra Colonial continua mal lembrada (…), ao lembrarmos as vítimas civis e militares não estamos a branquear a história (…). Deixar esses grandes eventos no escuro nunca dá bons resultados. “



5. Será este, também, o propósito desta Comissão: contribuir para que a sociedade atual não esqueça as consequências do flagelo da Guerra Colonial e lute contra a cultura do esquecimento que se instalou em Portugal após o seu final contra “aqueles a quem Portugal tudo exigiu”.

Portugal, simplesmente, exigiu a vida do soldado Mateus e de muitos dos seus camaradas, sem que o Mateus e os seus camaradas, que nunca se recusaram a defender a sua Pátria, pudessem, sequer, quando chegados a África e confrontados com a dura realidade da guerra e do terreno pudessem questionar os seus superiores hierárquicos, confrontando-os com o facto de não os terem treinado e dado as condições técnicas em equipamento e material de guerra necessários e adequados para poderem enfrentar o inimigo e desempenhar com segurança as missões a que iriam ser submetido no terreno das operações de combate.

Na verdade, e de acordo com os documentos, entretanto, publicados, alguns deles da autoria de militares que cumpriram várias Comissões de Serviço em África exercendo as suas funções no topo da hierarquia militar, este foi um dos dramas enfrentados pelos jovens, como o Mateus, que serviram nas forças Armadas Portuguesas em Angola, Moçambique ou Guiné: Foram mal treinados, mal equipados, mal apoiados, mal alimentados e desconhecedores do tipo de terreno onde iriam operar.

Se naquela operação, a Operação Pirilampo, o Alferes, seu comandante de Pelotão, tivesse o apoio dos helicópteros da Força Aérea ou dos barcos da Marinha portuguesa para atravessas o rio Tompar e, seguramente, o Mateus ainda hoje seria vivo, tal como dezenas de seus camaradas em circunstâncias idênticas.

Quando no dia 13 de abril de 1961, Salazar ordenou aos portugueses: “Para Angola rapidamente e em força”, tomou uma decisão que, de acordo com especialistas, foi errada e fora do tempo. Primeiro, não se preocupou em avaliar se o país tinha ou não condições económicas para adequar as suas tropas às exigências daquela Guerra, depois, alheou-se do contexto histórico no qual Portugal estava inserido na Europa e no resto do mundo, da contestação da sociedade portuguesa em relação ao estado de pobreza e subdesenvolvimento do nosso país e, sobretudo, ignorando a falta de condições fundamentais para a complexa preparação de todos os fatores logísticos inerentes ao suporte do início, desenrolar e manutenção da Guerra.

A partir daqui, por incúria dos seus governantes e interesses pessoais de tantos outros, a desgraça abateu-se sobre as famílias portuguesas.

Parte 2

1. Ao lembramos, hoje, a morte do soldado José Henriques Mateus no contexto da evocação
 histórica da Guerra Colonial, não podemos esquecer as consequências dessa Guerra para as famílias portuguesas:

Para África os Governos de Salazar e Caetano mobilizaram durante os treze anos do conflito (1961 – 1974) cerca de um milhão de jovens.

Destes, mais de 8 mil tombaram na frente de combate ou em acidentes, cerca de 120 mil foram feridos, 4 mil ficaram estropiados e, estima-se, que cerca de 100 mil ficaram a sofrer de “Stress Pós Traumático de Guerra”.

Para as famílias do concelho da Lourinhã as consequências da guerra traduziu-se na morte de 20 dos seus filhos: 9 em angola, 5 em moçambique e 6 na guiné.

Na Guiné, onde o Mateus cumpria a sua Comissão de Serviço e de acordo com os dados disponibilizados pelo Arquivo Geral do Exército, tombaram seis (6) militares (Lourinhã, Areia Branca, Ribamar, Toxofal, Toledo e Reguengo Grande).

O primeiro militar da Lourinhã a tombar na Guiné foi o soldado José António Canôa Nogueira em 23.1.1965, natural da Vila,  e o último foi o 1.º Cabo José João Marques Agostinho em 5.5.1973, natural de Reguengo Grande.

2. Sobre a vida militar e as circunstâncias da morte do Mateus a Comissão Organizadora decidiu preparar uma pequena exposição documental constituída por cinco painéis que serão expostos hoje na sede do Clube, no final desta cerimónia. A exposição tem como objetivo enquadrar e contextualizar o seu percurso militar durante a Comissão de Serviço na Guiné até ao fatídico fim de tarde do dia 10 de setembro de 1966 que lhe levou a vida, quando o seu Pelotão regressava de mais uma operação no mato .

Nos painéis transcrevemos alguns excertos de documentos oficiais que recolhi no Arquivo Geral do Exército, pertencentes ao seu Processo Individual, por cortesia do seu Irmão Abel Mateus, bem como no seu espólio pessoal cedido, também, pelo irmão que , publicamente lhe agradeço. Outros documentos foram cedidos por ex-combatentes pertencentes ao seu Batalhão, Companhia ou Pelotão enviados através do “Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné” ou por contacto pessoal através do correio ou testemunho pessoal.

2.1 Em síntese,

Podemos lembrar que o Mateus nasceu a 17.10.1944. Assentou praça no RI 7 em Leiria no dia 4 de maio de 1965 com a idade de 21 anos e, numa altura em que, como me disse o seu irmão Abel, era o “homem da casa” e o “braço direito da mãe”, uma vez que o pai já tinha falecido e tinha, ainda, mais duas irmãs e um irmão para ajudar a criar. Sobre as dificuldades das famílias em criar os seus filhos naquela época em que os trabalhadores do campo labutavam de “sol a sol” para ganharem uma “côdea”, são contas de outros rosário. A mãe do Mateus não escapava a estas dificuldades. Nem nestas circunstâncias o Governo de Portugal tinha alguma consideração: Ala para a guerra. Quem fica, que se amanhe!

O Mateus embarca para a Guiné a bordo do Navio Niassa no dia 20 de outubro de 1965, desembarcando em Bissau a 27 do mesmo mês.

Pertenceu ao Batalhão de Caçadores n.º 1858 e foi integrado na Companhia de Cavalaria n.º 1484 sediado na região de Timbali – Catió.

Sobre as características da região e do terreno onde estava sediada e atuava a companhia do Mateus, disse Benito Neves ex- Furriel da sua Companhia:

“Quando se olha aquele pedaço de mapa... nada se vê. Quem por lá passou sabe bem o que sofreu” (Benito Neves)

E Luís Graça, também, ex-furriel que cumpriu uma comissão de serviço na mesma região, afirma:

“Quando se olha para aquele pedaço de mapa de Bedanda, à esquerda e á direita do Rio Cumbijã, está-se perante o inferno na terra!... Aquilo é só bolanhas, lalas, lianas, tarrafo, lodo, água, rios, riachos, floresta-galeria"...

2.2. Operação Pirilampo

Foi num terreno com estas características que no dia 10 de setembro de 1966 o José Henriques Mateus será destacado para participar na Operação de Combate, denominada “Operação Pirilampo”, vindo a desaparecer no decorrer da mesma quando atravessava o rio Tompar.

Sabemos que, de acordo com os documentos oficiais disponíveis, nesta operação participaram duas Companhias:

A Companhia de Cavalaria nº.º 1484, à qual pertencia o Pelotão do Mateus comandado pelo Alferes Fernando Pereira da Silva Miguel e sendo o Furriel Egídio Ornelas Teles o seu comandante de secção.

Alguns dos textos que inserimos nos painéis a expor no Clube [da Areia Branca]  relatam-nos as circunstâncias e sobretudo, realço, o desespero de todos os seus camaradas na busca do Mateus.

Só quem esteve lá e viu morrer ou ficar estropiados nas minas os seus camaradas e amigos poderá avaliar o desespero e o sofrimento dos camaradas do Mateus!

Eu estive lá, na guerra, em Angola e comandei um pelotão. Sei, por isso, avaliar a responsabilidade, o desespero e a impotência de nada mais poder fazer do Alferes Miguel e do Furriel Egídio, perante a tragédia de ver desaparecer um seu camarada.

Termino lembrando uma frase tão atual nos tempos que correm:

“Só existe uma coisa mais terrível do que uma guerra, fazer de conta que ela nunca aconteceu”.

Por tudo isto e porque Portugal comemora neste ano de 2014 os quarenta anos da Revolução de 25 de Abril de 1974 que colocou um ponto final na Guerra em África,  estamos certos que, ao homenagear e evocar a memória de um dos seus filhos da terra, o Povo do Lugar da Areia Branca, com a família do Mateus, a Comissão da Igreja, a Associação de Desporto e Proteção da População do Lugar da Areia Branca, aos quais se associaram em boa hora a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, alguns dos seus camaradas de Pelotão e companhia, seus companheiros na Guiné (aqui presentes), amigos e as Associações ligadas à causa dos Combatentes , também, aqui presentes (ADF, AVECO, LCP) , cumprem um dever cívico e de cidadania, não só, perante a memória dos que tombaram em nome de Portugal, mas também, dando um exemplo de solidariedade às gerações mais jovens.

Tenho dito.

Lugar da Areia Branca, 11 de maio de 2014

Jaime Bonifácio Marques da Silva

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Notas do editor:

(*) Vd.  12 de maio de 2014 >  Guiné 63/74 - P13129: In Memoriam (189): José Henriques Mateus (1944-1966): uma singela e tocante homenagem das gentes da sua terra, Areia Branca, Lourinhã, na manhã de domingo, 11 de maio... Um exemplo a ser seguido por outras terras deste país.

(**) Último poste desta série > 11 de junho de  2014 >  Guiné 63/74 - P13268: In Memoriam (190): António Rebelo (1950-2014), ex-fur mil, 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)... Estava inscrito no nosso IX Encontro Nacional, a realizar em Monte Real, no próximo dia 14... Faleceu ontem, de morte súbita... O seu corpo será velado na igreja de Massamá e cremado amanhã em Barcarena... Vamos recordá-lo, doravante, sob o poilão da nossa Tabanca Grande (Jorge Pinto / Luís Graça)