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terça-feira, 4 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23669: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (17): Uma emboscada junto ao cais do rio Cumbijã

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74) com data de 21 de Julho de 2021:

Amigo Carlos

Tinha pensado não voltar a falar de Cobumba, mas hoje, talvez por me lembrar de um funeral que lá aconteceu, levou-me a voltar a falar daquele sítio. Embora gostasse de esquecer, mas por tudo aquilo que nós lá vivemos não me é possível.


Certo dia um grupo de elementos da nossa companhia foi a Cufar, como acontecia algumas vezes, tendo usado o nosso sintex. Nesse dia eu estava de serviço de condutor, ao fim da tarde fui com a viatura e mais três ou quatro camaradas para o cais, junto ao rio Cumbijã, onde estivemos durante algum tempo à espera que eles chegassem para os trazer de volta ao destacamento.

Enquanto esperávamos, os Fiat iam bombardeando não muito longe de nós. Naquele tempo, ao contrário do que acontecia antes dos strela por lá terem chegado, altura a que eles faziam os bombardeamentos era bastante mais afastada do solo o que nos permitia vê-los. Durante o tempo que lá estivemos à espera, a conversa não parou, durante a qual alguém afirmou que a Maria Turra tinha dito que breve nos iam atacar. Era coisa tão normal ela dizer que nós não demos importância, dizia muitas coisas que não eram verdade. “Quando em Mansambo fomos atacados, a primeira e única vez enquanto lá estivemos, no outro dia ela apareceu na rádio a dizer que nos tinham feito grandes estragos, entre os quais a destruição de um abrigo, o que era mentira, dentro do destacamento, nesse dia, apenas caíram duas granadas.”
Entretanto os Fiat terminaram o seu trabalho e foram embora. Passados poucos minutos de terem partido começamos a ouvir alguns rebentamentos, e a nossa primeira reação foi pensar que eles tivessem voltado, pensamento que durou apenas breves instantes, rapidamente nos apercebemos que afinal éramos nós que estávamos a ser atacados. Ataque continuado e diversificado no armamento por eles utilizado, tendo sido o que demorou mais tempo dos vários com que fomos flagelados enquanto por lá permanecemos. A sorte naquele dia esteve do nosso lado, mas o susto motivado pela impotência com que nós fomos confrontados junto ao rio, foi terrível, nada podíamos fazer. Com uma das armas utilizada, o morteiro 82, eles conseguiram colocar uma granada de cada lado da picada com uma distância de cerca de quarenta ou cinquenta metros, uma da outra, desde o início das primeiras tabancas até a poucas dezenas de metros do local onde nós nos encontrávamos, que era a uma distância de cerca de quinhentos metros. Restava-nos ir para dentro do rio, naquela altura com a maré muito baixa. Foi o que fizemos, recordo-me de com as mãos tirar o lodo para os lados e me ter deitado nesse espaço, um disparate mas naquele momento tudo nos ocorria ao pensamento.

O armamento por eles utilizado estava distribuído por quatro locais: os RPG 7, um do lado de Pericuto, outro do lado oposto, início da mata de Cablolo; o canhão s/r deles, era daqueles que quando se ouvia a saída, a granada já estava a cair; o morteiro 82, dada a precisão com que eles colocaram as granadas junto à picada, só podia estar na direção da mesma, penso eu. Porque a sorte esteve do nosso lado, apenas tivemos um ferido leve, o apontador de um dos nossos canhões sem recúo, o que fez com que ele tivesse feito apenas um disparo.

Passados largos minutos passamos a contar com a ajuda dos obuses de Catió. Se os camaradas que tinham ido a Cufar, têm chegado alguns minutos antes, tudo nos podia ter acontecido, dado o trajeto que nós tínhamos de fazer para regressar ao destacamento, atendendo à precisão com que eles colocaram as granadas junto à picada.

Entre a população houve uma vítima mortal, uma senhora. No outro dia efetuaram o seu funeral, tendo sido enterrada junto à tabanca onde morava. Nesse dia apareceram por ali algumas pessoas vindas de outros locais. Ao fim do dia havia alguns com pedaços daquilo que nos parecia ser carne de porco, não chamuscado, gostava de saber se seria alguma tradição Havrá alguém que saiba?

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22395: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (16): A caminho de Mansambo com o pensamento na Nazaré

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22395: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (16): A caminho de Mansambo com o pensamento na Nazaré

Crianças de Mansambo, ao tempo da CART 2339 (1968/69)
Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 21 de Julho de 2021:


A caminho de Mansambo com o pensamento na Nazaré

L
á longe, ouvia-se algo estranho... e eu sem saber que era normal… cada vez estava mais confuso, com o olhar fixado nas mulheres e nas crianças que estavam próximo de mim. Mas a minha mente estava muito longe dali, situação que eu tentava, mas não conseguia disfarçar.

Na véspera da minha partida para a Guiné também eu tinha deixado a minha esposa com o meu filho na metrópole, não a brincar, mas na maternidade do hospital no Sítio da Nazaré onde ele tinha nascido dois dias antes da minha ida para a guerra. A ânsia em que eu estava a ficar mergulhado começou a tomar conta de mim e a tornar-se por demais evidente, foi então que uma das mulheres que ali estava me dirigiu umas palavras que eu não entendi, por isso nada lhe disse. Ela tinha uma oleaginosa na mão que partiu com os dentes, deu-me metade e comeu a outra metade. Mesmo sem saber o que era aceitei e comi.
Foi aquele tempo que ali estive junto daquelas mulheres e crianças, enquanto esperava transporte para Mansambo, um dos mais conturbados do meu tempo na Guiné. Ainda hoje não sei o nome daquilo que a senhora me ofereceu e que eu aceitei. Mas não mais esqueci a intenção e o apoio que aquela mulher, sem me conhecer, entendeu dar-me naquele momento tão confuso e triste que eu estava a viver.
Faço votos para que aquela Senhora e a família tenham tido e continuem a ter a felicidade possível, por companhia!...

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22361: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (15): A religião, a fé e o medo

sábado, 10 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22361: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (15): A religião, a fé e o medo

Cobumba - António Eduardo Ferreira - Saída do abrigo


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 8 de Julho de 2021:


A religião, a fé e o medo

Quando a religião, a fé e o medo se misturavam, por vezes, aconteciam coisas que ainda hoje me dão que pensar. Não sou a pessoa mais indicada para falar destes assuntos…, mas, posso e quero falar sobre duas situações a que assisti quando da minha estadia em Cobumba. A primeira teve a ver com uma missa, a única que por lá aconteceu e a que eu assisti. Estávamos ainda há pouco tempo naquele sítio. Um dia, apareceu lá um padre não sei como nem de onde veio, talvez de alguma companhia próximo dali.

Naquele local, onde a missa aconteceu, estavam dois pelotões da nossa companhia, quase toda a formação e ainda uma secção encarregada do morteiro que lá se juntou a nós… Todos os que estávamos por ali, disponíveis, fomos assistir à missa. Não sei se seria hábito de todos os que assistiram à cerimónia irem à missa nas suas terras na metrópole. Eu não era um grande frequentador… os domingos e dias santos eram para mim os principais dias de trabalho.

Apesar da missa ter acontecido junto a uma árvore, não muito grande, sem nenhumas condições, todos os que a ela assistiram, de pé, estavam com muita atenção, parecendo estar a viver intensamente aquilo ali que estava a acontecer.

Algum tempo depois num dia em que eu estava de serviço, de condutor, ao fim da tarde, com mais seis camaradas fomos até junto ao rio Cumbijã com a viatura, onde esperamos pela chegada do sintex com o pessoal que nele regressava depois de uma ida a Cufar, como acontecia algumas vezes. Estávamos já há cerca de meia hora à espera que eles chegassem, e ao mesmo tempo íamos vendo e ouvindo os Fiat que andavam por ali perto a bombardear, em que era fácil de os observar. Se noutro tempo… algumas vezes, eles chegavam a voar quase junto às árvores, depois da chegada dos mísseis Strela as coisas mudaram muito no que diz respeito à altitude em que efetuavam os bombardeamentos!... Durante a conversa que fomos mantendo enquanto esperávamos, alguém do grupo disse que a “Maria turra” de que todos nós ouvíamos falar, tinha dito que em breve nos iam atacar.

Era uma conversa normal que ouvíamos com frequência, na rádio, em que ela dizia que tinham feito grandes estragos em alguns sítios com flagelações em que tinham destruído abrigos e provocado baixas nas nossas tropas, em que grande parte dessas notícias eram falsas. Entretanto, os Fiat foram embora enquanto nós íamos esperando pelo pessoal que tardava em chegar.

Passados poucos minutos, dos Fiat terem abalado começamos a ouvir rebentamentos, não muito longe, a nossa primeira sensação foi de que seriam os Fiat que tinham voltado a bombardear, mas a realidade era outra, foram precisos breves instantes para nos apercebermos que agora quem estava a ser bombardeados éramos nós. 

Foi a flagelação mais intensa, à distância, com que fomos contemplados enquanto estivemos em Cobumba. Naquele dia, foram vários sítios de onde nos atacaram em que utilizaram três tipos de armas, o canhão sem/recuo, o RPG e o morteiro. 

A sorte naquela tarde esteve connosco, apesar de todo aquele arraial apenas um dos nossos apontadores de canhão sem/recuo sofreu ferimentos leves, ainda antes de disparar o canhão foi atingido por estilhaços de uma granada de RPG que rebentou próximo dele, em que o canhão ficou inoperacional. Com o morteiro eles fizeram fogo com uma precisão que se tem sido alguns minutos mais tarde podia ter resultado em graves consequências para nós… 

Desde o inicio da picada que tínhamos de percorrer do rio até ao ponto mais distante onde se encontravam as nossas tropas, eram cerca de quinhentos ou seiscentos metros, em linha reta, eles conseguiram colocar uma granada de cada lado ao longo da picada, com cerca de setenta metros entre uma e outra. As últimas duas caíram próximo do sítio onde nos encontrávamos, junto ao rio. 

E foi aí que uma vez mais a religião, a fé ou o medo, voltaram a fazer-se sentir. Alguns dos que estavam por ali, em condições normais, por vezes, até diziam mal dos padres da religião e de alguns que a seguiam. Mas, aquilo a que foi possível assistir, foi ver todos a entrar para dentro do leito do rio, naquele momento a água tinha descido muito o que era normal… e vê-los e ouvi-los a rezar em voz alta. Enquanto eu, cheio de medo, entretive-me a tentar fazer um buraco na lama dentro do leito do rio, para lá me deitar. Disparate meu, mas em situações assim… por vezes o disparate acontece! Por isso já me desculpei…

Algumas vezes, ainda sou levado a pensar na frase, que, com frequência ouvia falar, que a fé move montanhas. Não sei se move…, mas em conjunto com o medo, pelo menos, naquele caso mudou comportamentos. 

Quando os camaradas chegaram no Sintex, junto de nós, o ataque já tinha terminado, ainda bem que eles demoraram, assim safamo-nos de ter vivido aquela situação na picada no regresso… onde não havia sítios para nos abrigar, se tal fosse necessário.

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2017 > Guiné 61/74 - P17059: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (14): A minha ida ao Xime

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17059: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (14): A minha ida ao Xime

Cais do Xime
Foto: © José Nascimento


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 3 de Fevereiro de 2017:

Amigo Carlos
Como sempre, faço votos para que a saúde seja uma das tuas companhias, hoje envio-te um texto que fala da minha primeira ida ao Xime.

Recebe um abraço
António Eduardo Ferreira


PEDAÇOS DE UM TEMPO

14 - A MINHA IDA AO XIME

Estava a minha companhia há pouco tempo em Mansambo quando foi chamada a participar numa operação que teve lugar na zona do Xime, creio que com dois grupos de combate, calhou-me a mim ser um dos condutores que conduziu uma das viaturas que transportou o pessoal. Nesse dia, era já tarde quando lá chegámos, ficámos junto às instalações do Xime o regresso foi ao fim da tarde dia seguinte, durante a noite eu dormi ”no hotel estrela” junto a um pavilhão.

No dia seguinte, enquanto os meus camaradas andaram no mato, aproveitei o tempo para conhecer um pouco da tabanca, encontrei lá um camarada que tinha conhecido na Figueira da Foz que era quase meu vizinho mas que antes eu não conhecia, era apontador de obus 10,5. Fui com ele, estávamos a ver um local junto a umas bananeiras onde funcionava a escola, segundo ele me disse, mas aí a visita foi interrompida, ouviram-se rebentamentos na zona onde estava a decorrer a operação e o Nogueira desatou em grande correria para junto do obus.

Durante algum tempo, enquanto decorria a operação, a área foi sobrevoada por um DO. Como as coisas mudaram, ainda não se ouvia falar nos Strela. Também tive oportunidade de ver os Fiats bombardearem relativamente perto da estrada Xime-Bambadinca. Aí as coisas também mudaram muito, nesse dia ”picaram” quase até chegar à copa das árvores, mais tarde já em Cobumba, vi-os bombardear mas a uma altura que nada tinha a ver com o que o que aconteceu então no Xime.

Tive também oportunidade de ir até à ponte onde estava pessoal a fazer segurança, depois aproveitei a boleia e fui com três camaradas do Xime até ao cais onde pude ver o movimento que ali havia e também um enorme buraco que tinha sido feito pelo rebentamento de um foguetão, arma de que eu ainda não tinha ouvido falar, mas aí as coisas complicaram-se, a viatura que nos tinha levado, enquanto nós estávamos a olhar o Geba, abalou e deixou-nos lá, alguns dos que tinham ido comigo não gostámos de lá ter ficado mas fazia parte do grupo um colega sempre bem disposto, sempre a rir, vendo que alguns ficámos algo perturbados, continuando a rir disse: - Não há problema, se for preciso até se mija-se na cama e diz-se à mulher que estamos a transpirar.
Disseram-me depois que ele era sempre assim, bem disposto, até lhe chamavam o cavalo que ri.

Em Mansambo viajámos muito, mas tal não significa que corrêssemos mais riscos, durante treze meses apenas uma das nossas viaturas acionou uma mina. Em Cobumba tínhamos cerca de um quilómetro para percorrer, levámos quatro viaturas, acionaram uma cada…

Quando éramos periquitos, gostávamos de saber mais, ver o que até há pouco tempo era para a maioria de nós desconhecido, mesmo tendo ouvido falar daquelas paragens a camaradas que antes por lá tinham passado. Talvez por isso tenha ficado gravado na nossa memória, que mesmo a esta distância no tempo, continua a estar bem presente.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16997: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (13): O dia mais triste...

sábado, 28 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16997: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (13): O dia mais triste...

Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (1968/69) > 1969 > Mansambo

Foto: © Carlos Marques Santos (2006)


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 20 de Novembro de 2016:

Amigo Carlos
Antes de mais, faço votos para que te encontres de boa saúde assim com os que te são queridos.
Acabo de escrever e vou enviar-te um pequeno texto recordando aquele que foi o dia mais triste do meu tempo de Guiné.
Recebe um abraço


PEDAÇOS DE UM TEMPO

13 - O DIA MAIS TRISTE...
 
Quando “tropeçamos” no passado mesmo que tal tenha acontecido há já muito tempo, a mente leva-nos a viver situações que podem ser boas ou más, mas não há como fugir. Foi o que aconteceu comigo há dias ao ler um dos postes publicado sobre a construção das instalações de Mansambo.

Cheguei aquele local uns dias mais tarde que a minha companhia, e no dia que os “velhinhos” nos deixaram fiz o meu primeiro serviço, acompanhado pela G3 que era para mim quase desconhecida, fui um dos que foram fazer segurança ao pessoal que andava a transportar a água para as nossas instalações, chuveiros, cozinha e abrigos.

Éramos oito os homens da companhia incluindo o motorista do unimog e o ajudante, mais os picadores que eram três. A distância entre as nossas instalações e fonte era de poucas centenas de metros mas pela manhã o trajeto era sempre picado para que o unimog 411 e acompanhantes pudessem passar em segurança não fosse estar por lá alguma mina colocada durante a noite.

Quando lá chegámos fomo-nos distribuindo para junto de algumas das árvores que lá existiam, só regressámos às instalações próximo da hora de almoço. Foi à sombra de uma de maior porte que me “instalei”. Enquanto lá estivemos não me lembro de ter falado com algum dos camaradas ali em serviço mas sei que o cérebro não parou de pensar, em quase tudo, só que em nada de bom.
Ver os velhinhos partir com a alegria natural de quem conseguiu chegar ao fim da comissão e vai regressar a casa, e pensar no tempo que nos faltava para que também nós pudéssemos viver um dia assim… na altura, falava-se que seria vinte e dois meses depois foram quase vinte e sete.
Preparação para a guerra na Metrópole eu não tive, apenas tinha utilizado a arma duas vezes onde disparei cinco tiros de uma vez e vinte de outra.

A minha recruta e especialidade foram feitas em apenas três meses, no Trem Auto, dos quais três semanas foram passadas no hospital, HMDIC em Lisboa, depois oito meses no RAP3 Figueira da Foz com a especialidade de monitor auto. De guerra e armas nada conhecia, daí a minha falta de preparação, tive que me habituar à situação que todos vivemos, mas fui sempre um fraco guerreiro.

Era já perto de meio-dia quando regressámos da fonte, estava psicologicamente arrasado, foi então que antes do regresso me ocorreu uma frase que escrevi num papel que tinha comigo e que me acompanhou durante todo o tempo de comissão que simplesmente dizia: tem calma, ainda és jovem e o tempo há-de passar.

Foram várias as vezes que li essa frase assim como outras que entretanto fui escrevendo. Algumas vezes ajudou mesmo… Mas aquele dia foi de todos o mais triste… ainda hoje está presente na minha mente como se fosse ontem. Mais tarde em Cobumba passei por momentos bastante mais difíceis, mas aí, a tristeza não raramente passou a dar lugar à raiva…

António Eduardo Ferreira.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > 1996 > O Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1968/69), contemporâneo da CART 2339 (Mansambo, 1968/69). posando junto ao único memorial que ainda restava, de pé, o da CART 2714 (1970/72)... Dos fundadores, "Os Viriatos", a CART 2339, bem como do quartel que eles erigiram e inauguraram, restavam apenas alguns fragmentos e vestígios... Foto de Humberto Reis (2006)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16773: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (12): Memórias que me acompanham

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16773: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (12): Memórias que me acompanham

Mansambo, 1969
Foto: © Carlos Marques Santos (2006)


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 20 de Novembro de 2016:

Amigo Carlos
Antes de mais faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que te são queridos.
Acabo de publicar este texto no meu blogue onde há muito não publicava nada, se entenderes que tem algum interesse pública…

Recebe um abraço
António Ferreira


PEDAÇOS DE UM TEMPO

12 - MEMÓRIAS QUE ME ACOMPANHAM

Quando cheguei à então província Portuguesa da Guiné, a primeira vez que fui comer ao refeitório nos Adidos em Bissau, fui confrontado com algo estranho que eu não imaginava que por lá acontecesse, vários jovens africanos não sei se tropa ou milícia, talvez à espera de transporte para o interior, estavam fora do edifício junto às paredes com latas que tinham sido de coca-cola, leite, fruta ou outras, sem tampa de um dos lados, que era tirada roçando num local rijo para que a parte perfurada caísse, que colocavam nas aberturas que existiam nos blocos de cimento com que eram construídas as paredes dos pavilhões, para que lá de dentro alguém lhe colocassem restos de comida, se algumas vezes era comida normal… outras levava à mistura espinhas e ossos mas que eles não rejeitavam.

Passado um mês de estar em Bissau, fiz a viagem num Dacota até Bafatá e depois em coluna até Bambadinca, onde estive algumas horas à espera de transporte para Mansambo, durante o tempo que lá estive tudo aquilo era para mim um mundo novo, tudo diferente, desconhecido e tão estranho que certamente passei o tempo a olhar em todas as direções. Recordo-me de estar sentado naquele espaço que circundava os pavilhões, onde estavam também algumas mulheres da população, não sei porque estavam ali, talvez à espera de transporte para outra tabanca estavam quase todas com crianças às costas, uma estava a comer uma oleaginosa, coisa que eu desconhecia, olhou para mim já só tinha uma, partiu-a em duas com os dentes, depois disse-me qualquer coisa que eu não entendi, e deu-me metade que mesmo sem saber o que era aceitei e comi.

Certo dia fomos fazer segurança, não sei a quem, ainda éramos periquitos, algures entre Bafatá e Nova Lamego, quando chegamos à tabanca onde fomos “dormir” era já noite e ninguém tinha água, alguém da população trouxe um alguidar grande cheio, a sede era tanta em que bebemos diretamente no alguidar como se fossemos uma manada de animais…

Em Mansambo prometi ao Serifo, o faxina dos condutores, de que eu fazia parte, quando vim de férias à metrópole que lhe levava uns sapatos novos, quando regressei o Serifo já não era o nosso faxina, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos, no dia seguinte apareceu lá no nosso abrigo na companhia de vários meninos com os sapatos calçados todos eles exteriorizando uma alegria contagiante, levava uma galinha que me ofereceu.

Muitos anos já passaram mas jamais esqueci o gesto de solidariedade da senhora que me ofereceu metade da oleaginosa, talvez apercebendo-se de que eu estava completamente perdido… tentando amenizar aquele sofrimento que seria por demais evidente, para quem tinha deixado no hospital a esposa e o filho com poucas horas de nascido e tinha partido para a guerra. A galinha do Serifo e alegria daqueles meninos, ou aquela gente para quem o resto de comida era importante. Nos momentos difíceis com que tenho sido confrontado ao longo da vida, que não têm sido poucos, por estranho que possa parecer, não raramente são estas e outras memórias de situações que lá vivi onde vou buscar muita da força necessária para os enfrentar.

António Eduardo Ferreira.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15866: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (11): Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

quarta-feira, 16 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15866: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (11): Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

1. Em mensagem de ontem, dia 7 de Março de 2016, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos esta mensagem e reflexão:

Amigo Carlos
Faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que te são queridos.
Carlos, quero agradecer a mensagem que me enviaste quando do meu último poste, a propósito da minha saúde dizer-te que me sinto bem.
Há já muito tempo que não tenho publicado nada no meu blogue, vou publicar hoje um poste igual ao que te envio, fala da Guiné se quiseres publicar estás à vontade…
Recebe um abraço


MEMÓRIAS QUE ME ACOMPANHAM

11 - Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

Quando a minha Companhia esteve em Mansambo, três dos nossos camaradas ficaram cada um sem um pé, vítimas de rebentamento de minas, o que se for dito agora leva alguns a dizer ainda tiveram sorte ficarem só sem um pé, como se alguém com vinte e poucos anos que foi obrigado a deixar tudo e todos e ir para a guerra tivesse sorte em ficar apenas com um pé. Mas já ouvi…

Ou quando dois camaradas nossos em Cobumba morreram vítimas de uma mina levantada pelos nossos homens que viria a rebentar na nossa arrecadação, ou ainda num dos dias mais desmoralizadores que vivemos em todo o tempo de comissão, em Cobumba, quando quatro feridos estiveram várias horas esperando que o héli chegasse para fazer a evacuação para Bissau e o mesmo não chegou… mais tarde, com o tempo de comissão já terminado há muito, outro camarada viria a falecer já na cidade.

Quando alguém tenta explicar por que é que isso aconteceu, são alguns dos próprios que viveram essas situações que acham que isso é perder tempo, dizendo, são coisas que já não interessam. Pois não é esse o meu entendimento. Dar a conhecer o passado, neste caso o que vivemos na guerra, é sempre interessante. Se mais não for, para que aqueles que vierem depois de nós saibam o que nesse tempo aconteceu e porque aconteceu e, se possível contribuírem para que tal não volte a acontecer…

Se esse passado não for dado a conhecer aos mais novos que nasceram no tempo em que não é obrigatório ir à tropa, que aos cinco ou seis anos já usam o telemóvel e alguns até já mexem na Internet, que antes de nascerem os pais já tem um cuidado especial com eles. A resposta deles provavelmente seria, mas que atrasados que eles eram.

 Vítimas de uma emboscada

Não é novidade para ninguém, ou não deveria ser, que é muito importante arrumar o nosso passado, mas isso não implica esquecer. Sabendo de onde vimos, se mais não for, é sempre mais fácil decidir para onde queremos ir…

Tudo tem um tempo para acontecer. Havia um homem que andou cerca de três anos a colocar degraus para subir a um ponto muito alto onde ninguém antes tinha conseguido subir, faltava pouco para atingir o cimo, um dia, a morte chegou e não conseguiu aquilo porque tanto tinha lutado… Outro continuou o trabalho que há anos ele tinha começado, passados poucos dias chegou ao cimo, nesse dia fizeram uma grande festa e o seu nome ficou gravado para que todos soubessem quem foi o primeiro a chegar àquele sítio. Lamentavelmente esqueceram, que aquele só lá chegou porque outro durante muito tempo trabalhou para que isso fosse possível…

Por tudo isso é bom haver quem se preocupe em dar a conhecer o nosso passado, neste caso na guerra, sempre com o rigor possível, para que aqueles que vieram depois de nós possam saber as dificuldades porque passamos, se mais não fosse, só a ausência de familiares e amigos durante muitos meses, alguns, mais de dois anos naquela que devia e podia ter sido a melhor fase da nossa vida…

Viver num clima de guerra só por si era terrível, mas a esmagadora maioria dos que passaram pela Guiné teve que conviver com o sofrimento de camaradas feridos, quer em combate, vítimas de flagelações à distância ou das terríveis minas em que ficaram marcados para sempre. Outros, não resistiram ao sofrimento e mesmo ali a nosso lado acabaram por perder a vida.

Quando se fala nas migrações como está a acontecer nesta altura, faz-me lembrara uma frase que disse a alguns amigos quando cheguei da Guiné: se um dia houver guerra em Portugal só se não puder é que não abalo com a minha família para um país onde exista paz…

Creio, que se o sofrimento que advém da guerra a todos por igual chegasse não haveria na terra homem que em guerra pensasse.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13653: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (10): Quando a manta passou a servir de colchão

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13653: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (10): Quando a manta passou a servir de colchão

1. Em mensagem do dia 23 de Setembro de 2014, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos mais um Pedaço do seu tempo.


PEDAÇOS DE UM TEMPO

10 - Quando a manta passou a servir de colchão

Quando fomos para Cobumba, foram-nos distribuídos colchões pneumáticos. Eram compostos por cinco partes, mais a almofada, cada uma autónoma no modo de conservar o ar e de serem cheias.

Passadas algumas semanas uma dessas partes do meu colchão esvaziou, por mais que soprasse para a encher, passados poucos minutos voltava a estar vazia.
Durante algum tempo lá fui dormindo mesmo assim, de esguelha, como os sonos eram sempre de tempo reduzido, tínhamos de fazer reforço todas as noites, e de vez enquanto ainda éramos acordados, ainda que estivéssemos sempre à espera… só nunca sabíamos a que horas, mas lá fui aguentando.

Passadas umas semanas mais uma parte deixou também de conservar o ar, então só tive uma solução que foi esvaziar as outras que ainda se mantinham boas e ficar só com a almofada, que se manteve cheia até ao fim da nossa permanência naquele local.

Saída do abrigo, local que servia de sala de refeições, tinha acabado de almoçar, a mesa foi construída pelo meu camarada condutor Cruz.

A partir dessa altura, a maior parte do tempo que lá estivemos, passei a dormir com uma manta dobrada a servir de colchão, nada agradável, a cama tinha sido feita por mim com tábuas que ia aproveitando de caixas que tinham servido para levar bacalhau e outras coisas, embora eu não tivesse grande jeito para carpinteiro, mas a necessidade a isso obrigou.
No início, ainda dormíamos no chão, com o chegar da época das chuvas, em abrigos subterrâneos em que a cobertura era feita de troncos de palmeiras cobertos de terra, a água começou a infiltrar-se fizemos uma cobertura de capim, cada um teve de desenrascar o melhor que pôde.

O tempo passou mas foi uma das muitas situações que não é fácil esquecer. Para quem estava privado de quase tudo que necessitava, naquele buraco de difícil acesso, a falta de colchão era apenas mais uma…

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13479: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (9): Mesmo lá (tive sorte)

sábado, 9 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13479: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (9): Mesmo lá (tive sorte)

1. Em mensagem do dia 2 de Agosto de 2014, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos mais um Pedaço do seu tempo.


PEDAÇOS DE UM TEMPO

9 - MESMO LÁ 

Amigo Carlos Vinhal
Antes de mais, votos de boa saúde extensivos a todos que te são queridos.

Com o passar do tempo, por vezes, dou comigo a recordar situações que quando era mais novo a vida não me permitia, há dias, fiz uma viagem ao meu passado pela Guiné e cheguei à conclusão que não me posso queixar de falta “sorte” durante o meu tempo de comissão.

Os meus camaradas, quase todos, foram de barco, eu fui de avião, ainda que velhinho. Demorou na viagem “apenas” nove horas, incluindo uma paragem em Cabo Verde onde viria a tomar o primeiro contacto com o clima de África.

Enquanto eles foram estagiar no Cuemuré, eu estive cerca de trinta dias em Bissau (nos Adidos), o que sempre deu para conhecer de forma mais suave o clima, as várias etnias que compõem a população da Guiné e o bulício da cidade. Para quem não fazia a mínima ideia daquilo que foi encontrar, foi muito bom aquele tempo de adaptação antes de chegar à companhia.

Depois viajei de Dacota até Bafatá, daí em coluna para Bambadinca e depois Mansambo. Os meus camaradas foram pelo rio Geba de LDG, até ao Xime depois em coluna auto para a sede da companhia.

A primeira mina anticarro acionada por uma viatura da nossa companhia foi na picada de Mansambo para Candamã. Nesse dia eu tinha ficado no quartel, o condutor era o José de Sousa.
A única flagelação que sofremos em Mansambo, estávamos vários condutores a carregar terra para levar para a oficina, começamos a ouvir saídas de morteiro, a nossa reação foi fugir para o abrigo mais próximo. Eu fui o último a sair do local onde estávamos, era um buraco enorme, provavelmente feito pelos militares que construíram o aquartelamento. Nesse momento tive um pressentimento que não tardaria que as morteiradas começassem a cair e não tivesse tempo de chegar ao abrigo, voltei para trás e deitei-me no local onde estávamos a carregar a terra.
Talvez tenha sido a minha sorte, as primeiras caíram precisamente no trajeto que os meus colegas fizeram até ao abrigo do nosso 81, eu era o último…

Não fosse os três feridos graves que tivemos e teria de considerar que estive num dos melhores sítios da Guiné daquele tempo, no que a guerra diz respeito. Com muito trabalho, mas era bem melhor que estar dentro do arame farpado sem poder de lá sair, como veio a acontecer mais tarde quando fomos para o sul.

No dia que chegámos a Cobumba, enquanto tivemos dentro da LDG à espera para desembarcar, fomos escutando o relato de um jogo de futebol que estava a decorrer entre o F C do Porto e o Benfica (dia 8 de abril de 1973), nos encarnados a grande referência era Eusébio, a grande esperança dos portistas tinha vindo da América Latina, chamava-se Cubillas.

Vista parcial de Cobumba, local onde estiveram dois grupos de combate e quase toda a formação

Entretanto era chegado o momento de começarmos a descarregar, e transportar as coisas que levávamos para um local a cerca de quinhentos metros do cais, eu fui na primeira viatura, o condutor era o Cabral, foi um dos que seguiu mais cedo para Bissau quando ainda estávamos em Mansambo para levantar as viaturas, passaram as quatro e nada de anormal aconteceu.

Depois de feita a descarga foi o regresso ao rio para novo carregamento, o capitão disse-me para eu seguir com o Unimog, mas o Cabral disse que ia ele, andou cerca de cinquenta metros, a viatura acionou uma mina, passados poucos minutos estava a ser evacuado para Bissau, não mais voltou à companhia. Pouco tempo depois regressou à Metrópole para continuar o tratamento no hospital.
Uma vez mais a sorte esteve do meu lado.

Passado cerca de um mês de estarmos em Cobumba, vim a segunda vez de férias à Metrópole, durante esse tempo os meus camaradas sofreram o primeiro e único grande ataque quase corpo a corpo, ainda não tínhamos arame farpado e poucas valas de proteção, existiam muitas árvores de grande porte o que tornou possível a infiltração do IN chegando a poucos metros.
Uma vez mais tive sorte por estar de férias e não ter assistido a tal encontro.

Próximo de deixarmos Cobumba, estava de serviço de condutor, os picadores detetaram uma potente mina anticarro no trajeto que eu teria de fazer. Como de costume foi levantada pelo furriel Trindade, uma vez mais a sorte esteve comigo.
Essa mina foi levada para a arrecadação onde dois ou três dias depois viria a explodir, provocando as duas primeiras baixas da nossa companhia, o furriel Galeano e um soldado do 2.º pelotão, de quem já me não recordo o nome.

A três semanas do regresso à metrópole, a minha companhia fez uma coluna a Farim, eu estava a recuperar de um ataque de paludismo, fui dispensado pelo médico de fazer serviços pesados, apesar da doença que me fragilizou bastante, tive sorte, fazer colunas para Farim naquele tempo não era nada agradável.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12671: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (8): Tempos de Bissau - Estórias opostas

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12671: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (8): Tempos de Bissau - Estórias opostas

1. Em mensagem do dia 30 de Janeiro de 2014, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga eBissau, 1972/74), enviou-nos mais um Pedaço do seu tempo.

Amigo Carlos
Votos de boa saúde, é o que te deseja este teu camarigo.
Hoje envio-te um retrato… daquele que foi o nosso tempo de Bissau, com o fim da comissão a parecer cada vez mais distante. Se no mato foi difícil, na cidade para nós também não foi nada agradável.

Um abraço.
António Eduardo Ferreira


PEDAÇOS DE UM TEMPO

8 - TEMPOS DE BISSAU - ESTÓRIAS OPOSTAS

Nos últimos dias de Janeiro de 72, acabado de chegar a Bissau, e de me ter “instalado” nos Adidos, passou pouco tempo sem me arranjarem serviço, Cabo da Guarda, à movimentada porta de armas.

Autêntico corrupio de militares e viaturas a entrar e sair.
Na Metrópole nunca tal serviço tinha feito.
Um pouco atrapalhado mas lá me fui desenrascando. Ao início da tarde apareceu um casal e duas crianças num carro civil para entrar, pedi ao senhor para se identificar, ele mostrou-me o bilhete de identidade, onde se via alguém fardado com uma boina como usavam os sargentos e oficiais, quando vestiam aquela farda cinzenta… não cheguei a ler as informações que constavam no cartão, imediatamente fiquei com a ideia que era um sargento, pessoa que aparentava ter aí quarenta anos, bati-lhe a pala e mandei-o entrar.

Só depois comecei a pensar no disparate que tinha feito, seria mesmo militar? Seria polícia… Quem era não cheguei a saber, mas ninguém me exigiu qualquer explicação, tudo correu bem.
Já durante a noite, o furriel que estava de serviço chamou-me para ir com ele fazer a ronda, a arma que me tinham distribuído naquele dia era uma pistola com o carregador quase do tamanho do cano, a coronha, ou lá o que era aquilo era uma verguinha dobrada, eu nunca tinha pegado em tal coisa. Estava ali um militar bem preparado se tivesse que a utilizar, mas tal não foi necessário, tudo correu bem, depois de passarmos por dois postos de sentinela, o furriel disse-me que não era preciso continuar a ronda e voltamos para a porta de armas.

Porte de Armas dos Adidos
Foto: Rumo a Fulacunda, com a devida vénia

Se no início de setenta e dois a guerra ainda era “fora” de Bissau, já não era bem assim no início de setenta e quatro, quando a nossa companhia já se encontrava na cidade. O rebentamento de um engenho explosivo nas casas de banho do Quartel-General e um outro que rebentou no Café Ronda, onde fui algumas vezes.
Certa noite no Pilão houve tiroteio durante algumas horas, ao ponto da nossa companhia ter sido mobilizada com todo o pessoal disponível nas viaturas pronto a sair. Cerca da uma hora da noite a “festa" acabou e o nosso pessoal desmobilizou.

A insegurança e o medo teimavam em não nos deixar. Foi com esse ambiente que vivemos o resto da comissão em Bissau, onde foram vários os serviços que a nossa companhia teve de fazer: Guarda ao Palácio do Governo (à data o general Bettencourt Rodrigues era o Governador), patrulhamento apeado em grupos de três, de noite, nos arredores da cidade, serviço ao cais quando chegava algum barco da Metrópole, uma coluna a Farim, (o único serviço que os nossos condutores fizeram de condução durante o tempo que estivemos em Bissau), serviço no paiol, guarda aos depósitos de onde era feito o abastecimento de água, serviço ao arame que circundava alguns sítios da cidade, onde tivemos uma baixa por acidente, o furriel Trindade, etc.

Só os criptos e um ou dois elementos da secretaria continuavam o serviço normal, o resto do pessoal passou a fazer os mesmos serviços.
A nossa companhia, depois de vir de Cobumba, teve como prémio fazer todos estes serviços e, dois ou três dias antes de regressarmos à Metrópole ainda fomos escalados para fazer mais uma coluna a Farim. Depois de termos a coluna preparada para sair, onde iam todos os condutores que tivessem viatura, por volta da meia-noite fomos informados que afinal tínhamos sido dispensados. 

Certo dia calhou-me estar de Cabo da Guarda à entrada do paiol, onde existiam umas pequenas instalações para nos recolhermos quando não estávamos de serviço. Para além de um telefone interno havia também uma lista com os nomes das pessoas que estavam autorizadas a entrar.
A certa altura chega à entrada um jipe da PM com um furriel e três soldados, o furriel sai em passo acelerado e diz-me que ia falar com o furriel que estava de serviço no paiol. Mandei-o parar e perguntei-lhe se o nome dele contava da lista das pessoas que podiam entrar, disse-me que não.
- Então não entra sem eu falar com o furriel.
- Mas é costume eu entrar.
- Pois, mas hoje não entra.

Enquanto não recebi ordens para deixar entrar, o camarada da PM, visivelmente contrariado, esperou à porta.
Não sei se seria consequência de quase vinte e seis meses de Guiné ou por recordar ainda a situação que vivera há cerca dois anos, quando nos Adidos deixei entrar alguém só porque supus ser um sargento, ou então se foi mesmo por ser da PM.

Não tinha nada contra a PM, de que fazia parte um vizinho e meu amigo.
Numa das vezes que vim de férias à Metrópole andei duas horas no jipe com eles em patrulha, quem me visse no meio daquele pessoal, talvez pensasse que tinha sido apanhado a infringir as regras militares, mas não, andava a passear.

Alguns, talvez por desconhecerem o que era de facto viver a guerra no mato, tinham atitudes que os homens chegados do interior não apreciavam mesmo nada. Mas era também a missão que alguém lhes exigia, ainda que alguma vaidade por vezes os tornasse pessoas pouco recomendáveis.
Mas nem todos eram assim…

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12606: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (7): Estórias de Mansambo onde a guerra foi outra

domingo, 19 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12606: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (7): Estórias de Mansambo onde a guerra foi outra

1. Em mensagem do dia 16 de Janeiro de 2014, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos mais um Pedaço de um tempo.


PEDAÇOS DE UM TEMPO

7 - Estórias de Mansambo onde a guerra foi outra…


Esta era a parte de trás de um abrigo onde se pode ver umas pequenas aberturas que serviam para poder utilizar as armas em direção ao arame farpado que circundava o aquartelamento. Cerca de treze meses foi a minha residência, não era nada mau, mas isso deve-se aos primeiros camaradas que ali foram colocados, onde apenas existia mata, que muito tiveram de trabalhar para os construir. A única coisa boa que por ali havia era uma fonte, que viria a abastecer o aquartelamento, ainda que, para a ir buscar a água apesar de ficar a cerca de duzentos metros do arame, todos os dias esse trajeto era picado e a segurança feita por seis ou sete militares que ali se mantinham enquanto o Unimog 411 “o burrinho” ia fazendo várias viagens, abastecendo os chuveiros e os abrigos. Para além do condutor, que era sempre o mesmo, andava mais um camarada para ajudar na carga e descarga, que era feita com uma terrina da sopa.

O primeiro serviço que fiz em Mansambo foi segurança à fonte, no dia em que os velhinhos nos deixaram. Talvez o dia mais triste do meu tempo de Guiné. Outros mais dramáticos aconteceram, mas a maturidade já era outra…

Parte deste abrigo servia de alojamento à maioria dos condutores que lá estávamos, ali era a residência de sete, na hora das refeições juntava-se a nós o Ladeira, que tinha a especialidade de clarim ou corneteiro… mas tal especialidade não era necessária na nossa companhia. Os homens da corneta passaram a ser padeiros.

Como diz o povo, para aprendermos temos de passar por elas… Certo dia o jantar era bacalhau à Gomes de Sá, o bacalhau até era muito, mas as espinhas eram mais volumosas que a parte comestível -, comestível não é bem assim, porque para alguns humanos as espinhas também são comestíveis. Quando estávamos a começar a jantar o Ladeira lembrou-se de dizer:
- Se me pagarem uma cerveja, como as espinhas todas.

Eu achava que isso seria impossível, disse:
- Eu pago, tens é de comer tudo que está no prato.

O condutor Abílio “já falecido” disse também:
- Eu pago outra.

O amigo Ladeira demorou um pouquinho mais tempo que nós a comer, ao mesmo tempo que ia bebendo umas cervejas, mas o prato ficou completamente limpo.

Depois ainda disse:
- Se pagarem outra, como mais uma dose.

Claro que a resposta aí foi: agora se quiseres comer mais, terás de pagar tu a cerveja.

Foi uma boa lição, quando era mais novo e ouvia alguém dizer que apostava que era capaz de comer ou beber quantidades aparentemente impossíveis, lembrava-me logo do Ladeira… No que toca a comer ou beber, para algumas pessoas, quase tudo é possível.

A última vez que o vi foi no almoço da nossa companhia, a “CART 3493” há cerca de três anos, estava ótimo. Espero que assim continue. Para ele um abraço.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12572: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (6): Cuidado com as aparências

sábado, 11 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12572: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (6): Cuidado com as aparências




1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 7 de Janeiro de 2014:

Carlos
Antes de mais, votos de boa saúde extensivos a todos quantos passaram por terras da Guiné.



PEDAÇOS DE UM TEMPO

A foto deste vosso ex-camarada no dia em que chegou a Mansambo, depois de um mês de férias na metrópole. Vinha de levantar algum equipamento que tinha deixado na arrecadação, se tive dias difíceis de passar, este foi um deles, ao ponto de ainda não o ter esquecido.


Hoje vou falar da minha primeira viagem de avião e, de dois camaradas que viajaram comigo.

6 - CUIDADO COM AS APARÊNCIAS…

Nem sempre aquilo que parece é; na madrugada do dia vinte e quatro de Janeiro do já distante ano de mil novecentos e setenta e dois, juntei-me a vários camaradas no quartel dos Adidos, em Lisboa, tendo como destino viajar até à então província ultramarina da Guiné.

Apesar da noite estar preste a dar lugar ao dia quando o avião em que viajamos levantou voo, ainda toda a cidade se encontrava iluminada. Para quem como eu, era a primeira vez que viajava em tal meio de transporte, foi qualquer coisa de espetacular.

A sensação que tive era de irmos a sobrevoar uma enorme montanha toda iluminada. Passados os primeiros momentos em que a curiosidade, a expectativa e alguma incerteza deram lugar à “tranquilidade possível”, era chegado o tempo de conversarmos um pouco e, logo procuramos saber se algum de nós tinha como destino a mesma Companhia.

Até chegarmos a Cabo Verde fomos pondo a conversa em dia, com o avançar das horas, no velho e lento avião, comecei a sentir alguma descompressão, apesar das ideias completamente baralhadas. Era chegado o momento da primeira aterragem, no aeroporto dos Pargos, na ilha do Sal e, nova sensação até então para mim desconhecida. Depois da conversa que tive com os camaradas de viagem fiquei a saber, dos que íamos, dois iam comigo para o Leste, para a Cart 3493, que tinha como destino Mansambo, o Batalhão de que fazia parte a Companhia com os nossos futuros camaradas já tinha partido de barco há cerca de um mês. Soube também que ambos tinham já mais de ano o meio de tropa, alguns problemas disciplinares levaram a que só agora fossem mobilizados.

O primeiro juízo que fiz, erradamente, foi que, provavelmente não seriam os melhores colegas para quem como eu gostava das coisas muito “certinhas”. Só depois soube que o Agostinho era condutor, tinha tido um acidente pouco relevante, mas enquanto o auto não foi resolvido, não foi mobilizado, só por isso ia agora. O Vila Cova devia ir como furriel, mas alguma coisa não correu bem, foi mobilizado como soldado.

Mas a realidade cedo provou que eu fizera um juízo errado acerca dos meus camaradas. O Vila Cova, ao chegar à Companhia foi colocado na secretaria, bom colega nada conflituoso, tinha apenas o inconveniente de por vezes reagir mal a determinados pequenos acontecimentos, que para a maioria não tinham nenhuma importância… apesar de muito tempo já ter passado, ainda recordo o sofrimento e desorientação que uma abelha lhe provocou ao deixar-lhe o respetivo ferrão cravado no rosto, num dia em que seguíamos em coluna para Bafatá, pouco depois de termos passado pela povoação de Afiã.
O Agostinho, um dos bons amigos que tive durante todo o tempo de comissão, tinha como principal defeito, uma qualidade que poucos tinham, parecia só estar bem a trabalhar.

Entre outras provas do seu valor, recordo uma noite em que foi necessário fazer uma coluna a Bambadinca, para evacuar um camarada que tinha acionado uma mina, num dos patrulhamentos que normalmente faziam quando estávamos em Mansambo. O Agostinho logo se disponibilizou para seguir na frente da coluna com a GMC sem que a estrada tivesse sido picada, como em condições normais sempre fazíamos.

Durante o tempo de comissão demonstraram que afinal o menos interessante do grupinho que viajamos para mesmo local era mesmo eu. Ao longo da vida somos confrontados com situações assim. Quando nos acontecem é bom não as esquecermos, para não voltarmos a fazer juízos errados.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10871: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (5): O whisky não era para todos

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10871: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (5): O whisky não era para todos

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 23 de Dezembro de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Envio-te este pequeno texto que publicarás se entenderes conveniente, caso contrário tudo bem. Aproveito também para desejar a todos ex-camaradas e família boas festas e, particularmente, para aqueles que se encontrem em dificuldades com problemas de saúde, que o próximo ano seja melhor. Desejo extensivo, a todos quantos visitam o blogue.


PEDAÇOS DE UM TEMPO

5 - O WHISKY NÃO ERA PARA TODOS

Por razões várias nem todos podiam frequentar restaurantes ou pensões, e o uísque também não chegava a todos…

Este texto vem a propósito de uma conversa que tive há dias com um amigo meu, que sendo ainda jovem, de vez em quando também faz uma visita ao blogue tentando perceber um pouquinho daquilo que foi a nossa passagem pela guerra algures, em terras da Guiné.

Dizia -me ele: "Vocês quando vinham a Bissau ou a Bafatá tiravam a barriga da miséria e, mesmo no mato também parece que não faltava o uísque". Procurei dizer-lhe que não era bem assim. Havia também aqueles, que quer fosse no Império, no Ronda, no Bento ou outros, isto em Bissau, a sua bebida ficava-se por uma bica e um copo de água. Mas aquela observação feita por alguém que não conheceu o que por lá se passava e, vivendo nos tempo de agora também não será muito fácil de perceber.

Levou-me a refletir um pouco sobre aquilo que por vezes aparece em alguns postes no blogue a respeito do uísque, de tirar a barriga da miséria, ou até de uma visita às meninas generosas, por isso, decidi falar sobre os mesmos.

Efetivamente parece que havia quem em algumas companhias tivesse acesso a várias garrafas de uísque a bom preço ao longo da comissão. Pela parte que me toca, tive direito a uma, ou duas… Quando acontecia por razões várias alguns irem ou passarem por locais onde existiam os ditos restaurantes ou pensões, a maioria fala em Bissau e Bafatá, mas havia outros sítios, onde isso de facto acontecia. Só que os frequentadores desses locais eram quase só furriéis, sargentos e oficiais. Ou então, aqueles que iam recebendo umas cartas com umas notas em escudos que lhes eram enviadas da Metrópole, porque os outros… mesmo os mais ”poupados” raramente juntavam dinheiro que lhe permitisse grandes aventuras.

Porque isto de igualdade na tropa naquele tempo (em algumas coisas) ficava-se só pela cor da farda. Um soldado se não estou errado ganhava 960$00, o cabo que era o meu caso 1.200$00, (eu tinha mais 150$00 o chamado prémio de viatura) dessa verba alguns mandavam pelo menos metade para a Metrópole. Depois seguiam-se os outros, um furriel ganhava várias vezes mais que o soldado, e os oficiais sempre em crescendo. Daí a razão de não serem muitos os soldados que frequentavam esses sítios. Chegou a acontecer a alguns, descuidarem-se e acumularem dívidas na cantina (com a complacência do cantineiro), passado poucos meses de lá estarem, parte do ordenado na altura de receber, era logo descontado para amortizar a divida.

O facto de várias vezes o nome de restaurantes e pensões mais frequentados assim como das marcas de uísque, aparecerem em alguns postes, deve-se à esmagadora maioria dos que escrevem para o blogue terem pertencido ao grupo de sargentos e oficiais. Quanto ao número de ex-soldados que vamos escrevendo somos uma minoria. É minha intenção com este pequeno texto tentar contribuir, dentro do possível, para esclarecer aqueles que nasceram no tempo em que não é obrigatório ir à tropa, mas que, por influência de ex-combatentes de vez em quando fazem uma visita ao blogue, só que mesmo assim, continuam com grandes dificuldades em perceber como foi possível resistir durante tantos anos, às terríveis condições que a esmagadora maioria de nós passou na Guiné, e também nas outras províncias, o que é normal. Pois quem quiser perceber minimamente o porquê das coisas terem acontecido assim, terá que estudar o assunto cuidadosamente recuando no tempo e “ver” como era o nosso País e a sua gente por essa altura.

Existiam algumas condições “naturais” que em muito contribuíam para que isso tenha sido possível. A começar pelo atraso cultural da esmagadora maioria da população em consequência do analfabetismo que se fazia sentir, mesmo alguns dos considerados cultos… Depois a história, que da forma como nos era contada levava muitas vezes as pessoas a construir ideias que não raramente tinham pouco a ver com a verdade… Outra e a não menos importante, a religião, que de algum modo baralhava ainda mais as coisas. E claro, a situação política que em grande parte, era consequência das primeiras… Esta é a minha opinião, haverá outras, mas ainda bem que é assim, sinal que cada um se pode expressar livremente.

Permitam-me, “um pequeno desvio dos tempos de Guiné” a propósito de igualdade na tropa, o que me faz ainda hoje olhar com alguma desconfiança quando oiço falar em igualdade. No dia a seguir a ter assentado praça, estávamos todos meio desalinhados junto daquele que viria a ser o comandante do nosso pelotão, o então alferes Lourenço Rosa, isto no Trem Auto em Lisboa, quando um dos rapazes do grupo, dirigindo-se ao oficial em questão tratou-o por senhor alferes, a que este respondeu, qual senhor, aqui não há senhores somos todos camaradas! Eu ouvi e registei a conversa, só que no dia seguinte fomos começar a aprender a conhecer as divisas, galões, e por ai acima, depois a forma de tratar os tais que não eram senhores mas sim camaradas. Foi então que fiquei a saber, que um soldado com mais três meses de tropa que eu, já era tratado por nosso pronto, seguindo-se o nosso cabo, o meu furriel, meu sargento, vossa senhoria e por ai acima. Aí eu pensei… mas que igualdade é esta em que todos mandam em mim? Por isso quando oiço falar em igualdade penso sempre. Será como a da tropa?…

Já agora aproveito para desejar Boas Festas aos meus superiores do pelotão no tempo da recruta, estejam eles onde estiverem… Não mais os voltei a ver. Eram todos bons camaradas: alferes Lourenço Rosa, Furriel Chumbinho, e os soldados Almeida e Policarpo Gomes.

António Eduardo Ferreira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10262: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (4): Hoje vais pagá-las todas!!!

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10262: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (4): Hoje vais pagá-las todas!!!

1. Em mensagem do dia 6 de Agosto de 2012, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos esta estória de suspense:

Caro camarada Carlos,
Aqui vai o relato de mais uma passagem de que eu fui um dos intervenientes em Mansambo e, que faz parte das muitas que compõem a história da CART 3493.

Quando não conseguimos distinguir uma brincadeira, daquilo que é a sério, sujeitamo-nos a grandes sustos, e comigo aconteceu assim, em Mansambo.


PEDAÇOS DE UM TEMPO

4 - HOJE VAIS PAGÁ-LAS TODAS!!!

O eletricista da nossa Companhia era muito brincalhão, de estatura baixa, de vez em quando juntava-se a nós (condutores) sempre disposto a pregar partidas, depois ria-se das brincadeiras que fazia, algumas vezes calhava-lhe levar umas palmadas como moeda de troca, mas não se chateava, até porque era quase sempre ele o primeiro a pôr (lenha na fogueira). Quem passou pela Guiné sabe que todos nós tínhamos dias de algum desnorte. Aconteceram incidentes graves, por vezes sem razão aparente para que tivessem sido provocados. O certo é que aconteciam, e todos nós tínhamos conhecimento de tais atos.

O Vieira, certo dia, entrou no abrigo dos condutores, onde (por acaso) só estava eu deitado em cima da cama, que era a última do abrigo. Quando entrou, não sabia se eu estava sozinho ou não. Aparentava ir completamente descontrolado, levando na mão uma granada ofensiva. Entrou cerca de um metro dentro do abrigo e, em vós alta e com cara mau disse- me:
- Estás farto de gozar comigo, hoje vais pagá-las todas.

Nos primeiros instantes não fiz caso, mas quando ele retirou a cavilha da granada e a atirou para debaixo da minha cama, estive alguns segundos em que a respiração parou. Naqueles breves momentos pensei em quase tudo, mesmo no pior… Passados que foram alguns segundos não houve rebentamento (estava desativada). O Vieira começou a rir e fugiu, ainda hoje não faço ideia onde se terá escondido. Quando saí da cama era mesmo com vontade de lhe sacudir a roupa, mas passadas algumas horas já tudo tinha esquecido, menos o susto que apanhei.

Encontrámo-nos há três ou quatro anos num almoço da companhia que teve lugar em Viseu, (desde a nossa vinda da Guiné não mais o tinha visto), falámos acerca desse episódio o que serviu para ele se rir mais um pouco. Eu ainda lhe disse: - Hoje é que vais levar uns murros… na brincadeira, claro!

O Vieira era um bom camarada. A primeira vez que vim de férias à Metrópole fui incumbido de levar para Bissau uma mala que pertencia a um oficial da nossa companhia, que tinha sido destacado para outra, ou para um grupo de combate (não tenho a certeza) de tropa nativa e que tinha sido vítima de um incidente provocado por um subordinado seu. Talvez recordar-me da mala que levei para Bissau (por sinal bastante pesada), me fizesse pensar que o que foi uma brincadeira pudesse ser a sério.

António Eduardo Ferreira
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Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 5 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10119: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira (3): Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10119: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (3): Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!

Crianças de Mansambo, ao tempo da CART 2339 (1968/69)
Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados




1. Em mensagem de 2 de Julho de 2012, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos este texto,  lembrando as crianças de Mansambo do seu tempo.



PEDAÇOS DE UM TEMPO

3 - AS CRIANÇAS DE MANSAMBO

Crianças de Mansambo,  que será feito de vós? O Cherifo foi o nosso primeiro faxina, de olhar atento e profundo, por vezes sem nada dizer, ele dizia não. Um dia os condutores chatearam-se com ele, (não sei porquê, eu tinha vindo de férias à Metrópole), foi embora. Veio o António, bonacheirão e descontraído, para ele tudo estava bem, um dia abalou, os outros meninos diziam que tinha ido para o fanado e por essa razão deu lugar ao pequeno e frágil Demba, (era muito novo) pouco esforço podia fazer, foi faxina até à nossa ida para Cobumba.

Uma das coisas que mais gostavam de fazer era jogar futebol, alguns até já falavam no nome do Eusébio e do Cubillas, influências de Benfiquistas e Portistas, o calçado é que não ajudava, mas eram ágeis a correr. Quando o tropa jogava, eles esperavam e jogavam depois. Uns descalços, outros com trinta e oito de pé e botas rotas quarenta e dois.
Também a Califa que foi minha lavadeira, menina e mulher ao mesmo tempo, sem ter sido criança. Outros havia, por não terem sido faxinas dos condutores nunca soube o seu nome.

Que será feito de vós, meninos daquele tempo? Espero que para vocês a mudança tenha trazido um tempo novo, diferente e melhor, o que parece não ter acontecido a alguns dos mais velhos.
Se mais não tiveram, espero que tenham podido esquecer a palavra guerra e conhecer o que para vocês era desconhecido, viver em paz.
Fiquei feliz por saber que passaram a poder tomar banho na fonte sem necessitar de segurança, apanhar bananas sem medo de haver armadilhas. Poderem ir de Mansambo a Candamã ou a Afiã, sem picadores na frente.

Ao pequeno Demba a quem tinha prometido levar uns sapatos quando viesse de férias segunda vez e, que a minha ida para Cobumba não permitiu, ficaria feliz se pudesse saber que também ele passou a usar sapatos novos, como os que levei ao Cherifo e que a ele eu não pude cumprir a promessa.
Ficava magoado e triste quando alguém lhe dirigia palavras menos próprias, pensava sempre no meu filho que ainda não conhecia, também ficaria triste, muito triste, se alguém lhe dirigisse,  a ele, palavras assim! Não era com intenção de magoar, que essas palavras eram proferidas, eu sei, mas, sim, tentando descarregar a revolta que com o passar do tempo se ia acumulando. Só que, em quem não tinha culpa da situação em que nos encontrávamos… as crianças.

Há momentos na vida que nunca conseguimos esquecer, e eu jamais esquecerei aquele em que um grupo de meninos da tabanca veio até ao meu abrigo levar-me uma galinha, retribuindo e agradecendo assim os sapatos novos que eu tinha levado ao Cherifo quando fui de férias. Não pelo valor da galinha mas pela pela felicidade que todos eles deixavam transparecer naquele momento, que era contagiante.

Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!
António Eduardo Ferreira (*)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > Quase 40 anos depois... Meninos de Mansambo... e tugas, agora turistas de saudade, entre eles o  antigo... mansambeiro Saagum. 

Junto à fonte, a tristemente famosa fonte de Mansambo: aqui foi gravemente ferido, em emboscada montada pelos guerrilheiros do PAIGC, em 19 de Setembro de 1968, o Saagum, do 1º pelotão da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Recorde-se o relato do nosso camarada Carlos Marques dos Santos, sobre os três graves incidentes ocorridos em 1968 neste lugar, enquanto o pessoal construía, de raíz, numa clareira da floresta,  o aquartelamento de Mansambo:

(...) "A 11 de Julho de 1968 o IN reteve um dos nossos elementos, na fonte, e na perseguição, em conjunto com as NT, o Cmdt do Pel Milícias 103 accionou uma mina A/P, tendo sucumbido aos ferimentos. Deste nosso camarada só houve notícias depois do 25 de Abril de 1974. Em 19 de Setembro de 1968, a CART 2339 sofre uma emboscada, vinda da copa das árvores, também na fonte, enquanto procedia ao abastecimento de água, que causou 11 feridos (5 graves) e um morto. Um dos feridos graves viria a falecer no Hospital Militar de Bissau (241) a 25 desse mês. Em 30 de Setembro nova emboscada na fonte ao Pelotão de Milícia e uma mulher da Tabanca". (...)

Na foto acima, de 2006, os tugas, da esquerda para a direita, o José Clímaco Saagum, o António Almeida, o Manuel Costa, o Aguiar e o Casimiro. Legenda de Albano Costa, foto de Hugo Costa (Guifões / Matosinhos).

Foto: © Albano Costa/ Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10043: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (2): Gazelas em Mansambo

sábado, 16 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10043: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (2): Gazelas em Mansambo

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 27 de Maio de 2012:

Caro Carlos,
Aqui vão as duas fotos com algum atraso por isso as minhas desculpas, uma tirada em Bissau um mês antes do regresso, a civil com o peso dos sessenta e dois.
Junto uma estória de Mansambo.


Um abraço
António Eduardo Ferreira


Mansambo
Foto: © Torcato Mendonça (2012). Todos os direitos reservados


PEDAÇOS DE UM TEMPO

2 - GAZELAS EM MANSAMBO

Certa noite em Mansambo, o cabo mecânico fazia reforço num posto de vigia que ficava próximo do heliporto. Quem o conhecia, o Santos, sabia bem como era o seu comportamento, sempre pouco preocupado com o que pudesse acontecer.

Em Mansambo no nosso tempo não era permitido fazer fogo quer fosse de noite ou de dia.
Naquela noite tudo decorria com normalidade como era costume, até que o Santos viu entrar na primeira vedação de arame que circundava o aquartelamento uma manada de gazelas e vai disto, sem pensar na confusão que iria arranjar, despejou o carregador na direção dos pobres bichos, que naquela noite pensavam ir ter uma refeição especial ao mondar a mancarra que o pessoal da Tabanca tinha semeado entre as duas vedações, mas ficaram-se só pelo susto.

Com aquele despertar toda a rapaziada supôs ser ataque junto ao arame nós que até nem sabíamos o que isso era (nunca aconteceu enquanto tivemos em Mansambo), foram perguntar ao Santos o que é que ele tinha visto. Ele com aparente convicção, disse que tinha visto homens junto ao arame e por isso tinha disparado nessa direção.

Mesmo sem resposta ao fogo do Santos por parte do inimigo, a ordem foi para bater toda a zona e, a reação ao suposto inimigo, foi de tal ordem que as nossas munições de armas pesadas ficaram quase esgotadas.

No dia seguinte foi feita uma coluna a Bambadinca para repor o material em falta e certamente para dar mais pormenores acerca do sucedido ao Comando do Batalhão. Só passado algum tempo, é que o Santos disse o que na verdade tinha acontecido, viu as gazelas disparou e, tinha que arranjar maneira de sair daquela situação, e assim se safou inventando essa pseudo aproximação do inimigo ao arame.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9847: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (1): Cobumba, Pessoas, Guerra e Reflexões

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9847: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (1): Cobumba, Pessoas, Guerra e Reflexões

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 28 de Abril de 2012:

Carlos,
Aqui vai um texto (reflexão sobre o meu tempo de Cobumba) que publicarás se entenderes conveniente.

Recebe um abraço, extensivo a todos que tornam possível a manutenção do Blogue, aproveito também para agradecer terem publicado o meu tempo de tropa (O Tempo Que Ninguém Queria), assim como a quantos tiveram a paciência para seguir a publicação.

António Eduardo Ferreira




PEDAÇOS DE UM TEMPO

1 - COBUMBA / PESSOAS / GUERRA / REFLEXÕES

Foi difícil, a vida dos homens da CART 3493 em Cobumba, mas a daquela gente que por lá morava não foi melhor, deixaram de ser bombardeados pelos tugas, passaram a ser por alguns dos seus que integravam as forças do PAIGC (uma mulher da população morreu vitima de uma flagelação.) 

Não deve de ter sido nada fácil de encaixar a mudança, o que eles de facto desejavam era a paz e não a continuação da guerra. (Muito tempo já passou e a esperança de muita daquela gente numa vida melhor, parece continuar a ser uma miragem.)

Havia certos dias em que as poucas pessoas que por lá estavam a maior parte do dia passavam-no junto ao seu abrigo, que seria certamente mais seguro que os nossos dado o sítio onde se localizavam (debaixo de um grande mangueiro) e a forma como eram construídos, apenas com cerca de um metro de largura. Era nossa convicção que eles estavam por ali porque tinham informações que nós não tínhamos… algumas vezes o “arraial” acontecia mesmo e nesses momentos estar perto de um abrigo podia fazer toda a diferença… também havia dias em que passavam lá grande parte do tempo mas nada acontecia, (provavelmente alguma informação que não se concretizava.)

Apesar das poucas conversas que tínhamos com a população, por vezes lá íamos fazendo algumas perguntas a que eles normalmente respondiam (aqueles que nos entendiam), certo dia perguntei ao filho do chefe de tabanca de que é que eles tinham medo quando ainda não estava lá a tropa branca, ele respondeu que era do passarinho grande (o avião), quando o passarinho aparecia se estavam na bolanha e esta tinha água (velhos e novos) deitavam-se, ficando apenas com parte da cabeça de fora, ele dizia, só com um olho fora da água. Era um menino de doze ou treze anos (o Zé) que certos dias saía com uma pequena saca onde dizia levar os livros e que ia para a escola em Pericuto que ficava do lado de lá da bolanha mas onde nós não íamos, porque apesar de ser perto era arriscado… a haver escola ou coisa parecida, teria que ser da responsabilidade do PAIGC…

Um outro com quem falei dizia que tinha sido carregador do PAIGC, transportava material de guerra à cabeça (chamava-se Miranda) o sítio mais longe onde tinha chegado foi ao Xitole, era um homem já de certa idade normalmente não saía lá da tabanca. Já perto do fim da nossa estadia naquele sítio as minas continuavam a causar-nos grandes preocupações, pois eram colocadas mesmo do lado de dentro do arame que nessa altura já circundava todos os abrigos e parte da picada. 

Devido a essa situação foi exigido ao chefe da tabanca que nomeasse alguém, que teria de andar todo o dia no carro ao lado do condutor, era uma forma de pressionar possíveis familiares que estavam do lado do PAIGC para não colocarem as minas, se é que isso poderia ter alguma influência nas ordens dimanadas do Partido. 

Recordo-me do primeiro e não sei se o único que andou comigo foi o filho do chefe, o Zé, entre eles era quem falava melhor português. Também para os condutores era uma situação estranha, andarmos todo o dia com alguém a nosso lado coisa a que não estávamos habituados. Não sei se psicologicamente isso nos terá ajudado.

Não me recordo se foi detectada mais alguma mina depois dessa exigência (nem faço ideia com que vontade) cumprida pelo chefe de tabanca. Também nunca soube se essa ordem foi pensada no Comando da Companhia ou veio de outro sítio, o certo é que aconteceu e chegou ao conhecimento do PAIGC, pois na rádio que transmitia em seu nome através da voz daquela a quem chamávamos a “Maria Turra” esse assunto foi muito falado. A esta distância no tempo dá para entender melhor como era difícil a vida daquela gente, que tinha de parecer estar bem com os dois lados (PAIGC e a Tropa Portuguesa), mas na verdade isso não era possível.

Coisas a que a guerra obriga. Como seria bom acabar com as guerras! E erradicar a palavra de todos os dicionários para que os vindouros não a chegassem a conhecer e assim não pudessem pensar que com ela, resolviam os grandes problemas que afetam a humanidade e deixassem de morrer tantos inocentes, existissem tantos estropiados, tantas viúvas, tantas crianças órfãs e outros para quem o viver perdeu o sentido.

Na guerra todos saem perdedores, uns mais do que outros é certo, mas todos sofrem as terríveis consequências que dela resultam. Pensar assim é uma utopia, eu sei, mas permite-me acreditar naquilo que eu gostava que acontecesse e não tenho dúvidas que o mundo assim seria um mundo melhor.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9683: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (4): De Cobumba para Bissau e regresso à Metrópole