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quinta-feira, 18 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24325: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (5): Op Triângulo Vermelho, a três agrupamentos (CART 2715, CCAÇ 12 e CCP 123 / BCP 12), em 4 e 5 de maio de 1971: a captura de população civil que depois é levada para Bambadinca e cujo tratamento causa a piedade e provoca a indignação do alf grad capelão Arsénio Puim


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) / Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Bambadinca  bem como do complexo de tabancas de Nhabijões, maioritariamente balantas, na margem esquerda do rio Geba, bem como o temivel Mato Cão (na margem direita) e, mais a norte, no regulado do Cuor, o destacamento de Missirá.... No princípio da década de 1970, para Norte Cuor) e Oeste (Enxalé)  não havia mais tropa (a não ser o destacamento do Enxalé, frente ao Xime, do outro lado do rio Geba). O PAIGC tinha aqui uma "base" (ou "barraca"), a "base do Enxalé", e este era um corredor fundamental para as colunas logísticas que vinham do sul... na altura em que o Senegal não permitia o trânsito de armas e munições no seu território. (Em linha reta devem ser mais de 25 km, de Bambadinca até à península de Madina / Belel.)


Guiné > Carta geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Excerto: posição relativa de Bambadinca e Xime (na margem esquerda do rio Geba), Enxalé (na margem direita do rio Geba) e Madina, Belel e Sará, a norte do Enxalé (que era território  dos regulados do Enxalé, Cuor e Oio, onde não havia tropa e que o PAIGC considerava "área libertada", controlando na península de Madina /Belel, a sudeste da base de  Sará (onde havia cubanos), uma população dispersa de cerca de duas mil almas, segundo estimativa do comando do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)


Guiné > Região do Oio > Carta de Mamboncó (1954) / Escala 1/50 mil > "Terra de ninguém"... Ou melhor: tradicionalmente o PAIGC andava por aqui com relativa à vontade, duarnte a guerra... Posição relativa do destacamennto de Cutia, na estrada Mansoa-Mansabá, tabancas (abandonadas) de Mambono, Belel e Sarauol.. E ainda o rio Malafo.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Sector L1 / Região de Bafatá > BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) > CART 2715, CCAÇ 12, Pel Caç Nat 54, e CCP 123 / BCP > 4 e 5 de Maio de 1971 > Operação "Triângulo Vermelho": a captura de população civil que depois é levada para Bambadinca e cujo tratamento causa a piedade cristã e provoca a indignação humana do alf grad capelão Arsénio Puim (*).

1. Vale a pena transcrever este excerto da História da Unidade, o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), para se perceber melhor a situação dos prisioneiros que foram levados da península de Madina / Belel, para Bambadinca, e  ali permaneceram uns dias, em condições indignas e desumanas (recorde-se que estamos já em pleno consulado spinolista,     está em vigor a política "Por uma Guiné Melhor" que nem toda a hierarquia militar, no CTIG,  compreendia e sobretudo apreciava e  aceitava, continuando a praticar a politica da "terra queimada",.  "aniquilar o IN e destruir todos os seus meios de vida"):

Desenrolar da ação:

- Em 04.Maio, pelas 17,00 horas e durante cerca de 50 minutos o “Agrupamento  Verde ” [CART 2715] cambou o Rio Geba no Xime, utilizando um sintex que, em diversas viagens transportou o material e o pessoal, continuando em seguida em marcha apeada para o Enxalé onde chegou pelas 18,45 horas.

- Às 22,30 horas o 
“Agrupamento  Verde ” iniciou a progressão para Bissilão de onde seguiu para a estrada Enxalé - Porto Gole, seguindo por esta atingiu a margem direita da bolanha do Rio Malafo pela 1,30 horas do dia 05 de Maio.

- Pelas 2,00 horas foi atingida pelo 
“Agrupamento  Verde " o ponto de coordenadas (Mamboncó 7E6-21) de onde seguiu para Norte em direcção ao ponto de coordenadas (Mamboncó 7E3-66) que atingiu pelas 4,30 horas, montando em seguida uma linha de emboscadas no trilho que de Sinchã Madina se dirige para o ponto de coordenadas (Mamboncó 7G1-56), a fim de recolher o “Agrupamento Laranja" [CCP 123 / BCP 12].

- Entretanto o
“Agrupamento  Negro” [CCAÇ 12] que saiu de Bambadinca pelas 18,00 horas cambou o Rio Geba junto ao porto de Bambadinca por haver apenas um sintex no Xime, prosseguiu por Finete – Malandin  Mato Cão  Saliquinhé tendo atingido o ponto de coordenadas (Bambadinca 1F3-43) pelas 22,30 horas onde fez um pequeno alto para descanso do pessoal.

- Pelas 24,00 horas este Agrupamento continuou a progressão para o ponto de coordenadas (Bambadibnca 1E4-35) que foi atingido pelas 0,30 horas do dia 05 de onde prosseguiu para Norte ao longo do trilho que contorna a margem direita da bolanha do Rio Ganturandim, passando por Iaricunda.

- Pelas 04,30 horas foi atingido Madina (Bambadinca 1B2-87) de onde continuou para Norte até ao ponto de coordenadas (Bambadinca 1A9-93) alcançada pelas 5,00 horas onde foram montadas emboscadas em vários trilhos, que se reuniam num só que se dirigia para a zona onde iria decorrer a operação.

- Foi verificado nesta altura que este trilho era a única via, relativamente fácil, de passar a linha de água, pois a tentativa de o fazer noutro local seria infrutífera dado que toda a linha de água é rodeada de espessa vegetação e grandes canaviais.

- Entretanto o “Agrupamento Laranja” [CCP 123 / BCP 12], pelas 14,00 horas do dia 04, deslocou-se em meios auto de Nova Lamego para Bafatá onde chegou cerca das 15,30 horas sendo em seguida heli-transportada para Missirá.

- Pelas 17,30 horas do dia 04, já com todo o pessoal em Missirá iniciou-se a progressão apeada em direcção a Sancorlã de onde, seguindo o rumo 260 graus e a corta mato, continuou a progressão.

- Pelas 5,50 horas do dia 05 foi atingido o ponto de coordenadas (Bambadinca 2A2-30) onde o Agrupamento emboscou aguardando os bombardeamentos da FAP.

- Pelas 6,30 horas o “Agrupamento Laranja” progrediu para a margem direita da bolanha do Rio Malafo seguindo depois para Sul em direcção ao ponto de coordenadas (Mambo0mcó 7G1-56) onde o “Agrupamento Verde” emboscado, o havia de recolher.

- Durante este trajecto destruiu 12 tabancas, de 2 a 8 moranças cada, uma escola, um celeiro e outros meios de vida. Capturou um elemento armado de Mauser, 7 mulheres, 6 crianças e documentos diversos.

- Pelas 11,30 horas atingiu o ponto de coordenadas Mamboncó 7G1-56) onde foi recolhido pelo “Agrupamenmto Verde”, continuando a progressão, protegido por este o Agrupamento, para sul em direcção a estrada de Porto Gole - Enxalé.

- Entretanto o “Agrupamento Negro”, após o bombardeamento da FAP, continuou a progressão para (Bambadinca 1A4-94).

- Logo após os bombardeamentos foram ouvidos gritos humanos e ruídos de animais domésticos, assustados e em fuga.

- Pelas 6,20 horas, após passagem da linha de água, foram detectados 4 elementos IN desarmados, vestindo de calções e blusa azuis progredindo na mesma direcção mas em sentido contrário. Eram seguidos a cerca de 50 metros por mais 2 elementos IN, vestindo do mesmo modo e armados de PPSH. Estes elementos IN imediatamente retiraram para Norte fazendo fogo, tendo as NT abatido 2 elementos desarmados mais próximos.

- Continuou-se a progressão para Oeste seguindo depois par Sul, tendo-se encontrado várias moranças, bem construídas, com cerca de 3 e 4 divisões, cobertas a colmo e a ripado de bambu, muito bem camuflado sob grandes maciços de vegetação e com trilhos de acesso às mesmas.

- Foram destruídas 20 moranças, 2 celeiros com um total de 500 kg de arroz e outros meios de vida.

- Não foram detectados nem elementos da população nem elementos armados.

- Às 7,20 horas foi atingido o ponto de coordenadas de (Mamboncó 7I8-73), onde o Comandante do “Agrupamento Negro” [CCAÇ 12] decidiu atravessar a bolanha para (Bambadinca 1A2-68) e não regressar pela passagem utilizada à entrada, pois aquela era a única na linha de água, facilmente referenciável e difícil de utilizar nessa altura sem segurança.

- Pelas 7,30 horas quando os últimos elementos se encontravam a cerca de 30 / 40 metros da orla da mata, um pequeno grupo IN estimado em cerca de 10 elementos desencadeou uma pequena e rápida flagelação,  utilizando armas automáticas e LGFog, ao mesmo tempo a área de (Mamboncó 7I7-78) era batida com 3 tiros de Mort 82.

- A reacção das NT pelo fogo e movimento obrigou o grupo IN a retirar da área, fortemente batida pelas NT com armas automáticas, LGFog e, principalmente dilagramas, sofrendo 2 mortos confirmados e feridos prováveis.

- Como consequência desta flagelação as NT sofreram 11 feridos, dos quais 2 morreram antes de serem evacuados e um morreu a caminho do Hospital Militar 2
41.

[Nota do editor LG: Um dos militares que morreu, nesse dia, 5 de maio de 1971, no decurso desta operação, foi o sold at inf, da CCAÇ 12, Ussumane Sissé, nº mec. 82107669; os outros dois eram do Pel Caç Nat 54, sold at  inf Suntum Camará, nº mec. 82047766, e Adi Jop, nº mec. 821 30863; os três foram sepultados em Bambadinca.]

- Foi pedido apoio aéreo, tendo comparecido rapidamente o PCV e cerca de 5 minutos depois compareceu o Helicanhão, mas o IN já havia retirado.

- Como havia feridos no meio da bolanha, o PCV e o Helicanhão, alternando-se, fizeram a segurança das NT até final das evacuações.

- Pelas 11,00 horas terminadas as evacuações, continuou-se a progressão para Sul em direcção à estrada Porto Gole – Enxalé.

- Pelas 13,00 horas foi atingido o ponto de coordenadas (Mamboncó 7I7-31) onde o “Agrupamento Negro” [CCAÇ 12] emboscou,  a fim de fazer a segurança da travessia da bolanha do Rio Malafo, pelo “Agrupamento Verde” [CART 2715] e “Agrupamento Laranja” [CCP 123].

- Entretanto os Agrupamentos Verde  e Laranja, progredindo ao longo da margem direita do Rio Malafo, atingiram a estrada Porto Gole - Enxalé pelas 13,30 horas, de onde continuando por esta, atravessaram a bolanha do Rio Malafo, protegidos pelo PCV e recolhidas pelo “Agrupamento Negro” emboscado na margem oposta (Mamboncó 7I7-31, continuando a progressão para o Enxalé, atingido pelas 15,30 horas, seguidos pelo “Agrupamento Negro”.

- Às 18,00 horas os Agrupamentos cambaram o Rio Geba para o Xime onde ficou “Agrupamento Verde” continuando os outros dois, em meio auto, para Bambadinca onde chegaram pelas 19,30 horas.

- O “Agrupamento Laranja” imediatamente continuou para Nova Lamego, atingida pelas 21,30 horas.

Fonte: Excertos de: História do Batalhão de Artilharia nº 2917  - De 15 de novembro de 1969 a 27 de março de 1972: Capítulo II - Atividade no Terreno Operacional da Guiné (...): Atividade do Inimigo (IN) em 1971: 04 e 05.Maio.71: Operação "Triângulo Vermelho", pp. 73/74.

(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)

(Dispomos de uma versão, em pdf,  policopiada, gentilmente cedida ao nosso blogue pelo ex-fur mil trms inf  José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande; o excerto que hoje se publica consta da versão, em suporte digital, corrigida, aumentada e melhorada pelo Benjamim Durães, igualmente membro da nossa Tabanca Grande.(***)

Provavelmente é da responsabilidade do Benjamim Durães a seguinte informação relativa ao "alferes Mil  Capelão Arsénio Chaves Puim, nº mec. 48092867" : (...) "Apresentação compulsiva no Quartel-General em Bissau em 13/05/71 para ser interrogado pela PIDE/DGS."...

Temos dúvidas sobre a data... o que próprio vai averiguar melhor no seus "papéis"... Ao telefone, o Puim disse-me que o assunto dos prisioneiros, capturados numa quarta-feira, dia 5 de maio de 1971, foi tema da sua homilia de domingo, dia 9... Desmentiu, por outro lado, que tenha sido interrogado pela PIDE (rebatizada DGS, a partir de 24/11/1969), tanto em Bissau, como depois em Lisboa e nos Açores (para onde voltou como padre). (LG)

2. Eu fui lá em 30 de março / 1 de abril de 1970 (Op Tigre Vadio)... No sector L1,  as NT iam uma vez por ano à península de Madina/ Belel,... Já agora transcreve-se alguns excertos do poste P8388 (***):

(9) Março de 1970: Op Tigre Vadio, 300 homens na península de Madina/Belel, no regulado do Cuor

(...) Esta foi seguramente a mais dramática (e talvez a mais temerária) operação conjunta que a CCAÇ 12 efectuou enquanto esteve de intervenção ao Sector L1, às ordens do Comando do BCAÇ 2852. Podia ter dado para o torto...

A missão confiada às NT era bater a  chamada península de Madina/Belel, no limite do regulado do Cuor / princípio do regulado. do Oio, a fim de aniquilar as posições IN referenciadas do antecedente e eventualmente capturar a população que nela vivesse (espalhada por locais como Madina, Quebá Jilã, Belel e Banir, esta localização já no Oio).

Em Madina, localizada em MAMBONCÓ 8G-1, havia uma população sob controlo do IN, estimada em 1500 habitantes. Mais 400, em Banir, cuja localização era em MAMBONCÓ 8H-9 (...).

Segundo as informações de que se dispunha, existiria 1 bigrupo nesta região, pertencente à base do Enxalé e dispondo de 2 Morteiros 60, 1 Metralhadora Pesada Goryonov, além de armas ligeiras (Metr Degtyarev, Esp Kalashnikov, Pist Metr PPSH, etc).

Admitia-se também que este bigrupo estivesse reforçado com 1 grupo de Mort 82, pertencente ao Grupo de Artilharia de Sara-Sarauol [a noroeste de Madina/Belel, vd. carta de Mamboncó].

A última operação com forças terrestres realizara-se em Fevereiro de 1969, não tendo as NT atingido o objectivo devido à fuga do prisioneiro-guia e ao accionamento dum engenho explosivo que alertou o IN. Verificaram-se ainda vários casos de insolação (Op Anda Cá) [Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel ]. (...)
___________

Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 15 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19129: (D)o outro lado do combate (37): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: As intervenções cirúrgicas na base do Sará: fotos do médico holandês Roel Coutinho (Jorge Araújo)


Foto nº 3

Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar]. [P18848].



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, 
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > 
A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE >  AS INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS NA BASE DO SARÁ (FOTOS DO MÉDICO HOLANDÊS ROEL COUTINHO)


(Parte II – Resposta ao P18848) (*)


1. INTRODUÇÃO


Ainda que com algum atraso, o que lamento, a presente narrativa surge na sequência de uma outra relacionada com a temática em título – P18848 – com o objectivo de alargar um pouco mais a reflexão sobre os conteúdos então apresentados. Pretende-se, assim, dar cumprimento à promessa feita no fórum, no sentido de melhor esclarecer as dúvidas suscitadas em cada um dos comentários elaborados pelo auditório, e foram muitos, o que naturalmente agradeço.

São relevante neste caso, por exemplo, os cometários do C. Martins, que aproveito para citar:

"CONFUSÕES… PROPAGANDA [Vd. foto nº 1]

É sabido da grande dificuldade na evacuação de feridos do PAIGC, no interior do território da Guiné. Analisando as fotos nomeadamente a da dita intervenção cirúrgica verifica-se que o cirurgião [médico cubano Dr. António] tem bata cirúrgica e tem luvas, mas não tem máscara facial. O doente está coberto com um lençol do qual se encontra material cirúrgico, supostamente já utilizado.

Suponho que esteja a suturar um ferimento no abdómen. O doente foi anestesiado com anestesia local ou geral? Ninguém em redor tem qualquer preocupação com a assepsia, no mínimo colocarem máscaras faciais, e estarem afastados. Não se vêm quaisquer insectos, sendo a intervenção cirúrgica ao ar livre e no meio da mata, é de estranhar. Não se vê qualquer aparelho para avaliar os sinais vitais, nomeadamente um esfigmomanómetro (medidor de tensão arterial).

Julgo que se o doente não morreu do ferimento… morreu da cura. Como foi esterilizado o material? Segundo as informações que tenho… tentavam evacuar os feridos… só que a esmagadora maioria morria durante o trajecto. O PAIGC tinha hospitais de rectaguarda em Boké, na Guiné Conacri, e em Ziguinchor, no Senegal. Foram efectivamente ajudados por médicos cubanos, e provavelmente alguns estiveram no interior da Guiné, mas a grande maioria só estiveram nos respectivos hospitais já referidos.

É preciso analisar se são factos reais ou se é mera propaganda". AB. C. Martins.


Antes de mais, considero as questões acima identificadas como pertinentes. Aliás, a mesma opinião já a tinha manifestado no comentário escrito a este propósito.(*)

Chegados aqui, convém recordar que a narrativa anterior, tendo por base uma dimensão histórica específica, foi estruturada a partir da triangulação das fontes consultadas, em que grande parte do espaço foi ocupado com imagens seleccionadas de um universo de algumas centenas, do álbum do médico holandês Roel Coutinho, clínico que durante os anos de 1973/1974 cooperou com a estrutura militar do PAIGC no apoio aos actos médicos, quer de combatentes, quer da população sob o seu controlo.

Por isso, acredito que as imagens apresentadas correspondam a "factos reais", todas elas obtidas num contexto de "reportagem fotográfica" de dimensão deontológica, para mais tarde recordar como experiência vivida naquela região e naquela época, e como valor sociocultural e profissional a partilhar ao longo da vida. Adiciona-se, também, o facto do médico Roel Coutinho ter percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, nomeadamente as bases de Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).

Para além das imagens (fotos) terem sido obtidas há quarenta e cinco anos, não entendo o conceito "propaganda" como perspectiva enganosa, mas sim "propaganda" como conjunto de acções específicas para dar a conhecer algo. Estou nesta… por ser este o objectivo das minhas narrativas.


2. TESTEMUNHOS DO MÉDICO DOMINGO DIAZ DELGADO (1966)


Como suporte historiográfico, recordo alguns dos testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n-1936-), referentes à sua passagem pela base do Sará, durante o segundo semestre de 1966, ou seja, sete anos antes das imagens do médico Roel Coutinho.


Diz ele: […] "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. 

De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo [NT]. 

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 1966] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]


Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as principais bases do PAIGC existentes nessa região e os possíveis itinerários até à fronteira com o Senegal de modo a proceder à evacuação dos feridos para o Hospital do PAIGC, em Ziguinchor.


3. TESTEMUNHOS DO MÉDICO ROEL COUTINHO (1973-1974)


Aos depoimentos do médico cubano Domingo Diaz Delgado reportados ao ano de 1966, e referidos no ponto anterior, apresentamos abaixo uma sequência de imagens do espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho] obtido durante os anos de 1973/1974.

Na ordem estabelecida, independentemente da omissão de explicações sobre cada detalhe, creio ser possível encontrar respostas às questões pertinentes apresentadas pelo camarada C. Martins. No global, com a divulgação destas imagens, procura-se satisfazer, igualmente, a curiosidade de todos.

Por último, é justo agradecer ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG, contributos importantes para o esclarecimento possível sobre a prática dos actos médicos em contexto de conflito bélico e como uma visão «do outro lado do combate».




Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974 
[fotos  de 3 a 13]



Foto nº 4

ASC_Leiden_-_Coutinho_Collection_-_18_05_-_Medical_consultation_in_Sara,_Guinea-Bissau_by_a_Cuban_doctor. [Mesa improvisada com medicamentos, …].


Foto nº 5

ASC Leiden - Coutinho Collection - A 01 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Washing hands before operation. [O médico cubano, Dr. António, lavando as mãos antes de uma operação cirúrgica].


Foto nº 6
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 02 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Putting on a surgical gown. [O médico cubano, Dr. António, vestindo a bata cirúrgica].



Foto nº 7
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Preparation of local anesthesia. [O Dr. António preparando a anestesia local].



Foto nº 8
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 05 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Surgical instruments table. [Mesa com instrumentos de cirurgia].


Foto nº 9
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 09 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Local anesthesia. [O Dr. António introduzindo a anestesia local].



Foto nº 10
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 35 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Cuban nurse checks blood pressure. [O enfermeiro cubano Gustavo medindo a pressão sanguínea durante uma operação cirúrgica].


Foto nº 11
ASC Leiden - Coutinho Collection - B 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Operation from distance. [Operação cirúrgica observada à distância].


Foto nº 12

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat. [O médico cubano, Dr. António, durante uma consulta].



Foto nº 13

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - "Waiting room". [População do Sará aguardando pela sua consulta médica].



Nota Final:

Para concluir este texto, quero relevar as preocupações, enquanto médico, do camarada C. Martins. Outra coisa não era de esperar de um profissional que diariamente tem na sua frente, e como principal preocupação deontológica, a segurança dos cuidados de saúde prestados a quem deles precisam.

Outro caso, é a missão dos profissionais de saúde em contexto de guerra, particularmente a do conflito armado que nós, os ex-combatentes, conhecemos há mais de meio século no CTIG. Essa situação não era apenas problemática para a logística das nossas forças armadas. Para o PAIGC, quer gerir recursos que não havia/tinha, materiais e humanos, seria certamente muito mais dramático e doloroso, onde, por essa causa/efeito, a questão do "protocolo clínico" não era possível observar/respeitar.

Não pondo em causa a competência de cada um dos clínicos que decidiram colaborar com os movimentos de libertação, creio que o primeiro objectivo, presente em cada acto, seria "não fazer mal", esforçando-se por reduzir, tanto quanto possível, os efeitos adversos das diferentes práticas de saúde não seguras, onde se incluíam, também, as cirurgias. (**)

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

22OUT2018.

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 25 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19046: (D)o outro lado do combate (36): Bigene, agosto de 1972, «Operação Silenciosa"... (Jorge Araújo)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (852): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)


Guiné > PAIGC > 1971 >  Frentes, bases e "corredores", segundo o Supintrep, nº 31, de junho de 1971, disponibilizado pelo nosso camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA ref . O PAIGC tinha o território dividido nas seguintes frentes: 

(i) Frente São Domingos / Sambuiá; 

(ii) Frente Bafatá-Gabu (Norte); 

(iii) Frente Canchungo-Biambe; 

(iv) Frente Morés-Nhacra;

 (v) Frente Quínara; 

(vi) Frente Xitole-Bafatá; 

(vii) Frente Bafatá-Gabu (Sul); 

(viii) Frente Catió; (ix) Frente Buba-Quitafine... 

Neste mapa também se indicam as principais regiões... Fonte: Supintrep, nº 31, 13 de Fevereiro de 1971.

Imagem: © A. Marques Lopes (2008). Todos os direitos reservados (*)


Hedelberto López Blanch - Histórias secretas de médicos cubanos.  La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005. 248 pp. 

[Prémio Memoria 2001. Prólogo de Piero Gleijeses. Ediciones La Memoria, Colección Coloquios y testimonios].  [La edición de este volumen ha sido financiada por el Fondo para el Desarrollo de la Educación y la Cultura.] [Consult em 31 de maio de 2016]. Djisponível aqui, em formato pdf, no sítio do Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, Havana, Cuba.

O autor é jornalista e escritor, nascido em Havana, em 1947. É ainda autor de outros trabalhos de investigação como  "La emigracion cubana en Estados Unidos: Descorriendo mamparas" (edição espanhol, 1998), disponível na Amazon,com



1. Segunda parte das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo, e enviadas a 22 do corrente. Trata-se de um extenso documento, que vai ter que ser publicado em diversas partes, tendo em conta o formato e as limitações do blogue

Sobre o grã-tabanqueiro Jorge Araújo, aqui fica uma pequena nota biográfica, para "refrescarmos" o seu CV mal conhecido da maior parte dos nossos leitores

(i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto.

Na sequência do 1.º fragmento publicado no P16224 (**), eis a continuação do relato de algumas das memórias [experiências] vividas na primeira pessoa por três médios cubanos na então  Guiné portuguesa (hoje, Guiné-Bissau), onde se identificam as motivações que os levaram a optar por um dos lados do combate, daí o título que dei a este meu trabalho.

Recordo que o conteúdo de cada texto resulta da tradução original em castelhano (espanhol) das entrevistas publicadas no livro escrito pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos», que achei interessante partilhar convosco, relembrando que na linha do tempo essas memórias estão a uma distância de meio século. É isso também que nós continuamos a fazer.

A sua tradução procurou ser o mais fiel possível das ideias expressas pelos diferentes protagonistas, que ficou mais facilitada pela condição de veterano dessa guerra no CTIGuiné.

Porque se trata de uma tradução,  não fazei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos, apenas colocando entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento histórico ao que foi transmitido incluindo imagens desse contexto retiradas da Net. (ou dos arquivos do nosso blogue).

No caso da Guiné, são três os entrevistados, por esta ordem: (i) o médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado; (ii) o médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia, Amado Alfonso Delgado;  e (iii) o médico militar, especialista em cirurgia geral, Virgílio Camacho Duverger. 

Esta será a segunda parte da entrevista ao primeiro médico, o cirurgião Domingo Diaz, sendo que as ocorrências relatadas datam do ano de 1966, ou seja, três anos após o início do conflito. (JA)


2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO - Parte II 

Sumariando as questões colocadas no 1.º fragmento publicado no poste acima indicado, é de relevar que foi com vinte e nove anos de idade e recém-graduado como cirurgião [em finais de 1965], que Domingo Diz Delgado, depois de ter preenchido um formulário solicitando a sua incorporação como internacionalista em qualquer movimento de libertação, recebeu a notificação de que iria para a Guiné-Bissau (, na altura território sob administração portuguesa),  para se integrar na fileiras do PAIGC, como médico.

Após ter concluído o treino físico e militar no acampamento Peti 1, em Pinar del Rio, Domingo Diaz embarca pela calada da noite em 21 de maio de 1966, na companhia de mais dois médicos e outros seis cubanos, com destino à República da Guiné, chegando dezasseis dias depois a Conacri [6 de junho de 1966]. 

Aí chegado, foi recebido por Amílcar Cabral (1924-1973), com quem manteve contactos permanentes durante o tempo em que lá permaneceu: cerca de um mês. Por ter sido nomeado para a Zona Norte, seguiu por via aérea para Dacar a fim de rumar a Zinguinchor, com a viagem de carro a ser feita na companhia de Luís Cabral (1931-2009).

Transposta a fronteira entre as duas Guinés, o primeiro percurso tinha como destino a base de Sambuia [, Zambulla, na versão original...], tendo sido realizado em cinco horas, e com a caminhada a ter deixado os seus pés muito mal tratados, face à inexperiência daquele contexto. 

No dia seguinte nova etapa até à base de Maqué [no Olossato,  Morés, ?], que incluía a travessia do rio Farim em canoas. 

Ao terceiro dia, com os pés cada vez em pior estado, nova caminhada até a base de Morés, alimentando-se do que encontrava pelo caminho, incluindo água. Depois de um dia de descanso nesta terceira base, seguiu-se a última etapa até à base de Sará, aonde chegou no início do segundo semestre de 1966, 

Domingo Diaz aí permaneceu durante seis meses [de julho a dezembro de 1966], na companhia de outros dois médicos cubanos do seu grupo, que entretanto haviam chegado mais cedo, por terem viajado de avião: o ortopedista Teudi Ojeda e o clínico geral Pedro Labarrere. Os três foram os únicos que naquele tempo estiveram na Zona Norte.

Procurando descrever o itinerário realizado pelo médico Domingo Diaz [linha azul no mapa acima], comparando-o com o que foi divulgado cinco anos depois na Suprintrep n.º 31, de 13 de fevereiro de 1971 [P2787 (A. Marques Lopes)], um documento classificado na época como reservado e elaborado pelo gabinete do Comandante-Chefe, verifica-se não existirem diferenças significativas, apenas não constando a referência à base de Maqué, pela discrição situada entre Sambuiá e Morés [P3258] (*).

Para uma melhor identificação geográfica dos itinerários, também designados por “corredores” ligando as diferentes bases do PAIGC, aproveitámos o já publicado pelo camarada A. Marques Lopes neste blogue [P3258] (*), com a devida vénia, reproduzindo o que a este propósito consta no documento oficial  [Vd,, gráfico acima].

Continuação da entrevista com Diaz Delgado (no documento em pdf, a que tivemos acesso, as páginas não estão numeradas. mas o total da entrevista corresponde, no pdf, ao cap X (pp. 65/78).  O Diaz Delgado regressou a Cuba em janeiro de 1968. As notas em parênteses retos são da nossa responsabilidade. 



(vi)  Como entrou na Guiné-Bissau 
e que zona lhe destinaram? 

Nessa época, a Guiné [, hoje Guiné-Bissau] tinha três zonas guerrilheiras, que eram o Norte, o Sul e o Leste (a esta também a chamavam de Madina do Boé, por estar ali um quartel português com esse nome e que era o mais importante da região). Eram zonas guerrilheiras aonde se combatia bastante para as possibilidades que tinham.

Do nosso grupo, muitos foram para o sul, outros para o Leste e a mim me designaram para ir como cirurgião para o Norte. O que aconteceu foi que da Guiné-Conacri não se podia ir directamente para o norte da Guiné -Bissau, mas que havia de dar uma volta pelo leste da Guiné-Conacri, em camiões, e atravessar parte do território senegalês, país que faz fronteira a norte com a Guiné-Bissau e que não era muito amigo dos guerrilheiros e não permitia a entrada de cubanos no seu território.

Portanto, face à cor branca da minha pele não podia fazer a viagem por terra. Então fizeram-me um passaporte que não era, de facto, mas que funcionava como tal. Era um cartão de militante do PAIGC, com nome falso, aonde constava ser natural da Praia, uma ilha de Cabo Verde, e com esse documento fiz um voo, acompanhado de dois guerrilheiros guineenses, até à capital do Senegal, Dacar.

Quando chegámos ao aeroporto tive um problema, pois os fiscais não entendiam aquilo do cartão como passaporte, e os dois companheiros que me acompanharam não o sabiam explicar. De maneira que tive de dar um empurrão ao torniquete que existia no aeroporto e sair até ao carro donde me estava acenando a companheira Lilica Cabral [ou Boal ?], secretária de Amílcar Cabral, e que tinha escritório em Dacar.

Apesar de que o Senegal não apoiava esse movimento, permitia-lhe ter escritórios. Mas também já estavam a par de que havia cubanos nessa guerrilha e tratavam de os detectar. Lilica levou-me a sua casa, aonde permaneci três ou quatro dias até que me dão a conhecer um desertor do exército português, de nome José Augusto e me apresentam como admirador do Movimento e que queria participar na guerrilha contra o seu governo.

[Este alegado desertor do exército português seria o 1º cabo nº 3426/64, José Augusto Teixeira Mourão: vd. Arquivo Amílcar Cabral, pasta 04606.045.134; assunto: Solicita autorização junto das autoridades de Conakry para enviar dois desertores do exército português para Argel. Vd. aqui documento original. em francês].

A este ex-militar deram-lhe  numerosos detalhes e dizem-lhe que sou cubano. Desde aquele momento não fiquei tranquilo e pedi que me mudassem de casa, pois não confiava naquele homem. Mudam-me para outra moradia, onde fiquei mais um dia.

Dali, por terra, percorremos quatrocentos quilómetros, que é a distância aproximada entre Dacar e Ziguinchor, uma povoação do Senegal perto da fronteira com a Guiné. Nesse trajecto tivemos que atravessar um rio e uma faixa de dez quilómetros de largura de outro país denominado Gâmbia.

Quem me levou até Ziguinchor foi Luís Cabral, o irmão de Amílcar Cabral, num Peugeot 400. Cheguei a esse lugar, onde permaneci dois ou três dias. Encontrei-me com os chefes militares mais importantes que actuavam no norte da Guiné,, porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera.

Reuni-me com o chefe da Frente Norte, Osvaldo Vieira [1938-1974], e outros. Despediram-se de mim e saí com um grupo de combatentes guineenses. Ao chegar à fronteira, parte do colectivo ficou comigo e outra parte permaneceu na povoação de Yiriban, do lado do Senegal.


(vii) Como contava o tempo 
nos trajectos?


Chegámos pela noite à base de Maqué. Nesta região o tempo não se conta pelo relógio, mas pela distância, ou seja, um dia a andar, meio-dia a andar, dois dias a andar, são dois dias para chegar a um lugar. Quando cheguei à segunda base guerrilheira, levava dois dias a andar e estava bastante mal. Deram-me um líquido constituído por uma espécie de leite condensado com água, mas muito quente, e recordo-me perfeitamente que o tomei e caí redondo, não sem antes me ter assustado um pouco, pois quando me dei conta, senti um ruído, um som muito grande que se estava a aproximar, e que era um aguaceiro que parecia um ciclone. Depois acostumei-me, porque não são os aguaceiros a que estamos habituados em Cuba, é outro tipo de som e de força.

No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Ali, algum tempo antes, a aviação inimiga tinha bombardeado e metralhado esse lugar, e era possível ver os sinais dos destroços. 

A guerrilha tinha cometido o erro de disparar com as suas antiaéreas contra  dois aviões B-26 [ou T-6?  Não creio que tenha havido B-26 a operar na Guiné, em Angola, sim, a partir de 1972...] que sobrevoavam a zona e dessa forma detectaram a sua posição. Dois ou três dias depois veio a aviação e destruiu a base. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará.


Guiné > Mapa geral da província > 1961 > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Sará e outras bases do PAIGC na região do Oio (a azul) e algumas das principais localidades, em redor (a vermelho) onde em 1966/68 havia tropas nossas....

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


(viii) Em que sítio se encontrava 
essa base?

A base de Sará estava praticamente no centro do território e perto da capital, Bissau, onde pela noite se ouvia a música que chegava de lá. Bissau, a capital, não a conheci, mas segundo me contaram, apesar da pobreza do país, era uma cidade muito bonita, com muitas praias, bares e música. [De Sará, a sul do Oio, até a Bissau, em linha reta devem ser 65 /70 km!... Bafatá, a leste, ficava mais próximo, a c. 40 km].

Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo estivemos na Zona Norte.

Chegado a essa base, estava-se a preparar um ataque a Bissau, não para tomar a cidade, nem pouco mais ou menos, mas para manter sempre as autoridades em tensão. Essa acção foi dirigida pelo chefe da segurança do território norte, o cabo-verdiano Irénio do Nascimento. Também participou neste ataque um dos fundadores da guerrilha, e que tinha participado no primeiro ataque que se realizou no início [Tite], e que se chamava Malán Sanhá.

De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [, com o Sengeal, a norte] e não era fácil transportar coisas para lá. Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo.

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base.


(ix) Tinham enfermeiros 
cubanos?

Éramos só os três médicos e não havia nenhum enfermeiro cubano. Ao ir conhecendo o meio e as situações que se apresentavam, pedimos que nos enviassem esses técnicos de saúde, pois nos eram indispensáveis pelas condições de trabalho.

Entretanto, desde o princípio começámos a formar enfermeiros guineenses. Cederam-nos um grupo de rapazes e raparigas para os treinar. Organizámos um curso durante dois meses e esse pessoal foi distribuído por diversas zonas. Uma parte deles ficou connosco.

(x) Como foram as relações 
com os enfermeiros?

Naquelas condições de vida, não fazes muitas relações, mantendo estreita afinidade só com os companheiros que conheces. Desses enfermeiros guardamos uma recordação indelével. No meu caso particular, ao regressar a Cuba, pude trazer quatro deles com a autorização de Amílcar Cabral, e se graduaram em enfermagem no Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay [fundado em 1943, com o objectivo de prestar apoio médico a militares do exército constitucional de Cuba].



(xi) Atendia também 
a população?

Médico cubano [, Diaz Delgado ?] prestando cuidados de saúde
em zona controlada pelo PAIGC. S/l, s/d. [c. 1966/68].
Foto do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação
 Mário Soares.  Com a devida vénia... Ver aqui o original.
Com poucas semanas de estar em Sará, a população vinha-nos visitar assiduamente, não para resolver problemas das feridas de guerra, mas de outras doenças.

Nessa zona são muito frequentes as hérnias abdominais, umbilicais, inguinais, e como forma de ir ganhando a confiança da população, realizei várias intervenções cirúrgicas deste tipo, que são relativamente fáceis.

Tive a sorte de todos os casos evoluírem muito bem, sem infecção, e se algum se complicava, com um pouco de antibiótico o resolvia. Os naturais eram muito sensíveis pois estavam virgens, nunca tinham tomado antibióticos e qualquer medicamento que eu lhes dava os assimilavam perfeitamente.

Para mim o principal trabalho em Sará, durante esses meses, foi a extração de dentes, cinco ou seis por dia, pois ninguém o fazia na região. Tenho um caderno onde registei a quantidade de pessoas que tratei, incluindo o português desertor que me apresentaram em Dacar, que depois se confirmou tratar-se de um agente da Inteligência portuguesa. Esse homem permaneceu preso no Norte da Guiné, convivendo connosco nesse acampamento.

Naquela base vinham-nos visitar constantemente elementos da população que depois, noutras ocasiões, faziam circular a informação da nossa presença, que chegava aos ouvidos dos portugueses. Para nossa segurança e a dos enfermeiros, mudámos o hospital para um lugar secreto com uma pequena porta e sem acesso à população. Éramos nós que nos deslocávamos à base para observar os pacientes, e dessa forma não sabiam onde estávamos instalados. Nos primeiros meses foi quando mais atendi os civis, pois estava fixo no acampamento.


Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > CART 1744 (1967/69) > Tabanca ao fundo e instalações do quartel em primeiro plano e no lado direito.

Foto (e legenda): © José Salvado (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(xii) Depois do Sará 
aonde foi colocado?

Como era cirurgião, foi determinado que para prestar melhor atenção aos combatentes, não permaneceria naquele lugar, e que passava a andar integrado num chamado bigrupo, constituído por setenta e dois elementos, com determinado armamento, os quais realizavam ataques de surpresa em vários sítios.

O chefe desse bigrupo era um comandante guineense de nome Julián [?]. Para chegar até eles tive que cruzar a fronteira, entrar no Senegal até à povoação de Ziguinchor e regressar de novo à Guiné, pela zona de São Domingos, onde existiam uma base guerrilheira e um quartel português com os mesmos nomes.[Em Ziguinchor «, o PAIGC tinha um hospital no qual trabalhou o dr.  Manuel Boal,  português,  natural de Angola, que saiu em 1961 para se juntar aos movimentos nacionalistas, casado com  Lilica Boal (Maria da Luz Boal), nascida em Tarrafal, Santiago, Cabo Verde].

Desta forma, comecei a acompanhar com eles e tive a oportunidade, sem combater, de estar presente em vários ataques. O primeiro foi contra o quartel de São Domingos. O posto médico foi instalado perto daquele lugar. O chefe militar dizia-me, sempre, para não me aproximar muito, pois ficávamos sem enfermeiros e sem mim, e acabava-se o serviço médico.

Esta acção foi importante por três motivos: o ataque foi muito forte resultando em vitória; ficou demonstrado que a guerrilha estava em condições de destruir bases dos portugueses. O objectivo era criar desorientação, acabar com a sua segurança que, até ao momento, estavam habituados a serem os atacantes, e não receber contra-ataque. 

Os ataques às bases começaram com a chegada dos instrutores cubanos à Guiné, que para além de participarem como artilheiros nos combates, treinaram os guerrilheiros no manejo das armas pesadas. Os guerrilheiros realizavam as acções, destruíam o quartel ou uma parte, e retiravam-se. Nunca tentaram conquistá-lo, pois era uma guerra de guerrilha.

Terminada esta operação, depois de ter estado cerca de vinte dias com o bigrupo, os chefes guerrilheiros decidiram para minha maior segurança que deveria cruzar outra vez a fronteira para uma zona pré-determinada e geograficamente mais acessível, até à população senegalesa de Ziguinchor. Isto o tive que fazer várias vezes para chegar à zona de São Domingos, onde se encontrava a base operacional do bigrupo e donde se saía para realizar as acções de combate. Os guerrilheiros guineenses regressavam por diferentes itinerários a esse lugar.


(xiii) Saiu sozinho?

Comigo saíram alguns instrutores cubanos, entre eles Alfonso Pérez Morales (Pina), que era o chefe dos cubanos na Frente Norte. Durante o regresso a São Domingos, realiza-se um ataque ao quartel de Guidaje [, no original, Guilelle, só pode ser gralha: não podia ser  Guileje, que fica no sul, região de Tombali], que foi mais violento que o anterior. Do nosso lado tivemos três feridos. A um deles prestei os primeiros socorros, seguindo com os outros dois. Nessa altura já tinha estado em quase todas as bases guerrilheiras do Norte: Liador, Naga, Maqué, Sará, Morés, Sambuia, realizando todos esses percursos a pé.

Com os feridos não foi possível chegar à base, pois parámos numa zona segura, porque os portugueses tinham quarteis nas áreas onde podíamos fazer a retirada. Quando começavam os ataques, os portugueses metiam-se nos abrigos e quando estes acabavam, sabiam que era a nossa retirada, começando a bater as diferentes zonas por onde poderíamos retirar.

Não era, por isso, muito seguro permanecer na zona, havia que retirar o mais rápido possível. Quando descansámos o suficiente, já tranquilos e sem correr tanto perigo, podemos tratar dos feridos. Um dos homens apresentava uma lesão no músculo, a qual resolvi, a outra situação era mais difícil porque ele tinha sido ferido no pescoço, onde o estilhaço tinha perfurado a traqueia, levantando-se a dúvida de que poderia ter entrado no brônquio e danificado alguma artéria posterior. Fiz-lhe uma traqueotomia no mesmo buraco, onde coloquei um penso, antibióticos e procurei evacuá-lo tão rápido quanto possível, uma vez que estávamos perto da fronteira. Este esforço não deu resultado, pois o ferido veio a morrer com uma hemorragia aguda. Parece que teve uma lesão de um vaso pulmonar e ali não tínhamos possibilidades de fazer placas nem algo que pudesse determinar as consequências da ferida.


(xiv) O que comiam?

Eu tinha que comer o mesmo que eles. A comida era uma vez por dia, pela noite. Numa terrina colocávamos um pouco de arroz com alguns pedaços de carne, ou ossos, e que em algumas situações se passavam entre nós para os chuparmos e, por conseguinte, tudo era feito com as mãos, pois não havia talheres. 

De manhã apanhávamos algum tipo de folhas, e se era de laranja, melhor. Aquecíamos água e mergulhávamos as folhinhas, e isso foi o que tomávamos durante muito tempo. No Norte não havia feijões nem nada, já no Leste tínhamos feijões, mas eram tantos que chegou o momento em que um companheiro só de olhar para um feijão logo vomitava.

Também dependíamos do que se caçava. Tínhamos espingardas de cartuxo. Desenvolvi uma boa pontaria, tanto com a de cartuxo como com a de calibre 22. Às vezes davam-me cartuxos para ir caçar. O que mais matava eram chocas, uma espécie de codorniz ou perdiz, iguais às de Cuba, que tinham uns bons peitos. 

Nestas andanças saía com o chefe guerrilheiro da base de Sará,  Joaquim Furtado, que foi guia de caçadores antes de ser incorporado na luta, e ensinou-me bastante sobre as tácticas que utilizam para caçar gazelas, cabras do mato e outros animais. Furtado, mais tarte, foi ferido na coluna e ficou paraplégico.


(xv) Notícias de Cuba?

A primeira notícia que recebi relacionada com Cuba foi depois de oito meses de estar na guerrilha, no Norte. Foi uma mensagem do chefe da missão, escrita em papel de guardanapo, na qual me informava de algumas coisas. Ao interior não me chegavam cartas, as primeiras foram quando rumei a Conacri [, em março de 1967, evacuado por paludismo]. Ainda guardo a que me escreveu a minha filha mais pequena e que me fez sentir o homem mais feliz do mundo.



Foto da carta da filha do dr. Diaz Delgado (anexa ao livro de H. L. Blanch)


( xvi) Tem outras memórias da estadia em Sará?


Um dia, pela madrugada, chegou à nossa tabanca (assim se chamam as aldeias ali, nas quais existem várias construções que podem ser 7, 8 ou 10) um miúdo que se chamava Kumba [, foto à esquerda, da autoria de Diaz  Delgado, anexa ao pdf], com aproximadamente quatro anos. 

Estava em boas condições gerais, mas com uma grande ferida na perna direita onde se tinha lesionado, vendo-se o osso e as artérias, pois foi na face anterior. Impressionou-me o estado anímico em que chegou, com naturalidade, sem uma lágrima, nem um sinal de dor.

Umas duas horas antes tínhamos sentido o barulho dos disparos a cerca de três quilómetros onde nos encontrávamos. Foi um assalto de surpresa a uma aldeia totalmente desprotegida, aonde não existiam guerrilheiros e praticamente foi arrasada pelos portugueses. Por sorte esta criança foi resgatada e levada ao nosso rústico hospitalito [este diminutivo quererá dizer: posto médico ou enfermaria].

Foi tratada pelo ortopedista Teudi Ojeda e por mim. Lavamos-lhe a ferida que estava muito suja e a saturamos parcialmente, pois não queríamos provocar complicações como por exemplo uma gangrena que poderia surgir no futuro. Durante o tratamento sem anestesia, Kumba manteve-se igual, sem uma lágrima e sem manifestar dor. A esta situação já nos tínhamos habituado,  particularmente na população adulta.

(Continua)

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3. Nota do editor LG:

Jorge: Fica extenso este poste, mas vamos ver... A malta está a habituar.-se à linguagem telegráfica do Facebook, já não tem pachorra (nem tempo) para postes com muita uva e pouca parra... Ora a uva é para se saborear, comer devagar, bago a bago... Os tempos hoje são do pudim instantâneo...

Ironia à parte, é bom chamar a atenção para a entrevista do dr. Diaz Delgado, hoje professor universitário reformado, que deve andar na casa dos 80 anos, se for vivo, como eu espero.

Há um ou outro lapso do autor: os feridos que ele tratou (resposta à  questão nº 13) não podiam ser de Guileje [, Guilelle, no original], que fica no sul, o homem estava na Frente Norte, no Morés e em Sará, a  sudeste de Mansabá... Fez seguramente confusão com Guidaje, ele ou o entrevistador... Sabemos que,  por volta de março de 1967, adoeceu e teve que ser ser tratado em Conacri... Os médicos, mesmo cubanos, mesmo internacionalistas, também adoeciam na Guiné... Aliás, os cubanos não se davam bem com o clima daquela terra... No regresso, será colocado na zona leste, região do Boé...

Por outro lado, era pouco provável em Sará a ouvir a música das discotecas de Bissau... a 65/70 km, de distância em linha reta... Bafatá, a leste, ficava mais perto (c. 40 km)... E mais perto ainda, Bambadinca, a sudeste... Eu,  em Bambadinca, era  capaz de ouvir bombardeamentos dos Fiat G-91 contra Sará ou Sinchã Jobel, mas mais do que isso era difícil... Música de discoteca, mesmo com altas colunas, de Bissau a Sará,  é óbvio que são fantasias do nosso dr. Diaz Delgado, um jovem médico com sangue na guelra e capaz de pecar como qualquer um de nós... . No fundo, o que ele queria dizer é que Sará, por manifesto erro de cálculo,  estava às portas de Bissau (que ele gostaria porventura  de ter conhecido como anónimo "turista")...

Mas no geral, parece-me um depoimento "limpo", sem grandes tiradas demagógicas ou vieses propagandísticos... Não se escondem os desaires e as dificuldades tremendas da guerrilha e da população que vive sob a "proteção" da guerrilha... A começar pela segurança e os cuidados de saúde...

O tal desertor português de que ele fala é mesmo o Mourão... E é muito pouco provável que fosse agente de PIDE... Em 1967 0 Mourão terá seguido, com outro desertor, para Argel... Enfim, outra fantasia (ou fantasma) do dr. Diaz Delgado.

Tive há anos (, em 2000/2002) um aluno cubano, médico, que também combateu em Angola e na Etiópia ou Eritreia (, se não erro)... Era cirurgião plástico e arranjou... uma portuguesa como companheira... Gonzalez Acosta, se bem me lembro, era o seu apelido... Era "crioulo", com traços de "índio"...  Deve estar agora por aí em Portugal,  a labutar pela vida... .

São pessoas generosas, mas pouco críticas...Apesar de uma boa relação professor-aluno, nunca lhe consegui arrancar muitas palavras sobre a sua experiência de guerra em África e muito menos sobre o regime de Fidel Castro... (Ele frequentou mas não acabou o curso de medicina do trabalho na Escola Nacional de Saúde Pública).

A "formatação" ideológica (política, religiosa, militar...) é uma coisa tramada... Para mais numa situação-limite como a guerra em que se tem de tomar partido e ter mentalidade vencedora (ou "predadora")... Jorge, foste "ranger", sabes o que é isso, da "formatação" do combatente de elite ...

Também conheço o lado oposto, um outro médico cubano, opositor do regime, antigo colega do meu filho no Hospital Amadora Sintra, também cirurgião, se não erro, e casado com uma portuguesa... Seu nome (, pelo menos literário), Miguel Pinto, com ascendência portuguesa. (Esquecemo-nos de que Cuba também foi, no passado, um destino de emigração para alguns portugueses, do Minho e de Trás-os-Montes, talvez por influência da Galiza; L Fidel Castro, como se sabe, é de ascendência galega)...

O Miguel Pinto é um escritor de talento, com livros de ficção em português, editados em Portugal, mas muito marcado pela experiência de prisão, oposição e desterro... O seu primeiro  livro,  de inspiração autobiográfica, e que ainda não  li, mas quero ler, chama-se "O ano em que devia morrer" (Edição: Sopa de Letras, 2008, 272 pp).

Mas voltando ao "nosso" dr. Diaz Delgado, a sua entrevista é um documento humano notável, apesar de tudo... Espero que os nossos camaradas saibam-no ler, com distanciamento crítico, sem paixões exacerbadas, e sobretudo saibam-no ler nas entrelinhas... É preciso saber ler nas entrelinhas as palavras escritas dos homens, portugueses, cubanos, guineenses, não importa donde... E ninguém tem o monopólio da humanidade nem da verdade!!

O Blanch, o autor do livro,  deve ser um jornalista "alinhado" com o regime... é bom não esquecê-lo. Peel menos na época... Como era o nosso Amândio Césart (1921-1987) que escreveu páginas exaltantes sobre a nossa "guerra do ultramar"...

As perguntas do escritor são "politicamente" corretas", as respostas do entrevistado parecem-me mais espontâneas e autênticas... Mas o homem, o médico, o internacionalista, o cubano, não podia contar tudo... Pelo menos em 2005... Hoje Cuba está a passar por um período de maior abertura ao exterior e  isso também é uma oportunidade que todos devemos aproveitar... Também nós, ex-combatentes na Guiné, "ainda não abrimos o livro todo"... E a prova disso é já a "antiguidade" deste blogue: mais de 12 anos na Net é obra!...

O pdf (do livro do Hedelberto López Blanch)  não está paginado... Deve ser uma versão preliminar do livro a que o Jorge Araújo teve acesso, e que de resto está disponível "on line", no original, em castelhano... As fotos vêm no fim, o que não é normal num livro em papel...
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