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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É o término da viagem memorial de um Capitão de Abril que escolheu um longo itinerário e não hesitou em dizer-nos como levou uma vida pautada por decisões de risco e pela independência de pensamento. Tenho sérias dúvidas que algo parecido possa surgir tão cedo à volta deste meio século que abarca o fim do império e as sinuosidades que têm atravessado o nosso sistema democrático.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (3)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. 

É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Cumpriu três missões em Angola, Moçambique e Guiné, louvado e condecorado, preparou uma companhia de Comandos de que foi seu comandante, o cenário de Moçambique foi determinante para ele questionar a fundo o mais que havia para além da honra e do dever, para além da vasta panóplia de requisitos que impõem a vida militar, vai numa operação em que o guia é um negro que promete levá-los a um objetivo, vai amarrado a um dos seus homens, uma inquietação sem limites começa a tomar-lhe a razão, que causa o ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o seu comando? Que causas justificava a presença de cada um deles naquele palco? 

Tomou nota de que operações como a Nó Górdio nada resolviam, revolvia-se um território, a guerrilha e a população civil acoitavam-se até a operação passar, tudo voltava ao princípio, se bem que a comunicação social afeta ao regime louvaminhasse o feito, era a política da representação.

Geração D é um singularíssimo livro de memórias, já se disse o que este militar viveu até ao 25 de Abril e como ele, e muitos dos seus camaradas tiveram a possibilidade de ver na Guiné que se caminhava para uma hecatombe, tudo iria redundar num bode expiatório, seriam os militares os maus da fita, resolvido o incómodo da Guiné, julgavam os avatares no Estado Novo, todos os meios iam ser postos à disposição das joias imperiais, Angola e Moçambique, contava-se com o auxílio da África do Sul e da Rodésia. 

Matos Gomes adere ao 25 de Abril, alista-se na esquerda revolucionária, põe ênfase na relação que estabelecera com Jaime Neves e como seguiram vias separadas. Detalha o verão quente, as manobras, as alianças, os documentos, a ação de Otelo, o papel do COPCON, a mestria de Costa Gomes de gerir as fações, a impor o acatamento, recorda também como os paraquedistas voltaram a ser traídos.

Findo o 25 de novembro, Matos Gomes está suspenso, aguarda ser chamado ao Conselho Superior de Disciplina do Exército, é convocado e conta-nos o que aconteceu:

“O general promotor leu a acusação com fraco entusiasmo. Formalmente era acusado de ter assinado um documento, o mais comum dos crimes na altura. Entreguei um passaporte que revelava, através dos carimbos das alfândegas, que naquela data me encontrava na Alemanha. Recebera um telefonema de um dos signatários a perguntar se subscrevia mais este documento. Claro que sim. Estávamos do mesmo lado da barricada. 

Também era acusado pelo novo Chefe do Estado-Maior de ter assinado um outro, num encontro no Regimento de Polícia Militar, resultante de uma reunião determinada por Otelo Saraiva de Carvalho, na qualidade de comandante do COPCON. Entreguei aos generais uma ordem de serviço do Hospital Militar onde constava o meu nome e o do Chefe do Estado-Maior, então major e ainda meu contemporâneo na Academia Militar. 

Face a estes factos, concluía pela má-fé do Chefe do Estado-Maior e pedia para constar na ata do julgamento a minha queixa formal contra ele. De seguida, o general presidente deu-me a palavra. Tratava-se do julgamento político de um conflito entre defensores de opções políticas para a sociedade, e a disciplina não é, ou não devia ser, utilizada para esse fim. Estava à mercê da força e não do direito, menos ainda da disciplina. 

O general presidente deu a sessão por encerrada, mas antes do Conselho pedir para eu me retirar, a fim de deliberar, o General Leão Correia, a olhar para o meu uniforme cinzento sem uma condecoração ou emblema, limpo, perguntou-me por que não trazia as fitas com as duas cruzes de guerra com que fora agraciado. Apresentei as razões que me levaram a não usar condecorações: a primeira das cruzes de guerra havia-me sido imposta em Bissau, por um General Comandante-Chefe, Spínola, perante forças em parada, comandadas por um coronel, também ele condecorado. A segunda fora-me entregue há uns meses na secretaria da Direção de Arma de Cavalaria pelo Sargento Leitão, dentro de um envelope, como se fossem umas peúgas. ‘Ora, como não sei se foi a primeira a forma correta de ter sido condecorado, ou a segunda, para não ofender o Exército, decidi não usar condecorações até que seja esclarecido.’ 

O veredito do Conselho reconheceu-me idoneidade para continuar a ser oficial do Exército.”

Matos Gomes é mandado apresentar-se no Serviço Prisional Militar, com sede no edifício da PIDE/DGS, torna-se carcereiro, estão ali algumas figuras graúdas da PIDE. Procura aprofundar o que aconteceu após o 25 de novembro de 1975. Fez 30 anos, tinha uma casa, uma mulher e uma filha com 1 ano, houve eleições legislativas e autárquicas, a cena política internacional transfigurava-se, por cá vivia-se aconchegado com a normalidade democrática, as coisas não corriam favoravelmente às ex-colónias portuguesas. 

Exara nas suas memórias o poder sugestivo que lhe deixou ter-se envolvido no poder popular. Acompanhou Otelo em parte da sua caminhada, era um ser estranho entre aquelas organizações, não era marxista-leninista, revela o seu quadro de pensamento: 

“Rejeito a luta de classes como o princípio dominante das transformações políticas, entendo-a apenas como mais um, e não o determinante. A propósito desse elemento determinante, nunca soube nem procurei descobrir qual é a gota de água que faz transbordar o copo, mas assisti a intermináveis discussões teológicas com muito fumo e fé sobre o assunto. 

Também não perfilhava o princípio da necessidade histórica da alteração das relações de poder ser liderada pela vanguarda do proletariado, pelo partido. Nem era adepto de uma ditadura do proletariado, que ofendia a minha liberdade, a ideia de igualdade dos seres humanos, independentemente da posição que ocupam no processo de trabalho, e contrariava a realização das ditaduras do proletariado estabelecidas.” 

Afastar-se-á das Forças Populares 25 de Abril quando surgiu a radicalização da violência armada.

Lançou-se na escrita, louva o seu quadro de amigos, exulta com a camaradagem que pode manter com um punhado de militares. E a viagem prossegue. 

Quem escreve estas memórias singularíssimas, quem continua a intervir ativamente como observador atento e com opiniões aceradas, é o mesmo escritor que nos legou Nó Cego, Soldadó ou A Última Viúva de África

Há que saudar quem coligiu este punhado de anotações tão íntimas que vão da ditadura à democracia e dizer sem hesitações que não há nada parecido na literatura portuguesa, pois é o testemunho de um bravo militar, um capitão do MFA, alguém que foi revolucionário e nos doou a mais bela joia da literatura da guerra colonial, como se afirmasse, ponto por ponto, que a sua coerência e postura política não estão à venda.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24688: Notas de leitura (1618): "A Guerra de Moçambique 1964-1974", por Francisco Proença Garcia; Coleção Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal, edição da Quidnovi, 2010 (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
A Coleção Guerra e Campanhas Militares da História de Portugal, da Quidnovi, constituiu um meritório esforço coletivo que abarcou, como é óbvio, os três teatros africanos no limite do império. Coube ao general Francisco Proença Garcia a redação da sinopse da guerra de Moçambique, e o autor dá-nos satisfatoriamente a relação dos pontos capitais, desde a génese do independentismo na região, passando pelo confronto pelo independentismo e as autoridades portuguesas, esquematizando uma manobra político-diplomática, militar, psicológica, socioeconómica e de informações. Nas conclusões, o autor escreve: "A manobra militar visava ganhar tempo para a solução política e permitia ao mesmo tempo a criação de um ambiente mais seguro para que a manobra socioeconómica de conquista dos corações e das mentes se concretizasse. Esta estratégia só foi possível com o apoio de uma manobra de informações que não visava apoiar apenas a manobra militar, trabalhando também em prol das outras manobras, destacando-se o estudo das populações. Porém, o sistema internacional mudará e não acolheu o modelo pretendido por Portugal. Dominaram os fatores exógenos, que não deixaram de agir até hoje. Esgotada que estava a capacidade de resposta portuguesa, a decisão do fim do império acabou por ser do aparelho militar".

Um abraço do
Mário



A Guerra de Moçambique 1964-1974, por Francisco Proença Garcia

Mário Beja Santos

Sinopse da obra, de acordo com o autor:
“De acordo com os seus próprios estatutos, a FRELIMO tinha por objetivo a liquidação total da dominação colonial portuguesa e de todos os vestígios do colonialismo e do imperialismo, a conquista da independência imediata e completa de Moçambique e a defesa e realização das reivindicações de todos os moçambicanos explorados e oprimidos pelo regime colonial português. A argumentação da FRELIMO para a guerra baseava-se na rejeição do colonialismo como uma já longa tradição, referindo-se como "resistência" o conjunto de reações dispersas e de cunho tribal contra a conquista colonial. Aquela argumentação assentava ainda, segundo Samora Machel, na justificação da natureza do colonialismo português e das alianças que o apoiavam. Para a FRELIMO, estes fatores, que criavam oposição à considerada dominação estrangeira, impunham a luta armada como único instrumento para a resolução da situação.”

O livro de divulgação sobre a Guerra de Moçambique faz parte da coleção Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal, foi editado pela Quidnovi, 2010. Alerta-nos o autor, relativamente à estrutura do trabalho de divulgação: “Organizamos o livro de forma a que, numa primeira parte, seja possível identificar a génese do independentismo moçambicano, nomeadamente dos principais movimentos, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO), quanto à sua composição, articulação, ideologia e práticas. Numa segunda parte, analisamos e descrevemos a resposta do Poder português, assente na integração de cinco manobras interdependentes e a atuar de forma dinâmica entre si: político-diplomática, militar, psicológica, socioeconómica e de informações”.

Refere igualmente as suas fontes documentais, os fundos arquivísticos consultados. E adianta: “A documentação de âmbito memorialístico reúne correspondências, memórias, depoimentos e outro tipo de informação dos principais intervenientes políticos e militares, portugueses e moçambicanos com quem tivemos a singular oportunidade de privar. Estes contributos revelaram-se complementares da documentação oficial, sendo importantes na medida em que nos possibilitaram o acesso aos bastidores político-militar da época, permitindo contextualizar muitas das decisões e medidas adotadas”.

Dá-nos, pois, a génese do independentismo, caso de conferências como a Bandung, as primeiras independências africanas, os principais movimentos moçambicanos que se estruturaram entre as populações emigradas nos países circunvizinhos independentes, nos primeiros anos da década de 1960. A União Nacional Africana de Moçambique (MANU) constitui-se a partir de pequenos grupos, foi fundada no Tanganica (atual Tanzânia) em 1959, tinha como finalidade reunir os macondes moçambicanos aí residentes, e orientá-los subversivamente, de acordo com os interesses da Tanzânia. A União Democrática de Moçambique (UDENAMO) foi criada em 1960 por Adelino Gwambe, na antiga Rodésia do Sul, integrando, principalmente, trabalhadores emigrados de Manica e Sofala, Gaza e Lourenço Marques. Marcelino dos Santos representava este partido na primeira reunião da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), em Casablanca em 1961. Nesse mesmo ano surge a União Africana Independente de Moçambique (UNAMI), descendente da Associação Nacional Africana de Moatize. A FRELIMO foi constituída em junho de 1962, em Acra, durante uma reunião da CONCP e UNAMI. O reconhecimento desta frente pelos países independentes da Organização de Unidade Africana foi imediato.

Nesse mesmo ano, Adelino Gwambe foi expulso e criou um novo partido, a UDENAMO. É escusado enfatizar a matéria estatutária da FRELIMO: liquidação total da colonização portuguesa. O seu primeiro dirigente foi Eduardo Mondlane. A admissão do marxismo-leninismo é aceite em 1969, ano do assassinato de Mondlane, o partido entrou em turbulência que foi ultrapassada em maio de 1970 quando Samora Machel assumiu a presidência e Uria Simango foi afastado. A FRELIMO implantada no território de Moçambique tinha dois vertentes: a político-administrativa e a militar. A estrutura militar assentava nas Forças Populares de Libertação de Moçambique que eram controladas pelo Estado-Maior. A Organização Militar da FRELIMO abrangia dois níveis importantes: as bases (provinciais, subprovinciais, gerais, de segurança, operacionais, de logística e de instrução) e os acampamentos. O partido conseguiu organizar a chamadas áreas libertadas a partir de 1966, no Niassa. Aí ensaiou a administração, organizando a vida das populações e progrediu para o sul, em direção ao Zambeze. Em Cabo Delgado, atingiu a estrada Montepuez-Porto Amélia. Até 1968, a FRELIMO considerava ter libertado um quinto do território.

O autor descreve a manobra político-diplomática desenvolvida pelo governo português, o estabelecimento de laços políticos com a Rodésia e a África do Sul, a importância da aprovação em parceria do complexo hidroelétrico de Cahora Bassa, o significado da revisão da Constituição de 1971; segue-se a cronologia da manobra militar e o autor dá destaque ao período do comandante-chefe Kaúlza de Arriaga. Atenda-se ao que o seu antecessor caraterizava na situação militar em março de 1970: “(…) o terrorismo tinha recuado bastante e praticamente não passava do rio Lúrio. Daí para cima havi terrorismo, ainda havia aldeamentos, mas com dificuldade. Dai para baixo conseguimos que não houvess
e nada”.

Observa o autor que a subversão armada estava consignada ao Norte do rio Lúrio, mas a organização e propaganda alastrava a sul. O general Augusto Santos compreendera que a guerra não podia ser solucionada apenas por via militar. Kaúlza rompe com a forma dos generais Costa Gomes e Augusto Santos fazerem a guerra. A sua solução geoestratégica passava por promoção das populações, tentativa do controlo geral do território, pesquisa e destruição do inimigo e eliminação prioritária de bases e áreas libertadas. Lançou um conjunto de operações de que a principal foi a Operação Nó Górdio. Nos meses posteriores a esta, agravou-se a situação em Tete e cresceu a ameaça à barragem de Cahora Bassa, o que obrigou a transferir o esforço militar para aquele distrito.

A partir de 1972, acentuou-se o esforço em Tete da FRELIMO, que abandonou praticamente as operações no Niassa e em Cabo Delgado. Para a FRELIMO era forçoso alargar a guerra à região central, procurando afetar a Zambézia, Manica e Sofala. Em 1973 foi criado em Tete um comando específico, o Comando Operacional de Defesa de Cahora Bassa. Mas agravou-se a situação a norte do Comando Territorial do Centro, houve que criar o Comando Geral dos Grupos Especiais. Como a situação tendia a piorar, dá-se a substituição de Kaúlza de Arriaga pelo general Basto Machado, ocorreu o esforço da FRELIMO em direção à beira, estava semeado o pânico junto das populações brancas. Em 1974, o dispositivo do Exército português no território perfazia um total de 31 batalhões, 128 companhias tipo caçadores, um batalhão de Comandos, um grupo de artilharia, 3 esquadrões de cavalaria, 81 grupos especiais, 12 grupos especiais paraquedistas, 5 companhias da polícia militar e uma companhia de morteiros, para além de efetivos de engenharia.

Proença Garcia dá-nos a evolução do ano de 1974, descreve o recrutamento e a localização de efetivos, a natureza da manobra psicológica, o esforço socioeconómico em Moçambique, assistência sanitária e educativa, a estratégia do colonato e do aldeamento, a estrutura organizacional das organizações e o relacionamento das comunidades socio religiosas com as autoridades portuguesas.

Dir-se-á que esta curta monografia abarca aspetos essenciais da guerra de Moçambique, há a excetuar o facto que depois de 2010 a historiografia avançou no conhecimento do Exercício Alcora, que trouxe novas informações sobre o apoio militar oferecido pela Rodésia e África do Sul.


General Francisco Proença Garcia
Samora Machel e Eduardo Mondlane
Quartel de Mueda em 1969
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24669: Notas de leitura (1617): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (3) (Beja Santos)

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23610: Notas de leitura (1494): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Confesso que nada de semelhante me fora dado ler em diarística de guerra. Está longe de ser um jovem convencido, nas suas notas introspetivas não se leva muito a sério, não esconde os confortos da sua condição burguesa, pensa à esquerda mas não se escusa à crítica. Nunca nos dirá as razões de fundo que o trouxeram à guerra onde, sem jactância, não se coíbe de dar o corpo ao manifesto. O acidente brutal afasta-o de tudo. Procurei no Google saber mais sobre a sua carreira de escritor, nada encontrei a não ser a capa deste livro. E se acaso li muitíssimo para alimentar o espírito e manter de pé os sonhos de recomeçar sem trauma após o regresso, não deixo de me surpreender com as maratonas de leitura de alguém que estava no centro do furacão lá para o Planalto dos Macondes, o mínimo que se pode dizer é que é totalmente surpreendente a vida deste oficial miliciano que mantém o orgulho da sua cepa burguesa e da sua liberdade de espírito.

Um abraço do
Mário



Um caso ímpar na literatura diarística da guerra colonial (2)

Mário Beja Santos

É um caso incomum, este "Diário Pueril da Guerra", de Sérgio de Sousa, Editorial Escritor, 1999, não terá a duração de um ano, um acidente brutal põe termo à comissão, quando este alferes está em Sagal, Moçambique. Viajara muito, como ele escreve em 31 de julho de 1970: “Fiz ontem 23 anos. Quando fiz 18, encontrava-me em Londres com o meu pai. Nesse dia vimos os Beatles entrando num cinema onde ia estrear o seu Help!, o que nos valeu um belo aperto na Piccadilly Circus”. Nas notas do seu diário desse dia fala em "Os Thibault", de Roger Martin du Gard, e "Os Subterrâneos da Liberdade", de Jorge Amado. Não esconde que gosta do conforto burguês, se bem que, inequivocamente, pensa à Esquerda. Os meses passam mas a compulsividade a ler e a escrever ainda não diminuíram. Está sempre preocupado com o estado de espírito do pai. E sente-se a envelhecer. Endereça uma carta aberta aos seus amigos, enaltece a felicidade de viver. A 16 de agosto: “Morreu ontem o capitão miliciano do meu batalhão. Gravemente ferido numa emboscada, aguardou pela evacuação cerca de três horas. A companhia que ele comandava já tinha um alferes ferido”. Escreve no dia seguinte: “Saí hoje para uma operação de levantamento de minas antipessoais, implantadas pelas nossas tropas em trilhos usuais do inimigo. A dada altura foi encontrado um guerrilheiro morto. Pisara uma mina que lhe levara um pé. Arrastou-se uns metros e acabou por morrer, esvaído em sangue. Era um moço de uns 17 anos. Tudo isto me foi contado pelo alferes que comandava o segundo grupo de combate; apareceu-me feliz, com uma orelha do morto na mão”.

Vai fazendo amizade com o alferes Sapador, falam imenso sobre Paris, e as crises académicas de 1962/65 e 1968. Já estamos em setembro, fala de emboscadas e nomadizações, lê Roger Vailland, o comando do seu batalhão deixou Sagal e seguiu para Nangade. Continua a escrever uma peça de teatro num só ato. E consta do seu diário, a 7 de setembro: “Chegou hoje um homem dos seus 40 anos, maconde, machambeiro, foi capturado durante a Operação “Nó Górdio”. Está disposto a guiar-me a uma base de guerrilheiros por onde passou há um ano”. E partem para uma operação de três dias, a missão é um golpe de mão a uma base da FRELIMO, nada de especial, destruiu-se um acampamento abandonado. Passará os dias seguintes a ler a fio os quatro romances do Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell. Deixara Lisboa há quatro meses. Regista rebentamentos de minas. O pai e os amigos enviam-lhe enormes quantidades de revistas, está bem informado da vida cultural lisboeta. Continuam as operações em que se destroem aldeamentos inimigos, por vezes há alguma resistência. Tem que ir tratar assuntos da companhia a Mueda, que ele apresenta deste modo: “Mueda, com a sua base aérea, seus vários quartéis, enfermaria, edifícios da administração, do banco, dos correios, dos apartamentos de oficiais e sargentos, dos dois estabelecimentos civis onde há de tudo, da prisão da DGS, seu tráfego de viaturas militares, sua extensão, evoca-me o que eu imagino seriam as bases norte-americanas na Coreia”. Passa por Nampula e não gosta. Num patrulhamento, acerca de dois quilómetros e meio de Sagal, apresentam-se dois guerrilheiros, de mãos no ar: “Um dos guerrilheiros diz ser bacharel em Ciências Económicas e Financeiras e Sociologia pela Universidade de Harvard. Trabalhou como revisor de provas num jornal moçambicano e foi locutor de rádio. Viajou pela Europa Ocidental e pelo Norte de África como membro encarregue das relações externas da FRELIMO. Na Tanzânia pertenceu ao comité central e executivo da FRELIMO. Deixou a FRELIMO porque o impediram de continuar os seus estudos, não lhe interessa lutar. Chama-se Miguel Marupa”.

E depois de um silêncio de mais de dois meses, chegamos a 16 de janeiro, houvera um terrível acidente no dia 8 de novembro:
“Quando ia a sair do aquartelamento para fazer o reabastecimento de lenha, num Unimog, sentado ao lado do condutor, ergui-me no banco para me virar para trás, a fim de verificar como o pessoal ia instalado; no preciso momento em que o condutor guinou a viatura para evitar uma cova, fui projetado para fora do Unimog, rodei sobre mim próprio no ar, toquei o solo, primeiro com todo o meu peso unicamente sobre o pé direito, de lado, e depois fiquei sentado.
Imediatamente agarrei a perna direita; os ossos haviam-se partido e rasgado a carne; estavam de fora, o pé baloiçava preso por uns pedaços de carne. Pensei: ‘Também se vive sem um pé’. Vários soldados pegaram em mim e levaram-me para o posto de socorros. Pensava sobretudo que não podia ir já de férias em dezembro, como planeara. A viagem até Mueda não me pareceu longa. Tiraram-me uma radiografia à perna. A intervenção não durará mais do que quatro horas; uma artéria está perdida; tenta-se suturar a outra, para que não tenham de me cortar o pé; por fim vencem, remendam a perna por fora com uns pontos enormes”
.

Passa quase dois meses no hospital de Nampula, até ser operado e evacuado para Lourenço Marques. A operação decorreu bem: “Tinha perdido grande quantidade de substância óssea e os tecidos moles vizinhos também me tinham sido bastante ofendidos. O perónio ficou solto; a tíbia ligada por uma placa presa por quatro parafusos”. São longas páginas desse dia, e observa também: “Os homens choram quando têm dores insuportáveis, quando se vêm mutilados, quando a seu lado um camarada morre e não lhe podem acudir. Os homens choram e se não chorassem não eram homens, eram monstros. Mas há um desespero no homem que chora. O desespero da tentativa vã de evitar o choro. Porque está assente que o homem não deve chorar”.

E recorda uma patrulha de Sagal para o Chindorilho, um estrondo, alguém perdera as duas pernas, está enegrecido pela terra, pronuncia frases patéticas, é amparado, pede-se a evacuação. Veio-se a descobrir que no fornilho se tinha posto uma bomba de avião de 50 kg que não rebentara e que felizmente também não explodiu por simpatia quando a mina levou as pernas daquele homem. O que são os acasos do destino? Os próximos tempos serão dominados por leituras avassaladoras. A 1 de fevereiro, dará os primeiros passos pelo quarto. Manda um artigo para uma revista, a Nova Geração. Interroga-se sobre o seu futuro. A junta médica decidiu evacuá-lo e a 24 de abril de 1971 chega a Lisboa. Décadas depois, com pequenos cortes, diz ele, publica o seu diário, não esconde o desesperado egocentrismo, o não ter sabido enquadrar a guerra e o seu ambiente, publica o seu diário como testemunho da violência que acometia homens jovens do nosso país que se pretendiam conscientes.
E termina: “Para que se não repita”.

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Notas do editor

Poste anterior de 9 de Setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
O diário de Sérgio de Sousa centra-se em Sagal, Moçambique, há emboscadas, muitas minas anticarro e muito sofrimento com as minas antipessoal. É um diário que dura menos de um ano, irá culminar com um acidente brutal que deixará este alferes-miliciano com incapacidade. O autor chamou-lhe inicialmente Diário de Guerra. O semanário O Jornal publicará em 1981 dois excertos. Assume o documento como um diário íntimo, não encontrei, em tudo quanto li até hoje, ninguém a ler tanto, a comentar tanto, a desnudar-se, tinha medo, como ele escreverá, da desintegração da personalidade, falará sempre mais de si, descurando gentes e ambientes. Quando, décadas depois, publica o que escrevera meticulosamente, e numa caligrafia arredondada e bem legível, dirá que já não é a mesma pessoa, como se fosse possível fazermos cisões de tal modo brutais em que os tempos de juventude deixassem de fazer parte do que prossegue na maturidade e na velhice. Mas reconheça-se que Sérgio de Sousa não tem rival nos diários de guerra.

Um abraço do
Mário



Um caso ímpar na literatura diarística da guerra colonial (1)

Mário Beja Santos

Intitula-se "Diário Pueril de Guerra", seu autor é Sérgio de Sousa, Editoral Escritor, 1999. Sérgio de Sousa pertencia à CART 2718, que partiu para Moçambique em 20 de maio de 1970, seguiu para Sagal, a sua unidade militar dependerá do BART 2918. O que cativa neste documento de um jovem de 23 anos, assumidamente snob, ledor compulsivo, que viajou por Franças e Araganças, é o olhar que lança, em permanência, para o que deixou do seu círculo de afetos, como este mesmo círculo de afetos o ajuda a urdir o grau de resignação como ele vive a guerra. Irá penitenciar-se no posfácio, escrito décadas depois, que perpassa o seu documento um desesperado egocentrismo, sobretudo pelo que ali é omitido, pouco ou nada saberemos de Sagal, é parcimonioso nas referências às operações, no entanto não deixa de empolar os múltiplos incidentes e acidentes. “E não há nenhuma referência à paisagem do planalto onde vivi durante meses e que, como se presumirá, era avassaladora. Nem a um espetáculo único que então presenciei, quando atravessei uma parte da floresta que tinha ardido, enterrando os pés nas cinzas quentes, e a nossa movimentação fazia mexer o ar parado, provocando a queda das árvores que se mantinham eretas, carbonizadas, até que a nossa passagem as fez cair, desfeitas. Não me detive quase a falar das pessoas com quem convivi. Em contrapartida, anotei uma série de temas que na altura pensava interessarem-me, e que não me parece hoje que tivesse o valor que lhe atribuía”.

Temos o embarque no Niassa, observa o que os outros leem, nota que os soldados dormem em beliches apinhados nas cobertas. Doze dias depois, chegam a Luanda, para ele é uma cidade ocupada pela tropa, entra nas casas de espetáculos, a viagem prossegue, lê Roger Vailland; os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, do John Reed, a 13 de junho saem à noite de Lourenço Marques, seguramente que o impressionou pois fala dela com alguma abundância:
“Nascida sobre uma prancheta de desenho, Lourenço Marques parte dos caraterísticos edifícios coloniais, de dois pisos, de madeira, sendo o inferior recuado, de modo ao passeio ficar coberto pelo outro piso, varanda ou telhado, assente em finas e espaçadas colunas de ferro, implantadas na borda do passeio. Assim nas três ou quatro ruas estreitas, junto ao porto.
Depois vêm, nas longas avenidas do centro, os bons edifícios não muito altos, onde se aloja o melhor comércio e os bancos. E já os prédios com mais de uma dezena de andares conquistam espaços na baixa e se difundem, ao longo das rasgadas avenidas que ganham uma periferia, de vivendas antiquadas para o interior, modernas e luxuosas ao longo da costa.
No caminho para o aeroporto, os bairros indígenas, imensos, no meio de um deles uma lixeira municipal. Situam-se à porta da cidade branca, para o interior, sendo as habitações mais próximas as mais decentes, segue-se a favela; algumas fábricas erguem-se por ali.
O urbanismo de Lourenço Marques vinca a sua realidade racista. Na cidade racionalizada, elegante, luxuosa, só penetram os negros dos serviços que se apresentam limpos e decentemente vestidos. Além dos serviços, nada mais há na vida da cidade branca que lhes seja acessível. Os brancos nada têm que fazer nos bairros indígenas, por isso não entram lá”
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Também não perdeu a oportunidade de entrar nos cabarés laurentinos. A viagem prossegue pela beira até chegar a Nacala, depois Porto Amélia, finalmente Mocímboa da Praia. Já ouviu várias vezes falar na Operação Nó Górdio, ele irá participar nela. A sua unidade parte de Mocímboa da Praia para Diaca, e chega-se a Sagal, considera que as instalações são bastante razoáveis, pertenciam a uma antiga exploração algodoeira. A casa senhorial é ocupada pela messe de oficiais.

Já se respira a Operação “Nó Górdio”, como ele escreve no seu diário:
“Consiste num cerco a uma região onde o inimigo se encontra, e intervenções de limpeza no interior desse cerco. A picada fica a constituir parte do limite da área cercada; ao longo dela as nossas tropas hão de emboscar-se e executar patrulhamentos (…) Levámos grande parte da manhã e toda a tarde para percorrer os seis quilómetros de picada nova aberta três dias antes; nela foram detetadas e rebentadas dez minas anticarro e removidos bastantes abatises. Numa das vezes em que, ao ser detetada uma mina fizemos reconhecimento pelo fogo para, prevendo a hipótese dela ser comandada, afugentar o acionador, o inimigo respondeu com fogo de presença”.

No início de julho, Sérgio de Sousa sai com o seu grupo de combate para montar uma emboscada em Chindorilho. A “Nó Górdio” já está a decorrer. A Berliet que seguia à frente estrondeia, segue-se uma emboscada, caíram na zona de morte o Unimog, uma Fox e um Granadeiro. Finda a emboscada retiram da Fox o condutor, tinha uma perna perdida, fora uma bazucada que lhe acertara. “Juntei os meus homens e fomos fazer uma batida ao local de onde partira a emboscada. Encontrei a uns trinta metros da picada, o capim pisado e um cadáver cuja cabeça terminava no maxilar inferior, daí para cima não restava nada. Devia tratar-se de um rapaz. Vestia calções curtos verdes e uma camisola às riscas brancas e azuis, calçava alpercatas e tinha ao lado uma Simonov e sob o corpo, presa à cinta, uma granada de bazuca”. A emboscada dura vários dias, regressam a Sagal. Deixa no diário a ideia de que o inimigo se está a escapar ao cerco, são largas as malhas por onde pode passar. Dias depois parte para nova operação, também relacionada com a “Nó Górdio”, nada de especial acontece. Durante os dias em que se manteve emboscado leu a Guerra Revolucionária, de Mao Tsé Tung. ´

A operação dura já quinze dias, começa-se a falar dela, há poucas ilusões do seu sucesso:
“Segundo as imprecisas notícias que chegam até aqui, comando do cerco norte, as bases foram tomadas, mas nelas apenas se capturou material, os ocupantes fugiram; quanto à pretendida desorganização, não foi atingida. Os guerrilheiros continuam a contornar a população. Perspetivas: a operação termina, os guerrilheiros reabastecem-se de armamento em pouco tempo e caem-nos em cima com toda a forma da organização que não lográmos destruir”. Lê, chegam-lhe jornais, cartas do pai e dos amigos, dá nota dos filmes estreados, da vida musical, de uma exposição de Vieira da Silva, da morte de Elsa Triolet. E confidencia: “O autor deste diário é um indivíduo tímido. Por isso faz gala em ser pedante, antipático, descortês. Ostenta um certo luxo e finge que não conhece alguns conhecidos, socialmente desfavorecidos. Para os colegas arvora um ar superior, polido, frio; para os mais íntimos e familiares mostra-se indelicado. Amigos, tem muito poucos e é-lhes extremamente sincero, deixa-os partilhar de toda a sua verdade; gosta de abrir-se. De si mesmo procura esconder o bluff que é; na realidade, opina sobre livros, teorias, ideologias, conceitos, acontecimentos de que apenas sabe o nome; tem muito medo de ser desmascarado”.

A Operação “Nó Górdio” chega ao fim, Sagal deixou de ser a pior zona, agora é Nangololo, escreve. E a 30 de julho regista uma nova perda, o Furriel Rocha pisa uma mina antipessoal. Deixa um comentário no seu diário: “Pertence a uma família remediada, é eletricista, os seus horizontes são uma vida pacata, no emprego, ao lado da moça de quem gosta e em contacto com a família. Para realizar este futuro foi-lhe imposto como condição realizar a presente guerra. Ele jogou a sua sorte e perdeu. Se a mim me acontecesse a desgraça que o vitimou, eu merecia-o. Porque sei o crime que cometo empenhando-me numa guerra colonial. Tal como as cadências aceleradas e os acidentes de trabalho são exemplos da violência da classe exploradora sobre a trabalhadora, também os estropiados e mortos desta guerra colonial são casos da violência da classe que a quer, sobre aquela que é obrigada a fazê-la”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Monumenta Missionaria Africana – coligida e anotada por António Brásio; Agência – Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (1) (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

terça-feira, 7 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21147: (In)citações (164): Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonial (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Paulo VI em Fátima
Com a devida vénia a Renascença


1. Em mensagem do dia 6 de Julho de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto a que deu o título: Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonialal.


Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonial

Há 50 anos, o Papa Paulo VI tramou Marcelo Caetano, o regime e semeou os ventos da tempestade da mutação de Portugal.

Foi o primeiro Papa a visitar Portugal e Fátima, em Maio de 1967, a contragosto do Governo de então, Salazar considerava-o um “cidadão estrangeiro perigoso” e o seu ministro Franco Nogueira passou a imputar-lhe agravos gratuitos, inúteis e injustos a Portugal.

Salazar fora derrotado pela velha cadeira do Forte de Santo António da Barra e o Papa Paulo VI, tendo recebido em audiência o Ministro Rui Patrício, em 25 de Maio de 1970, que rendera Franco Nogueira, que lhe foi abordar a agenda da nossa guerra africana, no dia 1 de Julho de 1970 e, sem invocar a inspiração divina, recebeu em audiência privada (na Sala dos Paramentos?) e abençoou os três líderes da guerra colonial Amílcar Cabral (PAIGC), Agostinho Neto (MPLA) e Marcelino dos Santos (FRELIMO), este em representação do operacional Samora Machel, indisponível por estar a braços com o General Kaúlza de Arriaga e os 8000 militares portugueses, investidos na extensa e impetuosa “Operação Nó Górdio”.

Para o efeito, essa “troika” de exilados portugueses (só perderão a nacionalidade em 1975), ora líderes independentistas africanos, forjados na CEI, Casa dos Estudantes do Império e nos quartéis do Exército Português, aproveitara a dinâmica da II Conferência Internacional de Solidariedade para com os Povos das Colónias Portuguesas, convocada pelas centrais sindicais italianas CGTL, CISL e UIL em Roma, que teve o concurso de 177 organizações de 64 países, incluindo os exilados políticos de Portugal, do PCP de Álvaro Cunhal, da ASP de Mário Soares, da FPLN de Piteira Santos e Manuel Alegre, órfã de Humberto Delgado e militantes do Movimento a Favor da Paz, fórum lisboeta de católicos vanguardistas, segundo uns e de “cristãos pagãos” segundo outros, motivados pela encíclica “Pacem in Terris" do Papa João XXIII e a “Populorum Progressio” do Papa Paulo VI.

A ideia do aproveitamento dessa Conferência para uma audiência papal foi da inteligência revolucionária de Marcelino dos Santos, residente em Paris, em Janeiro desse ano encetou em Roma as diligências, mas a sua materialização será devida a Amílcar Cabral, que persuadiu o Bispo de Conacri, Raymund-Maria Tchimdibo, a negociá-la com o Vaticano e mobilizou a jornalista e militante católica progressista Marcella Glisenti, sua amiga desde 1968, Presidente da Associação Italiana dos Amigos da “Presence Africaine” (revista da negritude francófona, editada em Paris e Dacar), que, no maior segredo, se encarregou de toda a logística e de manipular com um perfil de líderes cristãos e democráticos o ex-Núncio no Senegal, Cardeal Giovanni Benelli, o segundo na hierarquia do governo do Vaticano (o Secretário de Estado, cardeal francês Jean Villot, estava ausente).

Às 12H00 foi-lhes franqueada a entrada pela Porta de Santa Ana, o Pontífice recebeu-os afectuosamente às 12H30 e mostrou-se particularmente deferente com Amílcar Cabral, que serviu de porta-voz, em francês.

A notícia correu o mundo, sem fotos, com o registo do embargo de um monsenhor português da Pontifícia Comissão para a Comunicação Social ao acesso dos jornalistas, Marcelo Caetano soube do caso logo na manhã do dia 2, informado pelo jornalista americano Dennis Redmont e a Censura congelou a notícia até ao dia 5.

A Comunicação social não teve acesso, não puderam tirar fotos, mas os audientes tiraram. No seu livro “Crónica da Libertação”, Luís Cabral reproduz a primeira página do boletim “PAIGC actualités” com uma foto dos intervenientes, no primeiro patamar da escadaria interior do Vaticano (de acesso à Sala dos Paramentos?), com a Marcella de costas e Amílcar Cabral em destaque…

Todo o mundo os conhecia como marxistas-leninistas ortodoxos e ateus confessos, do género de não olhar a meios para atingir os fins, não entraram na Santa Sé como “penetras”, o Governo protestou a ofensa da Igreja à sua “Nação Fidelíssima”, a comunicação social do Vaticano, em vez de invocar a sua “inspiração por Deus”, ridicularizou-se com a afirmação de que o Papa ignorava quem eram, a sua diplomacia a negar uma audiência no sentido do termo e a fazer passar a mensagem do carácter religioso do acontecido.

Com a devida vénia a Fundação Amílcar Cabral

Os muros de Roma e da Praça de S. Pedro apareceram pichados de “Viva il Portogallo”, o corte das relações diplomáticas esteve iminente, a diplomacia desempenhou o seu papel, as relações voltaram “à cordialidade antiga”, o evento passou a “facada pelas costas” ao Papa e Marcelo Caetano tramado.

Essa audiência papal no dia 1 e a morte de Salazar no dia 27 desse mês serão o início da contagem decrescente do fim do regime do Estado Novo. Com o “Botas”, o desfecho seria o mesmo? Em apenas 7 minutos, aqueles protagonistas da audiência papal fecharam o ciclo histórico de 545 anos de cumplicidade da Igreja com a afirmação do Portugal africano, estabelecida pela Bula “Romanus Pontifex” do Papa Nicolau V ao rei D. Afonso V, O Africano, e ao infante D. Henrique, O Navegador, – o documento de direito internacional da escravatura da raça preta pela raça branca.

Os três líderes independentistas que o Papa Paulo VI recebera e abençoara tinham a força do “espírito do tempo”, eram senhores da guerra, com as mãos manchadas de sangue dos seus próprios compatriotas. Não eram da dimensão política e humanista do bem-aventurado Nelson Mandela.

Em Fevereiro de 1964, no I Congresso de Cassacá, Amílcar Cabral introduziu a pena de morte no normativo jurídico do PAIGC, julgou sumariamente e mandou executar de imediato alguns compatriotas e correligionários (o regime de partido único e ditatorial do irmão Luís Cabral aplicá-la-á a alguns milhares, arbitrariamente, sem qualquer julgamento); montara uma cilada e em Abril de 1970 ordenara o assassinato de 4 oficiais do Exército Português e seus impedidos, que ousaram ir desarmados ao encontro do PAIGC; havia montado uma cilada e, na véspera de partir para Roma e ao encontro do Papa, ordenara a execução do seu conterrâneo bafatense, enfermeiro Paulo Gomes Dias, seu opositor anti-marxista, então presidente da FLING Progressista, um partido moderado sediado em Dacar; mandara executar imediatamente o “sniper” do PAIGC que, por rebate de consciência, não eliminou o General António Spínola de visita à sua tabanca; etc.

Marcelino dos Santos era “a FRELIMO sou eu”, segunda figura de partido único e ditatorial, pela aplicação seus pressupostos ideológicos e implementação do “socialismo científico” tornou-se responsável, no mínimo moral, da guerra civil subsequente à independência, que devastou Moçambique e dilacerou os moçambicanos durante 17 anos.

Agostinho Neto, pela recusa à coexistência e com a perseguição sanguinária aos seus adversários políticos FNLA e UNITA, tornou-se responsável pela guerra civil, subsequente à independência, que devastou Angola e dilacerou os angolanos durante 27 anos, que lhe imputam a assinatura em branco de cerca de 25 000 sentenças de morte de angolanos, no contexto da “crise fraccionista”, espoletada pelo seu opositor Nito Alves; etc.

A História reflecte o seu autor, mas não se reescreve. Alçados ao poder em Angola e Moçambique, em 1975, mandatados pelo MFA, deriva das FA Portuguesas, aqueles líderes de Angola e Moçambique, por convicção ideológica, não fizeram os caminhos da Paz na base da Verdade, Justiça, Caridade, Liberdade e do Desenvolvimento e dos Direitos Fundamentais dos dois Povos, paradigmas daquelas duas encíclicas que evocavam.

O Cardeal Benelli, que o Cardeal Villot censurara de abusador da sua ausência, notabilizar-se-á na promoção eleitoral dos Papas João Paulo I e II; o Bispo Tchimdibo, admirador de Amílcar Cabral, passou 9 anos como prisioneiro do sanguinário ditador Skou Touré; tido na consideração do mais talentoso e moderado dos “três líderes terroristas”, Amílcar Cabral morreu às mãos dos seus correligionários, diz-se que a impulso do mesmo Sekou Touré, mas o insuspeito Agostinho Neto, no seu relatório de Presidente da Comissão Internacional de Inquérito à sua morte, diz ter colhido em Conacri os depoimentos de 500 dos seus correligionários, 325 exprimiram-se abertamente contra Cabral e apenas 20 a seu favor; Marcella Glisenti continuou activista, católica progressista e livreira na sua “Paesi Nuovi”,envolvida na revista “Presence Africaine" pela negritude, émula dos textos de Albert Camus, de Jean-Paul Sartre e dos poemas de Leopold Senghor; Agostinho Neto foi morrer a Moscovo; Marcelino dos Santos morreu de velhice, na sua cama; Marcelo Caetano morreu exilado no Brasil; e o inclusivo Papa Paulo VI, pela sua áurea de anti-colonialista, de progressista, no entanto condenatório da regulação artificial da natalidade, subirá aos altares, beatificado em 2014 e canonizado em 2018, pelo Papa Francisco.

O ano português de 1970 foi tempo de mutação.

O desgaste físico e moral pelos 10 anos de luta evidenciava-se nos três teatros de guerra no Ultramar, com ambos os beligerantes a braços com a sua rejeição, a falta de recursos humanos, refractários, deserções e aquela audiência papal teve repercussões nas chancelarias internacionais e na própria Igreja portuguesa.

Os sacerdotes deixaram de invocar o auxílio do “Deus dos exércitos” e alguns sacerdotes mais corajosos falavam abertamente contra a guerra ultramarina nas suas homilias, havia excursões populares às suas missas, lembro os padres Feliciano Alves, os capelães militares Mário de Oliveira e Arsénio Puim, estes dois camaradas da Guerra Guiné, expulsos do Exército e do sacerdócio.

Nesse mesmo ano, Maurice Schumann, notável ministro francês e um dos pais da União Europeia, veio a Lisboa instar Marcelo Caetano, estava na altura da solução política, para não deitar tudo a perder, incitou-o a imitar ofereceu a ajuda da França e da CEEE, este confidenciou-lhes a sua impossibilidade, alegando o impedimento do Exército e o seu receio da separação transformar Moçambique num estado racista, apoiado pela África do Sul, sendo plausível que respaldado no facto de, em Janeiro, os USA terem reatado o fornecimento de material militar, abrindo as portas ao rearmamento tecnológico das FA Portuguesas, designadamente de aviões Mirage e da panóplia de mísseis. Havia um ano que a Força Aérea alertara o Governo da forte possibilidade de o PAIGC vir a dispor de aviões MiG e da nova geração de mísseis antiaéreos soviéticos.

Como Alto-comando funcionava e decidia em Lisboa, com o Decreto-Lei 49 170 de Junho, Marcelo Caetano cometeu a responsabilidade das operações nos três teatros de guerra ultramarina aos respectivos Comandantes-Chefes e investiu três provincianos nesses cargos, a nata do corpo de generais de Portugal – António de Spínola, Guiné; Kaúlza de Arriaga, Moçambique e Costa Gomes, Angola.

 O General Costa Gomes, com a prestação do General Bethencourt Rodrigues (que virá a render Spínola na Guiné), resolveu a guerra em Angola; o General Kaúlza de Arriaga encostou a FRELIMO às cordas da derrota com a “Operação Nó Górdio” (os seus detractores dizem que não, mas o comandante seu oponente, o insuspeito Presidente Samora Machel, afirmou que sim), mas foi “derrotado” pelo massacre de Wirimau); e o General António de Spínola, o mais politizado, idealista e “romântico” dos três, não fez o caminho da derrota militar do PAIGC, antes fez o caminho da promoção social das populações e do progresso do território, falhou a manobra no Chão Manjaco (a tragédia dos 3 Majores), logrou um êxito parcial na “Operação Mar Verde” a Conacri (libertação de cerca de 3 dezenas de prisioneiros militares portugueses), mas foi “derrotado” pelo assassinato de Amílcar Cabral.

Um exército pode levantar-se contra a invasão de outro exército, mas não contra a invasão de uma ideia (Victor Hugo).

E a Guiné, calcanhar de Aquiles do Ultramar (Amílcar Cabral), passou a cancro corrosivo das FA Portuguesas (Saturnino Monteiro).

Grandezas e misérias da espécie humana.

Manuel Luís Lomba
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Nota do editor

Último poste da série 13 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21071: (In)citações (163): Sermão antirracista do Padre António Vieira: "Cada um é da cor do seu coração" (seleção: António Graça de Abreu)