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sábado, 21 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26299: No 25 de Abril eu estava em... (35): Fulacunda, região de Quínara, chão biafada (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª C/BART 6520/72, 1972/74): "entre a euforia e o receio"



Penafiel > Biblioteca Municipal > 15 de dezembro de 2023  > Apresentaçáo do último livro de José Claudino da Silva, "O Puto de Senradelas" (*).  O autor é natural de Penafiel, mas vive em Amarante. Assume publicamente que é filho de pai incógnito, e que foi criado com a avó, que vendia peixe, porta a porta, para sobreviver
... A mãe morreria cedo, em 1 de junho de 1974, estava ele  ainda no TO da Guiné.

"A minha mãe não teve meios de me criar e entregou-me à minha avó. Isso nunca impediu de a respeitar; orgulho-me da minha mãe. Sem ela, eu não estaria aqui. Só passei uma festa com a minha mãe: Foi o último Natal, antes de assentar praça. Ainda bem que o fiz!" (...)

Foto:  Cortesia dos Amigos da Biblioteca de Penafiel (com a devida vénia...) (Edição e legendagem:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2023)



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > O José Claudino da Silva junto a cartaz de parede com os dizeres: "Páscoa Feliz, Os Serrotes, Fulacunda". "Serrotes", além de ser o nome de guerra da companhia, era também o título do "jornal de caserna", dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, também nosso grão-tabanqueiro.

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Na sua série "Ai, Dino, o que te fizeram!" (**)...,  o nosso grão-tabanqueiro José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74), não tem uma referência explícita ao dia 25 de Abril. A última carta, para a namorada [Amélia, sua futura esposa] , de que ele publicou uns excertos, era de março de 1974. Ora no dia 25 de Abril ele  ainda estava em Fulacunda, 

(...) Estou muito perto de terminar esta partilha confidencial de emoções que guardei, sem nunca ter intenção de divulgar. Entre o drama e a comédia, tentei dar-vos uma visão dum soldado que escreveu apenas por amor, num tempo de guerra.

A partir de março de 74, e talvez por influência da mãe e do irmão, a Amélia deixou de guardar o correio que lhe enviava. Embora eu continuasse a escrever, já não o fazia tão assiduamente.

No meu mapa, não está marcado que tenha escrito, por exemplo, no dia 25 de Abril de 1974. Sei que festejei esse acontecimento em Fulacunda mas não me lembro como foi.

Ora, como é lógico, e partindo do princípio que me norteou, não quero citar nada que não possa provar. Contudo, mesmo assim, ainda consegui reaver alguma correspondência sem grande relevância, exceto a última que escrevi. Esta última carta tem 12 páginas que perfazem um total aproximado de 2700 palavras. (...) (*)



2, Excertos  de uma entrevista, que deu há 8 meses, ao "Amarante Magzine", edição de 24 de abril de 2024 (e aqui reproduzidos com a devida vénia):


Claudino Silva: no 25 de Abril senti euforia, mas também receio




(,,,) José Claudino da Silva nasceu em Penafiel em 1950. Serviu nas forças armadas portuguesas entre 1972 e 1974, em Fulacunda, na então Guiné Portuguesa. 

Chapeiro automóvel de profissão, entretanto passado à reforma, é conhecido e reconhecido em Amarante pela fundação do Bosque dos Avós, um projeto de reflorestação lançado em 2018, em terrenos dos Baldios de Aboadela, na Serra do Marão. É autor de vários livros, nomeadamente “O puto de Senradelas – Um Percurso ao Acaso”, apresentado em Amarante em janeiro deste ano.

Numa manhã que despontava com a promessa de mudança, o 1º cabo condutor José Claudino da Silva acordou com uma notícia que lhe despertou um turbilhão de emoções. A 25 de abril de 1974, enquanto o mundo ainda dormia, uma revolta militar eclodia em Lisboa, ecoando até ao coração da então Guiné Portuguesa, onde se encontrava ao serviço da 3ª Companhia do Batalhão 6520 de 1972.

“Confesso que senti uma grande euforia, de que tudo acabara para mim, mas não sem uma sombra de receio”, afirmou a Amarante Magazine. 

Aos 74 anos, este antigo chapeiro automóvel de Penafiel recorda-se bem daquele dia, numa altura em que enfrentava represálias por ter expressado críticas às chefias militares numa publicação interna, editada em finais de 1973.

O medo de retaliação por mostrar contentamento com a revolta era palpável, recorda. “Outras tentativas de revolta, anteriores ao 25 de abril de 1974, fracassaram. E naquela altura estava a ser castigado pelas minhas palavras“, frisa.

Aquele já era um tempo de abalar convicções para o jovem cabo que, no início da sua carreira, se considerava um “militarista”, crente nas razões que o levaram a Fulacunda, bem no interior da Guiné. “Fui para lá convencido que ia defender Portugal”, recorda. (...)


Após o assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973, e oito meses mais tarde, com a declaração unilateral da independêrncia, em 24 de setembro, o nosso "Dino" começa a ter dúvidas, conforme confessa ao jornalista: 
 
 (...) “Houve uma altura em que comecei a questionar a legitimidade da nossa presença na Guiné, quando vivíamos cercados por arame farpado, num país reconhecido e independente”.

Em 11 de junho de 1974, Claudino da Silva regressou antecipadamenet a Portugal por motivo da morte da sua mãe. Já chegaria tarde para o enterreno: ela tinha morrido no dia 1 (*): 

  (...) “Deixei a minha G3 num canto da cantina [ na altura ele era o cantineiro] e trouxe comigo apenas o essencial: a farda, fotografias, algum dinheiro e as cartas da minha namorada. (...)  Só quando chego a Lisboa é que finalmente percebo que [a guerra] acabou para mim, que já não havia volta a dar”.

Na entrevista dada ao semanário Amarante Magazine, confidenciou que , durante a sua comissão de dois anos, escreveu perto de um milhar de cartas, na sua grande maioria para  a namorada, mas também para a família e amigos. Essa correspondência foi por ele listada e organizada.  Esses e outros escritos (em parte já publicados no nosso blogue), a par do seu álbum de 160 fotografias,  poderão estar na base de um futuro livro com as suas memórias da tropa e da guerra.(***)
 
(...) "Tudo isto é um legado para a minha neta, para que fique a saber quem era o avô e o que ele passou. (...)  Ao longo destes 50 anos, vivi tantas vicissitudes. Nasci e cresci numa condição humilde, mas sempre em evolução. E ainda continuo a evoluir, graças ao 25 de abril de 1974”. (****)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos, parênteses retos:  LG) 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26293: Agenda cultural (875): "A Vida de Um Soldado", Casa da Cultura Leonardo Coimbra, Lixa,, de 29/11 a 31/12/2024, Exposição de José Claudino da Silva, "Dino" ( ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)


Cartaz da Exposição fotodocumental do nosso camaarada e grão-tabanqueiro, José Claudino da Silva [é autor da série "Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) ", de que se publicaram mais de 70 postes; é membro da Tabanca Grande desde 18/10/2017; tem mais 55 referências no blogue; nascido em Penafiel, em 1950; reside em Amarante; tem livros publicados e página no Facebook ]
















"A Vida de Um Soldado", Casa da Cultura Leonardo Coimbra, Lixa,, de 29/11 a 31/12/2024, Algumas imagens da Exposição do José Claudino da Silva, "Dino", que ainda pode ser vista até ao fim do ano.


Fotos (e legenda): © José Claudino da Silva (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso "Dino",com com data de 19/12/2024, 12:45

"Olá. Tenho patente até ao fim do ano uma exposição de fotos,  cartas,  postais e vários documentos sobre a guerra colonial, na Casa da Cultura da Lixa, Felgueiras.

"Poucos a visitam. Porém, a guerra vista por um soldado é completamente diferente da que vê um general."

2. Comentário do editor LG:

Parabéns, Dino. Uma amiga comum, aí da Lixa,  já me tinha falado da tua exposição, Vou aí ao Norte pelo Natal mas não vou poder dar aí um salto à Lixa. Um feliz Natal para ti e os teus. Fica feita a "prova de vida". Fico a aguardar a tua prometida seleção das tuas 160 fotos, as que puderes e quiseres partilhar, no blogue, com os teus camaradas da Guiné. Um alfabravo fraterno,  Luís Graça.

3. Sobre a Casa da Cultura Leonardo Coimbra (Rua 25 de Abril, Vila Cova de Lixa, Felgueiras | telef 255 490 922

"Casa onde nasceu o ilustre felgueirense Leonardo Coimbra (1883-1936), um dos maiores vultos da filosofia portuguesa. Poderá conhecer a sua obra e visitar a exposição permanente a ele dedicada.

"Aqui funciona uma extensão da Biblioteca Municipal de Felgueiras."

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24973: Facebook...ando (47): José Claudino da Silva, "o Puto de Senradelas": o novo livro de memórias, apresentado no passado dia 15, na sua terra natal, Penafiel







Penafiel > Biblioteca Municipal > 15 de dezembro de 2023  > Apresentaçáo do último livro de José Claudino da Silva, "O Puto de Senradelas". Teve um momento musical, a cargo do Grupo dos Amigos da Viola Amarantina.

Fotos: Cortesia dos Amigos da Biblioteca de Penafiel (com a devida vénia...)


1. O nosso camarada José Claudino da Silva (ex-.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74); membro da Tabanca Grande desde 18/10/2017; com mais de 54  referências no blogue;  autor da série "Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva" , de que se publicaram mais de 70 postes; nascido em Penafiel, em 1950; reside em Amarante) acaba de publicar mais um livro, "O Puto de Senradelas", neste caso de memórias de infância e adolescescència, pelo que se depreende de alguns excertos publicados ma sua página no Facebook.

Da sessão de lançamento, realizada na Biblioteca Municipal de Penafiel, no passado dia 15 de dezembro, apresentamos algumas fotos (cortesia da página do Facebook dos Amigos da Biblioteca de Penafiel) (*)

Os “tampos” e a política,

Pelo Puto de Senradelas



A camisola feita pela minha avó,
no Natal de 1968,
é que deu classe
ao Puto de Senradelas
(Página de Facebool do autor,
8 de dezembro de 2023) 

Na minha adolescência adorava os bailes que se realizavam nos salões dos bombeiros, nos salões paroquiais, nas vindimas e desfolhadas, ou aonde houvesse uma concertina ou gira-discos.

Lembro-me principalmente das centenas de “tampos” que levava, das raparigas que se recusavam a dançar comigo.
 
Eu, qual Benjamim armado em dançarino, ficava encostado num canto, sentindo-me o bobo do baile. Quando alguma rapariga, por pena, aceitava dançar comigo, de tão nervoso, nem o ritmo do tango ou do passo-doble acertava.

Na minha vaidade de adolescente, interrogava-me constantemente das razões de levar tantos “tampos”.
Finalmente descobri!
 
Descobri que na minha ânsia de dançar, convidava qualquer uma, por azar, normalmente nem eram as mais bonitas, embora fossem as que dançavam melhor.
 
Ora, quando convidava alguma das mais bonitas, elas ao perceberem que primeiro eu convidara as mais feias, não aceitavam, e pior, olhavam para mim com tal sobranceria que eu me afundava no soalho do salão.

A partir dessa constatação passei a convidar, sempre em primeiro lugar, a mais bonita. Achava eu que depois, todas as outras, aceitariam dançar comigo. Enganei-me redondamente e passei a levar “tampos”, dumas e doutras, até que me habituei e deixei de me importar.

Alguns anos mais tarde, quando julgava já ter experiência a escolher com quem dançar, escolhi em primeiro lugar os políticos feios e levei “tampos” dos bonitos. Em seguida, escolhi políticos bonitos e levei “tampos” dos feios.

A estas situações ainda não consegui habituar-me. Só que agora há dez milhões a levar “tampos” como eu, e, isso, independentemente da escolha que façamos.

O Puto de Senradelas

(Fonte: José Claudino Silva, página do Facebook, 12 de novembro de 2023)

(Revisão / fixação de texto: LG)
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sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24607: Facebook...ando (34): José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74): primeiro aerograma que escreveu à namorada, em 27/6/1972: fui almoçar num bar perto do Cumeré, paguei 70$00 e fiquei cheio de fome...





1. Postagem de José Claudino da Silva, 29 de agosto de 2023, no Facebook da Tabanca Grande Luís Graça  
 [é autor da série "Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) ", de que se publicaram 
mais de 70 postes (*); é membro da Tabanca Grande desde 18/10/2017); tem mais de meia centena de referências no blogue; foto à direita, o nosso camarada, nascido em Penafiel, em 1950; reside em Amarante; tem livros publicados e página no Facebook ]:

Cheguei á Guiné no dia 26 de junho de 1972, no dia seguinte em Cumeré paguei 70 escudos por uma refeição.

Naquele tempo a mesma custava 8 escudos na metrópole. Está a prova neste aerograma 
[que se reproduz e transcreve acima]. (**)




Primeiro  aerograma enviado pelo José Claudino da Silva, à sua namorada [Maria Amélia Moreira Mendes] depois de chegar à Guiné. 

Trata-se de um excerto. O aerograma não está completo, acaba aqui, deveria ter mais folhas; "Fiquei cheio de fome, e paguei 70$00, as cervejas são a" [...]. 

Vamos pedir ao nosso camarada para disponibilizar a segunda parte. Para além de informação sobre preços que se praticavam em 1972, em Bissau, o aerograma tem outro interesse documental, por nos dar conta das primeiras impressões de um "periquito" chegado à Guiné, "uma terra onde todas as pessoas nos parecem suspeitas, e hostis, e logo por azar nem bebidas há na cantina"... 


Transcrição  [fixação e revisão de texto: LG]

Cumeré, 27/6/72  1ª [folha]

Meli, saudosa e querida: 

Espero desde já dar-te um pouco de alegria com as poucas notícias que vou passar a contar-te, ou tristeza, isso depende de ti.

Devo dizer-te que o resto da viagem decorreu bem, e sinto-me para já óptimo.

No que diz respeito às impressões que me causou a Guiné, devo confessar-te que me sinto maluco, um calor que nem em calção se suporta, uma terra onde todas as pessoas nos parecem suspeitas, e hostis, e logo por azar nem bebidas há na cantina. A água parece que foi aquecida ao lume, e há pouca.  A única satisfação que me resta é que aqui não há guerra, e a vida que levo é boa, só tenho a dizer que isto não interessa a ninguém pelo resto.

Cumeré situa-se a 6 km de Bissau, mas para se chegar lá tem que se percorrer 45, por não haver estradas a direito, e ter um rio muito largo.

Eu vim para Cumeré separado da minha companhia, juntamente com mais 6 condutores, e só daqui a três semanas é que me junto a ela, por isso, embora me escrevas, não receberei correspondência de qualquer espécie, a não ser daqui a essas três semanas. Terei que ter paciência e suportar esse tempo, depois provavelmente recebo tudo junto, não tenho alternativa e resigno-me.

2ª [folha]

Espero que mesmo assim não me deixes de escrever, porque eu farei o mesmo. 

No local onde me encontro é um quartel  de instrução de adaptação ao terreno para condutores, e de I.A.O., e estão aqui mais de 600 homens, entre eles mais de 20 colegas de Penafiel, e conhecidos da recruta, etc., etc. Foi bom assim, [pois não me] sinto só.

A única coisa que me lixa é  a falta de bebidas, e o calor sufocante que aui está é insuportável. Além disso, os mosquitos  não nos deixam dormar, é uma loucura uma pessoa vir para aqui, mas não temos outro remédio, e temos que aguentar, ou melhor ou pior.

Aqui nos subúrbios do quartel há um bar, dirigido por um branco, onde servem refeições. Eu fui lá almoçar, pois aqui a comida não presta. Fiquei cheio de fome, e paguei 70$00, as cervejas são  a [...]


Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Excerto do poste P18002 (***):

(...) Estou agora a lembrar-me que fui sempre um pouco medricas e mesmo que, ao chegar a Bissau, tivesse sido separado dos meus camaradas da 3ª companhia porquanto eles foram para Bolama e eu fui para Cumeré. O que é certo, por aquilo que escrevi, logo no primeiro dia que pisei solo africano, não tive um receio por aí além. Dizia eu!

“Em Cumeré estamos a tirar o I. A. O. (Creio que a sigla significa: Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) Aqui não há guerra mas as pessoas parecem-me todas hostis. Neste quartel estão cerca de 600 homens. O calor é sufocante e não há bebidas frescas, nem grande comida e se eu achava caro uma refeição no Porto custar7$50, já me avisaram que fora do quartel custa 70$00. Vê bem que ladrões. Acho que são brancos que vivem a explorar os 'Periquitos' como nós”. (**)


3. Comentário do editor LG:

Usando o conversor da Pordata, verificamos que 7$50 e 70$00 em 1972 valeriam hoje (2023),  2,00 €  e 18,00 €, respetivamente. 

Ao escudo ("peso") da Guiné (emitido pelo BNU - Banco Nacional Ultramarino), temos que abater 10% (de acordo com a taxa de câmbio que se praticvaa então em Bissau)...Se uma refeição no Porto custava, a preços de hoje, 2,00 €, em 1972, em Bissau, custaria  16, 2 €  (=18 € x 0,90).

Em 1969, uma refeição (bife com ovo a cavalo + cerveja) em Bafatá, no restaurante "Transmontana", custava-me  20 "pesos", o equivalente, hoje, a 6,30 €  (=7 €  x 0,90).

Como se vê, de 1969 para 1972, a inflação (ou a especulação, típica da economia de guerra) deu cabo do patacão dos desgraçados dos combatentes que íam parar com os quatro costados à Guiné!

Uma explicaçáo sobre o converssor da Pordata: 

"Esta ferramenta permite converter para preços do ano corrente qualquer montante monetário do passado, desde 1960, utilizando o deflator anual do Índice de Preços no Consumidor (IPC) "base 2012". Trata-se de transformar valores a preços correntes/nominais em valores a preços constantes/reais, descontando a inflação"
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Notas do editor:

(***) Último poste da série > 23 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24581: Facebook...ando (33): António Alves da Cruz, ex-fur mil, 1.ª CCaç / BCAÇ 4513 (Bolama, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, mar1973 / set 1974); vive em Almada

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20274: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VII: Em Fulacunda, também havia milagres...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  A famosa "torre de vigia" que já existia no tempo dos Boinas Negras, a CCAV 2482 (1968/70)


Foto: © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte VII


[ Foto acima: Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]





Estou a viver os primeiros dias em Fulacunda e os dias irão decorrer de acordo com a normalidade corresponde às razões da nossa mobilização.

Oficiais e sargentos partilham uma messe conjunta e periodicamente faziam-se umas paródias de confraternização. Cantava-se, improvisavam-se instrumentos musicais e o "Pitchas", como era alcunhado o Zé Luís, arranhava na guitarra. O Comandante acompanhava ao xilofone e eu tinha uma bateria improvisada com os invólucros das munições do obus 10,50cm, que tinham um som estridente e ao mesmo tempo suave. Tocava com umas "baquetas" que um soldado tinha feito de forma artesanal. Havia dois ou três dos presentes que emprestavam a voz e lá íamos comendo uns camarões e bebendo umas "cervejolas".

Periodicamente, o nosso 1º Sargento trazia-nos de Bissau uns camarões que constituía sempre uma noite especial.

Com os meus soldados do 22º PEL 
ART (Pelotão de Artilharia) e a colaboração sempre imprescindível dos meus camaradas e amigos, os furriéis Jacinto e Branco, íamos construindo os espaldões para os três obuses 10,50cm que tinham sido posicionados junto à pista de aviação.

Algumas árvores foram abatidas para permitir a redução do chamado "ângulo de sítio",  sempre que se fizesse fogo com os obuses e, mais importante, podermos fazer tiro direto.



Embora estes trabalhos 
tenham sido levados a efeito pelos soldados da artilharia, não devo esquecer aqui a ajuda de soldados "Boinas Negras” [, CCAV 2482, Tite e Fulacunda, 1968/70], do qual o único que mais me marcou foi um rapaz chamado Lérias. Corpulento de físico, mas com uma disponibilidade para ajuda e uma alma grande como se ajudasse os amigos da paróquia.

Sempre atento, o Comandante [, cap cav Henrique de Carvalho Maia,] indagava-me se tudo estava bem e se precisava de alguma coisa.

Recordo que aos fins-de-semana havia futebolada. Por vezes a disputa era acesa e a luta aquecia. Era o reflexo da adrenalina que vinha ao de cima e que era necessário controlar q.b.


Um dia sou convidado para jogar. Recusei, porque não era dotado para aquela prática, ao contrário do Jacinto que era um craque e por isso sempre disputado para a equipa A, ou B. Havia também um rapazito africano, o Seco, nome de um jovem de Fulacunda que trabalhava na messe conjunta dos Oficiais e Sargentos, servindo à mesa.

De vez em quando éramos alvo de umas rajadas de "costureirinha" [ A irritante Shpagin PPSH 41, de calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha", de origem soviética]. Embora o aquartelamento fosse defendido segundo o método de "postos avançados" e com a artilharia sempre a postos, normalmente não se respondia ao fogo IN, por ser de fraca in
tensidade. 


Se bem me lembro, enquanto eu estive em Fulacunda, teremos respondido ao fogo uma ou duas vezes. Da que tenho mais presente, mas cuja data não menciono aqui, deu-se ao fim da tarde de um determinado dia, com morteirada forte.
Perto da hora do jantar estamos na messe.  Com o fogo intenso, o Comandante sai para subir à "torre de vigia" para tentar referenciar a origem do fogo e por analogia a posição do IN. Sigo o Capitão e,  na subida à torre pela escada exterior, passa-nos um rocket, que de raspão bate na parede da torre e não explode. É aí que sinto ficar ferido muito ligeiramente no braço esquerdo.

- Vem do lado da pista! -  grita o Comandante.

Desço da torre de vigia com a intenção de me deslocar rapidamente para os obuses.  Um dos alferes dá-me a chave de um dos jipes e vou acelerando para junto da pista onde estavam os 10,50cm.

Junto à casa do antigo Chefe de Posto, uma morteirada cai a uns 80 metros à frente do jipe. Um clarão que não impediu que o jipe se desviasse do trajeto. Sigo em frente e, já junto aos obuses, dou instrução de tiro:

- Vamos apontar para a orla da mata, rápido, rapazes, vamos lá mostrar como se faz fogo.

Os três obuses continuam a fazer fogo por cima da pista para a orla da mata. O IN, entretanto, tinha cessado o fogo.

Passados uns minutos, tudo fica em silêncio. A tensão mantém-se, o alerta é total.

Já não tenho presente o detalhe da situação, mas lembro-me de o Comandante ter chegado junto dos obuses um pouco "exaltado", por não estarmos a fazer fogo para o local que ele tinha identificado quando fez a observação da torre de vigia. Teríamos feito tiro na direção correta, mas para a orla da mata, estando o IN, entre a orla e a pista de aviação. O tiro passou por cima.

Ainda estamos nesta fase de tensão e eis que chega junto dos obuses o alferes que me tinha dado a chave do jipe. Ele estava confuso e confuso eu fiquei quando me diz que a chave que eu trouxe não era do jipe que eu tinha 
conduzido. Que teimosia se estabeleceu... Fomos experimentar.

Na verdade, a chave que eu tinha não entrava na ignição do jipe que eu tinha trazido. Experimentou-se com a chave que o alferes trazia na algibeira e foi uma "palhinha",  entrou na ignição e o jipe começou a trabalhar que nem uma máquina de costura.

Curiosidades destes aspetos da guerra. Afinal, não deve haver milagres, mas na ânsia de pôr aquele jipe a trabalhar devia ter enfiado a chave com mais pressão que a normal. Suavemente não entrava.

Mas..., ainda estávamos no rescaldo do ataque IN.

Pela manhã cedo do dia seguinte, um pelotão sai do aquartelamento e vai em reconhecimento ao local de onde se supunha ter vindo o ataque no dia anterior. Solicito autorização ao Comandante para acompanhar o pelotão de reconhecimento, que me foi concedida.

Após alguns minutos de marcha com a cautela que as condições recomendavam, lá encontrámos, em frente á pista de aviação, os vestígios do grupo terrorista atacante de véspera. Várias "camas" no chão sobre o capim vergado, com invólucros de munições espalhadas e vestígios diversos de que houve ali gente.

Passámos pela orla da mata e verificou-se a zona de fuga do IN.

De volta ao quartel, passámos pela pequena capela existente no aquartelamento onde os crentes podiam fazer as suas orações e assistir à realização da missa.

Um grupo de soldados está junto à capela,  o que revelou que algo se passava aos que se aproximavam. A Capela tinha sido construída sem a parede frontal e o telhado era de zinco. Na parede de topo da Capela, havia um nicho, estando nela colocada uma imagem de Nossa Senhora. Mas qual o espanto e a justificação de tantos à volta e dentro da capela, naquele preciso momento?

É que a capela tinha sido atingida com mais do que uma morteirada, a avaliar pela picagem das paredes e do estado das chapas de zinco que constituíam a cobertura. Perante tais morteiradas, tudo pareceria normal, não fosse o facto de o nicho e a imagem de Nossa Senhora estarem intactas. Isto é, sem o mais pequeno vestígio de estilhaço. Na prática, o telhado de zinco quase tinha ficado desfeito, as três paredes de suporte da Capela todas picadas pelos estilhaços da explosão das morteiradas.

A perplexidade de todos era, sem dúvida,  a circunstância da imagem de Nossa Senhora e o nicho onde esta se encontrava estarem incólumes.

Milagre, clamavam alguns..., mas, a vida é o que é e a crença pertence a cada um. O respeito por situações não compreensíveis ou inexplicáveis à luz da razoabilidade é o mínimo que se deve ter.

Os "Boina Negras" tinham uma relação fácil, amistosa e recíproca com grande parte da população de Fulacunda. Havia muitas crianças que, no tempo de "inverno", corriam contra o vento com uns panos passados pelos ombros acompanhando os braços, parecendo "Ícaros" a pretenderem levantar voo. 


No período em que eu estive em Fulacunda estes meninos não tinham escola. Porém, pouco tempo depois da minha saída passaram a ter aulas com a chegada de professoras primárias, naturais da Província. 

(Continua)
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Nota do editor:


ÚLtimo poste da série > 20 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20122: (De)Caras (135): Carlos Marques de Oliveira, membro da Magnífica Tabanca da Linha, ex-fur mil, Pel Mort 2115, 5º Pel Art e 7º Pel Art (Catió e Cabedu, 1969/71): tive o privilégio de comandar valentes artilheiros


Guiné > Região de Quínara > Fulacundia > Obús 10.5 [ Foto do álbum de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)]

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do nosso camarada Carlos Marques de Oliveira, membro de A Magnífica Tabanca da Linha (desde  2 de maio de 2017), natural de Lisboa, vivendo em Sintra [, tem página no Facebook, temos cerca de 150 amigos em comum: fica desde já convidado para integrar, de pleno direito, a Tabanca Grande, com o nº 796, a seguir ao Domingos Robalo, o nº 795] (*)


Meu caro Domingos Robalo, felicito-o pelo poste sobre a artilharia na Guiné. (*)

O mundo é pequeno. Para além de termos viajado no Niassa de 7 a 12 de Maio de 1969, foi meu instrutor na BAC1/GAC7, quando da minha formação artilheira, de recurso. Fiz parte do grupo de Furriéis e Alféres Milicianos Armas Pesadas de Infantaria que recebeu instrução de Materiais e Tiro de Artilharia tendo sido colocado no 5º Pel Art  em Cabedu e mais tarde, por falecimento em combate do 2º Sarg. Issa Jau, no 7º Pel Art  em Catió. 

Tive a honra e o privilégio de comandar valentes artilheiros. Conheci pessoalmente o Sarg. Issa Jau, que admirei, pois o meu Pel Mort 2115 foi colocado de reforço ao BART 2865 em Catió. 

Na fotografia dos artilheiros de Catió está o então major de artilharia António José de Mello Machado, 2º Cmdt do BART 2865,  mais tarde promovido a ten cor,  passando a comandar o BART até final de comissão. (*)

Meu caro Luis Graça, obrigado pela possibilidade que nos tens dado de podermos partilhar e recordar tanto do que todos nós , os que estivemos na Guiné , temos de comum. Tanto que temos para conversar. 

Um abraço,  Domingos Robalo, e quero que saiba que a instrução que recebemos valeu a pena. Não o deixámos ficar mal.

Carlos Marques de Oliveira (**)
Magnífica Tabanca da Linha
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quarta-feira, 24 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19713: Fotos à procura de... uma legenda (115): os nossos aposentos "bunkerizados"... com "climatizadores de pesadelos"!


Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O alf mil at art Torcato Mendonça, ao centro, num dos abrigos subterrâneos do aquartelamento, onde as fotos das estrelas de cinema (,, "mulheres fatais" como Catherine Deneuve, por exemplo) ajudavam os jovens, nos seus verdes anos, a alimentar e a sublimar o ardente desejo... de viver (e sobreviver)!... Com Lisboa e o Porto, tão longe... e Bissau pelo meio, mas só para alguns privilegiados. Ah|, e ainda ficava longe, Mansambo, a 80 km, das garotas do Bataclã de Bafatá!... (*)

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2006).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné]


Foto nº 2 > Guiné > Região de Gabu > Nova La,mego > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > O alf mil SAM Virgílio Teixeira escrevendo uma carta à namorada, a Manuela, sua futura esposa e mãe dos seus filhos (, vd. retrato em cima da mesa de cabeceira, à esquerda)  no seu quarto, cuja decoração era igual a tantas outras naquele tempo e lugar... A G3 ficava em cima, pendurada na parede, ou ao lado da cama. 

Foto (e legenda): ©  Virgílio Teixeira (2019).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné]


Foto nº 3 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > A estante do quarto (, de 3 x 2 m,) dos "Mórmones de Fulacunda": o Dino, o Omar, o Meira e o Lee. à esquerda e à direita, dois beliches (quatro camas). Foto do  álbum do José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) (**)

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4740 > 1973 > "Uma farra das NT"... O fotógrafo, o alf mil at inf Luís Mourato Oliveira,  é o segundo, a contar da esquerda para a direita

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Qual a diferença entre as duas primeiras fotos de cima, tiradas a cerca de 140 quilómetros de distância uma da outra, mas sensivelmente na mesma época  (1968)? Mansambo ficava a sul de Bambadinca, a meio caminho, na estrada Bambadinca - Xitole - Saltinho (c. 60 km).  O "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamava a "Maria Turra"... Foi construído de raiz, a pá e pica, pelos bravos "Viriato" da CART 2339.

Em geral, os alferes milicianos partilhavam um quarto a três, os furriéis a cinco ou seis, nas sedes de Batalhão (Bambadinca, por exemplo, onde só os oficiais superiores e os capitães tinham direito a "quarto privativo")... O "povo", esse, dormia a granel...

Nas unidades de quadrícula, uns viviam em "bunkers" (ou melhor, "bu...rakos"), em abrigos subterrâneos (caso de Mansambo). Mas a decoração não variava muito: fotos de "garotas", "pinups", modelos fotográficos, artistas de cinema, em poses mais ou menos ousadas, tanto quanto a moral e os bons costumes o permitiam nessa época... Eróticas q.b., mas não nunca pornográficas (sexo explícito)... 

A foto nº 3  tem já cinco/seis anos de diferença, bem mais próximas do fim da guerra, c. 1973/74... Já o puritanismo de Salazar & Cerejeira estava a passar à História...  É do quarto (partilhado) do nosso camarada José Claudino da Silva, um dos quatro "mórmones de Fulacunda"... Surpreendentemente, era um aposentotado, minúsculo (, d e 3 x 2 m),  austero, puritano,  com dois  beliche (4 camas ), e um espécie de móvel encostado à parede, a servir de mesa de cabeceira  e estante, e onde ao que parece, só entravam as fotos... das castas... namoradas dos "mórmones" (**).

A foto nº 4 faz parte de um conjunto a que o fotógrafo chamou "farra das NT",   muito reveladores do universo concentracionário em que se vivia na Guiné, nos aquartelamentos e destacamentos das NT. "É a caserna na sua intimidade"...

A  CCAÇ 4740, era constituída por pessoal açoriano.  Centena e meia de homens, machos, na flor da idade, cheios de testosterona, partilhavam espaços reduzidos, geralmente sob a forma de toscos "bunkers", semi-enterrados, construídos de troncos de palmeira, chapa, bidões, terra e argamassa, e onde coabitavam com os bichos (mosquitos e demais insector, roedores, répteis) e a atmosfera era muitas vezes irrespirável, devido à multiciplicidade de cheiros,  à humidade, ao calor, à semi-obscuridade, à sujidade, ao pó ou à lama (conforme a estação do ano: época das chuvas ou época seca)... Noutros casos, eram verdadeiros "armazéns de depósito de material humano", com cobertura de chapa de zinco, onde era quase impossível permanecer durante o dia, devido à temperatura e humidade tropicais...

A ventoinha  era um luxo, só para alguns, e só durante escassas horas da noite, quando se ligava o gerador... Nestas "casernas do mato", os homens viviam, conviviam, comiam e dormiam quase sempre em tronco nu, de calções e chanatas.. O álcool, o tabaco e as cantorias, além das jogatanas de cartas, eram dos poucos escapes que a malta tinha nas "horas vagas"... Os dias sucediam-se aos dias, perdia-se a noção do tempo... Deixa-se crescer o bigode, contra os regulamentos, para se parecer mais bravo e macho.

No meio de toda esta promiscuidade, salvava-se a amizade, a solidariedade, a camaradagem... E cada companhia que chegava procurava melhorar, para si e para os vindouros, as condições de vida que encontrava... Se a guerra tivesse durado 100 anos, como alguns queriam, estou ciente que em Cufar já haveria hoje painéis solares, ar condicionado,   bar aberto e umas "ervas"... (E claro, militares de ambos os sexos, se bem que em aposentos separados; no nosso tempo, as únicas camaradas que tínhamos eram as enfermeiras paraquedistas, que causavam sempre algum alvoroço sempre que  vinham a "terra", isto é, à sede de algum batalhão, presenciei isso em Bambadinca...).

Temos, no nosso blogue, uma série sobre "Os Bu...rakos em que vivemos" que pode ser revisitada e que queremos retomar... Na realidade, não eram "bunkers" de cimento armado à prova de canhão s/r ou morteiro 120 (com raras exceções, como era o caso de Gandembel e de Guileje), mas verdadeiros "bu...rakos" a que  chamávamos pomposamente... "abrigos"... De Cafal Balanta a Mato Cão, de Mampatá a Banjara, da Ponte do rio Udunduma a Ponte Caium, de Sare Banda a Missirá, de Madina do Boé a Copá..., a Guiné era, toda ela, uma terra "es...bu...ra...ka...da". 

Os "posters" / cartazes / capas de revistas com "meninas" mais ou menos "despidas" ajudavam-nos, ao menos,  a "climatizar" os nossos pesadelos (***)..

Vá lá, caros/as leitores/as, arranjem as vossas legendas para estas fotos... dos nossos verdes anos, passados lá na Guiné, quando ela ainda era "verde e rubra. Tínhamos, muitos de nós, "aposentos bunkerizados", daí o necessário  recurso aos "climatizadores de pesadelos" (****)... LG
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domingo, 9 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19270: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 72 (Fim): Fui com a ideia de que aquela terra era Portugal, quando parti para lá; regressei com a ideia de que estava num país estrangeiro.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > O Dino,  num posto de sentinela

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


José Calduno da Silva, chaperio em Amarante
1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria"), do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):


Chegamos ao fim da viagem do "Dino" pelas suas memórias de Fulacunda, socorrendo-se do seu "roteiro literário-sentimental".

No capº 72, o último, conta como o exército lhe transmitiu, nove dias depois, a notícia da morte da sua mãe, Mabilde da Silva...

O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. 

Ver aqui nota detalhada dobre o autor e  a sinopse dos postes anteriores.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto,
3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cap 72º (Fim)


72º (e último) Capítulo: A MENSAGEM
José e Amélia


Quando aconteceu o maior drama por mim vivido nessa terra, já não devia estar lá.

Reconhecida internacionalmente por muitos países como Guiné-Bissau desde 1973, ainda hoje há quem pense que aquela terra era Portugal. Foi com essa ideia que parti para lá. Regressei com a ideia de que estava num país estrangeiro.

No dia 10 de Junho de 1974, cerca das cinco horas da manhã, sua excelência o senhor capitão Serrote chamou-me ao seu gabinete para me ler uma mensagem que o Jorge operador cripto decifrara:

- “Saiba nosso cabo que é com imensa pena e pesar que o informamos do falecimento da sua mãe. Condolências em nome do exército português”.


Creio terem sido estas as últimas palavras que ouvi da boca do meu capitão que ficou com o papel na mão.

 “Em meu nome pessoal e de todos os elementos da nossa companhia lamentamos a sua perda. Sentidos sentimentos”.

Devia terminar aqui este livro mas a minha guerra “Em Nome da Pátria” continuou e, embora algumas coisas não as possa provar, por muito inimagináveis que lhes pareçam, são verdadeiras.

Exactamente, no mesmo dia em que recebo a notícia da morte da minha mãe, uma enorme conjugação de casualidades permitem-me fazer algo digno dum filme de James Bond. O meu 1º sargento, um homem acérrimo defensor da lei, acede a um pedido meu.

“Toda a companhia sabe que estou doente, por favor peça uma evacuação urgente e mande-me para o hospital de Bissau”.

Ainda hoje me parece ver a sua cara de espanto ao meu pedido. O que é certo é que, contra tudo e todos, sem tampouco informar o capitão e com a ajuda do meu amigo de transmissões, requisitou uma evacuação urgente. Quatro horas depois, estava em Bissau. Acho que ainda hoje ninguém sabe o que foi aquela avioneta fazer a Fulacunda. Eu pura e simplesmente desapareci. Iria aparecer mais tarde.

EPÍLOGO

Apenas trouxe comigo a farda de saída, o meu correio e fotografias. Tudo o resto, desde a G3 aos artigos do meu negócio, ficaram para trás num canto da cantina.

Mal a avioneta aterrou em Bissalanca, fui de táxi ter com o sargento Leão, pedir-lhe para me arranjar bilhete para a Metrópole. O 1º sargento Leão tinha a mala pronta para partir no dia seguinte, num avião da TAP. Vinha à Metrópole tratar de assuntos pessoais. Ainda teria de regressar. Achava ser impossível conseguir bilhete para mim, a menos que alguém desistisse, mas ia tentar.

Recordo que naquele tempo sair das colónias era uma prioridade para muitos civis, embora na Guiné não fosse tão grave como, por exemplo, Angola. Foi uma senhora vestida com uma saia vermelha e blusa preta, esposa dum oficial da polícia, que ao ouvir o drama que eu estava a passar conseguiu o bilhete. Custou seis contos mas, no dia seguinte, viajei para a metrópole, ao lado do sargento Leão.

Embora eu não tivesse intenção de o fazer, vou dizer-lhes quem era o sargento Leão.  Trabalhei na Garagem Auto Seroa, em Paços de Ferreira, em 1969/70/71. Um dos meus patrões tinha um irmão no exército: era o Sargento Leão que em boa hora encontrei na Guiné.

No dia 11 de Junho, logo que aterrámos em Lisboa, liguei para Penafiel. Foi para a loja do Sr. Amaro que me conhecia muito bem. Identifiquei-me e perguntei se sabia dizer-me o horário do funeral da Senhora Mabilde da Silva, a minha mãe.

"Ó Claudino,  o funeral já foi há dias ela morreu no dia 1, rapaz."

A minha Pátria demorara 9 dias a cumprir a sua obrigação de me informar da morte da minha mãe. Eu cumpri muito melhor a minha parte.

Para mim, a minha mãe viveu mais tempo do que na realidade viveu. Jamais perdoarei os dirigentes do meu país na época me fizeram.

O Leão ficou comigo até há hora do comboio e viemos os dois de Santa Apolónia até Campanhã.

Omiti até agora tudo o que fui lendo em que me referia à minha mãe. Não foi muito. A minha mãe não teve meios de me criar e entregou-me à minha avó. Isso nunca impediu de a respeitar; orgulho-me da minha mãe. Sem ela, eu não estaria aqui. Só passei uma festa com a minha mãe: Foi o último Natal, antes de assentar praça. Ainda bem que o fiz!

Reapareci a 27 de Agosto de 1974 no anexo do hospital militar em Campolide. Deram-me dois comprimidos enquanto lá estive, três semanas. Estava a piorar e os médicos não me ligavam nada. Sem passar cartão a ninguém, mais uma vez desapareci.

A minha companhia foi extinta em 26 de Setembro de 1974. Fui esperá-los a Lisboa. Os meus camaradas estiveram mais 112 dias na Guiné do que eu. Voltei a ser no fim, tal como fora no início, um privilegiado.

Quando pensava que já me chamava José Claudino da Silva, ainda surgiria nova situação caricata.  O meu colega de trabalho (aquele sim!), o Abreu, pintor de automóveis, foi para a tropa alguns meses depois. Especialidade: cabo escriturário, colocado em Penafiel. Foi incumbido, juntamente com um tenente, de trabalhar no dossiê  dos desaparecidos nas províncias ultramarinas.

Foi isto que ele me contou! 

“ Quando vi que o teu nome estava lá, disse ao tenente. Vai-me desculpar, senhor tenente,  mas este nome conheço-o. O 1º cabo 158532/71 José Claudino da Silva não está desaparecido. Ele é chapeiro e trabalha na mesma oficina onde eu trabalho. Sei bem o nome dele José Claudino da Silva”.

Claro que fui chamado e apresentei-me no R.A.L. 5 para esclarecer a minha situação. Na minha caderneta militar, passei à disponibilidade em 23 de Setembro de 1975. Durante o meu “desaparecimento” da tropa, aproveitei para casar com a Amélia.

Na minha caderneta militar e na página das ocorrências extraordinárias, estão as frases:

1975. Transferido para o R.A.S.P. desde o dia 1 de Maio.
Reunida em sessão no H.M.P. confirmo o soldado 158532/71

APROVADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR

(LÁ VAMOS COMEÇAR TUDO DE NOVO)



VENCEU A POESIA

FIM

7 de Outubro de 2017

Texto original da autoria de
José Claudino da Silva

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