sábado, 21 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21565: Os nossos seres, saberes e lazeres (424): Na RDA, em fevereiro de 1987 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Passados estes mais de 30 anos desta visita à República Democrática Alemã, ainda hoje é mistério indecifrável a natureza do convite, a cornucópia das visitas, isto tudo a despeito do embaixador Julian Hollender me ter perguntado quais as cidades que me interessavam visitar, se havia algum museu em especial, que informações pertinentes eu desejaria obter daquele país tão pacífico, tão cooperante, tão amigo da paz.
Sabia das belezas de Dresden e de como o centro histórico da cidade se ia reerguendo das cinzas depois dos grandes bombardeamentos de fevereiro de 1945; Berlim era um fascínio, lera a obra de Trevor-Roper e vira o filme com Alec Guiness, Os Últimos Dez Dias de Hitler, e obras posteriores, Berlim calcinada, dividida, uma verdadeira fronteira da Guerra Fria. Recebi informações que poderia ter recebido de outras procedências, umas em comunicação vívida, outras em tom sorumbático, e o trabalho de reconstrução de Berlim, a despeito de uma arquitetura moderna de um gosto um tanto duvidoso, era de tirar o chapéu. Empolguei-me com a descoberta deste caderno que me veio reavivar um universo político que desapareceu, conversas que hoje são puros anacronismos, mas algo ficou e que se chama gratidão por quem me deu a possibilidade de percorrer aquela linha da Guerra Fria sempre com a perceção de que algo estava prestes a acontecer, mas ainda um sentimento indefinível.
Dois anos depois, repimpado em frente do televisor, aquele muro começou a ser demolido e a civilização europeia andou mais depressa.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (4)

Mário Beja Santos

Os meus anfitriões não querem que eu saia da República Democrática Alemã sem saber como atua o país em prol da paz, questiono-me a toda a hora o que pretendem estes mestres da comunicação quanto ao que eu devo trazer para Lisboa, já levei uma boa ensaboadela sobre a Acta Final de Helsínquia, as relações com a República Federal Alemã, como é imprescindível haver a todo e qualquer momento equilíbrio militar, as vantagens em reduzir armas, tropas e despesas afins que deviam estar voltadas para o desenvolvimento. Os EUA têm sido os obreiros deste inferno, serventuários do complexo militar industrial. A RDA procura em todos os órgãos internacionais mostrar como está o serviço dos direitos humanos, o Ocidente repudia qualquer hipótese de fazer uma conferência em Moscovo sobre direitos humanos, a RDA propôs Estocolmo, no âmbito da segunda fase da conferência sobre desarmamento e cooperação na Europa. Tudo isto que eu estou a ouvir está a acontecer numa sala bastante austera do Ministério dos Negócios Estrangeiros, perto de tudo o que eu tenho vindo a apreciar, desde a Catedral de Berlim, toda a Unden den Linden, a Ópera, onde parece que irei esta noite ou amanhã. Não sei por que carga de água, mas entrou há minutos na sala alguém bem engravatado que veio com a missão de me esclarecer de que a RDA e o seu Partido-Estado tudo faz para ter boas relações com a Internacional Socialista, começo a ter medo e ainda vou sair daqui diplomado em relações internacionais. Alguém na mesa me informa também que está a ter lugar uma conferência sobre os 750 anos da cidade de Berlim e pede-me algumas sugestões sobre a participação portuguesa. Apanhado de chofre, ocorreu-me propor que se tivesse em conta o que aconteceu em Berlim em 1884 e 1885, uma conferência de repartição colonial, Portugal mandou conveniente representação, saiu com garantias que as parcelas do seu império não eram cobiçadas por outrém (pura mentira) e passou-se a ter a certeza que era uma fatura carota, havia que ocupar os territórios coloniais. Não sei se falei de mais ou de menos, com entusiasmo sim, coisa que não vi nos rostos impenetráveis dos circunstantes. Um dos diplomatas olhou para o relógio e avisou-me que a minha agenda continuava, eu ia visitar o Bairro Nicolau que ficara totalmente destruído durante a Batalha de Berlim, em abril de 1945.
Era assim a arquitetura na Berlim (RDA) em 1987
Bairro Nicolau na atualidade
Câmara Municipal de Berlim junto do Bairro Nicolau
Igreja do Bairro Nicolau

Somos recebidos no Bairro Nicolau pelo arquiteto Viktor Schlichte que começou por dizer que Berlim era uma cidade relativamente nova, o que achei estranho pois logo adiantou que fora fundada no século XII, e que na Idade Média era altamente planificada, o centro era a praça do mercado e à sua volta o Bairro Nicolau. Parecendo que estava a falar de igual para igual, o meu anfitrião disse-me com ar muito sério que temos que analisar os aspetos arquitetónicos como espelho das relações sociais, e não esquecer que as cidades mais velhas são as mais ricas em cultura, era assim o Bairro Nicolau, onde havia mostras dos estilos românico, gótico, renascentista, barroco e do classicismo, tudo seriamente afetado pelas destruições da guerra. A reconstrução do Bairro Nicolau, por decisão governamental, pretendeu recriar um conjunto arquitetónico novo, com referências ao passado e espaços verdes. Fora chumbada a proposta de reconstruir ali a Berlim da Idade Média. A proposta vencedora assentava numa arquitetura contemporânea em estreita ligação com a Berlim original. Tinham-se perdido, foram devorados pelo fogo, os antigos projetos, tudo quanto era desenho das praças e edifícios, reconstruiu-se a Câmara Municipal, fez-se uma ligação entre o Bairro Nicolau e a área da Câmara sem esquecer o rio Spree, fez-se uma promenade, houve muita crítica. Reconstruiu-se a Igreja do Bairro Nicolau, que era uma basílica românica, cujos fundamentos foram encontrados nas escavações e que passou a ser o vestígio arquitetónico mais antigo e que tem uma estreita ligação com a fundação de Berlim. Gerald olha para o relógio, pede desculpa ao Sr. Arquiteto, temos que seguir para a etapa seguinte, pede licença para regressarmos amanhã de manhã, o ilustre convidado da RDA será recebido amanhã de manhã aqui perto, o mesmo é dizer no Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo embaixador Hans Vogel, se podemos visitar a Igreja Nicolau às 9h30. O Sr. Arquiteto diz que sim, a despedida é efusiva. Entramos no carro e Petra Peterson anuncia-me que vamos visitar o Memorial de Treptow. Devo ter feito uma expressão de completa surpresa, nunca ouvi falar no Memorial, não sei do que trata.

Ministério dos Negócios Estrangeiros da RDA, felizmente já demolido

Gerald arruma o carro e anuncia-me triunfante que estamos no Parque de Treptow. Dada a minha ignorância, pergunto a Petra a que se deve esta visita, parques há muitos. E então vem a história. Que depois de finda a II Guerra Mundial os Soviéticos construíram vários monumentos, terão perdido cerca de 80 mil homens na Batalha de Berlim, Treptow é um parque-cemitério, tem um vasto conjunto de esculturas alusivas à Grande Guerra Pátria, é melhor eu percorrer cuidadosamente todas essas esculturas até chegar ao grande monumento, eu que circule à vontade, não preciso de guia. O parque é imenso, as esculturas disseminam-se nesta vastidão, o silêncio ajuda à contemplação, guerra é dor, destruição, dispersão calamitosa. Ando por ali no meu próprio passo, volto à guerra que fiz na Guiné, sem aqueles tanques nem aquelas batalhas, mas conheço aquelas expressões de sofrimento incomensurável, os olhos lacrimejam, o coração aperta-se, a surpresa é total, ando de escultura em escultura de arte estalinista, todo este monumento foi inaugurado em 8 de maio de 1949, virá a ser vandalizado com a queda do Muro de Berlim, não voltei lá, mas não me importaria absolutamente nada de lá regressar. Enxugo as lágrimas, por mim já chega, Petra e Gerald esperam-me à entrada, anunciam-me que vamos almoçar numa residência apalaçada onde viveu o marechal Gueorgui Zhukov, e depois, diz-me Petra com o sorriso de orelha a orelha, o ilustre convidado vai receber o prémio desta visita, será hoje que irá contemplar uma das 7 Maravilhas do Mundo, ou talvez a oitava, o Altar de Pérgamo, mas também a Porta de Istar, de Babilónia e a entrada do Mercado de Mileto, uma preciosidade da Grécia Antiga.
Soldado a salvar criança, detalhe do Memorial de Guerra Soviético em Treptow, Berlim
Detalhe das esculturas do Memorial de Guerra Soviético

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 14 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21542: Os nossos seres, saberes e lazeres (420): Na RDA, em fevereiro de 1987 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (423): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (423): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Paisagem para lá do Sabor


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 4 de Novembro de 2020, desta feita com uma memória de Remondes:


REMONDES

Nesse tempo, já fartos de conhecermos todos os caminhos e limites da nossa aldeia, as terras próximas eram mundos desconhecidos a explorar. Dado que Brunhoso estava situado num baixio, início de dois vales, que nos meses de chuva alimentavam dois ribeiros caudalosos que levavam muita água ao rio Sabor, nenhuma das cinco terras em redor se conseguia avistar. Desde tenra idade ouvia falar delas frequentemente aos mais velhos, por vezes passavam mesmo lá por casa parentes que viviam nelas, sobretudo primas próximas ou afastadas da minha mãe (Paradela e Soutelo) e outros primos mais afastados do meu pai (Remondes e Castro Vicente). Havia uma amizade genuína entre eles que se manifestava em cumprimentos calorosos e na oferta das melhores primícias do ano, figos, maçãs, peras, melões de quem vinha e dos melhores acepipes da casa para os visitantes, alheira, chouriça, salpicão, etc.. Gostava dessa atmosfera de afecto que tanto podia surgir num dia de festa, como noutro dia qualquer do ano. Por este e por outros motivos, a minha infância e adolescência ficou para sempre ligado a essas terras tão próximas da minha. Dentre todas a mais próxima, era Remondes, que deve a sua notoriedade à Ponte de Remondes, conhecida em todo o Norte, pela sua beleza e utilidade, agora submersa pelo lago formado pela Barragem do Sabor.

A velha Ponte de Remondes, agora afundada pela Barragem do Sabor.

Saindo de Brunhoso, a norte, pela Malhada, seguimos pela Faceira, Francos, onde há muita água e havia muitas hortas, depois o Sobreirinho, com um quilómetro de caminho plano, ladeado de grandes sobreiros. A entrada mais próxima e directa leva-nos ao cimo da povoação perto da escola primária, no fundo das eiras. Eiras que havia em quase todas as aldeias do Planalto, eram grandes espaços comunitários onde se malhava o trigo, o centeio e outros cereais. Fora do tempo das colheitas, sobretudo na Primavera, eram um enorme prado verde, para onde os moradores, geralmente os que não tinham lameiros ou regadas, levavam os burros, mulas, e vitelos a pastar.

Sobreirinho (antes de Remondes)

Eiras de Remondes

Castro Vicente atrás do horizonte

Um pouco abaixo começava uma rua larga que percorre quase toda a aldeia com uma curva muito pronunciada quase a meio, todas as outras ruas menores e mais estreitas, convergem para essa. Como todas as aldeias do concelho tem uma igreja matriz, com uma arquitectura semelhante, construída ou restaurada no século dezoito ou dezanove.
As eiras e a igreja, além das ruas, pracetas e tavernas eram os únicos espaços públicos das aldeias do interior.
As Casas do Povo ou da Junta da Freguesia são, na sua maioria, já construídas no tempo da democracia com dinheiros da Comunidade Europeia.
A estratificação social era idêntica à de Brunhoso, muitos com pequenas courelas a trabalhar para três casas grandes de lavoura. Havia ainda dez a quinze lavradores a cultivar e a fazer as colheitas das suas próprias terras, pagando também algumas jeiras quando necessário. Gente simples, com carácter, trabalhadora, parecendo rude, era muito leal e franca, pouco cuidada no trajar e no aprumo, mais os homens. Bastante parecidos com a gente da minha terra embora a mim me tenha parecido sempre que era gente mais antiga, (do tempo dos lusitanos, dos visigodos?) como se há séculos não houvesse povos invasores, apesar da Ponte estar a cinco quilómetros. De garoto ia lá muitas vezes fazer certos trabalhos, como por exemplo com uma burra carregada de sacos de grão trigo ou centeio à moagem do senhor Esperança, voltando depois com ela carregada de farinha.
Era frequente as mulheres ou os homens perguntarem-me: Oh rapaz, de quem és filho? Do senhor Emídio, respondia eu. Filho do Emídio! Então somos parentes, respondiam-me quase sempre.
Gostava do tratamento familiar que davam ao meu pai, já que ele em Brunhoso era quase sempre tratado por senhor. No tratamento entre as gentes, Remondes pareceu-me a terra mais democrática que já conheci. Entre todos, rapazes ou adultos, não havia senhores, vocês ou vocemecês, era tu cá, tu lá, a fórmula mais simplificada de comunicar. Os meus avós paternos, mais tarde vim a saber, tinham ascendentes de lá, por esse motivo e pelo que me diziam os remondeses, a partir de certa idade comecei a considerar todos os naturais de Remondes como meus parentes, ainda assim os considero. Havia os Gaspares, os Pojos, os Alves, os Mendes, os Varizos e outros. Sobre os Baptistas de uma terra e outra há dúvidas, que a genealogia estudada por alguns ainda não esclareceu.

Os naturais de uma terra e outra entendiam-se na bem, "falavam a mesma língua", com ligeiras divergências no sotaque, os de Remondes num tom mais cerrado. Tinham gostos semelhantes, gostavam de estar nas praças a conversar e a praticar jogos tradicionais ou nas tabernas a jogar a sueca e o chincalhão (jogo de cartas proíbido) a copos de vinho ou simplesmente a falar e a beber.
A festa anual era em honra de Santa Sinforosa (o povo dizia Sinfrósia), santa e mártir antiga, dos primeiros tempos do cristianismo, tempos difíceis, de tantos santos e mártires com os quais a Igreja Católica encheu os altares das catedrais românicas, góticas e igrejas, com as suas imagens de madeira, de pedra, de barro. Bárbara, filha de Dióscoro, um pai pagão, santa festejada em Brunhoso é dessa fornada.
Faziam grandes arraiais muito alegres que juntavam muita gente a assistir ou a dançar ao som da música da banda filarmónica ou dos conjuntos musicais que começaram a aparecer por lá na década de setenta.
Além dos vizinhos de Brunhoso, de Soutelo e doutras terras próximas, a Ponte de Remondes que facilitava a comunicação entre as margens do rio Sabor, trazia muitos jovens e mais velhos de Castro Vicente, dos Porrais de Lagoa e de outras terras. Um ano apercebi-me que aquela mistura de rapazes e raparigas de várias terras dava outra animação e colorido ao baile do arraial, na praça entre a Igreja Matriz e a Capela de Santa Sinforosa.
O sagrado e o profano conviviam em harmonia nessa terra de mulheres piedosas, de raparigas divertidas de rapazes e homens folgazões para relaxar e compensar um pouco mais um ano de trabalho duro.
Entre os rapazes de Brunhoso e Remondes nunca conheci as picardias e rivalidades, frequentes entre povoações próximas, muitas vezes causadas pela conquista de namoradas em terra alheia. Tanto os de uma povoação como os da outra sempre toleraram os namoros e casamentos mistos.
Havia também os bailes privados em casa do Senhor Cristino que tinha três netas para casar. O Senhor Cristino era um "brasileiro", educado, distinto no falar e no vestir que em festas ou em alguns domingos à tarde organizava uns bailes, onde eu apesar de bastante novo fui algumas vezes convidado pelo meu irmão mais velho. Além das moças da casa havia ainda mais três ou quatro amigas da terra. As três irmãs sendo embora simpáticas, educadas e elegantes, não casaram com nenhum daqueles rapazes, talvez por causa dessa elegância que não se coadunaria com os gostos desses jovens lavradores que gostariam delas um pouco mais sadias e com curvas mais acentuadas. Entre as amigas havia uma vizinha simpática e bem torneada que viria a casar com esse meu irmão.

Uma noite, depois do jantar, pediu-me para ir com ele a Remondes pedir a mão da namorada aos pais. Entretanto apareceu um primo que tinha um trator e fomos lá os três. Quando entrámos na casa dela, depois dos cumprimentos habituais, o meu irmão disse ao pai qual a missão que nos tinha levado lá. O pai dela que conhecia bem o nosso, ainda eram parentes, a minha avó paterna era prima carnal da sogra dele, perguntou se o meu irmão tinha pedido ao nosso pai também, ele mentiu e disse que sim. O meu irmão já tinha vinte e três anos e não precisava da autorização paterna, mas entre os mais velhos era importante que houvesse acordo entre as famílias. A dona da casa trouxe para a mesa salpicão, linguiça, azeitonas e vinho, e nós por cortesia e porque a qualidade dos produtos nos agradava também, não nos fizemos rogados.
Os meus pais aceitaram bem a ideia pois a noiva era filha de lavradores honrados, ainda parentes e com bastantes terrenos agrícolas.
Para se realizar o casamento, tiveram que pagar uma bula à Igreja por ainda serem primos embora afastados. Casaram na Igreja de Remondes, teria que ser na terra da noiva, a cinquenta metros da casa dela, onde foi o almoço, bem servido e animado.
No domingo seguinte houve a torna-boda em Brunhoso, em casa dos meus pais, igualmente com um bom almoço.
Os noivos tiveram que pagar o vinho aos rapazes de uma terra e da outra, para não serem chocalhados, de uma forma barulhenta durante a noite.

Igreja de Remondes

As hormonas masculinas e femininas há longos anos, falando só da minha família, eram trocadas entre uma terra e outra, pelo menos desde os nossos trisavós.
Da ascendência antiga da minha bisavó Variz teremos herdado os sobreiros da Relva, perto da Ponte de Remondes e os dois sobreirais do Azinhal, mais a sul, a um quilómetro do Sabor, encravados na grande mata de sobreiros e oliveiras do Aprígio um agiota que um dia arribou a Mogadouro, lá fez fortuna e comprou em Remondes uma grande área de sobreiros e oliveiras. A mulher, que lhe sobreviveu muitos anos, herdou-lhe os bens e o apelido "Aprigia" pelo mesmo carácter ambicioso.
Estes sobreirais, implantados no coração do domínio desta senhora, eram como setas a feri-la. O meu tio-avô e padrinho José Baptista que os herdou dos pais dele, foi sujeito a todo o tipo de pressões e manobras para lhos vender. A tudo resistiu, não permitindo que esses sobreiros passassem a ter outra marca que não a da família dele. A velha Aprígia morreu e foi para o céu ou para os infernos, com esses dois espinhos cravados no coração. O meu padrinho, solteiro toda a vida, escolhendo os caminhos da liberdade que mais gostava, para mim era um santo, com os pecados que todos os santos admitem ter, se não forem hipócritas, morreu aos sessenta e nove anos, bem comido e bem bebido, na noite do arraial da festa da Senhora do Caminho, em Mogadouro. Se Deus existe, peço-lhe que o trate bem lá em cima, onde se diz que moram os Justos.



Fonte do Azinhal

Saindo do Azinhal, a cerca de um quilômetro a leste, era a Fonte do Junco, onde tínhamos mais sobreiros. Perto numa casa pequena, morava um casal de Remondes, simpático, sem filhos, cuidavam duma pequena horta e de algumas oliveiras. Ela, a tia Laurinda, teria outras actividades caseiras, e ele, o Zé Bento, caçava muito, clandestinamente. Ela gostava de falar, não admira, a solidão era muita, dizia-me que ainda era prima da minha mãe, eu ficava contente já que seria a única familiar da minha mãe nessa terra, onde o meu pai tinha tantos parentes. Gostava deles também porque eles realizavam um ideal de isolamento, com o céu imenso e a terra a perder de vista, como companhia.

Na Fonte do Junco havia mais dois sobreirais nossos, presumivelmente da mesma herança remondesa. Quando eu era um adolescente imberbe, o transporte dessa cortiça era feito com carros de vacas ou bois e seguia o caminho de Remondes, por ser mais suave e menos difícil para os animais. Esse caminho só já perto de Remondes é que derivava para Brunhoso. Eu sentia muito orgulho em "tocar" um desses carros de vacas, com cortiça, sobretudo quando ela era do sobreiral da fonte do Azinhal, com cortiça da melhor qualidade, tábuas largas, fechadas, sem poros visíveis.
Nas povoações mais próximas do vale do rio Sabor, a pedra predominante, quase a única, era a de xisto. Haverá uma explicação em termos geológicos que o meu pouco saber nesta matéria não me permite dar. Era com essa pedra que as povoações faziam as casas, os muros e todo o tipo de construções. Apesar de existirem grandes aglomerados dessa rocha, grande penedos e fragas de xisto, a sua constituição por camadas com linhas de fragmentação irregulares, não permitia cortar grandes blocos com simetria como noutras rochas, como o mármore, o granito ou o basalto com outra consistência.
Para construir as várias entradas, portas, portões e janelas e dar consistência à obra, viam-se obrigados a comprar granito que encontravam em terras do vale do rio Douro, na direcção de Miranda.
Nesse tempo havia bons pedreiros em Brunhoso, Remondes e todas as outras aldeias, era uma arte que se cultivava. Do passado dos três séculos anteriores essa arte na sua melhor perfeição nota-se ainda nas grandes curraladas, já que não levavam nenhum revestimento de cal. As casas, apesar de a maioria serem construídas com paredes de um metro ou mais de largura, no geral levavam cal, talvez para as isolar mais do frio e do calor, muito excessivos nesse tempo. A arte milenar de pedreiro foi-se perdendo nos tempos modernos, com a construção dos prédios em tijolo e cimento armado. Porém em Remondes houve um grupo de pedreiros habilidosos que continuaram a construir com pedras de xisto na terra deles e noutras para onde eram chamados, inclusivé para lá da fronteira.

Parede de xisto em Remondes

A agricultura de Remondes tal como a de Brunhoso, com as mesmas características de terrenos, era de cereais na zona do planalto, de oliveiras na encosta do Sabor, hortas perto da povoação e sobreiros bastantes, um pouco por toda a área. Nunca abandonaram as oliveiras, mesmo as da encosta do rio, com a ajuda ou não de máquinas modernas e continuam a tratar os campos próximos ou longe da aldeia com culturas antigas ou novas plantações. A emigração clandestina que foi um choque em muitas terras do interior, por ter arrastado consigo quase todos os trabalhadores, em Remondes começou mais tarde, foi gradual e começaram para ir para Espanha, que sendo mais perto dava possibilidades de virem mais vezes à aldeia ver as famílias e tratar das culturas. No geral os terrenos para venda em Remondes têm continuado a ser muito valorizados.
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Notas do editor:

Poste anterior de 5 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21518: Os nossos seres, saberes e lazeres (418): O Rio Sabor da minha juventude e o de hoje (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 14 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21542: Os nossos seres, saberes e lazeres (422): Na RDA, em fevereiro de 1987 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21563: Notas de leitura (1324): "A Armadilha da Guerra, Um exercício de ficção, em retrospetiva”, por António de Jesus Bispo; DG edições, 2017 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos, 

O autor, um tenente-general piloto aviador, com largos conhecimentos da Guiné, dá-nos, não um romance, não um ensaio, não assumidamente um registo memorial, escolheu uma via muito áspera de exercício de ficção de elevado grau de improbabilidade, nele convergiram o pensamento oficial do regime de Salazar face à ascensão dos nacionalismos, há um oficial aviador que rebusca uma tese de abertura ao diálogo totalmente negada pelas partes e no termo da obra um grupo de amigos resmungões distribui tarefas sobre a guerra que cada um experimentou, passando-a a escrito. O autor sugere que aquela guerra era sustentável se houvesse vontade e recursos, não fica margem para discussão e debate sereno porque nunca deixa antever, ao longo da obra, onde no essencial faltou vontade e qual foi a natureza da falta de recursos, para tudo ter acabado num Império estilhaçado.

Um abraço do
Mário


Colonialismo e descolonização num espelho estilhaçado (2)

Beja Santos

“A Armadilha da Guerra, Um exercício ficção, em retrospetiva” por António de Jesus Bispo, DG edições, 2017, é um contributo de um Tenente-General Piloto Aviador que cumpriu duas comissões de serviço na Guiné e vem a terreiro com o relato memorial ficcionado (ainda que com o concurso de longas referências a acontecimentos históricos, muitas vezes por si interpretados) para procurar esclarecer o processo colonizador, a guerra em África e o confronto entre contendores, a descolonização e sequelas, sobretudo tendo como referência central os acontecimentos da Guiné.

Como se disse anteriormente, o autor entendeu criar uma atmosfera em que dois amigos vão criar oportunidades de encontros singularíssimos, um deles com Salazar e outro com Amílcar Cabral em Paris, o oficial da Força Aérea Victor Silveira participa num festival em Le Bourget, leva uma encomenda que entrega ao fundador e líder incontestado do PAIGC. O que era suposto ser uma simples entrega sem outras consequências relacionais, salda-se num vibrante debate, todo ele impensável, mas que o autor ajustou para revelar ao leitor que tem opinião própria sobre o pensamento de Cabral, Victor está completamente descontraído e equipado de informação, entra a matar na conversa:

“ – O senhor engenheiro criou uma organização mais pesada com o passar do tempo, mais burocratizada, com controlo apertadíssimo de comissários políticos. Esta burocracia está a criar discriminação entre os combatentes de dentro, os de fora, os que às vezes estão dentro e os burocratas sempre fora. O senhor engenheiro não tem medo do monstro que está a criar?
- A sua provocação não merece resposta. Nós insistimos na diversidade quando falamos em unidade.
- Em todo o caso, acho ser inviável conciliar uma sociedade horizontal, sem chefes, como é o caso da população Balanta, e não só, com uma sociedade estratificada com uma hierarquia muito rígida, como é o caso da população Fula e de outras. São conceitos de liberdade completamente distintos. Se tudo corresse bem seria uma tarefa para várias gerações, com várias ruturas e vários momentos violentos. A maioria das gentes da Guiné pretende muito mais a soberania portuguesa do que a quimera do vosso Partido, por uma razão: é a solução que tem dado maior autonomia ao nível étnico.”


E vão esgrimindo, falam do tráfico de escravos, sobre o processo colonizador, Victor Silveira usa o discurso do regime mas diz representar-se a si próprio, com alguns matizes com o discurso que usou para Salazar, volta a falar em reuniões, na procura de entendimento, diz a Amílcar Cabral: 

“Se os senhores querem de facto o desenvolvimento da Guiné e do seu povo deixem o Governo efetuar também essa tarefa, em vez de impedir e destruir aquilo de bom feito por ele. Podem partilhar os resultados. Digam, por exemplo, serão vocês a proporcionar esse resultado”. 

O tom dialético cresce em agressividade a tal ponto que o oficial da Força Aérea pergunta a Amílcar Cabral: 

“Quando o senhor fala em colonialista parece esquecer que são os cabo-verdianos os verdadeiros colonos, no terreno. Como é que imagina a relação entre guineenses e cabo-verdianos após uma suposta independência?”.

Despedem-se. Victor Silveira vai construindo de si para si uma proposta para a paz na Guiné: a primeira ação seria uma declaração da parte portuguesa relativa ao colonialismo à qual responderia o PAIGC apelando à liberdade das pessoas, aos direitos humanos, à garantia da propriedade privada e a seguir a estas declarações seguir-se-ia uma fase de negociações, a Guiné Portuguesa deveria constituir-se em região autónoma, haveria cessar-fogo. Construída a sua proposta, enviou-a ao cuidado de Amílcar Cabral, via Marrocos, Cabral não lhe deu importância. A guerra intensificou-se.

O regime político em Portugal não encontrava saída para o problema do Ultramar. E chegou-se ao 25 de abril. 

“A guerra terminou, não em consequência da derrota militar em África, mas por força da mudança de regime político em Portugal. O novo regime impôs o fim da guerra.”. Victor Silveira é procurado pelo antigo colega que pretende obter a sua opinião para uma independência em Angola, discutem os prós e os contras. E chegou-se à descolonização.

Os dois amigos que se tinham conhecido na Pastelaria Mexicana reencontram-se e permutam as suas preocupações sobre a descolonização. A vida corre, reatam gradualmente as relações entre Portugal e as suas ex-colónias.

No restaurante da Associação encontram-se velhos camaradas de guerra, come-se bem e fala-se das calamidades que assolam Portugal, um especialista em frases apocalíticas verbera:

“Isto bateu no fundo. Agora só há um caminho, o da subida ou então a morte do nosso país enquanto entidade própria, sede de valores. Se isto continuar por este caminho o português vai desaparecer, vai-se transformando num ser descaracterizado, sem alma nacional. Desconstruíram o Estado, desconstruíram a Instituição Militar, desconstruíram a família, desconstruíram a História. Estamos no mais puro individualismo materialista e o fim só pode ser o caos. Isto é uma réplica do Sodoma e Gomorra”

Um outro reponta, qual Cassandra ainda mais desgraçada: 

“Está tudo invertido. O que está na moda é ser gay, é quase obrigatório. A malta jovem está na droga e culpa a sociedade. Agora há para aí uma hepatite qualquer adquirida por prática sexual aberrante e isto diz-se na televisão com a maior das calmas, como se fosse generalizado. O facto é que a doença está a tornar-se epidémica, e há vacinas só dadas aos praticantes de tal sexo. Se calhar têm de provar isso, para o médico ou o serviço lhes prescrever o medicamento”

É um cenáculo de lamúrias, até que alguém se lembra de que o Sabrosa quer que a malta daquele grupo escreva um livro sobre a guerra. Continua-se a falar num tom passadista, alguém mesmo diz que a guerra está bem ganha em Angola, desanca-se na historiografia, sobretudo internacional, sobre o relevo dado aos movimentos independentistas, alguém que se arvora em líder do grupo diz que vai fazer o esboço da introdução e os demais intervenientes enchem com a parte que lhes compete, tudo circunscrito aos aspetos militares.

Nas reuniões subsequentes, foi-se fazendo o ponto da situação, recapitulou-se uma série de elementos históricos após a II Guerra Mundial e a origem das hostilidades nos três teatros de guerra, Victor Silveira conta o que se passou na Guiné e outros o que se passou em Angola e Moçambique. O tom geral do discurso era de que a paz em Angola estava a ser conseguida, quem escreveu sobre Moçambique refere em dado momento: 

“Surgem as ZPU-4 e por último o míssil Strella que apenas abate dois aviões ligeiros rodesianos e atinge um C47 danificando um motor. Em termos militares nenhuma área da Província estava controlada pelo inimigo. O grande objetivo da guerrilha de impedir ou destruir a barragem de Cahora-Bassa saiu completamente frustrado. Depois da operação Nó Górdio o inimigo reduz as suas atividades em Cabo Delgado e Niassa e concentra-se no Oeste e em Tete”

E tira-se uma conclusão muito redonda, e muito a contento daqueles que defendem intransigentemente a sustentabilidade da guerra colonial: 

“Em termos de guerra de guerrilha não havia vencedores definitivos; as autoridades portuguesas continuavam a exercer soberania nas zonas onde a população era mais concentrada, a guerrilha estava nas suas bases e daí ia lançando ataques esporádicos contra as forças militares e contra a população. Poderíamos continuar a trocar tiros por um prazo indeterminado se houvesse vontade e recursos”.

É pena que o autor não se debruce sobre o que aconteceu à vontade e aos recursos para que o Império se volatizasse em tempo meteórico.

Se todo este livro é um perfeito enigma quanto à razão essencial da escrita, o mistério adensa-se com o propósito anunciado pelo autor na contracapa: 

“A obra pretende transmitir a mensagem de que os decisores políticos, as sociedades, os estados, podem colocar-se em determinadas situações onde a guerra se apresenta como possibilidade, num quadro de valores e interesses, de risco e também de capacidades. Por outro lado, a paz ‘conquista-se’ em permanência, pela deteção, análise e neutralização das armadilhas que a interação pode suscitar, com a utilização do poder de persuasão e de influência, no pressuposto de que a guerra pode ser evitável”.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21551: Notas de leitura (1323): "A Armadilha da Guerra, Um exercício de ficção, em retrospetiva”, por António de Jesus Bispo; DG edições, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21562: A arte guineense, fula e mandinga: o legado do império do Mali ou da arte sudanesa (Cherno Baldé / António J. Pereira da Costa / Valdemar Queiroz)


Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca > Pel Rec Daimler 2046 (maio de 1968/fevereiro de 1970) > A Rosinha, então com 18 anos... Era a lavadeiar do alf mil cav Jaime Machado... Não sabemos se era cristã... Os brincos e o fio que usa ao pescoço não seriam arte mandinga, inclinamo-nos para a hipótese de serem pechisbeque importado... Os trabalhos do ourives de Bafatá, o Tchame, mandinga, eram caros, podiam custar centenas ou até milhares de pesos... Os guineenses tinham um fascínio pelo ouro, em especial pelos nossos fios de ouro com crucifixo.

Quanto ao penteado da Rosinha, parece-nos mandinga... Será ? De qualquer modo, não é de uma mulher grande, é de uma bajuda. Os penteados africanos obedecem a uma gramática bem estruturada...

Foto (e legenda): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > O chefe da tabanca, com o traje usado durante o período do Ramadão: usa ao peito um colar de prata, trabalho que só podia ser de ourives mandinga: há várias teorias sobre a funcção da caixinha. uns dizem que servia para guardar amuletos e outros "roncos";  outros, como o Cherno Baldé, dizem que era uma espécie de "guarda-joias" ambulantes, sobretudo no caso das mulheres...


Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi >   CCAÇ 3491 / BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74) >  O alf mil Luís Dias empunhando uma "longa". usada para a  caça grossa... Não sabemos sea confeção é fula, mandinga ou europeia...

Fotos (e legendas): © Luís Dias (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > O alf mil at art Jorge Cabral, ao peito um amuleto de origem fula ou mandinga, e mais dois, um à cintura e outro no direito direito...  

A função dos amuletos de guerra era "fechar (blindar) o corpo" contra as balas do inimigo... Todos combatentes, em todas as guerras, são "supersticiosos", sejam cristãos, mulçulmanos, judeus, crentes ou não crentes... E mal deles se não desenvolvem uma "idelogia defensiva" que os proteja contra o medo... Todas as profissões de risco (, dos médicos aos pilotos de aviação...) têm estratégias de "racionalização" para lidar com os "riscos"...

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P21559 (*):

(i) Cherno Baldé:

Como podem notar, a arte entre fulas e mandingas é um prolongamento da arte do então chamado Sudão Ocidental com o centro em Mali que, após a independência e durante alguns anos o teria adoptado como nome oficial do país. 

O Mali, como império e centro de cultura na Árica Ocidental, de modo geral, foi zona de apropriação e expansão da religião muçulmana e das artes dos povos árabes.

Respondendo à questão dos colares em prata, a vossa dedução é lógica e faz sentido, pois que as caixinhas teriam sido feitas para alguma utilidade como guardar e/ou transportar pequenas coisas de valor e uso pessoal. 

Da minha experiência em criança, tenho visto em ocasiões de festas a minha mae abri-la e retirar de lé dinheiro em moedinhas de prata (poucas), brincos das filhas mais pequenas e até pedaços de cola. 

No caso dos homens, certamente, era mais para ronco, como diz o Tozé, sem excluir a possibilidade de transportar amuletos ou guardas, não sendo todavia uma prática muito usada, porque estes, normalmente, eram considerados adornos modernos e de luxo ao alcance de poucos e também pouco propícios para albergar ou atrair poderes de protecção. Para isso era utilizado exclusivamente a pele (couro) dos animais.

O Canhangulo [etimologia: do quimbundo, Angola ] em Crioulo da Guiné-Bissau é "Longa", e em fula é "Noku-low", quer dizer (a arma de) "carregar à mão". 

O meu avô materno tinha uma igual e era carregada, salvo erro, pela boca com um chifre de boi, utilizando um pequeno cabo para empurrar e compactar a pólvora.

Quanto ao termo "cafala" (bainha de alfange),  é de origem árabe e pode ter diferentes significados, entre os quais de protecção (bainha) ou de adopção no sentido da protecção social ou familiar,  muito usado no seio das tribos árabes do Próximo e Mêdio Oriente. 

O mesmo se poderá dizer do termo Alfange [árabe al-kanjal: sabre largo e curvo].

Pode ser que tenham outros nomes nas línguas fula ou mandinga, mas não conheço. Eu nasci na época das armas automáticas e nunca tive nenhuma curiosidade ou fascínio por armas dos séculos passados.

(ii) António J. Pereira da Costa:

Também tenho esse artesanato. (*)

Os enfeites das kafalas [ou cafalas] de couro eram feitos de palha - ou ráfia - cosida nuns golpes dados no cabedal.

Há alguém que saiba para que servem aquelas caixas redondas penduradas nos fios de prata? É só ronco ou transportam alguma coisa?

(iii) Valdemar Queiroz: 

Quase todos soldados fulas da minha CART 11 usavam "amuletos",  envolvidos em couro. Tenho um com cerca de 7 cm envolvendo uma presa ou corno, só com a ponta à vista, de forma triangular para pendurar ao pescoço.

Nós também usavámos as nossas medalhinhas nos fios ao pescoço e até santinhos que as nossas mães metiam nas nossas carteiras. 

A propósito de medalhinhas, o soldado Mamadu Cano, do meu Pelotão, quando eu vim de férias pediu-me para lhe trazer de Lisboa "fio doro com cruz", provavelmente por ver muitos de nós com um crucifixo. Evidentemente que me esqueci desta e de muitas outras "traz-me de Lisboa".
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P21561: O nosso livro de visitas (207): António José de Sousa Marreiros, que vive no Canadá (Victoria, BC): foi alf mil, em rendição individual, CCAÇ 3544 (Buruntuma, 1972) e CCAÇ 19 (Bigene e Guidaje, 1973/74)


Mapa do Canadá e posição da cidade de Victoria, capital da província da Colúmbia Britânica. Fonte: cortesia de  Wikimedia Commons


1. Comentário de nosso camarada e leitor António José de Sousa Marreiros, que vive no Canadá (Vd. poste P21532 )(*):

Amigos, 

Nunca falei muito da minha passagem pela Guiné quando vim viver para o Canadá (Victoria, BC, British Columbia). Tentei esquecer e dar lugar às novas experiências num país novo e língua diferente. 

Com os anos e para não ter muitas saudades fui enterrando memórias e aprendendo os hábitos desta nova sociedade. Só consegui manter contacto com 3 amigos que também fizeram a Guiné comigo e por um deles encontrei este blogue.

Nessa altura só tive coragem para ler umas quantas histórias e, como não gostei da depressão em que fiquei,  abandonei o site e só hoje, já perto dos 70, voltei à Tabanca. 

Estou a fazer um esforço para lembrar e escrever uma pequena história, em inglês, da minha vida forçada de militat de guerra. Estou a pensar que a minha neta, agora com apenas 7 anos, um dia vai querer saber as origens e o que fez o avô... 

A pandemia [de Covid-19] trouxe outra realidade e uma necessidade mais forte de procurar linhagens e realidades de juventude sobretude que estou fora de Portugal e das minhas raízes.Por isso tem sido mais fácil ler este mar de informação dos camaradas da Guiné e uma recolha de nomes e termos que afinal ainda estavam na meu vocabulário e apenas adormecidos. 

António José de Sousa Marreiros,
Ex-alferes miliciano em rendição individual
na Companhia CCaç 3544 (os Roncos) em Burumtuma (1972) e,  meses depois,  transferido para Bigene/Guidage, CCaçadores 3, até Agosto 1974.

Um abraço a todos e que continuem bem!

2. Comentário de Valdemar Queiroz (*):

António Marreiros.

Então por Burumtuma, quer dizer que fez a estrada Nova Lamego-Buruntuma e passou pela Ponte Caium.

A minha CART 11 (1969/70), de soldados fulas, esteve fixada em Nova Lamego (Quartel de Baixo) e depois mudamos para Paunca, mas estávamos em intervenção em toda a zona leste e também fomos a Buruntuma em operações.

Ponte Caium, ninguém acredita haver um "Quartel" em cima duma ponte naquelas condições.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

3. Comentário do editor Luís Graça:

Camarada Marreiros, és bem vindo!... Não percas o contacto connosco... Vamos escrever-te para o teu email, constante do teu perfil no Blogger. E estás desde já convidado a juntar-te aos bravos da Tabanca Grande... Somos já 821, entre vivos e mortos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.

Infelizmente, temos apenas duas referências à tua primeira companhia, a CCAÇ 3544.  Por exemplo, será que viste este poste, com referência ao Francisco Alves, um camarada da tua companhia (**) ?... Já sobre a CCAÇ 19 há pelo menos umas 25 referências

Pelo teu apelido, pareces-me ser algarvio... Quando escreveres a tua história, em inglês, para a tua neta canadiana, manda-nos um "cheirinho", ou até uma cópia... A gente faz a tradução para português. Na parte relativa à Guiné, tens aqui uma "montra" para divulgares a tua história... 

De qualquer modo, o teu gesto é de uma grande ternura. E é importante, que para lá do teu património genético, possas também transmitir à tua neta algo das tuas "geografias emocionais" (e a Guiné é, com certeza, uma delas). (***)

Um alfabravo (ABraço), Luís Graça

PS - Aqui seguem as fichas das unidades a que pertenceste no TO da Guiné:

Batalhão de Caçadores nº 3883

Identificação > BCaç 3883
Unidade Mobuluzadora > RI 2 - Abrantes
Cmdt >  TCor Inf Manuel António Dantas
2.° Cmdt > Maj Inf Manuel Azevedo Morujão e Oliveira
OInfOp/Adj > Maj Inf José Luís Guerreiro Portela

Cmdts Comp: 
(i) CCS >  Cap Inf Joaquim Pinheiro da Costa | Cap Mil Inf José do Nascimento Leal Varela
CCaç 3544 > Cap Mil Inf Luís Manuel Teixeira Neves de Carvalho | Cap Mil Inf José Carlos Guerra Nunes
CCaç 3545 > Cap Mil Inf Fernando Peixinho de Cristo
CCaç 3546 >  Cap QEO José Carlos Duarte Ferreira

Divisa: "Nobreza no Dever"
Partida > Embarque em 19Mar72 (Cmd e CCS), 20Mar72 (CCaç 3544),
22Mar72 (CCaç 3545) e 23Mar72 (CCaç 3546); desembarque em 19,22,23 e 24Mar72
Regresso: Embarque em 19,21,22, e 23Jun74

Síntese da Actividade Operacional:

Após realização da IAO, de 27Mar72 a 22Abr72, no CIM, em Bolama, seguiu em 24Abr72, com as suas subunidades, para o sector de Piche, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com o BCav 2922.

Em 24Mai72, assumiu a responsabilidade do referido Sector L4, com a sede em Piche e abrangendo os subsectores de Buruntuma, Piche e Canquelifá. 

Em29Mai73, por subdivisão do subsector de Buruntuma, foi criado o subsector de Camajabá. As suas subunidades mantiveram-se sempre integradas no dispositivo e manobra do batalhão.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos, de vigilância da fronteira e de defesa e segurança dos aquartelamentos e aldeamentos, que foram alvo e fortes e frequentes flagelações, particularmente a partir de Ag073. 

Actuou ainda em numerosas missões de protecção e segurança a trabalhos nos reordenamentos e de reparação de itinerários, e ainda na asfaltagem da estrada Piche-Buruntuma; a par de uma decidida colaboração na promoção socioeconómica das populações da região e organização do sistema de autodefesa.

Dentre o material capturado mais significativo, salienta-se: 4 espingardas, 9 granadas de armas pesadas e a detecção e levantamento de 29 minas.

Em 31Mai74, foi rendido no sector pelo BCaç 4610/73 e recolheu a Bissau para embarque.

Companhia de Caçadores nº 3544 (CCAÇ 3544)

A CCaç 3544, após treino operacional e sobreposição com a CCav 2747, assumiu, em 24Mai72, a responsabilidade do subsector de Buruntuma, com um pelotão destacado em Camajabá e onde se manteve após a criação do respectivo subsector em reforço da respectiva guarnição até meados de Ago73.

Em 26Jan74, por troca com a 2ª C/BCav 8323/73, foi colocada em Piche, tendo então assumido a responsabilidade do respectivo subsector e cumulativamente as funções de subunidade de intervenção e reserva do sector, tendo efectuado acções de patrulhamento, emboscadas e escoltas a colunas.

Em 31Mai74, foi rendida pela 3ª  C/BCaç 4610/73 e recolheu a Bissau.
 
Companhia de Caçadores nº 19 (CCAÇ 19)

Identificação > CCaç 19
Crndt >  Cap Inf Afonso José Carmona Teixeira | Cap Mil Inf José Vicente Teodoro de Freitas | Cap Mil Inf Carlos Alberto Gaspar Martinho | Cap Mil Inf António Eduardo Gouveia Carvalho
Início > 01Dez71
Extinção>  princípios de Ago74

Síntese da Actividade Operacional

Em 01Dez71, foi constituída com quadros e algum pessoal especialista metropolitano e o restante pessoal natural da Guiné, predominantemente da etnia Mandinga e na sua grande maioria já integrante de companhias de milícias, tendo efectuado a instrução no CIM, em Bolama, de 06 a 31Dez71.

Seguidamente, foi colocada em Guidage, inicialmente em reforço do COP 3 e da guarnição local, com vista à realização de acções na referida área. Em 22Fev72, por saída da CCaç 3, assumiu a responsabilidade do respectivo subsector de Guidage, ficando então integrada no dispostivo e manobra do COP3.

Em princípios de Ago74, então na dependência do BCaç 4512/72, e de acordo com o plano de retracção do dispositivo, foi desactivada e extinta.

Observações > Tem História da Unidade (Caixa n." 117 - 2.a Div/d." Sec, do AHM).


Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), pp. 161-162 e 640
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21560: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (17): Recordação/Homenagem de reconhecimento a Guedes Barbosa

Antigo Quartel do Regimento de Transmissões - Porto
Foto retirada da página http://zala.fotosblogue.com/129565/Codigo-de-Morse/, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 16 de Novembro de 2020:

Caros amigos,

Como já faz tempo que não envio colaboração, aqui vai uma coisa "ligeira", que penso pode ser colocada na minha série "Histórias em tempo de guerra".

Em parte talvez sirva para amenizar um pouco a agressividade verbal (escrita) que tem aparecido mais recentemente aqui no Blogue.

Por outra parte entendo ser um assunto, o da reconhecimento da faceta humana e solidária por parte de alguns homens do Quadro que connosco se cruzaram e de homenagem aos seu comportamento.~

Será talvez dar corpo à minha faceta de "conciliador-mor" mas não me sinto mal com isso.

Como de costume isto está "fraco" de imagens que possam ajudar a enquadrar o texto e amenizar a sua leitura mas tenho ideia que no Post que cito há por lá uma imagem da parada do Quartel. Não tenho nenhuma foto de quem estou a recordar e mesmo minhas também são raras.

Envio duas fotos de há 3 anos desse Quartel do RTm, a da entrada actual que pouco difere da do meu tempo e onde se vê um pouco do interior da parada com várias viaturas e uma do Edifício do Comando, bastante degradado e uma outra foto pessoal, mais recente, tirada na Feira do Livro de Lisboa o ano passado, aquando da apresentação do livro do Zé Ferreira.

Saudações
Hélder Sousa



Recordação/Homenagem de reconhecimento a Guedes Barbosa

Caros amigos

Vou fazer referência a um “Homem do Quadro” que me marcou e que considero necessário e importante dar aqui testemunho disso e porquê.

Há por norma alguma “animosidade” contra esses homens (haverá algumas razões, com certeza) mas também já apareceram referências a Oficiais e elementos da classe de Sargentos do Quadro que não desmereceram a qualidade de nossos camaradas.

Portanto, o “porquê” destas linhas poderão verificar no final e esclareço também que da pessoa em causa não tenho notícias já faz bastante tempo, ignoro se é viva (e espero que sim), nem falei com ele recentemente de modo a obter anuência para o que vou escrever.

Trata-se de Guedes Barbosa. Ao tempo que o conheci, no então RTm (Regimento de Transmissões), no Porto, chefiava a Secretaria e, embora sem qualquer certeza agora, julgo que era 2.º Sargento. Este Homem era um militar de carreira, do Quadro, um “chico” como dizíamos, mas era dotado de grande sentido humanista e também de humor.
Entrada do então Regimento de Transmissões do Porto

Ora bem, antes do episódio que agora recordo, ocorrido aí em finais de Julho de 1970, devo dizer que estava nesse Quartel em funções de formação de futuros Oeradores de Morse e que por circunstâncias várias estava a chefiar um Pelotão de instruendos, tal como vários dos meus camaradas de Curso, aqueles a quem por hábito costumo designar por “Ilustres TSF”. Por via disso, dessas funções, era corrente ter que tratar de assuntos vários na Secretaria e, naturalmente, interagir com o senhor Sargento Guedes Barbosa.

Então, esperando que não me chamem muitos nomes por agora “puxar a brasa à minha sardinha” (o amigo Branquinho perdoará este meu “falar sobre o meu umbigo”), sempre vos digo que arranjei maneira de termos (os “Cabos Milicianos” que estávamos de “instrutores”) uma semana de férias, quando isso normalmente não teria sido possível.

E como foi? Ora bem, por aqueles tempos faltavam “Aspirantes” e, como disse acima, nós, os “Ilustres” é que estavam a comandar os Pelotões de Instrução. Algures no Regulamento (RDM) eu li que “quem estivesse a desempenhar funções normalmente cometidas a um 'superior', por um período igual ou superior a 3 meses, tinha direito a 1 semana de licença".

Na posse desta informação (não sei precisar se cheguei lá de “motu próprio” ou foi “soprada” por alguém), a verdade é que fui com isso ao Guedes Barbosa, argumentei, reconheceu que tinha razão (estava no RDM….) mas que isso não era habitual, e que seria difícil acontecer mas que, no entanto, ia apresentar a situação ao Senhor Comandante e que, caso houvesse deferimento, não poderíamos ir todos ao mesmo tempo.

Não era habitual acontecer mas aconteceu! Essa minha semana de férias, inédita volto a dizer, ocorreu de 24 ou 25 de Agosto a 1 de Setembro quando regressei e fiquei logo de “Sargento de Dia”.

Nesse dia, 1 de Setembro de 1970, ocorreu então em “encontro imediato” com um personagem sinistro que havia no Quartel, um tal Capitão Carneiro (a quem chamavam “cobra cuspideira” porque quando vociferava – ele raramente “falava” – enchia o interlocutor de perdigotos”) mas isso é outra história, mais comprida, e já a contei aqui no Blogue, no poste P10341, de 6 de Setembro de 2012, intitulado “Abuso de poder”.

Desse “encontro” resultou uma ameaça do tal sinistro personagem de me “embrulhar” numa participação. Acontece que, por sua vez, houve quem me aconselhasse a “fazer queixa” dele, já que o desaforo foi exercido contra um militar em funções, com imensas testemunhas desde o Oficial de Dia aos instruendos de 5 Pelotões que estavam formados à porta do Refeitório.

Por coincidência, no rescaldo dessa refeição foi dado conhecimento da minha mobilização para a Guiné, juntamente com mais alguns.

Quem foi então que me ajudou? Claro, o Sargento Guedes Barbosa! Em primeiro lugar pelo tal conselho de “fazer queixa” (fazer “participações” não era nossa prerrogativa) e depois por ter demovido o tal Capitão de avançar com a participação “porque o rapaz acabava de ser mobilizado para a Guiné e já chegava de “castigo”). 

Ao mesmo tempo, junto de mim também influenciou considerando que devia desistir então, em simultâneo, da “queixa”, pois embora tivesse razão e tudo para ganhar o pleito, o processo ia-se arrastar e nunca mais me despacharia da tropa.

Mas acabou aqui o meu relacionamento com o Guedes Barbosa? Não!

Também ele acabou por ir parar à Guiné e aí já me recordo de ser 1.º Sargento. Por essa época, estando eu a desempenhar funções no “Centro de Escuta”, o 1.º Guedes Barbosa vivia numa moradia ali ao lado e cruzámo-nos várias vezes, trocando impressões. Numa ocasião queixei-me de dores no estômago e não é que o “nosso 1.º” se afadigou em arranjar e fazer um chazinho para o estômago? Pois é, caí em graça e já se sabe que “mais vale cair em graça que ser engraçado”.

Terminou? Não!

Alguns anos mais tarde, não sei agora precisar mas estimo que no início da década de 80, eu e o Nelson Batalha, acompanhados das respetivas “consortes”, metemo-nos ao caminho desde Setúbal para ir visitar um camarada nosso, o Manuel Martinho que julgo por essa altura ainda habitar em S. Martinho do Campo.

No caminho passámos no Porto, fomos até à Arca d’Água, chegámos à porta de armas do Quartel das Transmissões e pedimos para falar com o “senhor 1.º Sargento Guedes Barbosa”. Nessa altura, já não sei se o sentinela, se o “sargento de dia” que entretanto apareceu, retorquiram: “1.º Sargento não, nosso Capitão Guedes Barbosa” e informaram que ele se encontrava num edifício que ficava no interior logo que se saía da parada para o lado das salas de instrução, que bem conhecíamos.

Com a devida autorização fomos até lá. Ficámos à entrada do portão do edifício, uma espécie de armazém de material, em perfeita contra-luz para quem estava no interior em penumbra e dissemos em uníssono “meu Capitão,  dá licença”? De imediato ele volta-se para nós e diz: “Olha o Batalha e o Bigodes”!

Foi comovente, pois passados aí uns 10 anos foi capaz de nos reconhecer num ápice. Não sei mais nada dele, espero que esteja bem, mas guardo boas e gratas recordações.

Abraços
Hélder S.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13249: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (16): A Carta de Condução

Guiné 61/74: P21559: Arte guineense, fula e mandinga (Luís Dias, ex-alf mil inf, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > O chefe da tabanca, com o traje usado durante o período do Ramadão [detalhe: usa ao peito um colar de prata, trabalho que só podia ser de ourives mandinga, vd. foto nº 8]


 Foto nº 2 > Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > Cerimónia do Ramadão


Foto nº 3 > Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi >  s/d [c. 1972/74] > Arte fula; alfange  e punhais, com bainha de couro




Foto nº 4 Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > s/d , c. 1972/74]  > Arte mandinga, pulseira em prata do ourives de Bafatá


Foto nº 6 Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > Arte fula; machados da fertilidade: o masculino, à esquerda;o feminino, à direita.


Foto nº 6 Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > Arte fula  [?} > O alf mil Luís Dias empunhando um canhangulo de caça grossa


Foto nº 7  Guiné > Região de Bafatá > Bafatá >> 1972 > Arte mandinga:trabalho do ourives de Bafatá, o Tchame, já falecido.

Fotos (e legendas): © Luís Dias (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 8 > Guiné-Bissau > s/l > s/d > Arte mandinga: colares de prata



1. Mensagem de Luís Dias [, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento; tem mais de 8 dezenas de referências no nosso blogue]:


Data - sexta, 6/11, 12:10
Assunto - mais fotos agora de material de arte fula 


Seguem mais fotos, agora de arte fula e algumas de arte mandinga:.

(i) Arte fula: machados da fertilidade (representado à esquerda, o macho, e à direita a fêmea) [Foto nº 6];

(ii) Arte guerreira fula: alfange com com bainha de  couro  [, Foto nº 3];

(iii) Trabalhos em prata do famoso ourives de Bafatá [, de seu nome Tchame] [Fotos nºs 4 e 7];

(iv) Traje de cerimónia do Chefe da Tabanca do Dulombi, no período do Ramadão [Foto nº 1] e o Ramadão na Tabanca do Dulombi, ambas de 1972 [Foto nº 2];

7ª Um canhangulo usado pela população do Dulombi para abater animais de maior porte.



Foto nº 9 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1968/70 > O Tchame, o famoso ourives de Bafatá, em dia de Ramadão frente à Mesquita, com os seus dentes de ouro.


Foto nº 10 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1968/70 > Uma pulseira, executada pelo ourives de Bafatá, , que a minha amiga Regina Gouveia, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia.


(...) De seu nome Chame (não sei se é assim que se escreve o nome), era conhecido em toda a Guiné pelo seu trabalho de ourives. Executava peças de prata e de ouro como qualquer oficina de ourivesaria de Gondomar e digo isto porque o género de trabalho mais praticado por ele era muito semelhante à nossa filigrana. 

Por mais que uma vez estive na sua oficina, uma pequena palhota na tabanca da Ponte Nova. No chão uma pequena fogueira ladeada por duas pedras onde eram colocados os cadinhos para derreter os metais e onde, soprando com o auxílio de um maçarico de boca, se iam soldando os fios dos metais preciosos. Completava a oficina, uma pequena mesa com ferramentas rudimentares. 

Lamento não ter tirado uma foto das instalações, mas não tinha flash. Numa das vezes fui lá com a minha mulher e comprámos-lhe uma pulseira (ver foto). Mas talvez o mais espectacular é que era o artífice das coroas de ouro dos seus próprios dentes, serviço que não fazia a mais ninguém. (...)

Fotos (e legendas): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21558: Parabéns a você (1896): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21555: Parabéns a você (1895): António Mateus, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21557: Historiografia da presença portuguesa em África (239): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

É bem interessante a analogia usada com outros povos imperialistas que se serviram do comércio para ir ocupando posições, preparar o terreno para ocupações efetivas. Foi assim que trabalharam os alemães e os holandeses. Os franceses não escaparam à tentação de se assenhorear da costa ocidental, só tinham receio de entrar em conflito com os ingleses, presentes na Gâmbia e na Serra Leoa. Tentarão dominar o coração do continente, nessa altura o governo de Londres irá humilhá-los, obrigando-os a retirar de toda a região do Nilo. 

Max Astrié, a fazer fé neste relato, é o primeira branco a ir à Ilha de Orango. Não terá sido o primeiro, houvera pouco tempo antes um naufrágio de um navio austríaco, tudo terá acabado num certo morticínio e roubo, como se verá no próximo texto. 

É uma peça finíssima de literatura de viagens, com o maior dos interesses para as literaturas portuguesa e guineense. Peço imensa desculpa por quaisquer erros de tradução, sinto-me feliz por fazer reaparecer este belo documento que refere acontecimentos passados em 1879. 

Na década seguinte, com a Convenção Luso-Francesa, nenhum outro Max Astrié poderia voltar a escrever um relato como este, seria entendido como pura ingerência numa colónia oficialmente portuguesa.

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (2)

Beja Santos

Confesso a minha total surpresa e satisfação em descobrir este documento digno de emparceirar no que há de melhor da literatura de viagens à Guiné. Max Astrié assina como vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau e a sua insólita viagem à Ilha de Orango, carregada de peripécias e dos maiores riscos, foi publicada no Boletim da Sociedade de Geografia, 6.º Série, N.º1, 1886. 

Atenda-se que a viagem ocorreu na década anterior, a França, de modo sub-reptício, ensaiava todas as diligências para se instalar para cima do rio Nuno, estreitando o campo de manobra da presença portuguesa na Senegâmbia. 

Como se viu no texto anterior, a convite do visconde de Sanderval, e seguramente sob os auspícios do governo francês, Max Astrié é convidado a viajar até à ilha de Orango, a maior dos Bijagós, onde até então não chegara a influência dos portugueses. Desembarca e é apresentado ao rei, um verdadeiro déspota, um tirano sanguinário. Propõe-lhe um contrato comercial, o rei exige a prática de um sacrifício, degolar uma galinha e perceber da bondade desse mesmo contrato, a galinha a estrebuchar deveria cair aos pés do francês, seria uma boa sina. É neste ponto que retomamos o relato.

Enquanto se preparava o sacrifício, escreve Max Astrié:

"Trouxeram de todos os lados laranjas, ananases e vinho de palma. Reparei na presteza com que uma jovem negra depusera a meus pés dois soberbos ananases e colocou-se atrás de mim e com as pontas dos dedos procurou tocar no meu pescoço. Ela completou esta pantomima manifestando-me o desejo de me ver o peito. Cedi à sua curiosidade e abri a camisa e o colete de flanela. A multidão, atenta a todos os meus movimentos, deixou escapar um imenso clamor devido sem dúvida ao espanto que lhe causava a brancura da minha pele. Eu também não quis ficar sem resposta.

É uso e costume em algumas tribos da costa africana manifestar a galantaria diante das mulheres afagando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur e o maior elogio que se poderá fazer à beleza da mulher acariciada é exprimir a admiração que causa a firmeza destas partes do corpo. 

Nós, parisienses, ficaremos certamente surpreendidos que se proceda de tal modo. Aproximei-me da negra e senti-me no dever de corresponder à sua delicadeza. Entretanto, o rei Oumpâné apareceu no limiar da porta da sua casa e lançou-me um olhar que não tinha nada de convidativo…

Tudo se aprestou para o sacrifício. A uma centena de metros do telheiro onde fôramos recebidos estendia-se uma espécie de lugar público cercado de bananeiras e laranjeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Eram estátuas grotescas em madeira, grosseiramente esculpidas e que tinham no alto um género de cartola, que é o emblema do poder real. Quanto às divindades secundárias, tinham a representação de grandes senhoras negras que ostentavam em cima dois cornos de cabra. Como se vê, todos os povos têm uma inclinação para pôr cornos nos seres sobrenaturais.

O povo formava um imenso círculo à volta destes ídolos e esperava com impaciência a chegada do rei que devia presidir ao sacrifício. E o rei apareceu.

Colocou-se a meu lado, sempre acompanhado por dois ministros. Ao sinal do rei, o grande sacerdote, após alguns salamaleques, apresentou um galo que segurava vigorosamente pela cabeça e o ministro da justiça pelas patas. Uma faca caiu sobre o pescoço do galo, que tombou decapitado e caiu por terra nas convulsões da agonia. O rei explicou-me através do intérprete que se o corpo do animal que se debatia se aproximasse de mim o sacrifício tinha agradado aos deuses. Pelo contrário, se o animal tomasse a direcção oposta, os deuses não me seriam favoráveis. Por fatalidade, o galo afastou-se de mim, a assistência parecia ter ficado em estado de choque e o rei levantou-se e foi para sua casa, sem proferir palavra.

Os deuses tinham-me abandonado! O ministro da guerra enviado por Sua Majestade Oumpâné informou-me que eu estava detido. Ao mesmo tempo, uma centena de Bijagós dirigiu-se para a minha embarcação e em menos de uma hora desembarcaram tudo o que nela vinha.
Fiquei aterrado.

Não sabendo o que me ia acontecer, deplorei a funesta temeridade que me tinha levado a estas costas tão hostis. A ideia de resistir assaltou-me o espírito. Mas em presença de tanta população servindo às ordens deste déspota, compreendi que qualquer tentativa desse género acabaria terrivelmente mal, quer para mim quer para a minha tripulação.


O meu cozinheiro preparou a galinha com arroz tradicional. A minha refeição foi interrompida com a chegada de um grupo de nativos que traziam um touro que foi degolado na minha presença. Foi esquartejado sem ser esfolado e o ministro da guerra veio anunciar-me que o rei mandara matar o touro em minha honra e contava com a minha generosidade para lhe oferecer um quarto do animal.

Respondi prontamente que sim, e ofereci também 38 litros de aguardente. Oumpâné ficou tão satisfeito que me veio agradecer pessoalmente. Através do meu intérprete, deu-me a saber que eu era livre de percorrer toda a ilha e que em minha honra autorizara festejos públicos.

Sentia-me totalmente confuso. Um rei que me mantinha prisioneiro e que ao mesmo tempo me oferecia presentes e festejos públicos era a coisa mais incompreensível do mundo.
Floresta guineense, imagem do site Algarve Selvagem, com a devida vénia
Vista geral da Ilha de Orango

No dia seguinte, dirigi-me para o interior da ilha. Após ter atravessado muitos milheirais, campos de inhames e de batatas, entrámos numa floresta que cobria uma grande parte da ponta oeste de Orango. É-me difícil traduzir em palavras a impressão que me causou. Já tinha visto muitas florestas e lido numerosas descrições; mas em parte alguma vi algo que me desse a ideia de semelhante natureza.

Encontrávamo-nos debaixo de uma abóbada imensa, formada principalmente por árvores de bombax [procurei em vários dicionários, surfei no Google, estou em crer que Max Astrié está a falar de poilões gigantescos, é a maior de todas as árvores, na Guiné], uma das árvores gigantes da costa africana cujo tronco serve para fazer as pirogas. Lianas com as formas mais bizarras e variadas enrolavam-se à volta dos troncos vigorosos, subindo muitas vezes até às copas. Estas árvores, cuja altura ultrapassa os carvalhos, são coroladas por uma folhagem de tal modo espessa que os raios de sol não a conseguem atravessar. À sua volta reina uma sombra eterna; daí a ausência de toda a vegetação sobre o solo. Andávamos através de uma clareira que me parecia interminável e que tinha ao alto uma vasta cúpula de verdura onde ressoavam os gritos, os cantos, os miados e os uivos na mais variada fauna.

De longe em longe, numa nesga de luz, apareciam goiabeiras curvadas sob o peso dos frutos maduros [tenho sérias dúvidas que se tratava de goiabas, mas sim de mangas]. Estes frutos, da grossura de batatas, têm um gosto saboroso que dá ao vinho um perfume requintado [a frase parece-me desconexa, mas é o que Max Astrié escreveu].

Via-se a esmo o caju [impossível, o caju chegou à Guiné na década de 40 do século XX, talvez ele se refira ao amendoim], o bambu e a palmeira. Sobre esta última, observarei que não há nada de mais útil para mil usos possíveis; com as suas folhas os negros fabricam vestuário e cordoaria; do seu tronco extrai-se o vinho de palma e do seu fruto retira-se o óleo de palma e nas plantas da palmeira temos uma noz de um gosto agradável designada por palmiste. O ruído dos nossos passos e as nossas vozes punham toda aquela fauna em movimento, gritando e fugindo nas ramagens".

(continua)
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Nota do editor:

Último poste da série de 11 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)