Queridos amigos,
Passados estes mais de 30 anos desta visita à República Democrática Alemã, ainda hoje é mistério indecifrável a natureza do convite, a cornucópia das visitas, isto tudo a despeito do embaixador Julian Hollender me ter perguntado quais as cidades que me interessavam visitar, se havia algum museu em especial, que informações pertinentes eu desejaria obter daquele país tão pacífico, tão cooperante, tão amigo da paz.
Sabia das belezas de Dresden e de como o centro histórico da cidade se ia reerguendo das cinzas depois dos grandes bombardeamentos de fevereiro de 1945; Berlim era um fascínio, lera a obra de Trevor-Roper e vira o filme com Alec Guiness, Os Últimos Dez Dias de Hitler, e obras posteriores, Berlim calcinada, dividida, uma verdadeira fronteira da Guerra Fria. Recebi informações que poderia ter recebido de outras procedências, umas em comunicação vívida, outras em tom sorumbático, e o trabalho de reconstrução de Berlim, a despeito de uma arquitetura moderna de um gosto um tanto duvidoso, era de tirar o chapéu. Empolguei-me com a descoberta deste caderno que me veio reavivar um universo político que desapareceu, conversas que hoje são puros anacronismos, mas algo ficou e que se chama gratidão por quem me deu a possibilidade de percorrer aquela linha da Guerra Fria sempre com a perceção de que algo estava prestes a acontecer, mas ainda um sentimento indefinível.
Dois anos depois, repimpado em frente do televisor, aquele muro começou a ser demolido e a civilização europeia andou mais depressa.
Um abraço do
Mário
Na RDA, em fevereiro de 1987 (4)
Mário Beja Santos
Os meus anfitriões não querem que eu saia da República Democrática Alemã sem saber como atua o país em prol da paz, questiono-me a toda a hora o que pretendem estes mestres da comunicação quanto ao que eu devo trazer para Lisboa, já levei uma boa ensaboadela sobre a Acta Final de Helsínquia, as relações com a República Federal Alemã, como é imprescindível haver a todo e qualquer momento equilíbrio militar, as vantagens em reduzir armas, tropas e despesas afins que deviam estar voltadas para o desenvolvimento. Os EUA têm sido os obreiros deste inferno, serventuários do complexo militar industrial. A RDA procura em todos os órgãos internacionais mostrar como está o serviço dos direitos humanos, o Ocidente repudia qualquer hipótese de fazer uma conferência em Moscovo sobre direitos humanos, a RDA propôs Estocolmo, no âmbito da segunda fase da conferência sobre desarmamento e cooperação na Europa. Tudo isto que eu estou a ouvir está a acontecer numa sala bastante austera do Ministério dos Negócios Estrangeiros, perto de tudo o que eu tenho vindo a apreciar, desde a Catedral de Berlim, toda a Unden den Linden, a Ópera, onde parece que irei esta noite ou amanhã. Não sei por que carga de água, mas entrou há minutos na sala alguém bem engravatado que veio com a missão de me esclarecer de que a RDA e o seu Partido-Estado tudo faz para ter boas relações com a Internacional Socialista, começo a ter medo e ainda vou sair daqui diplomado em relações internacionais. Alguém na mesa me informa também que está a ter lugar uma conferência sobre os 750 anos da cidade de Berlim e pede-me algumas sugestões sobre a participação portuguesa. Apanhado de chofre, ocorreu-me propor que se tivesse em conta o que aconteceu em Berlim em 1884 e 1885, uma conferência de repartição colonial, Portugal mandou conveniente representação, saiu com garantias que as parcelas do seu império não eram cobiçadas por outrém (pura mentira) e passou-se a ter a certeza que era uma fatura carota, havia que ocupar os territórios coloniais. Não sei se falei de mais ou de menos, com entusiasmo sim, coisa que não vi nos rostos impenetráveis dos circunstantes. Um dos diplomatas olhou para o relógio e avisou-me que a minha agenda continuava, eu ia visitar o Bairro Nicolau que ficara totalmente destruído durante a Batalha de Berlim, em abril de 1945.
Era assim a arquitetura na Berlim (RDA) em 1987
Bairro Nicolau na atualidade
Câmara Municipal de Berlim junto do Bairro Nicolau
Igreja do Bairro Nicolau
Somos recebidos no Bairro Nicolau pelo arquiteto Viktor Schlichte que começou por dizer que Berlim era uma cidade relativamente nova, o que achei estranho pois logo adiantou que fora fundada no século XII, e que na Idade Média era altamente planificada, o centro era a praça do mercado e à sua volta o Bairro Nicolau. Parecendo que estava a falar de igual para igual, o meu anfitrião disse-me com ar muito sério que temos que analisar os aspetos arquitetónicos como espelho das relações sociais, e não esquecer que as cidades mais velhas são as mais ricas em cultura, era assim o Bairro Nicolau, onde havia mostras dos estilos românico, gótico, renascentista, barroco e do classicismo, tudo seriamente afetado pelas destruições da guerra. A reconstrução do Bairro Nicolau, por decisão governamental, pretendeu recriar um conjunto arquitetónico novo, com referências ao passado e espaços verdes. Fora chumbada a proposta de reconstruir ali a Berlim da Idade Média. A proposta vencedora assentava numa arquitetura contemporânea em estreita ligação com a Berlim original. Tinham-se perdido, foram devorados pelo fogo, os antigos projetos, tudo quanto era desenho das praças e edifícios, reconstruiu-se a Câmara Municipal, fez-se uma ligação entre o Bairro Nicolau e a área da Câmara sem esquecer o rio Spree, fez-se uma promenade, houve muita crítica. Reconstruiu-se a Igreja do Bairro Nicolau, que era uma basílica românica, cujos fundamentos foram encontrados nas escavações e que passou a ser o vestígio arquitetónico mais antigo e que tem uma estreita ligação com a fundação de Berlim. Gerald olha para o relógio, pede desculpa ao Sr. Arquiteto, temos que seguir para a etapa seguinte, pede licença para regressarmos amanhã de manhã, o ilustre convidado da RDA será recebido amanhã de manhã aqui perto, o mesmo é dizer no Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo embaixador Hans Vogel, se podemos visitar a Igreja Nicolau às 9h30. O Sr. Arquiteto diz que sim, a despedida é efusiva. Entramos no carro e Petra Peterson anuncia-me que vamos visitar o Memorial de Treptow. Devo ter feito uma expressão de completa surpresa, nunca ouvi falar no Memorial, não sei do que trata.
Ministério dos Negócios Estrangeiros da RDA, felizmente já demolido
Gerald arruma o carro e anuncia-me triunfante que estamos no Parque de Treptow. Dada a minha ignorância, pergunto a Petra a que se deve esta visita, parques há muitos. E então vem a história. Que depois de finda a II Guerra Mundial os Soviéticos construíram vários monumentos, terão perdido cerca de 80 mil homens na Batalha de Berlim, Treptow é um parque-cemitério, tem um vasto conjunto de esculturas alusivas à Grande Guerra Pátria, é melhor eu percorrer cuidadosamente todas essas esculturas até chegar ao grande monumento, eu que circule à vontade, não preciso de guia. O parque é imenso, as esculturas disseminam-se nesta vastidão, o silêncio ajuda à contemplação, guerra é dor, destruição, dispersão calamitosa. Ando por ali no meu próprio passo, volto à guerra que fiz na Guiné, sem aqueles tanques nem aquelas batalhas, mas conheço aquelas expressões de sofrimento incomensurável, os olhos lacrimejam, o coração aperta-se, a surpresa é total, ando de escultura em escultura de arte estalinista, todo este monumento foi inaugurado em 8 de maio de 1949, virá a ser vandalizado com a queda do Muro de Berlim, não voltei lá, mas não me importaria absolutamente nada de lá regressar. Enxugo as lágrimas, por mim já chega, Petra e Gerald esperam-me à entrada, anunciam-me que vamos almoçar numa residência apalaçada onde viveu o marechal Gueorgui Zhukov, e depois, diz-me Petra com o sorriso de orelha a orelha, o ilustre convidado vai receber o prémio desta visita, será hoje que irá contemplar uma das 7 Maravilhas do Mundo, ou talvez a oitava, o Altar de Pérgamo, mas também a Porta de Istar, de Babilónia e a entrada do Mercado de Mileto, uma preciosidade da Grécia Antiga.
Soldado a salvar criança, detalhe do Memorial de Guerra Soviético em Treptow, Berlim
Detalhe das esculturas do Memorial de Guerra Soviético
(continua)
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Notas do editor:
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