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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14174: Humor de caserna (39): A minha primeira viagem no Batelão Anita (José Brás)

1. Em mensagem datada de 20 de Janeiro de 2015, o nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) enviou-nos esta humorada história passada a bordo do Batelão Anita, aquando da sua ida para Meja após o regresso de férias da metrópole.

Uma pequena nota para saudar o nosso camarada José Brás que nos presenteia sempre com textos de elevada qualidade.


A MINHA PRIMEIRA VIAGEM NO ANITA

Bem!
E se teve uma primeira, terá de ter tido, pelo menos, uma segunda, dirão amigos que lerem isto.
E eu direi que talvez... que talvez tenha lógica o pensamento que os levará a reagir assim, ainda que também possam ser levados a erro de conclusão precipitada.

Imaginem que, fazendo uso do poder que tem sempre quem conta um conto, avance eu na conversa e esclareça que… “na minha primeira e última viagem no Anita”… e tal, uma espécie de xico-espertice despropositada, é certo, mas possível, e lá se vai a lógica da vossa conclusão borda-fora.
Mas não. Não será assim e estarão vocês certos, porque foram duas as viagens que fiz no batelão Anita, uma de Bissau a Gadamael-Porto, em Agosto de 67, e outra de Catió a Bissau, aí por fim de Abril ou início de Maio de 68.

Essa fotografia, aliás, foi tirada na primeira das viagens, no Rio Cacine, muito perto da localidade que dá o nome ao rio e antes de entrar no Rio Sapo um dos braços em que se multiplica e nos levava a Gadamael.

O Batelão Anita subindo o Rio Cacine
Foto: © José Brás

E tem uma história, esta foto, como de histórias estão cheias as duas viagens de que vos falo, picaresca esta, fonte de gargalhada, então, do pessoal que se vê esparramado nas tábuas do barco como se andasse ali por andar e sem pensar no Gadamael, nas emboscadas e nos fornilhos da estrada até Guiledje e Medjo, nas flagelações aos quartéis de cada um, nas bernardas no Corredor da Morte, no prato escasso à hora do almoço e do jantar… e mais picaresca ainda, uma outra história vivida em Catió, como se constatará se eu vier a contá-la aqui e vocês a lê-la… mais duras as outras histórias, sérias e bem sofridas mas sem fotos que as comprovem para além das que me restam na película da memória e juro serem tão verdadeiras e objectivas como eu próprio que aqui estou, ainda, não afiançando, contudo, que coincidissem tim-tim por tim-tim, se as ouvissem contadas por outros que também as viveram.

Mas peguemos nesta porque tem foto e que por tê-la e me ter chegado às mãos nas voltas que de vez em quando dou à caixa onde a guardo com outras, me reclamou o contar-vos.

Seguia eu de Bissau para Medjo na última etapa do meu mês de férias no puto, embarcado ao cair de uma noite no batelão Anita com companheiros de desditas, militares brancos de Gadamael, de Guiledje e de Medjo, talvez até de Cabedu, soldados locais de alguns desses lugares desse tempo como se vê na foto, não me lembro se algum civil também de regresso do Bissau.

Depois da partida, furando a noite já funda, desaba sobre o barquinho uma dessas bátegas habituais por ali em tal tempo. O barco tem apenas aquela espécie de barraca como protecção do piloto e o resto é campo aberto às grossas e intensas cordas da água que cai. O poço do porão vem carregado de farinha para os quartéis, tapada por um estrado de ripas e um encerado numa cobertura em duas águas.
No meio daquele quadro e já bem encharcados, chegou-nos à imaginação, a mim e ao Serra, de nos esgueirarmos para debaixo da cobertura e passar ali o tempo da bátega. Choveu noite dentro e quando saímos para a luz da manhã, toda a gente ria da figura que fazíamos. A farda, a cara e as mãos eram a imagem de um padeiro desajeitado depois de uma noite de amassar e tender. Sobre os sacos de farinha, com roupa molhada e secando no corpo, ganháramos farda nova na imaculada brancura marinheira, na pasta branca e já seca do calor do interior da protecção.

Tirámos a roupa, lavámo-la debruçados na amurada, estendemo-la a secar, mergulhámos para lavar, pele, cabelo, ouvidos, olhos… cueca e meias, e fizemos a última parte do trajecto para Gadamael no estado que se vê na foto, como lagartos esparramados ao Sol, beneficiando da benesse de um PAIGC ausente naquela vez nas curvas da água.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11875: Humor de caserna (38): Estou a fazer voar o meu pensamento (Tony Borié) (11): As ovelhas e a cabra do senhor Aniceto