Mostrar mensagens com a etiqueta Bolola. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Bolola. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Confrontado com esta nova linguagem do Boletim Oficial da Província da Guiné que passou a ser omisso quanto à história política, económica e social, reduzindo-se à rotina burocrática, vi toda a vantagem em revisitar o acervo monumental organizado por Armando Tavares da Silva na sua gigantesca obra A Presença Portuguesa na Guiné, 1878-1926. No texto de hoje, são referidos os dois primeiros governadores, Agostinho Coelho e Pedro Ignacio de Gouveia, tiveram que apagar incêndios, sobretudo à volta de Geba e na região do Forreá, são notórios os lugares onde ainda não há presença portuguesa, as hostilidades sucedem-se, exigindo expedições, punições, perdões e tratados de paz, muitas destas iniciativas são pura fantasia, os insubmissos voltarão à carga. A França tudo vai fazendo tudo o que pode para pôr os Fulas revoltosos, aquela região sul ainda é para ela um grande atrativo, para juntar ao Futa-Djalon. Aqui fica o registo de duas governações dificílimas, há pouquíssimo dinheiro, os meios navais são frágeis e até há revoltas no Batalhão de Caçadores nº1, com os oficiais punidos.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2)

Mário Beja Santos

Estamos agora no Governo de Agostinho Coelho, ele é o 1.º Governador da Guiné como província independente de Cabo Verde, desembarca em Bolama a 20 de abril de 1879. Começa por mexer no dispositivo militar, constituiu o Conselho do Governo, a província da Guiné é dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola, Bissau compreende a vila de S. José e o presídio de Geba, Cacheu inclui, além da praça deste nome, os presídios de Farim e Ziguinchor e as povoações de Mata, Bolor enquanto Bolola inclui Sta. Cruz de Buba e todos os mais pontos que venham a ocupar-se no Rio Grande, era esta a divisão administrativa da Guiné autónoma. É claro que havia porções do território ainda não ocupadas, outros com presença duvidosa, e esta situação irá perdurar por algumas dezenas de anos. A divisão administrativa levantou críticas e o Governador seguinte, Pedro Ignacio de Gouveia, fará alterações.

Melhorou o equipamento naval, havia a canhoneira Rio Lima, vai chegar o vapor Guiné, o Rio Lima regressará a Cabo Verde. O coronel Agostinho Coelho tinha à sua espera problemas que requeriam inadiável solução, era indispensável garantir um quadro de normalidade em Buba, os Futa-Fulas impunham tributos aos negociantes. O Governador procurou fazer tratados com régulos, havia pretensões territoriais francesas no sul, o Governador deixou um documento esclarecedor sobre a situação existente no Rio Grande:
“É uma das zonas mais produtivas da província; as suas margens são povoadas até muito para o interior por tribos laboriosas e agrícolas e convém a todo o custo dar-lhe segurança e proteção. Há nas margens deste rio 53 feitorias portuguesas e francesas, onde vão muitos navios à carga; porém, estes agricultores, têm vivido até hoje expostos aos vexames dos Futas, os quais, em diversas épocas do ano, percorriam os vários estabelecimentos e exigiam, mesmo à mão armada, o tributo a que eles chamam dacha. Cobravam a título de senhores do território um imposto de proximamente 12 mil pesos, e os cofres da província nada lucravam. Como medida de transição, determinei que a importância da dacha fosse paga pelos negociantes por uma comissão composta da autoridade militar de Buba e de três negociantes, competindo a esta comissão reunir, em determinado dia do ano, os principais chefes Fulas e Futas, a quem distribuiria com o simples caráter de presentes, alguns donativos em panos, armas, e bijutarias, uma parte do produto do imposto, entrando na Fazenda o resto, quando o houvesse.” E mais adiante dirá que houve resistência dos negociantes franceses que tentaram atrair os chefes indígenas para ações de descontentamento.

O Governador empregou esforços para a ocupação do Rio Grande, assinou em Buba o tratado de paz com os régulos de Biafadas e com o chefe principal do Forreá. O Governador informa Lisboa que com este tratado terminava uma guerra encarniçada entre etnias. Mas havia continuidade de problemas em Geba, encontravam-se em guerra Fulas-Pretos e Mandigas. Atenda-se a um parágrafo de um documento que Agostinho Coelho mandara ao Governo: “Geba era antigamente o principal centro de resgate do ouro e do marfim na Guiné; hoje do primeiro aparece muito escassa quantidade e do segundo nem a mínima partícula. Dirigi-me a Geba, e foi aí tal o espanto produzido pela aparição de um navio a vapor que muito do interior vieram inúmeras pessoas verificar tão assombroso facto. Esta romaria de visita ao Guiné durou nos 3 dias em que nos conservámos em Geba. Os Fulas-Pretos e Mandigas andavam em guerra, Agostinho Coelho reforçou a defesa de Geba. Dá-se a sublevação do Batalhão de Caçadores n.º 1. O capitão e o ajudante suscitavam comentários injuriosos acerca dos actos de Governo da província. Agostinho Coelho aplicou-lhes dois meses de prisão, houve tentativas de levantamento, o Governador respondeu mandando levantar autos do corpo de delito".

Tavares da Silva destaca a dimensão daquela Guiné com o propósito de degredados, estes, por sua vez, eram sujeitos a um tratamento vexatório, o Governador tomou providências para aquilo que hoje se designa reinserção social. Foram efetuados tratados, houve esforço para a pacificação do Forreá, que culminou com o tratado de paz com os régulos do Forreá e do Futa-Djalon. Mas a questão nevrálgica dava pela delimitação da Guiné, havia a presença estrangeira, particularmente a francesa, fazia-se uma enorme pressão para a ocupação de pontos onde a administração portuguesa não se encontrava estabelecida. O Governador pede a Lisboa recursos financeiros; se havia problemas no sul, surgiram novos problemas fronteiriços envolvendo o Senegal. O que se passava no sul era preocupante, o próprio governante comunica que naquele sul era débil o movimento comercial, muita gente a viver em condições miseráveis, o que inaceitável.

Assim se passaram dois anos é nomeado novo Governador, o 1.º Tenente da Armada Pedro Ignacio de Gouveia, toma posse do cargo em dezembro de 1881, após três semanas de permanência no território, manda uma exposição ao Governo, constata que os povos da região estão longe da civilização, fala sobre o cultivo da mancarra, o principal produto agrícola de exportação, manifesta dúvidas que em pouco tempo se faça a substituição desta cultura de um produto pobre como é a mancarra pela cana sacarina, algodão ou café e cacau. Manifestando a sua preocupação sobre as produções agrícolas da província, escreve:
“A árvore que dá borracha e que aqui é abundante também sofre umas incisões primitivas: se na América ainda não compreendem bem a maneira de obter-lhe o líquido sem prejuízo temporário da árvore, aqui o definhamento é quase completo e o produto que sai é perfeito.” Falando do elemento militar ao Governo, é profundamente crítico: “As autoridades subalternas não são sempre aquelas que coadjuvam melhor o magistrado superior da província: o elemento militar tem o seu lado bom e o seu lado mau. Quando o militar não é ilustrado, e que saiu unicamente da fileira, sem noções razoáveis de administração civil, colocado à frente do concelho, vê nos indivíduos que o rodeiam soldados ou, quanto muito, sargentos. Se este indivíduo, entregue aos próprios recursos naturais, e uns hábitos de vida que destoam completamente da sua educação militar, não é vigário a mando, principia a destemperar e, por fim, desproposita, estabelecendo completamente a desarmonia social.” Pede meios de transportes, recorda a dificuldade em obter o combustível apropriados para os navios a favor.

Ignacio de Gouveia lança uma nova expedição contra os Biafadas de Jabadá, a exposição acontece em janeiro de 1882, está ciente de que deu uma lição aos rebeldes, é feita a paz com o régulo de Jabadá, fará outros tratados de paz, é confrontado com novos atritos com os Fula-Forros de Bakar Quidali. Muitos anos mais tarde, no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Fausto Duarte louva o documento enviado por Pedro Ignacio de Gouveia a Lisboa, dizendo a seu favor: “Espírito lúcido, observador arguto e com uma cultura digna de apreço […] Não faz literatura, nem procura servir-se de artifícios de linguagem para esconder ou mesmo diminuir certas deficiências da administração local. Num período incerto para a vida da província que adquirira a tão almejada autonomia política, mas se via a braços com toda a sorte de dificuldades, era preciso expor ao Governo de Sua Majestade em toda a sua crueza variadíssimas contrariedades que mantinham dentro de certos limites a ação do Governador.”

Mas ainda iremos falar adiante deste Governador, haverá acusações de alegada escravatura, novas desavenças em Geba e Buba, o alferes Marques Geraldes entra em cena, haverá perda do vapor Guiné, operações em Nhacra, a criação de escolas em Bissau e Bolama, dar-se-ão passos na organização administrativa e na ocupação do território.
1902, o Boletim Oficial passa por uma fase burocrática, não há conflitos, não há tensões políticas, é só rotina administrativa
Notícia da chegada de novo governador, em novembro de 1902, o 1º tenente da Armada Judice Biker
Pedro Ignacio de Gouveia
Imagem do que foi o último Palácio do Governador em Bolama

(continua)
_____________

Notas do editor

Vd. post anterior de 8 de novembro de 2024 > 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26001: Historiografia da presença portuguesa em África (445): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, últimos meses de 1883 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de julho de 2024:

Queridos amigos,
O Governador Pedro Ignácio de Gouveia pautou-se pela firmeza, pelo diálogo, fora-lhe aparecendo colaboradores competentes, os acontecimentos bélicos no Forreá perderam intensidade, dir-se-á que o governador teve sorte, mas também fez por isso. Obstinou-se junto do Governo de Lisboa para haver uma nova divisão concelhia, esta, que vem totalmente referida no texto que se junta, merece ser refletida, temos aqui uma forma rigorosa de avaliar o que era a presença portuguesa na Guiné, a redação do documento é cuidadosa referindo sem prazos nem meios que poderá haver estabelecimentos a fundar-se, outros pontos a ocupar, ainda não havia fronteiras, era tudo uma nebulosa, à cautela fala-se da nossa presença no Casamansa, não há uma só palavra sobre a Península do Cacine. Não deixa de ser tocante a peça de teatro que entusiasmou a população de Buba, a propósito do dia natalício de sua alteza o Príncipe Real. E a solidariedade não era palavra vã, como se viu a recolha de dádivas para socorrer as vítimas da estiagem em Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, últimos meses de 1883 (4)


Mário Beja Santos

Ao longo deste ano, como se referiu anteriormente, foram sendo introduzidas alterações de monta na vida organizativa da província, um caudal de regulamentos e regimentos, e pelo Boletim Oficial n.º 34, de 25 de agosto, surge a divisão concelhia da Guiné, quatro circunscrições com a denominação de concelhos: - Bolama, com sede na ilha do mesmo nome, compreendendo a denominação denominada Colónia, ilha de Orango, todos os pontos ocupados na margem esquerda do Rio Grande, desde a feitoria D. Amélia até ao fim dos domínios de Portugal, fronteiro ao arquipélago dos Bijagós, e bem assim tofos os estabelecimentos vierem a fundar-se no dito arquipélago; - Concelho de Bissau, compreendendo a vila de S. José, o presídio de Geba, Fá e S. Belchior e todos os demais pontos ocupados ou a ocupar nas margens dos rios de Bissau, do Corubal e do Geba; - Concelho de Cacheu, com sede em Cacheu, formado pela praça do mesmo nome, pelos presídios de Farim e Ziguinchor, pelas povoações de Mata e Bolor, e por todos os pontos ocupados, ou que de futuro vierem a ser ocupados nas margens dos rios de Farim e de S. Domingos; - Concelho de Bolola, com sede na povoação deste nome, compreendendo Sta. Cruz de Buba e todos os pontos que de futuro forem ocupados na margem direita do Rio Grande.

Temos procurado não ser repetitivos quanto à descrição de nomeações e exonerações, autorizações para férias, movimento criminal, chegadas e partidas de navios, receitas alfandegárias, quadros de situação locais, em que se fala do estado sanitário, alimentício, comercial, sossego público, obras públicas e municipais, agricultura e ocorrências policiais. Mas não deixa de ser bastante curioso o boletim de informação referente ao mês de agosto de 1883, constante do Boletim n.º 38, de 22 de setembro, assina o administrador do concelho de Bissau, que também já vimos como comandante militar, Carlos Maria de Sousa Ferreira Simões:
“O comércio tem corrido pouco animado, o que não é para estranhar por não ser esta a estação própria. As chuvas, que têm sido torrenciais, têm causado algum atraso à agricultura. Há sossego em todo o concelho, exceto nas imediações de Geba, onde ainda se conservam os Fula-Forros, capitaneados por Bakar Kidaly, auxiliando os Biafadas contra os Fula-Pretos. Bakar Kidaly enviou emissários ao régulo Dembel e ao seu chefe de guerra – Mussá, Fula-Preto, propondo-lhe paz. Supõe-se que estra proposta será aceite.

Os mouros principais de Begine foram expressamente a Geba visitar o chefe daquele presídio, o alferes Marques Geraldes, e agradeceram-lhe a proteção que ele tem dispensado, dentro da praça, aos indivíduos daquela raça que lá vão negociar.
A última guerra contra os Balantas está produzindo os efeitos desejados.

Há dias, um soldado do destacamento, movido pela embriaguez, furtou um pano a um Balanta de Oco. O gentio, sem dizer uma só palavra ao soldado, dirigiu-se à secretaria da administração do concelho e queixou-se; mandei indagar que soldado tinha sido e na presença do próprio gentio o mandei prender e dei ao Balanta um pano novo na substituição do roubado, que era muito velho. Na tarde do dia imediato voltou o mesmo Balanta à administração, então acompanhado de outros indivíduos da sua raça e disse que me vinha pedir para que eu fosse à sua terra porque desejava que todos lá me conhecessem, e que eu havia de ser seu hóspede. Respondi-lhe que lá iria passando a estação invernosa.
Registo este facto por ser mais uma prova além das muitas que já tenho de que estes homens, apesar de verdadeiros selvagens, conhecem bem quando com eles se procede com justiça e imparcialidade.”


No Boletim n.º 44, de 3 de novembro, consta uma circular difundida pela Secretaria Geral do Governo, que foi também difundida pelos comandantes militares de Cacheu e Buba e chefes de presídios:
“Sua Excelência, o Governador, encarrega-me de dizer a vossas Senhorias, para os devidos efeitos, que não se dê nunca preferência a uma raça gentílica sobre outra, salvo quando elas se diferenciarem nas melhores ou piores relações com o Governo pu pelo seu procedimento para com o comércio da província. A proteção do Governo é igual para todos sem distinção de tribos de nações ou raças, enquanto dela não desmereçam.”

Voltando um pouco atrás, ao Boletim n º 40, de 6 de outubro, da administração do concelho de Buba, assinado pelo administrador Ventura Duarte Barros da Fonseca, reserva estes parágrafos, guardam a sua eloquência:
“No dia 28, natalício de sua alteza o Príncipe Real, e da última vitória de guerra contra os Fulas teve lugar pelas 20h30 uma récita dada pelos oficiais interiores do destacamento, sendo grátis a entrada.
Constando que o 1.º sargento, Policarpo Augusto da Silva, pretendia abrir um pequeno teatro, não pude deixar de o animar, não só por ser instrutivo divertimento, mas porque atos públicos moralizadores civilizam.
À hora indicada, entrei no dito teatro e foi para mim muito agradável ter aproximadamente 50 pessoas de ambos os sexos na plateia, bem-trajadas, no maior silêncio, admirando a casa com muito apuro condecorada, e como que ansiosos por o correr do pano.
Sentando-me no lugar que me estava destinado, junto do palco, como comandante-militar, logo se deu o sinal para correr o pano e seguiu-se a representação de cenas cómicas e poesias, que durou até à meia-noite; correndo tudo na melhor ordem, prestando-se todo o entusiasmo e atenção tanta, que pessoa alguma saiu para aproveitar os intervalos.
Assistiram alguns habitantes das pontas, o rei dos Mandingas, o qual esteve sempre em pasmo, dizendo-me por fim que desejava que eu o convidasse para as outras récitas.”


Aproximamo-nos do fim do ano, retenho que o seu indiscutível interesse do Boletim n.º 49, de 1 de dezembro, o ofício do comandante militar de Buba, tenente Bernardo Francisco Luís da Cruz, ele acabara recentemente de ser nomeado administrador e comandante-militar do concelho. E tece algumas considerações:
“A decadência do tráfico mercantil ocasionada pelas últimas guerras feridas no Forreá vai desaparecendo, tendo atualmente o concelho um novo aspeto, concorrendo a ele muitos Fulas que vêm comerciar vários géneros coloniais, como arroz, manteiga, gado vacum, couros, cera e borracha, permutando-os por fazendas, tabaco, aguardente, etc. etc., com as casas comerciais Blanchard & Cª e outras. A principal agricultura do concelho é a da mancarra e milho fino.
Tratando do estado da praça, sou de dizer a Vossa Excelência que a paliçada está em bom estado, ficando o material de guerra armazenado em casa do comandante-militar, por ser de maior segurança. Torna-se de urgente necessidade que seja construído um aquartelamento para 60 praças e vários consertos no aquartelamento que hoje existe; bem como uma enfermaria com a competente cozinha e utensílios correspondentes.
As casernas acham-se totalmente arruinadas, aquartelando-se as praças em grupos de três em pequenas cubatas fabricadas pelos soldados, no recinto do aquartelamento.”


E assim termina o ano de 1883, neste volume consta um documento de precioso valor moral intitulado A Fraternidade da Guiné a Cabo Verde, foi-lhe dedicada a socorrer as vítimas da estiagem da província cabo-verdiana, é número único, tem uma tiragem de dez mil exemplares, data de Bolama, 31 de outubro. A solidariedade praticava-se.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
Estabelecimentos portugueses em Buba, no Rio Grande, profundamente afetados pela guerra do Forreá
A canhoneira Guiné, 1879-1883
Bafatá, avenida principal com igreja matriz reformulada por Eurico Pinto Lopes/GUC, 1950.
Foto de Ana Vaz Milheiro, 2011, com a devida vénia
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, imagem postal da época colonial.
Bilhete Postal, Coleção “Guiné Portuguesa, 143”
Edifício do Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau (na atualidade)
A fonte pública de Bafatá, 1918. Imagem conservada no nosso blogue

(continua)
_____________

Nota do editor

Último post da série de 25 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25980: Historiografia da presença portuguesa em África (444): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma viagem de demarcação de fronteiras onde não faltaram peripécias de todo o tipo, desde ataque de formigas, a beber água com sanguessugas, carregadores velhacos com ameaças, o Tenente da Armada Real não vacila perante todo aquele resplendor vegetal, o reconhecimento das riquezas, põe várias hipóteses para intensificar a presença portuguesa neste território que passou a ter fronteiras demarcadas, só vê vantagens no estabelecimento de alianças com os potentados locais, já chegaram a Buba, não esconde o seu assombro com a paisagem fascinante, e, como veremos seguidamente, dar-nos-á uma interpretação de como a que fora tão florescente economia das feitorias do rio Grande de Buba caíra no mais completo declínio, a que se seguiu o abandono, era insuportável mercadejar no meio de tão sanguinária guerra entre Biafadas e Fulas.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A missão luso-francesa está de regresso a Buba, partirão mais tarde de Bolama para o Casamansa. Viajam por itinerários separados. O grupo português saiu de Damdum e acampa na margem direita da ribeira Tucumen, logo uma observação: “No arvoredo frondosíssimo das suas margens abundam os macacos-cães que toda a noite nos incomodaram com os seus guinchos, tão semelhantes ao latir dos cães.” E logo a seguir passamos para um episódio turbulento, um tanto cómico:
“Alta noite fomos acordados pelos gritos da nossa gente. Quando abrimos os olhos ficámos surpreendidos com o que se passava no acampamento! Os carregadores seminus, as raparigas Fulas, o Maia, mal alumiados pela chama vacilante das fogueiras, pareciam dançar uma dança desesperada, infernal, acompanha de gritos e movimentos desordenados! Não pude conter o riso, e assentado num leito de viagem interroguei os mais próximos. Ninguém me respondeu! Alguns indígenas, correndo para as fogueiras, fazendo esgares, dando saltos, gritando, largando a linha, para se esfregarem e sacudirem. Foi então que pude compreender e ver o que se passava. Perto do meu leito movia-se um grosso cordão formado por milhões de formigas. No seu caminho, sempre em ziguezague, encontraram deitado um desgraçado carregador, que atacaram com violência. Tudo se resolveu com cinza quente e depois todos voltámos ao sono.”

É um exímio contador de peripécias, vejam esta:
“Quando chegámos a Saála mandámos à ribeira encher um garrafão de água e como viesse muito fresca e eu estivesse sequioso, despejei uma porção num copo de ferro esmaltado e bebi sem olhar, contra o meu costume. Imediatamente senti uma grande picada na faringe, e como que um objeto ali agarrado, tomo um pouco de licor de Kermann e gargarejo! Nada! Repito a operação e a dor não desaparece, bebo alguns goles, a mesma coisa! O chefe de Saála que assistia, espantado, a esta cena muda, pergunta-me o que tinha. Não sei, respondi-lhe eu, bebi água da ribeira e suponho que tenha agarrado à garganta um grande bicho.
O homem sorria, fez sinal para eu sossegar e esperar, e desapareceu. Passado pouco tempo, volta trazendo na mão a metade de uma cabaça com uma água acinzentada, cheia de grumos escuros, malcheirosa e repugnante, e entregando-ma, convida-me a tomar aquela poção. O estômago tocou a rebate, e eu sem refletir recusei! O chefe escandaliza-se, e chamando o seu herdeiro apresenta-lhe a cabaça, que ele leva à boca, bebendo metade aproximadamente do seu conteúdo. Então, levei a cabaça à boca e bebi o resto daquela beberragem. Mas, ó caso maravilhoso, logo ao segundo gole senti desprender-se da garganta o que quer que era, ficando-me apenas uma impressão dolorosa que durou horas. O bicho, que se havia agarrado à faringe, era uma sanguessuga, e o remédio um soluto de sabão indígena!”


Avança-se para Buba, o oficial rende-se ao esplendor da natureza:
“É formosíssimo o sertão de Buba! Quem vê a Guiné de fora, e conhece os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies morbíficas e pestilenciais, não pode imaginar sequer as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente a era viçosa e fresca dos seus vastos prados; matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão de mulher africana que, com o filho às costas envergada sobre o peso de cestos cheios de maçaroca de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis onde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa.
E dizem ser pobre Guiné!
Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos, aonde há mel, cera e oiro nativo, aonde a árvore da borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor rios enorme e navegáveis por onde se podem conduzir todas as riquezas às suas capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”


É agora na marcha para Kolibuiá que temos mais um episódio que podia ter terminado em tragédia, os carregadores tinham aceitado a contratação, mas pelo caminho começaram a fazer longas paragens e a reclamar mais dinheiro, a equipa de Costa Oliveira chegou a temer serem roubados ou assassinados, tudo terminou em bem porque apareceu inopinadamente um enviado de Mudi-Yaiá. Costa Oliveira explica a falsidade da reclamação dos carregadores que tinham ameaçado não continuar a marcha se não se pagasse mais por dia, tanto a homens como a mulheres, e tece um comentário amargo: “Ouvindo, admirados, esta proposta, no fundo um ultimato, compreendemos imediatamente a velhacaria dos negros e a razão por que haviam descansado tantas vezes. Quiseram distanciar-se, e distanciar-nos dos carregadores permanentes e soldados, que caminhavam apressados, sem se lembrarem que nós, ficando sozinhos com aqueles patifes, podíamos ser roubados e até assassinados se resistíssemos!”

É nesta situação críticas em que estavam resolvidos a vender cara a vida que apareceu o tal enviado de Mudi-Yaiá, que sabendo da presença da comissão portuguesa tão perto de Guidali, vinha de propósito cumprimentar-nos em nome do seu soberano. Resolvida esta situação de tão desagradável mal-estar, Costa Oliveira apresenta-nos Kolibuiá: “É uma povoação pequena, situada na margem esquerda da ribeira Tenheleol. Foi uma estação comercial importante, mas está hoje completamente abandonada pelos negociantes europeus, como atestas as ruínas das suas feitorias". É neste quadro de prestes a entrarem em Buba que Costa Oliveira nos deixa um texto primoroso sobre o abandono das fazendas agrícolas e feitorias do rio Grande dos portugueses. Primeiro a chegada:
“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da comissão francesa, comandante da praça e destacamento.” Como é habitual do seu espírito de observação, apresenta-nos esta povoação histórica da presença portuguesa:
“Buba, cabeça de concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente quando a mancarra era cultivada naquela região.”

E dá-nos um quadro primoroso, sucinto, da guerra do Forreá.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24679: Historiografia da presença portuguesa em África (386): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O que surpreende nesta publicação, para além de gravuras que julgo completamente inéditas, como é o caso da localização dos estabelecimentos comerciais no Rio Grande antes do seu desaparecimento em consequência da guerra do Forreá, é a franqueza dos comentários, o alerta permanente para a debilidade do nosso posicionamento político-militar, são narrativas em que não se ilude minimamente o estado da vida colonial, deplora-se o desmazelo com que foi tratada a intervenção tardia no Forreá, a má qualidade das tropas, o armamento anacrónico, alerta-se para os métodos capciosos da presença francesa no rio Nuno e fundamentalmente no Casamansa, haverá acusações severas a administrações negligentes nos presídios, como veremos no ano de 1885 (no presente texto faz-se uma súmula das referências aos anos de 1883 e 1884). Estranha-se que a historiografia não tenha prestado a devida atenção ao que se escreve nesta importante publicação.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada (1)

Mário Beja Santos

A publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. E fui surpreendido por gravuras para mim totalmente inéditas, mesmo que conhecesse o conteúdo. Por exemplo, desconhecia por inteiro a marcação das feitorias portuguesas no Rio Grande de Buba, na sua época áurea, foi um período flamejante que acabou de forma caótica por causa da guerra do Forreá, mesmo quando as autoridades portuguesas conseguiram encontrar um régulo fiel que estabilizasse as relações entre Fulas e Biafadas, os estabelecimentos comerciais apagaram-se. A imagem deixou para a posteridade a localização desses empreendimentos que depois se reduziram à insignificância ou ao apagamento. Nada mau, para quem pretenda investigar a localização destes empreendimentos.

Os aspetos mais curiosos da revista ilustrada eram as pequenas notícias, seja da autoria da redação, seja de alegados correspondentes. Logo no n.º 1 se diz que o clima da Guiné é incompatível com o aturado serviço de europeus. “Aceite este princípio, qualquer organização militar terá que subordinar-se ao emprego do soldado preto como principal componente. Os quadros de oficiais, sargentos e cabos seriam europeus, porém na condição única em que o homem branco pode utilizar-se na Guiné, não servindo efetivamente mais de um ano. A permanência levada além deste período é a doença, a inutilidade.” E avança-se com mais observações sobre o modo de emprego da guarnição militar: ou pela ocupação permanente dos diversos estabelecimentos da Província, fracionando a força; ou a concentração dela na capital, quando o prestígio militar tivesse assegurado o respeito do gentio ou o seu receio, mediante alguns corretivos cujo efeito moral repercutido em todo o país o intimidasse. E avançam-se mais elementos sobre o que deve ser a formação da força armada: um efetivo de 570 homens, 4 capitães, a força disseminada por Geba, Farim, Bissau e Bijagós.

O autor inclina-se para a colonização da Ilha das Galinhas, usando a etnia Fula. Quem assina o artigo é Augusto de Barros que volta à carga no n.º 5 de maio de 1883 com o artigo intitulado "A Praça e o Porto de Buba no Rio Grande de Bolola". Vale a pena reproduzi-lo:
“A praça de Buba é o estabelecimento da Guiné, modernamente assinalado pelos sucessos militares a que a sua sustentação tem dado lugar. Acha-se este estabelecimento a 39 milhas de Bolama no terminal navegável do Rio Grande de Bolola. Este ponto apresenta todo o interesse de um moderno estabelecimento comercial e militar.
Nos primeiros anos de administração da recente Província, ocupou Buba incessantemente a melhor parte da atenção das autoridades, tanto pela importância que adquiriu como mercado de produtos do interior e importados como pela necessidade premente de resolver as relações duvidosas com os chefes gentílicos e a sua complicada política no Forreá (ou território de Fulas-Forros) cuja posse não estava definitivamente reconhecida aos atuais ocupantes. Os negociantes portugueses e estrangeiros estabelecidos em Buba e em outras dependências do Rio Grande, pagavam aos chefes gentílicos uma renda anual pelo direito de ali comerciarem. Cometeram-se abusos por parte dos senhorios, foi o caso da tolerância na posse de escravos. Daí o conjunto de episódios de ocupação militar.”


Elenca o rol de desavenças com o chefe de Bolola, relata como se fortificou Buba com o apoio da população Mandinga e não deixa de referir que diariamente afluía a Buba uma média de 20 a 30 escravos que imediatamente eram tornados livres, ganhara-se a guerra do Forreá, desistira-se do imposto (de nome daxa). Mas mantiveram-se incessantes as lutas entre Fulas-Futas e Fulas-Forros, com consequências sérias na economia. A cultura da mancarra, principal elemento de tráfico, não aguentou esta permanente instabilidade, os negócios paralisaram no Rio Grande e todos os comerciantes franceses retiraram-se.

As notícias sobre a Guiné sucedem-se na publicação, como se exemplifica. Alerta-se para o facto de os rios Nunez (hoje, rio Nuno) e Casamansa absorverem nos flancos a decrépita Guiné toda a atividade e todos os capitais que podiam operar em S. Domingos, no Geba e Rio Grande de Bolola. E, então, o autor faz o seu comentário amargo:
“Uma província que apresenta estes sintomas de derrocada financeira e tem já o orçamento num desequilíbrio de 89 contos de défice, exige que se lhe acuda com algumas medidas salvadoras. A par deste estado lastimoso da fazenda, está hoje a complicada questão política gentílica: a guerra por toda a parte, ameaçando os pontos ocupados onde o nosso domínio se refugia, o desprestígio da falta de dinheiro, o desprestígio da falta de homens dedicados, porque a dedicação em pura perda acaba por mandar tudo ao diabo; a falta de saúde sem compensação, a falta de soldados, a falta de tudo, tem feito da província da Guiné uma tristíssima exibição de inépcia administrativa.”

Quem assina o artigo é Augusto de Barros que volta à liça no n.º 8 (1883) referindo o estabelecimento português no Rio Grande de Bolola, dizendo que se trata de uma paliçada de 900 metros, aproximadamente construída ao modo gentílico, é isto a fortificação de Buba. E volta a lamentar-se: “Que compensações pode oferecer a qualquer aliado gentílico um governador sem dinheiro, com pouco força armada, sem influência séria sobre os naturais, para chamar ao seu campo aliado por quem se bate?”

Passamos agora para o n.º 6 da revista de junho de 1884. Está em cima da mesa o caso de Ziguinchor, dá-se notícia das palavras do deputado Soza Machado (um dos deputados de Cabo Verde) a propósito dos acontecimentos em torno do presídio de Ziguinchor: “Não há soldados na Guiné e os poucos que compõem o batalhão de caçadores e a companhia de artilharia são em geral tão maus que passam a maior parte do tempo metidos no calabouço.”

O redator efetivo António A. Ferreira Ribeiro torna claro que as condições militares na Guiné eram péssimas: as espingardas Lee-Enfield distribuídas tanto ao batalhão como à companhia de artilharia estavam em tal estado de que se tornavam mais um perigo na mão dos soldados que um meio de defesa. E faz um reparo verdadeiramente brutal:
“Não são soldados os que servem na Guiné; são depósito de malfeitores enviados para aqui da metrópole e das outras províncias, a qual, considerada por todos como a pior, é tida pelas nossas justiças militares e civis como o tabelado onde outrora se executavam os assassinos, os ladrões e os traidores à Pátria.”


Edificações do quartel em Bolama, finais do século XIX
(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24647: Historiografia da presença portuguesa em África (385): O império da Casa Gouveia em 1970, a grande empresa guineense (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Sendo facto que se procura dar desenvolvimento ao trabalho produzido por Senna Barcelos, começa agora a ser compreensível, para quem acompanha os sucessivos episódios, a importância historiográfica do mesmo. Este oficial da Marinha foi meticuloso na investigação e retirou da poeira dos artigos documentos de primeira grandeza quanto ao que se passava na Guiné. Temos aqui descritos tumultos em permanência, rebeliões dos próprios militares portugueses, pilhagens, um sobressalto praticamente permanente em torno das praças e presídios; para haver boas relações com a vizinhança eram obrigatórios presentes; o período em análise é de extrema agitação em Portugal, teve obrigatório impacto tanto em Cabo Verde como na Guiné. 

No que a Cabo Verde tange, Senna Barcelos esmiuça depredações, a violência dos assaltos e piratarias, o cortejo das fomes, as manifestações de descontentamento. A Guiné, insista-se, vai minguando, já existe governador do Senegal e a França quer aumentar o seu espaço territorial à custa de Portugal, já que não tem coragem de enfrentar os ingleses que se instalaram no rio Gâmbia; e os ingleses saem da Serra Leoa e querem Bolama e o Rio Grande. 

É na iluminação deste cenário que se pode perceber o comportamento excecional de Honório Pereira Barreto, o pai fundador da Guiné-Bissau que os descendentes teimam em valorizar o papel que ele desempenhou na defesa e consolidação de um território que passou de colónia a estado independente. Se a História da Guiné escrita durante o período da luta armada se podia dar ao luxo de praticar o panfleto, um Estado consolidado há meio século tem o imperativo de tratar condignamente os criadores da sua Pátria, colocando-os, de acordo com a história das mentalidades, no lugar certo para a interpretação dos factos e não para o uso e abuso da interpretação à custa de uma mera conjuntura.

Um abraço do
Mário


Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (10)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É um período fértil de acontecimentos, sempre as pressões a norte no Casamansa e a Sul de Bolama e Rio Grande de Bolola. Em fevereiro de 1854, era governador-interino Honório Pereira Barreto, foi feita uma convenção com os régulos de Bolor que cederam à coroa o território de Egual. Revela-se verdadeiramente apaixonante as cópias de correspondência trocadas entre o governador da Guiné com o delegado do governador francês no Selho, tudo por causa da questão do presídio de Ziguinchor, esta documentação foi enviada pelo governador-geral António Maria Barreiros Arrobas ao Ministro da Marinha. O ministro respondeu pedindo que em termos de cortesia o governador-geral se dirigisse ao governador do Senegal, pedindo-lhe que ordenasse ao delegado de Selho que não pusesse impedimento à navegação portuguesa no Casamansa e que houvesse de ambas as partes uma conduta que era devida entre nações amigas. Mas o delegado francês revelava-se imparável, enviou uma nota ao comandante de Ziguinchor protestando contra o facto de três canoas portuguesas que chegaram a Selho subissem o rio com destino a Pacau, onde os gentios assassinaram muitos franceses que ali foram negociar, roubando uma parte das mercadorias.

As intenções britânicas em Bolama exploravam conflitos com os povos dos Bijagós. Recorde-se que Honório Pereira Barreto tinha feito tratado com os régulos dos Bijagós e fizera-se o reconhecimento da soberania portuguesa na margem esquerda do Rio Grande de Bolola. É nesse contexto que Honório Pereira Barreto envia um imp
ortante relatório sobre Bolama ao governador-geral, com data de 7 de maio de 1856:

“Em janeiro deste ano soube com mágoa que estrangeiros combinados com portugueses indignos deste nome intentaram concorrer para que nas dependências de Canhambaque se estabelecesse uma feitoria estrangeira que servisse de canal para o contrabando que devia ser introduzido nesta praça (Bissau). No dia 18 às 7 horas da noite larguei para o Orango cujo rei tem uma decidida influência sobre todas as outras ilhas Bijagós; são todas independentes, mas sempre consultam o rei de Orango em casos graves. Cheguei a Orango no dia 20 ao meio-dia, fui recebido com uma salva de artilharia. É este o único que por toda a Guiné merece o nome de rei; apenas desembarcados fomos em direitura a sua casa, que é coberta de telha, conquanto seja construída de barro e feita à maneira das outras. A sua figura denota que é um monstro engolfado em todos os meios que produzem uma crassa ignorância, e um poder absoluto e tirânico. Ele é o único senhor das pessoas e bens dos seus súbditos; nas suas expressões se vê que ele tem consciência do brutal poder que exerce, julga-se igual a Deus, conquanto falando ironicamente se pinte a si mesmo como um pobre e humilde, quando tudo nele demonstra uma selvagem vaidade”.

Senna Barcelos não deixa de observar que o resgate dos escravos decretado em 1854 só se efetivou em 1857, com consequências de toda a ordem. O comércio na Guiné chegou a uma tal decadência que o governador Barreto chegou à atenção do governador-geral em 21 de março de 1857, propondo-lhe medidas para salvar a colónia. 

E o autor observa que “muito trabalhava aquele governador, empregando a sua influência e os seus meios, para evitar ali a crise comercial que se manifestava gravemente devido à barateza dos géneros estrangeiros que eram vendidos aos gentios por um preço inferior aos que podiam vender os negociantes portugueses. O passivo de Bissau era grande e as casas comerciais só giravam com créditos e não com fundos, e os estrangeiros que eram os maiores credores, e os únicos que vendiam a crédito, resolveram cessá-los, limitando-se a vender à vista. Encaminhando os estrangeiros um negócio para o Rio Nuno, Selho e Gâmbia, e retirado o crédito aos portugueses, passaram os gentios a permutar os seus géneros com aqueles. Era de esperar esta crise com o fim da escravatura”.

Barreto tornara-se na figura mais influente na Senegâmbia Portuguesa, de tal modo que em 7 de junho de 1857 foi dirigida uma representação dos moradores de Bissau ao governo pedindo a recondução dele naquele governo, por ser Barreto desinteressado e probo, tendo sacrificado os interesses da sua casa em Cacheu às necessidades do país. O ministro deferiu o requerimento de Honório que solicitava a demissão. O governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse como governo independente uma vez que se estabelecessem comunicações entre Bissau, Goré ou Gâmbia. E é nesta atmosfera que se reacende a questão de Bolama. O ministro de Portugal em Londres, conde de Lavradio, apresentou a Lord Malmesbury um enérgico protesto em janeiro de 1859, este responde-lhe sustentando que a ilha de Bolama pertence à Grã-Bretanha. Um ano depois o então governador Zagalo escreve ao governador-geral dizendo que a presença inglesa em Bolama aumentara e recebera do governador da Gâmbia três impressos que este chamava tratados e pelos quais declarava pertencer à Grã-Bretanha não só a ilha de Bolama, mas outros lugares. Ele responde-lhe refutando a argumentação britânica e observa:

“Além das circunstâncias apontadas, ainda hoje existem, tanto em Bolola, como em Guinala e Buba, grandes vestígios dos antigos estabelecimentos portugueses, e atualmente existem em todo o Rio Grande, até Bolola e Guinala, trinta feitorias portuguesas, e apenas uma só feitoria pertencente a David Lourenço, que se diz inglês, não obstante ter nascido escravo no Rio Pongo, território português”.

Quando não é a questão de Bolama e de Bolola voltamos à questão do Casamansa. Há informações que os franceses pretendem atacar os Felupes de Varela. As autoridades portuguesas jogam na antecipação. Em 19 de abril de 1861, Salakir, regente de Varela, faz a declaração da solene sessão e reconhecimento da Coroa de Portugal como possuidora do território. Nesse mesmo dia, o governador da Guiné, António Cândido Zagalo, participa ao comandante de Goré e ao governador do Senegal a ocupação de Varela. Zagalo viaja para Ziguinchor e descobre as péssimas condições em que se vive no presídio, com armamento rudimentar. Os presídios de Farim e Ziguinchor eram defendidos por uma estacada e por baterias de barro, que se cobriam de palha. No presídio havia dois bairros: o do Poilãozinho e o de Vila Fria e para ambos havia um juiz do povo. Nomeou o governador dois destes juízes subordinados ao delegado administrativo. O comércio em Ziguinchor estava representado por duas casas francesas: o comércio em todo o rio, era quase só feito por franceses e em Ziguinchor o mais importante era o do sal. A força militar estava reduzida a dois soldados; Zagalo organizou provisoriamente uma companhia de 2ª linha, na qual se alistaram voluntariamente a maioria dos moradores. De Ziguinchor seguiu para Bissau, onde teve conhecimento pelo encarregado do governo do conflito que houvera entre o presídio de Geba e os Beafadas de Badora. O encarregado do governo fora a Geba para apaziguar uma questão com aqueles gentios; estes prenderam-no e para ser solto teve que satisfazer condições bem onerosas para o presídio e para o governo. Voltemos um pouco atrás para observar o talento e firmeza com que Honório Pereira Barreto respondia às provocações vindas dos representantes franceses.

Quando o delegado francês descreve ao comandante de Ziguinchor, este prontamente reencaminha para Honório Pereira Barreto que lhe responde com frontalidade:

“A mim só é que pertence responder a Vossa Senhoria, pois é da minha exclusiva competência, como governador da Guiné, a direção das relações com as autoridades estrangeiras dos portos vizinhos; e, portanto, rogo a Vossa Senhoria de sempre se dirigir a mim em idênticos casos. Agradeço, como deve, a Vossa Senhoria a bondade que quis ter, segundo diz, de buscar evitar que a canoa de Ziguinchor passasse até Pacau, pelo receio que tinha dos gentios daquele país atacarem a dita canoa, pois os franceses têm a deplorar o assassínio de muitos comerciantes e o saque de muitas mercadorias praticado pelos mesmos gentios. Porém, achando-se o meu governo com força suficiente para se vingar das afrontas e vexames que os gentios desse rio intentarem fazer aos nossos, podemos prescindir do apoio e forças de Vossa Senhoria. Sinto não poder ter a honra de satisfazer ao pedido de Vossa Senhoria sobre manifesto e matrícula para as canoas que forem mercadejar nesse rio, porque havendo os portugueses, verdadeiros descobridores desta costa, sempre feito este comércio, livremente, não é justo que hoje se lhe ponham peias e embaraços, não só inúteis, mas prejudiciais; e eu tenho estrita obrigação de proteger o comércio português. Estou certo da justiça de Vossa Senhoria e da grande nação francesa, sempre generosa, que não haverá abuso da força para impedir a passagem, dessa Feitoria, às canoas portuguesas, porque os franceses passaram em frente de Ziguinchor, para ir fundar este estabelecimento, e, portanto, não pode haver hoje direito de impedir aos portugueses navegar e comerciar por todo esse rio. Permita-me Vossa Senhoria que lhe faça uma simples observação: esse rio não pode de maneira alguma ser considerado, de facto, exclusivamente francês como Vossa Senhoria parece julgar. Não quero entrar na questão de direito porque esse pertence ao gabinete das nossas Nações”.

Veremos adiante como Honório Barreto se manterá incansável na defesa dos interesses portugueses.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23020: Historiografia da presença portuguesa em África (305): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (9) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
É incontestável que o período filipino foi altamente danoso para a presença portuguesa na Senegâmbia, a retração foi enorme, o abandono e a incúria chegaram a levar a crer que a presença portuguesa estava definitivamente condenada. Cacheu era um ponto fulcral para o comércio negreiro e até para a economia de Cabo Verde. D. João IV, ouvido o Conselho Ultramarino, procurou tomar medidas eficazes, e por mais controversa que possa ser encarada a atividade de Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu, por ele nomeado, apresentou resultados, o fundamental foi melhorar a presença portuguesa, Gamboa criou Farim e Ziguinchor, perseguiu com todos os meios ao seu alcance os navios estrangeiros, viveu em permanente tensão com os comerciantes de Cacheu que faziam o jogo duplo, juravam fidelidade a D. João IV mas ansiavam pelo regresso dos Áustrias. Maria Luísa Esteves oferece-nos o retrato de uma década e mostra à evidência que se deve a Gamboa ter travado o descalabro em que se encontrava a então denominada Senegâmbia Portuguesa. Resta acrescentar que neste século XVII a mobilidade da nossa presença se circunscrevera entre os rios Casamansa e Nuno.

Um abraço do
Mário



Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu (1640-1650)

Mário Beja Santos

O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988, trabalho que se associou às comemorações do IV Centenário da Fundação de Cacheu, permite-nos visualizar os danos sofridos durante o período filipino na então denominada Senegâmbia Portuguesa. 

Com a Restauração, descobre-se que aquela zona de África estava praticamente desguarnecida tanto do ponto administrativo como militar, e, no entanto, era uma das principais saídas do comércio negreiro. O primeiro rei Bragança encontrou dificuldades inesperadas, como observa a historiadora Maria Emília Madeira Santos:

“Os comerciantes locais, beneficiando de uma rede de comércio internacional montada por poderosos mercadores de Sevilha e Cádis, iriam resistir a um corte de relações tão lucrativas. Os corsários franceses, holandeses e ingleses, legitimados pela guerra contra Espanha, atacavam ferozmente qualquer tentativa portuguesa de domínio na área. Gonçalo de Gamboa de Aiala, o Capitão-mor da Capitania de Cacheu, encarregado de construir uma fortaleza naqueles rios, precisaria de lutar em várias frentes: a oposição das populações locais, os interesses dos comerciantes negreiros, a rede comercial intercontinental com sede em Espanha, os corsários de todas as nacionalidades”.

A autora começa por nos dar uma visão geral das consequências que a perda da independência acarretou para as colónias portuguesas, dá-nos depois a situação da Guiné, aquando da Restauração e finalmente a ação desenvolvida por Gonçalo de Gamboa da Capitania de Cacheu. Não há nenhum excesso em dizer que o domínio castelhano acentuara as dificuldades de manutenção das possessões portuguesas, houvera que seguir a sua política internacional, completamente desastrosa para o nosso império, vinham ataques de todas as proveniências e D. João IV ascende ao trono com obstáculos aparentemente insuperáveis e numa vastidão incomportável: Guerra da Independência, uma força marítima mais do que insuficiente, tempos de decadência da arte de construção naval, falta de armamento, situação financeira crítica, a crónica exiguidade de meios humanos. A Guiné, a concorrência comercial de franceses, ingleses e holandeses era feroz, todos sedentos da compra de escravos. 

“Quando rompeu a madrugada do 1.º de Dezembro de 1640, a presença portuguesa na Guiné limitava-se à faixa compreendida entre o Casamansa e o Bolola. O comércio da escravatura, fonte de riqueza da colónia, estava praticamente na mão dos negreiros espanhóis que embarcavam para as Antilhas todos os escravos que podiam arranjar, fugindo ao pagamento dos direitos aduaneiros e provocando com isso o descalabro da vida económica. Para além da quebra de rendimentos, resultante do contrabando que os mercadores de escravos praticavam, acrescia ainda o facto de as receitas da colónia estarem arrendadas a contratadores particulares que depositavam em Lisboa o pagamento dos seus contratos. As autoridades da Guiné ficavam, deste modo, sem recursos para satisfazer as necessidades mais prementes, com os ordenados dos funcionários e quaisquer obras de fortificação que impedissem o comércio ilícito”.

Assim se explica a decadência, a fácil fixação dos ingleses na Gâmbia, a incapacidade de agir do governo de Cabo Verde. 

“Cacheu era, na altura da Restauração, a praça mais importante da Guiné, a presença portuguesa naquela região, como em toda aquela costa, era precária, embora fosse o núcleo populacional mais numeroso de toda a colónia”

A autora debruça-se sobre Cacheu e os seus mercadores de escravos, não se pode iludir a anarquia e indisciplina que grassavam em consequência dos abusos cometidos pelos comerciantes espanhóis e outros estrangeiros. O Capitão-mor de Cacheu é Luís de Magalhães que pede ao rei que tome medidas tendentes a evitar a ruína total, entre elas a permissão do resgate de escravos para o Brasil e o incremento das relações comerciais nas ilhas de Cabo verde. O rei pretende agir, ordena a construção da fortaleza e escolhe para futuro Capitão-mor Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor e Feitor de Cacheu por três anos, este oficial servira no Brasil e na Índia, aqui acobertara-se de valor militar. Gamboa vai demorar tempo a chegar a Cacheu, elabora a relação de material e pessoal que precisava para construir, artilhar e guarnecer militarmente a futura fortaleza; precisa de algum poderio naval para salvar a Guiné das pretensões estrangeiras, é um processo demorado. 

Enquanto tudo isto se passa, chegam ao rei e ao Conselho Ultramarino notícias inquietantes provenientes do Governador de Cabo Verde: Luís de Magalhães era acusado de cumplicidade e trato com os castelhanos; comerciantes de Cacheu insistem em embarcar escravos com destino ao Brasil, pagando direitos na feitoria de Cacheu, o monarca acede.

Finalmente o novo capitão-mor encaminha-se para Cacheu encarregado da construção da fortaleza, o dinheiro destinado à obra estava confiado à guarda do Capitão Paulo Barradas da Silva, os dois muito cedo entrarão em litígio, ora por falta de materiais, ora por não haver concordância quanto ao local escolhido, e Gamboa não esquece a obrigação de procurar suster a presença constante de navios estrangeiros nas costas da Guiné. Barradas da Silva queixa-se ao rei das afrontas praticadas por Gamboa e diz proteger os devedores de grandes somas à Fazenda Real. Dado fundamental, Gamboa põe-se em campo para resistir às tentativas espanholas de ocupação, fortifica e guarnece de artilharia Ziguinchor, o presídio adquiriu extraordinário valor como centro comercial e de fixação portuguesa. Gamboa tinha a noção de que precisava de controlar a navegação no rio Farim ou de S. Domingos, arrendou em nome da Fazenda Real o comércio do rio Geba, recorde-se que nesta altura os moradores do presídio de Geba tinham-se, na sua generalidade, transferido para Cacheu e para a recém-fundada Farim. O capitão-mor dá como reforçada a presença portuguesa na região e lança-se na perseguição dos concorrentes, apresa barcos espanhóis. No entanto prosseguem as tensões entre Gamboa e Paulo Barradas por causa do dinheiro que este retém e que é fundamental para a construção da fortaleza. Os moradores de Cacheu fazem queixas ao rei, protestam-lhe lealdade, se bem que Gamboa os acusa de traidores e partidores de Castela.

O estudo de Maria Luísa Esteves está altamente documentado, toda a sua investigação assenta em documentos do Arquivo da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico Ultramarino. Atenda-se às suas conclusões. Gamboa trazia a incumbência de conservar e desenvolver Cacheu, afastar o ocupante espanhol e perseguir o comércio ilícito. Fundou e fortificou a povoação de Farim, construiu o presídio de Ziguinchor, o melhor porto do Casamansa que irá dominar durante dois séculos o tráfego no rio; Farim será a extensão natural de Cacheu e de grande importância para o comércio local. Foi-lhe confiada a missão de construir a fortaleza, faltaram-lhe materiais, pessoal e encontrou séria oposição de Paulo Barradas da Silva, encarregado da cobrança do dinheiro destinado às fortificações. Não deu tréguas a perseguir os estrangeiros que se entregavam ao resgate de escravos. Sufocou com firmeza qualquer sintoma de insurreição interna. 

Como observa Maria Luísa Esteves, “foi decisiva a sua ação no conflito provocado pelo choque de interesses que o opôs aos ricos e poderosos comerciantes negreiros de Cacheu e à própria população local, grandemente prejudicada com o corte das relações prejudiciais com a Espanha. Gamboa procurou, igualmente, canalizar o resgate de escravos para o Brasil, sabendo como este Estado, depois da tomada de Luanda pelos holandeses, carecia de braços para os engenhos de açúcar. Assim, tentou desviar os negreiros para este comércio com a intenção de disputar à cobiça dos espanhóis o caudal dos escravos da Guiné. Vai ser uma luta tenaz não só contra o comércio negreiro espanhol, mas ainda contra os holandeses, ingleses e franceses interessados neste lucrativo tráfico”.

Uma aldeia perto de Cacheu, gravura proveniente do livro África Ocidental, Notícias e Considerações, por Francisco Travassos Valdez, Lisboa, 1864
Um panorama da Fortaleza de Cacheu
Interior da Fortaleza de Cacheu, vêem-se os restos das estátuas apeadas depois da Independência
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22725: Historiografia da presença portuguesa em África (290): Entre os primeiros contributos para o conhecimento da Guiné: André Alvares de Almada e André de Faro (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21084: Historiografia da presença portuguesa em África (213): Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné - Carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira, publicada no Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Nada como dar a palavra ao oficial da Armada nomeado comissário para a delimitação das fronteiras da Guiné Portuguesa. Eduardo João da Costa Oliveira dirige-se a Luciano Cordeiro e a sua carta é tudo menos inocente, nela se exaltam as potencialidades de uma colónia que aguarda planos de desenvolvimento. Mas tudo tem o seu preço, é necessário travar as lutas interétnicas e marcar presença. Descreve os rios, e vê-se nitidamente que sabe do que está a falar, alerta para as riquezas que poderiam representar a agricultura e o comércio no Geba.
Este seu importante trabalho precede outro, a que nos referiremos adiante que é a sua viagem à Guiné Portuguesa, um documento preciosíssimo, estranhamente pouco invocado pelos estudiosos.
Gradualmente, se vai confirmando a dívida do território com estes distintos oficiais da Armada, que cartografaram, definiram fronteiras, revelaram a navegabilidade dos rios e das rias e que num dado momento puseram a colónia no mapa do império, basta pensar nos nomes de Sarmento Rodrigues, Teixeira da Mota e Pereira Crespo.

Um abraço do
Mário


Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné

Beja Santos

A carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira para Luciano Cordeiro, publicada no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, no número constante desta imagem, é um belíssimo documento para quem pretende acarrear e inventariar a documentação essencial sobre a presença portuguesa na Guiné, quando a colónia passou a ter fronteiras. E ninguém melhor posicionado para o fazer de quem contribuiu para o facto.
O documento começa assim:
“Meu caro Luciano Cordeiro, tomo a liberdade de te enviar e oferecer um modestíssimo esboço do território português da Senegâmbia”. O oficial de Marinha é profundo conhecedor do território, percorreu os rios e faz uma síntese do que julga mais significativo para enviar ao político em Lisboa:
“Rio de Cacheu ou de Farim – rio profundo de margens pitorescas e navegável para grandes navios mais de cem milhas aproximadamente acima da foz. Na margem direita deste formoso rio está situada a nossa praça de Farim, outrora importante pelo seu comércio, e a cinco milhas a jusante um excelente fundeadouro para grandes navios”. E mais acrescenta que os nomes dos afluentes principais deste rio e das povoações ribeirinhas foram revistos e corrigidos pelo Sr. Cleto, funcionário público da Guiné, um dos cavalheiros mais sabedores daquelas zonas. Esclarece ainda que os chamados rios de Jata, Âncoras, Nhabo e Impernal são verdadeiros canais.
Rio Geba – o traçado deste rio até à embocadura do Corubal é tão exato quanto possível. E cita um trabalho de Lopes de Lima: “Entre Geba e Farim há comunicação fácil, sendo a distância entre os dois presídios de dezoito léguas, de que doze se andam em canoas pelo rio de Farim até à aldeia de Tandegú, e as seis por terra de Tandegú a Geba. Este rio é navegável para grandes embarcações somente até a Pedra Agulha, por causa dos bancos de areia que existem umas trinta milhas, pouco mais ou menos, acima da sua foz, deixando apenas um estreito canal, por onde podem passar duas canoas a par”.

Refere detalhadamente o fenómeno do macaréu e adiciona a seguinte informação: “Algumas lanchas do Estado, como a Honório e a Cacine e outras, vão muitas vezes a Geba em serviço da Província e não me consta ter havido nenhum desastre proveniente do macaréu”. E pela primeira vez emite um parecer político, sobre as potencialidades da Guiné: “Para mim, é ponte de fé que o futuro da Guiné está ligado a este rio. Geba é um ponto estratégico importantíssimo do sertão, e, se fosse convenientemente guarnecido e defendido, assim como S. Belchior e Sambel Nhantá, o comércio, à sombra dessa protecção havia de desenvolver-se rapidamente, e Bissau, capital natural da Guiné, já pela sua posição geográfica, já pela sua importância comercial, podia ser, num futuro não muito remoto, o empório daquela rica e extensa região”. E não escusa de informar o político em Lisboa de importantes trabalhos vindouros, de modo a assegurar uma presença duradoura da soberania portuguesa: “Os pontos a fortificar desde já no interior da Guiné e a proteger eficazmente, seriam, segundo o nosso humilde modo de ver, Farim, Geba e Buba, e consequentemente Bolor, Bissau e Colónia, no rio Grande de Bolola. Alguns pontos intermédios, tais como S. Belchior e Sambel Nhantá, no rio Geba, e Cacheu no rio do mesmo nome. Mas sem lanchas a vapor bem armadas e apropriadas para aquela difícil e perigosa navegação, nada se deve tentar, se quisermos evitar algum tremendo desastre, semelhante ao de Bolor, onde foram massacrados dois oficiais, trinta soldados e mais de duzentos habitantes afeiçoados ao nosso Governo, pelos gentios Felupes”.

Rio Mansoa – este rio, que na largura, profundidade e importância comercial não é muito inferior ao Geba e Farim, corre paralelamente a estes dois rios e comunica com o de Armada, podendo reduzir a um terço o tempo da viagem, que ainda se faz em dois ou três dias entre a vila de Bissau e a praça de Cacheu por caminhos perigosos. Parece que o Mansoa é um grande esteiro engrossado por numerosos ribeiros e não um rio propriamente dito.

Rio Corubal – dizem que nasce em altas montanhas do Futa-Djalon; é profundo e largo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de quatro metros de altura próximo de Consinto (Cussilinta?). Há dois pequenos rápidos pouco distantes desta formosa catarata, e vai misturar as suas águas cristalinas com as do rio Geba.

Rio Grande de Bolola ou dos Portugueses – é conhecidíssimo este rio, ou, antes, esteiro, onde vem desaguar muitos outros esteiros mais pequenos e riachos. É navegável para grandes embarcações até milha e meia abaixo de Buba. Foi importante o comércio da mancarra e outros géneros neste rio. Atualmente pode afirmar-se sem receio de controvérsia que está abandonado pelos negociantes nacionais e estrangeiros”. E especula sobre as razões de tal degradação, desde a quebra dos preços da mancarra no mercado internacional até às guerras entre Fulas e Beafadas, conhecidas como as guerras do Forreá. E afirma: “O que nos causa espanto é que não se ponha cobro a estas guerras sempre desastrosas aos nossos interesses e bom nome, por serem feitas em territórios chamados portugueses”. E a propósito da imposição da soberania, e para travar completamente as guerras interétnicas, sugere: “Aí pelos arsenais do Exército e da Marinha existem pequenas peças de bronze, de alma lisa, que para nada servem; porque não se lhes manda fazer reparações ou carretas de ferro e se enviam para a Guiné a fim de guarnecerem as praças de Buba, Farim, Geba e Cacheu, e os postos militares em S. Belchior e Sambel Nhantá, Bolor, etc.?”

Rio Cacine – navegável até à feitoria de Amadu-Bubú, é também um enorme esteiro, onde vão desaguar numerosas ribeiras, que, na época das chuvas, devem formar caudalosos rios. A borracha é o produto indígena que ali se permuta por armas brancas e de fogo, pólvora, etc.

Finda esta descrição, o Capitão-de-fragata adiciona outras informações antes de dar por finda a carta. Observa o seguinte:
“Os Fulas do sertão do rio Grande, desde Contabane até Damdum, são geralmente hospitaleiros, obsequiadores, leais e susceptíveis de se nos afeiçoarem. Não bebem álcool. Apreciam unicamente as contas de alambre, de coral, o bertangil, fazendas brancas e de cor, tabaco em folha, pólvora, chumbo de caça, zagalotes e balas. Desde Contabane até Buba, já o álcool tem apreciadores distintos, e o nosso dinheiro, conhecido por dinheiro do Forreá, serve para adquirir os géneros precisos”.

O Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira era sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, e foi o comissário português encarregado de estudar a demarcação para o tratado entre Portugal e a França relativo à Guiné.

Primeiras instalações do BNU em Bissau (1917)

Carnaval Felupe, imagem da investigadora Lúcia Bayan, gentilmente cedida ao blogue
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21062: Historiografia da presença portuguesa em África (212): A Guiné há um século, segundo Fortunato de Almeida em "Portugal e as Colónias" de 1918 (Mário Beja Santos)