1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2023:
Queridos amigos,
Desta edição em português se fez outra destinada ao Ministério da Educação da República Popular de Angola, em 1981. A este país recentemente independente interessava um relato que não se cingisse à visão colonial ou mesmo à história monumental da UNESCO. Confiou-se no poder divulgador de Davidson que pesquisou em diferentes livros o passado africano, e há que reconhecer que fez um levantamento corretamente cingido a investigações de referência. Mas ao abordar a questão ainda hoje muito tensa do comércio de escravos tudo se irá polarizar no negócio europeu, passa-se uma esponja sobre o tráfego praticado entre a Arábia e o Norte de África, a vida destes impérios do norte, centro e sul do continente onde se praticava o comércio negreiro e onde ninguém possuía direitos. Ora o que ele vai enfatizar é o comércio negreiro praticado pelos europeus, o outro, praticado durante séculos entre gente da mesma cor, não conta. Assim se pretendia fazer lavrar o mito de que tinham sido os colonialistas europeus a definhar África através do comércio mais ignóbil do mundo. Mas Davidson era um homem comprometido com estes movimentos de libertação e fez parte fraca. O passado de África teve os seus momentos de glória e as múltiplas fraquezas e ações ignóbeis que encontramos nos outros impérios.
Um abraço do
Mário
À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2)
Mário Beja Santos
A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.
Já viajámos por impérios do passado, Gana, Mali e Songai, seguidamente o autor transporta-nos para a África Oriental e Central, dá-nos uma descrição da cultura Suaíli, o viajante árabe Ibn Battuta, que referenciou Tombuctu e as cidades do Mali e Songai, rumou para o sul, esteve onde é hoje a capital a Somália, Mogadíscio, e depois Quíloa, o principal centro do comércio do ouro e do marfim da África Oriental, situada numa pequena ilha junto da costa da parte sul da Tanzânia. Tudo vai mudar em 1498, com a viagem de Vasco da Gama, ele não encontrou Quíloa na sua primeira viagem, esteve em Mombaça e depois Melinde. Davidson refere os reinos Xonas, foram visitados por portugueses que partiam de Sofala e que avançaram para esta região entre os rios Zambeze e Limpopo. No século XV, quando os Xonas se lançaram num importante período de expansão política, eles já tinham criado importantes Estados e haviam completado as altas muralhas do Grande Zimbabué, residência dos seus governantes mais poderosos, cerca de 1400.
Impõe-se uma referência ao reino de Angola, há a considerar o reino do Congo e o dos Quimbundos, a sul, na atual parte ocidental e central de Angola, chamava-se Ndongo e o rei tinha o título de Ngola. Em 1500, os portugueses do Congo confundiram o título do rei com o nome do país, entrou em uso o nome de Angola. O autor recorda a correspondência entre os reis de Portugal e os do Congo. E voltamos à África Ocidental, fora a região mais densamente povoada do continente, sabe-se que tudo mudara com a avassaladora extensão do deserto, foi aqui que se deu o impacto do comércio de escravos do Atlântico, levaram para a América as artes, as técnicas e o trabalho da gente negra. O autor dá-nos o quadro do passado recente antes da vinda dos europeus:
“Os africanos ocidentais comerciavam com o Norte e o Leste. Vendiam os produtos das suas florestas, o ouro e a noz de mascar aos mercadores viajantes do Sudão, do Mali e a gente do território dos Haússas. Toda a África Ocidental era atravessada por uma rede de rotas comerciais ligadas às cidades mercantis, tais como Djenne, Tombuctu e Kano. Os africanos ocidentais ao sul do Sudão também comerciavam muito entre eles próprios.” O autor fará referência aos reinos Iorubas, ao império do Oyo, ao império do Benim, que manteve boas relações com os portugueses. “O povo de Benim viu que os europeus estavam desejosos de comprar a pimenta que eles cultivavam em quantidade, pois a pimenta era então um produto valioso na Europa. Descobriram também que os europeus tinham grande admiração pelos excelentes algodões tingidos e queriam comprá-los. Em contrapartida, o povo do Benim achou que os europeus possuíam coisas úteis para lhes vender, nomeadamente artigos de linho e de metal.” As obras de arte produzidas deste intercâmbio são hoje altamente disputadas pelos museus e grandes colecionadores.
Uma palavra agora para o reino do Achanti, que englobava a maior parte do que é agora a República do Gana. Depois de 1700, os Achantis dominaram um vasto território durante quase 200 anos. E depois de uma descrição feita deste reino de Achanti, Davidson descreve o sistema político africano, a governação, as linhagens, as sociedades secretas, mas também a religião, o encontro entre o cristianismo e o Islão, a feitiçaria, a tecnologia prática, o tratamento dos metais, a fiação, tintura e tecelagem; e igualmente pormenoriza a arte de viver, a literatura, a música, o teatro. E assim chegamos à história do comércio de escravos entre África e o Mundo Ocidental.
Chama-se a atenção do leitor que Davidson, não se sabe bem porquê, não tem uma palavra sobre o comércio de escravos antes da chegada dos portugueses e outros, ora a escravatura vem desde os tempos antigos, em qualquer conquista entre povos africanos se escravizava população e esta era comerciada pelo continente. A sua narrativa começa exclusivamente com a chegada dos portugueses, mas antes, porém, socorre-se de uma descrição mirabolante, truncada do que fora a escravatura no passado. Vale a pena reproduzi-la para se ver a onde nos leva a manipulação e a ignorância:
“As primeiras incursões em busca de cativos negros que pudessem ser vendidos na Europa têm de ser encaradas no contexto da época. Em 1441, quando Antão Gonçalves zarpou da costa portuguesa, o comércio de escravos já era muito antigo na Europa. Remontava à época romana e, mais atrás ainda, à Grécia antiga. Continuou parte importante da vida quotidiana na Europa até ao fim da Idade Média e mesmo posteriormente. Tratava-se sobretudo de comércio de escravos europeus. Estes vinham, normalmente, dos países eslavos da Europa Oriental, porque os povos eslavos converteram-se ao cristianismo mais tarde que os outros europeus; e os cristãos, como os muçulmanos, não viam nada de errado em escravizar os não-crentes. Este comércio não se confinava à Europa. Estados cristãos, especialmente as cidades-estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e da Ásia Ocidental e quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também. Os genoveses eram tão ativos na venda de cristãos que o Papa Martinho V, em 1425, emitiu uma ordem de excomunhão contra eles. Mas o destino destes cativos era muito diferente do dos escravos transatlânticos de épocas posteriores. Tal como em África, eles tornavam-se pessoas sem direitos que podiam ser compradas e vendidas, ou oferecidas de presente, para servirem como pessoal doméstico ou artífices especializados. Podiam ascender a postos de autoridade, casar no seio das famílias dos amos, trabalhar para reaverem a liberdade. Eram muito bem tratados, porque eram caros. Apenas os ricos podiam tê-los. Por conseguinte, Gonçalves e os seus colegas capitães, trazendo prisioneiros africanos para Lisboa, não viam crime no que faziam e sabiam que a carga era valiosa.”
Assim se passa uma esponja sobre a história do comércio negreiro africano que antecede o comércio negreiro europeu em África…
(continua)
Basil Davidson (1914-2010)
Bronzes do Benim, coleção do Museu das Belas Artes de Boston
A Grande Mesquita, Djenne, Mali
Gao e o rio Niger
Mapa do império Mali, cerca de 1337
Saleiro de Marfim, arte cingalo-português, séc. XVI, império do Benim, peça do Museu Britânico
Saleiro, séc. XVI, arte cingalo-portuguesa, peça do Museu Nacional de Arte Antiga
_____________Notas do editor
Vd. post de 4 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926", por Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
2 comentários:
As legendas que acompanham as fotografias dos saleiros de marfim são um completo disparate. Como é possível que alguém chame "arte cingalo-portuguesa" a uma forma de arte que foi feita a muitos milhares de quilómetros de Ceilão?! Se quiserem, chamem-lhe "arte afro-portuguesa", por exemplo, mas "arte cingalo-portuguesa" é que não é de certeza absoluta. O termo mais correto será "arte bini-portuguesa", em que o prefixo "bini-" se refere ao reino do Benim. Trata-se de arte yoruba, produzida segundo os padrões estéticos prevalecentes no reino do Benim, na atual Nigéria, e em que se mostra a representação de portugueses ou de símbolos religiosos cristãos. Em geral, estes saleiros e outros objetos de marfim foram encomendados a artistas yorubas por mercadores portugueses, para serem vendidos em Portugal à nobreza tornada subitamente rica com o negócio das especiarias do Oriente.
Já que falo do reino do Benim, não posso deixar de referir uma fabulosa cabeça de bronze que é oriunda desse reino e que pertence ao espólio da Sociedade de Geografia de Lisboa:
https://museu.socgeografialisboa.pt/objectos/cabeca-comemorativa-do-rei-oba/
Eu, António Graça de Abreu já escrevi atrás, a propósito de Basil Davidson; "São bem conhecidas as posições e opções politico-ideológicas de Basil Davidson, até a primeira fotografia deste poste ajuda a entender, bons de um lado, os PAIGC, os péssimos colonialistas portugueses, nós todos, do outro. Assim se falsifica a nossa História comum. Agora o MBSantos até reconhece que o Basil Davidson, ao escrever sobre a escravatura, escamoteia, esconde deliberadamente a realidade da outra mesma escravatura, velha em África, como infelizmente em tanta outra parte do mundo. Que credibilidade merecem estas recensões, enviesadas, distorcidas?
Abraço,
António Graça de Abreu
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