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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26149: Agenda cultural (868): Por ti, Portugal, eu juro!: documentário, de Sofia Palma Rodrigues e Diogo Cardoso (Portugfal, 2024, 98 minuto), sobre o drama dos Comandos Africanos da Guiné... Estreia mundial no doclisboa 2024, e agora nos Cinemas


 Cartaz do filme Por ti, Portugal, Eu Juro! | Realizadores: Sofia de Palma Rodrigues e Diogo Cardoso | Documentário: POR, 2024, 98 min, M/12  | Trailer (oficial) aqui, no You Tube.






(i) durante a Guerra Colonial, milhares de africanos combateram ao lado das Forças Armadas Portuguesas e arriscaram a vida por uma pátria que acreditavam ser a sua;

(ii) depois do 25 de Abril, quando Portugal se retirou dos territórios que ocupava em África, estes militares foram deixados para trás;

(iii) cinquenta anos depois, contam, pela primeira vez, a sua história e acusam o Estado português de abandono e traição.


Público > Cinecartaz > Sinopse (... com um disparate de todo o tamanho: "Portugal recrutou 1,4 milhões de militares africanos...")


(i) Diogo Cardoso, Sofia da Palma Rodrigues e Luciana Maruta, jornalistas da revista digital Divergente, publicaram a reportagem Por ti, Portugal, Eu Juro!

(ii) o trabalho, dividido em quatro capítulos, foi o resultado de uma longa investigação sobre como, durante a Guerra do Ultramar (1961-1974), Portugal recrutou 1,4 milhões de militares africanos para combaterem em Moçambique, em Angola e na Guiné, ao lado das tropas portuguesas;

(iii) esses homens, que lutaram por uma pátria que sentiam como sua, foram abandonados à sua sorte logo após a independência;

(iv) depois de muitos deles terem sido alvo de perseguições, prisões e fuzilamentos, ainda hoje aguardam o reconhecimento e as pensões de sangue e invalidez que lhes foram prometidas na altura:

(v) a reportagem, que recebeu o primeiro prémio na categoria de Meios Audiovisuais da edição de 2022 do prémio da Comissão Nacional da UNESCO e da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, foi entretanto transposta para este documentário, realizado por Sofia de Palma Rodrigues e Diogo Cardoso.  



(i) durante a Guerra Colonial (1961-1974), milhares de africanos combateram ao lado de Portugal e arriscaram a vida por uma pátria que acreditavam ser a sua.

 (ii) a mesma pátria que, depois da Revolução de Abril, os abandonou à sua sorte;

(iii) 50 anos depois, os Comandos Africanos da Guiné continuam a reivindicar as pensões de sangue e invalidez que lhes foram prometidas;

(iii) este grupo foi a única tropa de elite do Exército português integralmente constituída por pessoas negras, pessoas que tomaram a dianteira das operações mais difíceis e protegeram os militares oriundos da metrópole;

(iv) reivindicam, até hoje, um lugar na História. Contam relatos de guerra, perseguição e morte;

(V) dizem-se abandonados e traídos por um Estado que os usou, explorou e, por fim, descartou.


Livro > Por Ti, Portugal, Eu Juro! A história dos comandos africanos da Guiné",  de Sofia da Palma Rodrigues (Lisboa, Tinta da China, 2024, 104 
pp.)"


Wook > Sinopse

(i) durante a Guerra Colonial (1961-1974), Portugal recrutou 1,4 milhões de militares para combaterem em Moçambique, em Angola e na Guiné;

(ii) um terço destes soldados eram africanos, na altura cidadãos portugueses que foram obrigados pelo Estado a cumprir o serviço militar;

(iv) este livro foca-se num universo muito específico deste contexto: os comandos africanos da Guiné, que integraram as três companhias criadas pelo então governador António de Spínola e constituíram a única tropa de elite do Exército português integralmente composta por militares negros;

(v) depois do 25 de Abril de 1974, estes homens foram abandonados por Portugal, o país que os obrigou a cumprir o serviço militar e pelo qual lutaram;

(v) 50 anos depois, contam pela primeira vez a sua história;

(vi) querem que o Estado português lhes devolva os direitos ganhos no campo de batalha e cumpra as promessas feitas;

(vii)  este livro resulta de uma reportagem da Divergente.

(viii) o filme homónimo estreou no dia 19 de outubro de 2024 no âmbito do DocLisboa - 22º Festival de Cinema Internacional. 

Sinopse curta: um livro que foi uma reportagem e é também um filme, sobre os comandos africanos da Guiné que integraram as companhias criadas por António de Spínola e foram forçados a combater pelo exército português durante a Guerra Colonial.


“Fomos obrigados a ir para a guerra. Ninguém se podia esconder. Se o fizéssemos, a nossa mãe, o nosso pai, podiam ser presos e nós seríamos considerados fugitivos... Lutámos por Portugal, jurámos-lhe fidelidade e, depois da independência, fomos totalmente abandonados, como carne para canhão. Ficámos assim: filhos sem pai e sem mãe!” 

Julião Correia foi um dos mais de 400 mil militares africanos que combateram do lado de Portugal durante a Guerra Colonial (1961-1974). 

Homens que, na sua maioria, têm mais de 70 anos e correm o risco de desaparecer sem que os seus testemunhos tenham alguma vez sido filmados, sem que a sua história tenha sido documentada. 

Julião morreu em outubro de 2017, com 75 anos, poucas semanas depois de o termos entrevistado em Bissau.

 Com o fim da Guerra Colonial, e a retirada da tropa metropolitana dos territórios ocupados além-mar, os militares africanos que integraram o Exército português foram deixados para trás pelo mesmo país que os obrigou a combater. Ao mesmo tempo, foram também considerados traidores de raça e de classe pelas novas ordens políticas. 

Enquanto em Angola a maioria destes homens foram integrados nas Forças Armadas locais, e em Moçambique se constituíram Comissões de Verdade e Justiça, na Guiné-Bissau estas pessoas foram perseguidas e torturadas, havendo relatos de centenas de execuções sumárias. 

Além disso, a Guiné tinha ainda mais uma especificidade: era a única colónia a ter uma tropa de elite composta, desde a base (soldados) até ao topo (capitães) por africanos negros.

 As Companhias de Comandos Africanos da Guiné foram criadas em 1971 sob a alçada do então governador António de Spínola, que fez destes homens o seu braço-direito. 

Era nos comandos que Spínola depositava a última esperança de Portugal poder sair vitorioso da guerra na Guiné. Homens altamente treinados, que conheciam bem o terreno e tinham um elevado nível de preparação e resistência física; e que, rapidamente, se tornaram numa arma essencial da resistência contra o Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) durante a guerra. 

Num contexto em que o serviço militar era obrigatório, todos os homens acima de 18 anos que recusassem ir à tropa eram considerados desertores, pondo as famílias à mercê das ameaças da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). 

Muitos destes militares eram analfabetos e não tinham qualquer convicção política, desconheciam as razões que motivaram o conflito

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26148: Agenda cultural (867): Joaquim Costa lançou, em Gondomar, o seu livro "Crónicas de Paz e Guerra", no passado dia 9: uma casa cheia de amigos, colegas e camaradas

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26143: Humor de caserna (81): "Há ouro em Bafatá ?!"... A imaginação febril dos serôdios "garimpeiros" coloniais... (Excerto do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951, suplemento especial dedicado às províncias ultramarinas que, em revisão constitucional, tinham acabado de deixar de ser colónias)

 


Excerto do Suplemento do "Diário Popular", edição de 20 de outubro de 1951, pág. 9



Capa do Suplemento do "Diário Popular", edição de 20 de outubro de 1951,



Capa da edição do "Diário Populae", de 20 de outubro de 1951. Era diretor o Luis Forjaz Trigueiros (1915-2000)


1. Na euforia do  fim do "Pacto Colonial", e da revisão constitucional (Lei nº 2048, de 11 de junho de 1951),  a imprensa lisboeta começa a olhar para o "ultramar português"  como um mercado cheio de potencialidades... 

É um número de "informação e propaganda", em que figuras-chave do Governo de Salazar (Sarmento Rodrigues, Ulisses Cortês, etc.) mas também historiadores alinhados política e ideologicmemte com o Estado Novo (Damião Peres, por exemplo, que a dirigiu a monumental História de Portugal, publicada entre 1928 e 1954) assinam artigos de opinião ou dão entrevistas...

 O "Diário Popular", na sua edição de 20 de outubro de 1951 ( e não de 20 de outubro de 1961, como vem escrito por lapso, na ficha da Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa), distribuiu um suplemento, dedicado ao Ultramar, desde Cabo Verde a Timor,  com 218 páginas (22 das quais são dedicadas à Guiné).  

É uma raridade bibliográfica, está disponível  aqui em formato digital. Merece uma leitura atenta.  E tem apontamentos deliciososos, como este que publicamos acima, na série... "Humor de caserna" (*).  (O "há ouro em Bafatá" faz-nos lembrar a rábula do saudoso e genial Solnado, na divertida comédia televisiva , de 1986,  "Há petróleo no Beato"...)

Um pensamento "seráfico" de Salazar dá o tom para esta edição "eufórica" sobre o ultramar português e a "nossa ancestral vocação civilizadora":

"Nós somos filhos e agentes de uma civilização milenária que tem vindo a elevar e converter os povos à conceçãoo superior da própria vida, a fazer homens pelo domínio do espírito sobre a matéria, do domínio da razão sobre os instintos"...

Dentro dos condicionalismos da época (a começar pela censura), temos de reconhecer, no entanto,  que o "Diário Popular" foi também um viveiro de grandes cronistas,  repórteres e jornalistas.

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sábado, 4 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24821: As nossas geografias emocionais (15): o reordenamento de Nhabijões (ou Nha Bidjon), 300 casas de zinco que terão custado mais de 2700 contos (c. 700 mil euros a preços de hoje), fora a mão-de-obra, civil e militar, e ainda os custos indiretos e ocultos


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca / CAOP 2) > Nhabijões (ou Nha Bidjon) > c. 1973 > Vista aérea do reordenamento de Nhabijões: o maior ou um dos maiores do CTIG, com 300 casas de zinco...(Fonte:  CECA, 2015, pág. 276)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca / CAOP 2) > Nhabijões (ou Nha Bidjon) > 197 2> Vista aérea do reordenamento de Nhabijões (Fonte:   "Diário de Lisboa",   31 de Agosto de 1972, com a devida vénia)


1. Ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) /CAOP 2), o redordenamento de Nhabijões tinha, a defendè-lo, um pelotão (da CCS) mais um 1 Esq do Pel Mort 2268, com morteiro 81. 

Continuou, no tempo do batalhão, que veio a seguir, o  BART 3873 (1972/74), com 1 pelotão (da CCS) mais 1 Esq do Pel Mort 2268... E por fim, no final da guerra,  com o BCAÇ 4616/73 (1974),  havia só 1 pelotão (da CCS).

Ainda lá estive, uma semana ou duas, a comandar um pelotão de "básicos" da CCS... Uma noite apareceu alguém, no destacamento, a gritar, histérico, "Turras no Nha Bidjon"... Veio,  em meu socorro, o piquete de serviço, de Bambadinca, comandado pelo Beja Santos (que estava em fim de comissão, e era uma força da natureza).

No final, não fora nada: os gajos do PAIGC entravam e saíam a seu bel prazer em Nhabijões, iam visitar os parentes, beber vinho de palmeira ou aguardente de cana, dormir com as bajudas, recolher as compras feitas em Bambadinca na loja do "tuga" Zé Maria (a quem chamávamos "turra"), estudar as rotinas da tropa  e, quando muito bem lhes apeteceu, puseram duas minas A/C, à saída do reordenamento, accionadas por duas viaturas nossas no dia 13 de janeir0 de 1971...

Nhabijóes tem 55 referências no nosso blogue. É um dos topónimos míticos da guerra no leste. O reordenamento foi um dos maiores sucessos da política spinolista "Por Uma Guiné Melhor"... 

Mas também pagámos (a CCAÇ 12 e a CCS/BART 2917) um alto preço por este êxito: recordemos as duas minas A/C accionadas no dia 13 de janeiro de 1971, vitimando mortamente o sold cond auto da CCAÇ 12, Manuel da Costa Soares, e ferindo, com gravidade,  o alf mil sapador Luís Moreira (da CCS/BART 2917), os fur mil Joaquim Fernandes e António F. Marques (este, esteve dois anos no hospital), os sold Ussumane Baldé,  Tenen Baldé, Sherifo Baldé, Sajuma Baldé (todos da CCAÇ 12, 4º Gr Comb) e ainda um soldado da CCS / BART 2917 (cujo nome não me ocorre agora). 

No meu caso, foi o meu dia de sorte, ia na GMC, no lugar do morto, que accionou a segunda mina, a explosão deu-se n0 rodado duplo, traseiro, do meu lado...  Já aqui escrevi, "ad nauseam": 

(...) "Eu também nunca mais esquecerei aquela data e aquele nome. Nunca mais esquecerei a correria louca que fiz com um Unimog 404, carregado de feridos, pela estrada fora, de Nhabijões até Bambadinca, até ao nosso aeródromo onde nos esperava o helicóptero para uma série de evacuações ipsilon. 

"Ainda hoje não sei explicar por que razão fui eu, além do condutor, o único do meu Gr Comb (a duas das secções) que fiquei praticamente incólume mas inoperacional: umas contusões na cabeça (por projecção contra a parte inferior do tejadilho da GMC); a G-3 danificada; tonto e cego de tanta poeira; etc." (...) 


2. Da história da CCAÇ 12, reproduzo estes excertos:

(...) "A partir deste mês, novembro de 1969, 1 Gr Comb da CCAÇ 12 passaria a patrulhar quase diariamente as tabancas de Nhabijões cujo projecto de reordenamento estava então em estudo, a cargo da CCS/BCAÇ 2852.

"Nhabijões era considerado um centro de reabastecimento do IN ou pelo menos da população sob seu controle. As afinidades de etnia e parentesco, além da dispersão das tabancas, situadas junto à bolanha que confina com a margem sul do Rio Geba, tornava-se impraticável o controle populacional. 

"Impunha-se, pois, reagrupar e reordenar os 5 núcleos populacionais, dos quais 4 balantas (Cau, Bulobate, Dedinca e Imbumbe) e 1 mandinga, e ao mesmo tempo criar "polos de atracção" com vista a quebrar a muralha de hostilidade passiva para com as NT, por parte da população que colabora com o IN." (...)

A CCAÇ 12 participaria directamente neste projecto de recuperação psicológica e promoção social e económica da população dos Nhabijões, fornecendo uma equipa de reordenamentos e autodefesa, constituída pelos seguintes elementos (que f
oram tirar o respectivo estágio a Bissau, de 6 a 12 de Outubro de 1969):
  • alf mil at inf António Manuel Carlão (1947-2018) (originalmente o cmdt do 2º Gr Comb, que passou a ser comandado por um fur mil);
  • fur mil at inf  Joaquim Augusto Matos Fernandes (comdt da 1ª secção 4º Gr Comb):
  • 1º cabo at inf Virgilio S. A. Encarnação (cmd da 3ª secção do 4º Gr Comb);
  • e sold arv at inf Alfa Baldé (Ap LGFog 3,7, do 2º Gr Comb)
e ainda 2 carpinteiros (na vida civil):
  • 1º cabo at inf Sousa (?)
  • e 1º cabo aux enf Carlos Alberto Rentes dos Santos.
A CCAÇ 12, além de ficar desfalcado de seis importantes elementos operacionais (e dois grupos de comnbate desfalcados),  participou ainda indirectamente neste projeto.  criando as condições de segurança aos trabalhos.

Numa primeira fase estava previsto levar a efeito:
  • a desmatação do terreno;
  • a fabricação de blocos de adobe;
  • a construção de 300 casas de habitação com portas, janelas e cobertura de zinco;
  • a construção de equipamentos sociais  (1 escola, 1 mesquita, fontes, acessos, etc.).
(...) "Durante este período a CCAÇ 12 realizaria várias acções, montando nomeadamente linhas descontínuas de emboscadas entre os núcleos populacionais de Nhabijões, além de constantes patrulhas de reconhecimento e/ou contacto pop.

"A partir de Janeiro/70 seria destacado um pelotão da CCS/BCAÇ 2852 a fim organizar a autodefesa de Nhabijões. Admitia-se a possibilidade do IN tentar sabotar o projecto de reordenamento, lançando acções de represália e intimidação contra a população devido à colaboração prestada às NT.

"A partir de abril de 1970, o reordenamento em curso passaria a ser guarnecido por 1 Gr Comb da CCAÇ 12. Na construção de novo destacamento estiveram empenhados o Pel Caç Nat 52 e a CCAÇ 12, a 3 Gr Comb, durante vários dias.

"A segunda fase do reordenamento (colocação de portas e janelas e cobertura de zinco em todas as casas, abertura de furos para obtenção de água, etc.) começaria quando o BART 2917 passou a assumir a responsabilidade do Sector L1 (em 8 de junho de 1970).

"A partir de Julho, a CCAÇ 12 deixaria de guarnecer o destacamento de Nhabijões, tendo-se constituído um pelotão permanente da CCS/BART 2917 enquadrado por graduados da CCAÇ 12." (...)


3. Uma estimativa grosseira do cust0 deste reordenamento aponta para 2700 contos, em 1972 (300 casas de zinco x 9 mil escudos).

Este valor, em 1972, equivaleria, a preços de hoje, a €703.942. Não se incluem os custos de mão de obra, gratuita (civil e militar) nem outros custos indiretos e ocultos (planeamento, formação, ferramentas, segurança,  etc.)... Falta ainda contabilizar a escola, a mesquita, as fontes e outros equipamentos sociais como o posto sanitário, os caminhos, etc.  (**)

O jornalista do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues (que vim a conhecer pessoalmente há uns anos), convidado especial de Spínola, para ver as "obras" do seu consulado, escreveu (**):

(...) "As aldeias de zinco, ordenadas e reluzentes, surgem por todo o lado, com a colaboração dos nativos que ambicionam casa melhor, à prova de incêndio e mais parecida com a casa dos brancos, embora menos defendida do calor do sol.

"Dantes só os régulos conseguiam ter casas de zinco. Mas agora 70 reordenamentos foram executados desde 1969, e muitos outros estão em construção, Nove contos cada, não contando a mão-de-obra gratuita. 

"Só na época seca de 1972, de janeiro a junho, foram construídas pelo exército 1642 casas de zinco e 689 casas de c0lmo, além de 42 escolas e 5 postos sanitários. Há reordenamentos de 200 ou 300 casas. 

"Os primeiros eram aldeias estratégicas onde se juntava a populção dispersa de várias tabancas, perto dos quartéis que asseguravam a defesa, e evitavam as infiltrações do PAIGC.  Neste momento   - garantiram-me em Bissau - os reordenamentos são instalados onde houver terreno arável, e, de preferència, nos locais indicados pela população.

"Segundo a doutrina do general Spínola, o reordenamento é um dos dois 'grandes marcos' da política de desenvolvimemto da Guiné" (...)

(...) "Infelizmente ainda tenho que dar tiros,  - explicou-me o outro dia o general - mas a guerra não se ganha aos tiros". (...) (***)
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Notas d0 editor:

(**) Vd. poste de 10 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I: As colónias não valiam o preço...

1. Confesso que li o livro de um fôlego... E reli-o seguir com mais atenção crítica, pensando fazer uma nota de leitura para o blogue.

A obra resulta de uma maratona de conversas semanais (42 ao todo, representando 100 horas de entrevistas) com o historiador, ensaísta, cronista, jornalista e analista político Vasco Pulido Valente, (VPV), pseudónimo literário de Vasco Valente Correia Guedes (Lisboa, 1941 - Lisboa, 2020).

"Na realidade, trata-se de uma longa viagem de dois séculos, que teve por razão uma tentativa de se compreender Portugal à luz do seu passado mais recente de dois séculos" (João Céu e Silva, pág. 9).

Uma viagem temerária, a que meteu ombros João Céu e Silva (n. Alpiarça, 1959). Escritor, licencido em História, viveu no Rio de Janeiro, é jtambém jornalista e colaborador do "Diário de Notícias" (desde 1989).

"Uma longa viagem com Puliudo Valente" é o sexto volume da série "Uma longa viagem com...", que conta com autores como José Saramago, António Lobo Antunes, Miguel Torga, Álvaro Cunhal e Manuel Alegre.

O sonho confesso (e megalómano) de VPV era ter escrito a história de Portugal desde as invasões napoleónicas e a fuga da família real para o Brasil (1807) até à instauração do Estado Novo (1933). No final da sua vida, e já doente, penalizou-se, de algum modo, por ter desperdiçado o seu enorme talento no jornalismo mas também como "conselheiro do prímcipe"...

Foi, por exemplo, polémico secretário de estado da cultura, no VI Governo Constitucional, presidido por Francisco Sá Carneiro, um dos (poucos) políticos que ele admirava, a seguir a Mário Soares. Foi militante do PS e do PPD, alegadamente para combater, com Mário Soares, o comunismo, e com Sá Carneiro, os militares e o Conselho da Revolução.

Com a vitória da Aliança Democrática, nas eleições legislativas de 1979, foi chamado a integrar o executivo como Secretário de Estado da Cultura. Em 1986 foi apoiante de Mário Soares na sua primeira candidatura presidencial.

Aquele que foi talvez a figura mais polémica do jornalisno português das últimas 3 ou 4 décadas, tendo coleccionado ódios de estimação todos os quadrantes políticos e ideológicos mas também na academia e na cultura (menorizava escritores como José Saramago, António Lobo Antunes ou Agustina Bessa Luís, mas não deixava de  arrasar o inquisidor-mor,  o então Subsecretário de Estado da Cultura, António de Sousa Lara, que imiseravelmente  vetara  o livro do Saramago,   "Evangelho Segundo Jesus Cristo", de 1991, da lista de romances portugueses candidatos ao Prémio Aristeion em 1992).

Considerava-se um especialista na história do séc. XIX e tem uma visão sinóptica sobre todo o nosso séc. XX, não escapando ao seu balanço crítico, muitos vezes implacável, cruel e demolidor, os principais atores da cena política, do último representante da Casa de Bragança ao Salazar, de Afonso Costa a Soares, sem esquecer Spínol,  os capitães de Abril, e por aí fora. 

"Estrangeirado" (vindo da filosofia, fez o doutoramento em História pela Universidade de Oxford), olhava para os "indígenas" deste país com um misto de sarcasmo e comiseração, zurzindo na sua "saloiice" e "!chico-espertice"... Eça de  Queiroz e Oliveira Martins eram duas das suas referência literárias e intelectuais.  Na secretária tinha, por sua ve4z. duas fotos, uma de  Mário Soares  e  outra de Sá  Carneiro (a este não perdoavá  ter-se deixado matar, cortando a sua, dele, VPV, "carreira política": sonhava, com Sá Carneiro, fundamentar, ideologicamente, a direita portuguesa). 

O índice da obra permite perceber melhor a organização temática e cronológica que o entrevstador e autor fez do material recolhido durante 2 anos, até quase ao fim da vida de VPV (entre parêntese, o ínicio da página):  

  • a vida cortada ao meio (11)
  • rato de biblioteca (33)
  • o século maravilhoso (51)
  •  como Salazar se senta na cadeira (71),
  • dúvidas logo no 1º de Maio (187)
  •  restaurantes e corrupção (221)
  •  sedução numa pasta de recortes (245)
  •  fora dos tempos (269)
  • nota final (293). 

O capítulo de maior fôlego é aquele que é dedicado a Salazar e ao Estado Novo (c. 115 pp.), seguido, à distância,  pelo que é centrado  nas peripécias  do 25 de Abril,  a que chama um clássico "golpe militar": os capitães do QP pura e simplesmente sentiram-se ultrapassados e humilhados pelos "mercenários" (os milicianos) e  decidiram a acabar com a guerra... e liquidar o império (c. 50 pp.) . 

Aos nossos leitores poderá interessar, deste livro,  sobretudo o que diz respeito, direta ou indiretamemente à guerra colonial e às forças armadas. Vamos citar e analisar alguns excertos, reproduzidos aqui com a devida vénia. O trabalho do João Céu e Silva é meritório e intelectualmente honesto: o autor não se esquce também de fornecer ao leitor o "contraditório" (vinte e tal páginas de recortes com críticas ao VPV e pontos controversos do seu CV).

Salazar e as colónias

“Para Salazar, as colónias eram um peso financeiro muito grande no Orçamento" (VPV, pág. 108)

O problema não era novo, remontando ao tempo da República:

(...) "Já fora um problema nos primeiros Orçamentos porque havia na República uma direita integracionista liderada por Cunha Leal que queria que ficassem na Constituição como território nacional e não como colónias, como depois se fez integrando-as no todo económico nacional. Algo que depois Salazar aceitou, mas que até certa altura não queria" (...).

Cunha Leal (Penamacor, 1888 - Lisboa, 1970) era um politico da direita republicana, foi membro do Partido Republicano Nacionalista, e fundador da União Liberal Republicana (em 1923). Foi apoiante do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 (que instaurou a Ditadura Militar e depois o Estado NIvo). Irá, contudo, incomptabilizar-se com Salazar, tornando-se então um dos mais acérrimos opositores da primeira fase do regime do Estado Novo. Ao mesmo tempo, foi dos primeiros a defender um solução política de autodeterminação para as colónias. É autor, entre outras obras, de "O Colonialismo dos Anticolonialistas" e "A Gadanha da Morte: reflexões sobre os problemas euro-africanos" (ambas edição de autor, Lisboa, 1961)

Diz Vasco Pulido Valente, citado por João Céu e Silva:

(...) "Além de Cunha Leal, estava à frente desse movimento nacionalista Norton de Matos, com quem Salazar teve umas fricções a esse respeito" (…). Queriam chamar-lhe províncias ultramarinas, situação que Salazar só aceitou muitos anos depois; efetivamentente não eram províncias ultramarinas, mas colónias, com os orçamentos feitos em Lisboa para ele controlar” (pág. 108).

Norton de Matos (Ponte de Lima, 1867 - Ponte de Lima, 1955) foi sempre um opositor ao Estado Novo., vindo da maçonaria e da República, e que manteve com Angola uma relação especial:

Continua VPV:

(…) "As colónias mantiveram-se sem investimento nenhum, ou muito pouco, sendo que Salazar deixava umas companhias estrangeiras investirem em caminhos de ferro e coisas assim. (…) Não havia investimento do Estado português, que apenas pagava aos funcionários e aos destacamentos mínimos de polícia e do Exército." (...)

O que é Salazar pensava das colónias (onde nunca pôs os pés) ?

(...) "Ele sempre teve a ideia que (…) as colónias não valiam o preço. O que se percebe, pois não existia grande mercado nas colónias: exportava-se alguma coisa, como sapatos, têxteis e vinhos, mas toda a gente sabia que isso se fazia para os poucos brancos, já que os negros não compravam pela simples razão de que não tinham dinheiro (…).

"Angola ainda era a colónia que podia pagar, mesmo que o custo do transporte anulasse muito do lucro. São Tomé também importava, porque era o único sítio onde havia brancos por causa das roças de cacau, mas muito poucos. Ninguém via futuro na expansão colonial, porque a existência de riquezas num território não faz um país". (VPV, pág. 109).


Contrariamente a Norton de Matos, Salazar nunca foi um entusiástico partidário da política de colonizar e povoar...

(Contimua)

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quarta-feira, 5 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22173: 17º aniversário do nosso blogue (4): recordando os resultados de um inquérito "on line", de há cinco anos, sobre as nossas lavadeiras, que de facto não eram "lava-tudo"



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné >Região do Cacheu >  Teixeira Pinto > Março de 1973 > As lavadeiras no lavadouro público. Foto do álbum de Francisco Gamelas, que vive em Aveiro, ex-alf mil cav., cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73).

Fotos (e legendas): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. No 17º aniversário do nosso blogue (*), e a propósito do tema das "lavadeiras", vale a pena relembrar aqui os resultados de um  inquérito "on line" que lançámos há 5 anos atrás (**),  numa época em que éramos cinco anos mais novos e ainda tínhamos pachorra para responder a questões como estas...

Recorde-se que os nossos leitores tinham 7 dias para responder e havia 4 hipóteses de resposta... O número total de respondentes foi de 122. 

"SIM, NO TO DA GUINÉ, TIVE LAVADEIRA"...


1, Sim, tive lavadeira, mas só me lavava a roupa > 
105 (86,1%)

2. Sim, tive lavadeira, lavava a roupa e fazia outras tarefas domésticas > 1 (0,8%)

3. Sim, tive lavadeira e também me fazia "favores sexuais" > 12 (9,8%)

4. Nunca tive lavadeira  > 
4 (3,3%)

Votos apurados > 122 (100,0%)

Sondagem fechada em 28/6/2016, às 14h36

II. Na altura, a divulgação dos resultados não suscitou muitos comentários. Mas, apesar das conhecidas limitações metodológicas deste tipo de instrumentos de pesquisa, os resultados parecem ir ao encontro do "conhecimento empírico, espontâneo", que tínhamos da situação há mais de meio século atrás:  

(i) praticamente toda a gente tinha uma lavadeira (, pelo menos nos aquartelamentos e destavamentos onde havia população civil); 

(ii) a lavadeira lavava e passava a roupa a ferro; 

(iii) só uma pequeníssima minoria dos rspondentes (menos de 10%) procurava obter adicionalmente, e eventualmente obtinha, da sua lavadeira, algum tipo de "favor sexual", não se especificando qual (, mas podendo ir das simples carícias e beijos à masturbação e ao coito),

É pena que a jornalista do "Observador", Tânia Pereirinha, não tenha feito referência a estes dados, na elaboração da sua reportagem, publicada no "Oservador", em 10 de junho de 2020 (***). Talvez a sinopse da reportagem fosse mais contída na generalização (que nos parece abusiva) da imagem da "lavadeira lava-tudo": 

(...) "Em Portugal não se falava, mas em África todos sabiam que muitas lavadeiras não tratavam só da roupa" (Negritos nossos). (...). 

Tãnia, o que é são "todos" ?  E o que é que são "muitas" ?  Quantifique-me lá isso, numa escala de 1 a 100 ?!...   

[Declação de interesses: não tenho acesso ao "Observador", não sou assinante, li uma cópia do artigo que me chegou as mãos, através de um assinante, troquei ao telemóvel algumas ideias com a jornalista, que me pediu "ajuda", sobre o tema, sobre o nosso blogue e sobre outros contactos, em 14 de janeiro de 2020; não se tratou de nenhuma entrevista formal, nem eu tive oportunidade de rever o texto, muito menos de o ler, depois de publicado.]

Enfim, não se trata de "salvar a honra do convento" (, cada um fala por si...), mas tão apenas de dar um retrato, tanto quanto possível aproximado, da realidade que conhecemos e vivemos no TO da Guiné (Vd. também poste P22169) (****).

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 24 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22135: 17.º aniversário do nosso blogue (3): Para muitos, e já lá vão décadas, [este Blogue] tornou-se um indispensável ponto de encontro (José Belo, ex-Alf Mil da CCAÇ 2391, Ingoré, Buba. Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70))


(***)  Tânia Pereirinha, texto; Raqule Martins, grafismo - Abuso ou amor ? As histórias das lavadeiras que cuidavam dos militares portugueses na Guerra de África /premium "Observador", 10 de junho de 2020  

(...) Em Portugal não se falava, mas em África todos sabiam que muitas lavadeiras não tratavam só da roupa. Exército diz que não tem informação sobre estas relações. Que nem sempre terão sido consensuais." (...) 

(****) Vd. poste de 4 de maio de  2021 > Guiné 61/74 - P22169: (Ex)citações (384): Em louvor das "nossas lavadeiras" que, na sua esmagadora maioria, não foram "lavadeiras lava-tudo"... (Joaquim Costa / Valdemar Queiroz / Cherno Baldé / José Teixeira / Jorge Pinto / Luís Graça)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21670: Notas de leitura (1330): A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos, 

Nesta preocupação de juntar todas as peças inerentes ao conflito guineense, encontrei esta reportagem da Felícia Cabrita na revista do Expresso comemorativa dos vinte anos da publicação. 

É impossível não ficar estupefacto não só pelo tom da escrita, é o desmazelo pela verdade histórica disfarçado nessa ilusão de ouvir uns e os outros, esboça-se uma atmosfera apocalíptica e insinua-se permanentemente que houve para ali uma derrota, tinha que acontecer o que aconteceu, já que o decisor político só queria é que desaparecesse da cena internacional a atoarda de que o PAIGC possuía território que indiciava a independência. Operação caríssima e escola de aprendizagem - para quem tinha a honestidade de tirar lições de uma guerra de guerrilha, tal como o Como provou. 

Não sei exatamente para que servem estas reportagens, se para provar que a repórter esteve lá e cá ouviu gente, mas seguramente que não fica um quadro idóneo das etapas essenciais da operação. E, como sempre, tudo aparece inscrito em sede militar, como se de facto a Operação Tridente não tivesse sido, do princípio ao fim, uma decisão de Lisboa, que temeu a atoarda da república independente e que achou demasiado tempo, aqueles mais de 70 dias, que durou a operação, deve-se ter tido receio de que estava para ali um Vietname. 

O que verdadeiramente aconteceu ainda pode ser contado por muito boa gente que seguramente não se revê nesta enxurrada de delírio que saiu do punho de Felícia Cabrita.

Um abraço do
Mário


A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem

Mário Beja Santos

A Revista Expresso comemorativa dos 20 anos do jornal foi um acontecimento editorial, ainda hoje é um documento de consulta. O número especial incluía uma reportagem de Felícia Cabrita sobre a Operação Tridente, profusamente ilustrada, imagens cedidas da operação propriamente dita e testemunhos do presente. 

Trinta anos depois, aquela que é considerada a operação de maior envergadura de toda a guerra colonial merecia um tratamento mais digno, menos hipóteses e presunções e uma redação menos pesporrente e chocarreira. A jornalista achou que era conveniente dar um toque à Norman Mailer ou Hemingway, e dá-nos logo um parágrafo em tom épico: 

“Os soldados tinham abandonado a metrópole de alma limpa, sem saberem muito bem o que era a guerra, estavam até ufanos por se livrarem da açorda e da azeitona no pão e dos míseros testões da jorna. E trocaram sem regatear enxada e martelo por arma. Com as primeiras baixas, depressa se esqueceram que não era de bem matar e entregaram-se ao mister da guerra, ganharam expediente em cortar orelhas e dedos e a torturar gente indefesa. Ainda não tinham passado pela hora da verdade quando os segredos se revelaram, a valentia a impropério. 

Em 1964, mil e tal homens partiram para ocupar uma ilha que era já lenda. Levaram no bolso as suas santas, multiplicaram devoções, mas Deus da sua morada não olha para outros caminhos. Eles tornaram-se farrapos, durante dois meses e meio intérpretes de uma missão falhada. Os habitantes da ilha tenebrosa ficaram de pé até ao fim, muitos morreram, mas a morte o que é senão incerteza? Os que ficaram mantiveram-se insurretos, contentes com o mundo e as suas leis, entregaram-se à dança e à festa, fizeram galas de sangue que ofertaram ao Irã…”.

A repórter esqueceu-se de dizer que o governo de Lisboa estava muito incomodado com a propaganda que o PAIGC destilava em meios internacionais de que possuía território dentro da colónia, decretou aos comandos em Bissau a erradicação de tal presença, organizou-se operação, veio mesmo o Ministro da Defesa, Gomes de Araújo. 

Essa mesma propaganda do PAIGC irá fazer constar anos a fio que houve derrota das tropas portuguesas, que as populações afetas ao PAIGC e as suas milícias não arredaram pé, alimentaram o mito com o mais completo despudor. Acontece que a Operação Tridente está bem repertoriada, e até se inclui na documentação capturada uma carta de Nino Vieira a pedir apoio a outros camaradas da região Sul, quando o coronel Fernando Cavaleiro percorrer a ilha no fim da operação as populações e milícias tinham atravessado o canal, à cautela, e regressaram quando as tropas portuguesas ficaram circunscritas, no extremo da ilha, ao destacamento de Cachil. 

A importância do Como, avisadamente os investigadores têm-no dito, cedo desapareceu, e não só aprendeu quem não quis, o Como tem como significado o bate-e-foge, um dos cânones da guerrilha.

Mas isso não tinha importância para o tom megalómano da reportagem. Corriam rumores sobre os efetivos posicionados no Como: que era uma base central, que tinha abrigos antiaéreos, hospital, búnqueres, centenas de guerrilheiros, pura fantasia, está historicamente demonstrado que os efetivos do PAIGC ainda dispunham de escasso material, ainda não havia armamento antiaéreo, as minas surgirão pouco depois, a guerrilha ainda está num estado incipiente.

Procura-se dar o lado da guerrilha, a exploração a que Manuel Brandão sujeitava as populações: 

“Os agricultores entregavam arroz e os animais por tuta e meia, ou então recebiam géneros, trapos e aguardente de cana. No fim do ano estavam sempre a contas com a administração portuguesa. O comerciante adiantava os 150 escudos do imposto de cabeça, dinheiro que os indígenas pagavam depois a triplicar ou a trabalhar de borla nas suas plantações. Poucos se atreviam a atropelar as leis de Brandão. Se alguém era apanhado a negociar em Catió, esperava-o o tanque coberto de óleo de palma até ao pescoço, muitos escorregavam na gordura espessa e morriam”

E emerge o lendário Nino, as peripécias da sua fuga, a sua capacidade de subversão chegou ao Como, Brandão foi escorraçado e as lojas saqueadas. No Como, quando se inicia a Operação Tridente estarão escassas duas dezenas de guerrilheiros, há oito armas e quatro granadas, Pansau Ná Isna ausentara-se do Como na véspera da Operação Tridente. E começa o desembarque, precedido de bombardeamento aéreo. 

“O tenente-coronel Fernando Cavaleiro tinha como missão isolar Como das restantes ilhas, para cortar o abastecimento da guerrilha, conquistar a população e garantir que se instalasse posteriormente a autoridade civil”

Adivinha-se um terreno áspero, a ilha tem uma superfície de 210 quilómetros quadrados, mais de metade zona de tarrafe. Há desembarques em paz e outros debaixo de tiroteio. E novamente a jornalista se socorre do tom apocalítico: 

“O médico sente o desespero dos soldados. Havia quem metesse um pé ou um braço fora do abrigo para ser alvejado, e mesmo quem descarregasse a arma no corpo. Outros inventavam doenças e muitos enlouqueciam. Ele estava à beira do esgotamento e pedia ao comandante para o substituir”

Mais adiante, a jornalista pretende dar-nos um quadro de como nasce um herói, o brutamontes irado: 

“Na Guiné, quando viu os primeiros mortos e apanhou um estilhaço no olho, depressa se tornou um selvagem. Uma vez limpo o sarampo a meia dúzia de mulheres, fazia coleção de orelhas, outra vez apeteceu-lhe violar uma velha. Antes desta operação era homem para cortar cabeças se tivesse tido oportunidade, mas depressa da experiência do Como confessa que perdeu a afoiteza. Naquele dia, cercado por todos os lados, só pensava em fugir, esconder-se, escapar ao inferno”.

Os guerrilheiros também não passam de gente desalmada, aos olhos da repórter, têm acesso aos corpos de soldados portugueses, roubam fardas e um anel e até o retrato de uma namorada. A guerrilha resiste, as mulheres têm comportamento heroico, avisam os homens de que dali não saem. O contingente português debilita-se: 

“Passados quinze dias, cavalaria, fuzileiros e paraquedistas estavam reduzidos a 60% dos efetivos. 68 homens tinham sido evacuados e os outros pareciam penitentes bêbados atacados por todas as doenças tropicais”

A repórter fala do fuzileiro José Marques que viu gente morrer ali ao pé, viu mesmo um camarada dar um tiro no pé para se ir embora, tal era o desatino que até pensou em matar o seu comandante, Alpoim Calvão, e confessa à jornalista que a partir desta operação nunca mais bateu bem da cabeça.

Momentos há em que a jornalista aceita a lucidez de descrever a guerra de guerrilhas, tal qual ela é, mas a tentação miserabilista e apocalítica é mais forte, e bumba, temos agora a apatia ou o paroxismo: 

“Em emboscadas viu soldados a cavar buracos para se esconderem. Enfiavam o rosto na terra e disparavam ao acaso. Um alferes que estava meio pirado fazia malabarismos com três laranjas debaixo de fogo. E Jaime Segura, que não tinha queda para batalhas sem glória, aborreceu-se de morte. Infelizmente esqueceu-se de levar os dados de póquer, por isso entretinha-se no rio a pescar com granadas. Enquanto o Bretão, tinha ido para a Guiné por ter contas a ajustar com a PIDE não se lavava num gesto de contestação. Estava tão encardido que passava as tardes a fazer o jogo do galo no peito com um pau de fósforo”.

No meio de todas estas hecatombes, são avançados alguns dados. A operação ficará na História como a batalha mais longa e cara do Exército Português. 

“Gastaram 356 bombas, 719 foguetes, 40944 balas. O vinho correu com fartura, o álcool foi o refrigério para o medo. Os cofres do Estado sofreram um arrombo de 290 mil contos. Em meados de março, passados quase dois meses e meio de terem desembarcado, as chefias militares começam a pressionar Fernando Cavaleiro, que garantia o sucesso da operação”.

Os contingentes retiram a 20 de março. Para a repórter, a sentença da desgraça é inapelável: 

“As derrotas são osso duro de roer, partiam sem ocupar a ilha, sem conquistar a população e sem deixar a autoridade civil. Nove mortos e quarenta e cinco feridos graves era o saldo de uma batalha sem glória (…) Salazar também tirou as suas conclusões, e uns meses depois o governador da Guiné e o responsável militar eram substituídos. Mas, num ponto da ilha, encurralados entre o rio e a mata, ficava, durante dois anos, uma companhia a apodrecer”.

À distância de todos estes anos, interroga-se como foi possível o Expresso publicar esta mistela de dislates.

Atenção, mais tarde, Felícia Cabrita voltará ao Como acompanhada de Nino Vieira e voltaremos a esta mesma toada de loucura, medo e mortandade. Tudo isto para dizer que o melhor é ler a documentação sobre o que foi a Operação Tridente e perceber que não passou de uma escola de aprendizagem. E não vale a pena estar a incriminar militares ou a enxovalhá-los, a decisão da Operação Tridente partiu de Lisboa. 

Quando um dia os investigadores se decidirem a consultar os arquivos dos Ministérios do Ultramar e da Defesa seguramente que serão confrontados com uma revelação que todos teimam em iludir: as grandes decisões militares dos três teatros de operações tinham aval político. O regime não pode sair ileso das decisões que tomou.

Início da reportagem de Felícia Cabrita, título com mais equívoco não podia haver

Desembarque das tropas no início da Operação Tridente

Protagonistas da Operação Tridente, muitos anos depois

Protagonistas da Operação Tridente, do lado do PAIGC

Regresso da Operação Tridente

Às vezes, era possível comer em sossego na Operação Tridente

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Nota do editor

Último poste da série de 14 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21644: Notas de leitura (1329): "Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes; Edições Desassossego, 2020 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20880: Notas de leitura (1280): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,
O conteúdo deste livro impõe-se por si: identificasse o tipo de jornalismo que existiu durante o período que abarcou a guerra colonial, como se encenavam as notícias, como nos jornais, rádio e televisão atuavam os ideólogos do Estado Novo; depois quais eram os mecanismos da censura e da autocensura, vão depor nomes sonantes do jornalismo, tenho para mim que a peça que passará à história é do jornalista Moutinho Pereira.
Haverá testemunhos e interrogações sobre história e jornalismo, desinformação e descolonização. Dirão alguns que da leitura deste livro resultará o que já sabíamos, o jornalismo tinha tremendas condicionantes e a censura era implacável, mas o mais importante é que ficou a visão dos autores, e há quem saiba expender juízo sobre o seu trabalho jornalístico, entre a realidade e a ilusão, e mesmo a memória que ficou desse jornalismo.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (3)

Beja Santos

Sílvia Torres
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma atuava, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este género jornalístico é de estudo indispensável na investigação histórica.

José Manuel Barroso foi colaborador dileto de António Spínola, esteve na Guiné entre Julho de 1972 e Maio de 1974, como capitão miliciano; antes do 25 de Abril, como jornalista, passou pelas redações dos jornais Comércio do Funchal e República. Viu nascer o livro  "Portugal e o Futuro", que virá a ser publicado em Fevereiro de 1974:

“O livro começou a ser construído, ainda em Bissau, no final de 1972, início de 1973, com tarefa de sistematização a que se dedicou o Tenente-Coronel Pereira da Costa, que havia sido Chefe da Repartição de Informações do Comando-Chefe. A base conceptual do livro era constituída pelos discursos e pela posição de Spínola sobre a política ultramarina, já reunida em diversos volumes ao longo dos anos de governo da Guiné. Spínola distribuía os capítulos do original por alguns dos seus mais próximos colaboradores, pedindo sugestões e críticas, que depois recolhia e incorporava, ou não, no texto base. Após esta fase, o livro ainda teve outras leituras externas, até atingir a versão final”.

Confessa que trabalhou numa atmosfera a alguns títulos estimulante, havia a guerra e a visão particular de Spínola sobre a guerra e a política ultramarina.

Preparava notícias que Spínola aprovava. Perguntado sobre o que é que era proibido noticiar respondeu que não se utilizavam por exemplo informações relacionados com êxitos do inimigo.

“No entanto, por vezes, escrevia-se sobre essas vitórias para obter uma reação de Lisboa, mostrando que a situação estava pior e que havia cada vez mais problemas. Explica como se fez a intermediação entre Spínola e Raul Rego e como fez de intermediário e Mário Soares". 

Spínola cessa funções em Agosto de 1973, é substituído por Bettencourt Rodrigues, perguntam-lhe o que mudou nas suas funções, nada aconteceu, responde.

A grande peça da entrevista que este volume organizado por Sílvia Torres oferece foi feita ao jornalista Moutinho Pereira. Avisa o entrevistador que o que vai dizer não é nada agradável.
Logo a origem da guerra colonial, é cortante e direto:

“Até 1961, Angola pertencia a meia-dúzia de entidades. Entre elas estavam os senhores do café. Quando se desencadeou a guerra no Norte de Angola, além dos colonos portugueses, houve uma população negra que foi muito vitimada: os Bailundos. E o que faziam os Bailundos ali, se são do Sul, das terras do planalto do Huambo, e se são inimigos tradicionais das tribos do Norte, como os Bacongos? 

"Os Bailundos eram contratados para ir tratar nas roças de café – só a vida desses contratados é uma longa e terrível história. Sempre que havia problemas no Norte, criava-se uma tropa de Bailundos para lutar contra os Bacongos. Havia um ódio tribal antigo, que foi explorado e mantido pelas autoridades portuguesas durante séculos. A zona do café é a zona dos dembos, que coincide com o reino dos Dembos. Ao contrário do que dizem, o início da guerra não tem a ver com outras descolonizações, o início da guerra está ligado à exploração do café. Todas as revoltas dos Dembos estão relacionadas com altas na cotação do café, que levam os proprietários de plantações a alargarem-nas ainda mais, entrando na terra dos outros, como se não tivessem dono”.

Louva as personalidades de Ferreira da Costa e de Fernando Farinha. Esteve em Mucaba numa das colunas do Tenente-Coronel Maçanita, teve cuidado no que escreveu, e diz que nessa reportagem referiu-se que a tropa da UPA incluía chineses. Sobre o conflito disse que a guerra em Angola foi sempre a mesma.

“Era uma guerra desgastada, em que ninguém ganhava, e isso sabia-se. O conflito só teve um sobressalto quando o MPLA abriu a frente Leste".

E volta a ser cortante e direto:  

“Os portugueses escondem os factos mais relevantes da guerra, porque parece mal, porque os militares que foram para lá segundo a historiografia oficial, foram vítimas de um governo fascista que os obrigou a ir combater contra os nossos irmãos africanos. A verdade está nessa história do café, está no facto de ser proibido ter fábricas de algodão – e a história da Cotonang (Companhia Geral dos Algodões de Angola) é outra que está por contar. Fala-se muito dos massacres de 1961, que foram muito divulgados em Portugal, juntando a UPA e o MPLA na mesma panela, e que de facto foram horríveis, mas ninguém fala dos horrores das fossas comuns que se lhe seguiram e de outras barbaridades mais”.

Explica a sua técnica de observação para a elaboração das suas reportagens. Nunca esqueceu a entrevista que fez ao General Costa Gomes publicada na Notícia a 17 de Outubro de 1970:

“É a primeira vez que se diz que a guerra não tem solução militar, que tem de ter uma solução política. É a primeira vez que se diz quanto é que se está a gastar com a guerra e quem é que a está a pagar”.

Depõem ainda Otelo Saraiva de Carvalho sobre o seu trabalho na Guiné, seguem-se os testemunhos do jornalista Avelino Rodrigues que entrevistou Spínola para o Diário de Lisboa e onde se usou o termo de autodeterminação, Spínola disse que o termo não o incomodava.

Manuela Gonzaga fala do seu trabalho no jornal Notícias, de Lourenço Marques e faz a seguinte observação acerca do teatro de guerra e da vida normal das populações mais a Sul:

“Era como se houvesse dois números, em planos sobrepostos, que, por vezes, entravam em dramática colisão, acordando-nos para um fim que se avizinhava, mas que ninguém, a começar pelas mais altas autoridades da nação, queria ver. Na capital, a guerra não existia. Mas, em breve, o hospital de Vila Cabral rebentava pelas costuras para responder a situações graves. Nesses casos, os soldados tinham que ser transferidos para o Hospital Militar de Nampula em helicópteros cujas pás de ventoinha gigante acabaria por desencadear em muitos civis e militares um reflexo condicionado de puro horror”.

Seguem-se ainda outras entrevistas e no final do livro Aniceto Afonso, José Manuel Tengarrinha e Joaquim Furtado debruçam-se sobre descolonização, desinformação e investigação histórica. Joaquim Furtado adianta que “A consumação das descolonização, nos termos em que ocorreu, é um resultado de desinformação generalizada que atingia também os jornalistas. Mais do que qualquer outra forma de repressão, a censura terá sido o instrumento do Estado Novo cujos efeitos mais penalizaram o desenvolvimento de Portugal, até hoje”.

Insiste-se que este livro sobre o jornalismo português e a guerra colonial é incontornável para todo e qualquer trabalho de investigação histórica no que toca às três frentes que travámos na guerra de África.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20853: Notas de leitura (1279): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20853: Notas de leitura (1279): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dirão alguns que esta investigação universitária aborda o demasiado óbvio: havia censura de que um regime totalitário não abria mão, a guerra colonial ainda é uma história para contar. Há que reconhecer o mérito da metodologia utilizada: o que foi concretamente o jornalismo português na divulgação da guerra colonial, como operou a censura, que memórias guardam radialistas e jornalistas que chegaram a pisar o solo nos teatros de operações, qual a atmosfera das redações, que papel desempenhou a autocensura, e muito mais. Há memórias e testemunhos de valor perdurável e estamos em querer que a investigação histórica de futuro não poderá prescindir desta sondagem sobre o jornalismo e os jornalistas, em Portugal e nas colónias.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (2)

Beja Santos

Sílvia Torres
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este género jornalístico é de estudo indispensável na investigação histórica.

O professor Francisco Rui Cádima aborda o tratamento da guerra colonial na RTP, observa que a ausência da ideia de império nos telejornais da década de 1950, ou mesmo a ausência de uma estratégia deliberada de manipulação das consciências, a informação era tipo oficioso, com pouco uso da imagem.

Iniciada a guerra colonial em Angola, mostram-se imagens do terror praticado, mas insistia-se na tese de tranquilidade e incriminava-se a ingerência estrangeira e os bandidos vindos do exterior. A RTP abriu uma campanha nacional de apoio às vítimas do terrorismo em Angola para recolha de donativos.

Toda a informação televisiva aparecerá altamente condicionada. Manuel Maria Múrias irá desempenhar o papel de agente de legitimação da política salazarista. Haverá uma viragem com a chegada de Ramiro Valadão em 1970. “Esta mudança não foi apenas uma mudança de pessoas, ou de liderança na redação, mas significou também uma importante alteração no quadro do próprio discurso jornalístico televisivo”. O regime não deixou abrir fendas na doutrina oficial de que o Ultramar era matéria fora de discussão.

Vários autores debruçam-se sobre a censura e como esta se constituiu como o elemento dissuasor de qualquer veleidade em abrir discussões sobre o nacionalismo, a existência de atrocidades ou até exploração económica.

A equipa organizada por Sílvia Torres ouviu memórias de jornalistas e intervenientes na guerra colonial, desde Agostinho Azevedo que escrevia no oficioso Voz da Guiné, passando por Armor Pires Mota que publicava crónicas durante a sua comissão militar na Guiné no Jornal da Bairrada, nem a PIDE nem a censura deram por nada, publicou o livro Tarrafo com as mesmíssimas crónicas, foi imediatamente apreendido e houve interrogatórios, depõem igualmente Baptista Bastos, Cesário Borga, Diamantino Monteiro, do Rádio Clube da Huíla, como também David Borges da Rádio Clube da Huíla, o jornalista Fernando Correia que pisou os três teatros de operações e que explica cabalmente todo o processo de crescente desinteresse do próprio regime em dar informações sobre a guerra; o jornalista Fernando Dacosta observa que a guerra foi muito mal contada, nenhum jornalista legou um grande trabalho sobre a guerra colonial e justifica:

“Não podia fazer. Na literatura, hoje, a história já começa a ser contada. Cada vez se escrevem mais livros sobre a guerra colonial. Mas, neste plano, importa destacar um dos primeiros escritores: o jornalista Fernando Assis Pacheco, que escreveu Walt, um livro que situa a guerra colonial na guerra do Vietname para, desta forma, poder falar sobre a guerra colonial e escapar ao corte da censura. É talvez um dos documentos mais importantes sobre a guerra colonial que foi publicado muito antes do 25 de Abril”.

E analisa igualmente a imprensa na metrópole: “A censura era ferocíssima em relação às notícias, filtrava tudo quanto os jornais tentassem publicar e, de uma maneira geral, cortava. Só se publicavam as informações que a própria censura entendia ou que o gabinete militar divulgava”.

Uma figura lendária, o jornalista Fernando Farinha, que acompanhava as tropas no terreno, descreve os seus métodos de trabalho, como é que as suas reportagens chegavam à redação:

  “Fazer chegar os rolos fotográficos e os textos ou notas de texto à redação requeria alguma imaginação. Umas vezes, aproveitava o transporte de feridos, feito por helicóptero, para o Hospital Militar de Luanda, para enviar rolos e notas de texto. Punha o papel dentro do rolo e colava tudo com fita-adesiva às ligaduras ou talas dos feridos. Os próprios feridos ou outros militares informavam depois a redação de que era preciso ir buscar o material ao hospital. Outras vezes, verbalmente, via rádio do Exército para o rádio do avião que sobrevoasse a zona, pedia aos pilotos que transmitissem determinadas informações”.

E discreteia quanto ao modo quanto o conflito passou a ser visto internamente:

“No início, a guerra era vista pelos militares como um dever de patriotismo a cumprir. Era fundamental manter a pátria unida e defender um território que era português, custasse o que custasse. O inimigo era terrorista e tinha de ser abatido. Mais tarde, o pensamento já não era este, sendo a guerra vista como desnecessária. No final, já só se queria um entendimento com os terroristas e o fim da guerra. O inimigo passou a ser mais respeitado, porque as tropas portuguesas perceberam que os guerrilheiros lutavam pela sua terra. O amor à pátria e a portugalidade das colónias foi-se perdendo à medida que a guerra avançava”.

Segue-se a entrevista a alguém que teve atividade humorística na imprensa, Fernando Gonçalves criou o cartoon Zé da Fisga, que aparecia em publicações com sede em Luanda; Francisco Pinto Balsemão, João Palmeiro e Joaquim Letria irão depor sobre o seu papel de jornalistas ou intervenientes nos meios de comunicação social.

Letria fala dos problemas com a censura mas também da autocensura, e conta a experiência amarga que teve na Guiné como repórter de guerra:

“Posso contar que me levaram ao Palácio do Governo por causa de um telegrama, com cerca de 150 palavras, que eu enviei para o Diário de Lisboa por correio. Julgava eu que o telegrama tinha sido enviado, quando aparece um jipe, conduzido por um funcionário para me levar ao palácio. E aí fui muito maltratado por General Arnaldo Schulz e pelo representante do SNI. Porquê? Porque eu tinha tentado enviar para Lisboa informação classificada que prejudicava as nossas tropas. Eu escrevi no telegrama que tinha havido um ataque do PAIGC que tinha matado nove soldados portugueses e dizia aonde é que tinha sido o ataque, quantos soldados é que tínhamos na Guiné e quando é que a guerra tinha começado. Fui repreendido por ter contado a verdade. Tinha cometido um erro gravíssimo e se o voltasse a fazer mandavam-me para Lisboa”[1].

Para Letria a guerra colonial é uma história por contar, ainda há muito para mostrar. E recorda que ainda não foi ouvida gente que gravava as mensagens de Natal, esses operadores da RTP ainda não testemunharam.

(Continua)
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Notas do editor:

[1] - A propósito destas mortes anunciadas pelo jornalista Joaquim Letria, consultar o Poste de 7 de Dezembro de 2017 > Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos).

Último poste da série de 6 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)