Mostrar mensagens com a etiqueta BNU - Banco Nacional Ultramarino. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta BNU - Banco Nacional Ultramarino. Mostrar todas as mensagens

sábado, 31 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25897: Timor: passado e presente (19): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte X: O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli






Timor > Díli > c. 1945 > Ruínas de Díli após a II Guerra Mundial. Relatório do governo da colónia de Timor, 1946-47. Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino. Cortesia de RTP > 4.A II Guerra Mundial e o início das descolonizações (com a devida vénia...)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.




Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte X:   O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli (pp. 80-87)


(i) 1944 é  mais um ano de martírio para a pequena colónia portuguesa de Timor,  para a população timorense (que não seria mais do que 400 mil em 1940) e para a não-timorense (umas escassas 3 centenas de portugueses) com frequentes bombardeamentos da aviação dos Aliados, por um lado, e a continuação das arbitrariedades e prepotências dos ocupantes japoneses, por outro. 

O ano fica marcado pela prisão de dois elementos-chave da população portuguesa da colónia, o engenheiro Artur Resende do Canto e o tenente António Oliveira Liberato. O primeiro pertencia à Missão Geográfica de Timor, e estava a exercer, voluntária, abnegada e corajosamente,  as funções de administrador do concelho de Díli. O segundo era o adjunto da Companhia de Caçadores, que já tinha perdido, em 1942, o seu comandante, o cap inf  Costa Freitas.

Há uma novo cônsul nipónico, que fala espanhol, e um vice-cônsul que fala português (sendo casado com uma brasileira). Mas nem por isso a situação dos portugueses, detidos na ilha, vai melhorar. 
Nem muito menos a da população autótone, 
que os japoneses insidiosamente tentaram virar contra Portugal.

Quando se comemora os 25º aniversário do referendo de 30 de agosto de 1999, em que 4 em cada 5 timorenses (78,5%) se manifestaram livremente pela independência do território, curvamo-nos à memória de todos aqueles que, durante a ocupação japonesa, 
na II Guerra Mundial, 
 deram-nos exemplos de dignidade, coragem e patriotismo.  

A questão de Timor chegou a ser um foco de tensão entre Portugal e os seus velhos aliados ingleses. A invasão por tropas autralianas e holandesas foi a gota de água e o pretexto de que os japoneses precisavam para, por sua vez, ocuparem o território,  de importância estratégica para ambos os lados,

 Portugal chegou a estar em risco (ou foi ponderada a hipótese pelos ingleses) de entrar na II Guerra Mundial por causa da minúscula e longínqua parcela do império que era Timor, segundo revelam documentos do arquivo do Foreign Office, estudados pelo diplomata e investigador português, Carlos Teixeira da Mota (1941-1984),  "O caso de Timor na II Guerra Mundial : documentos britânicos", Lisboa,  Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, 202 pp.   

Em 28 de novembro de 1944, Portugal assina finalmente um acordo (secreto) com os EUA (com mediação inglesa):  em troca da concessão de facilidades militares nos Açores (ilhas de Santa Maria), Portugal conta com a ajuda americana para recuperar a soberania de Timor, território ocupado prlosd japoneses e objeto da cobiça dos australianos.

Timor é paradigmático: é aqui, no Sudoeste Asiático (mas também no norte de África, ambos sangrentos palcos de guerra) que, em boa verdade,  começa(m) a(s) descolonização(ões)...


(...) A 23 de janeiro recebemos em Lahane comunicação de Liquiçá informando-nos que, no dia anterior, aviões australianos haviam atacado Liquiçá tendo metralhado a enfermaria onde estava hasteada a bandeira portuguesa!

Haviam ficado feridos quatro timorenses e a esposa do chefe dos correios Fortunato Mourão, senhora D. Aida Cassagne Mourão, que ali estavam internados, tendo esta última cegado de um dos olhos atingido por um estilhaço de bala.

No dia 17 de fevereiro, com evidente prazer nosso embora não isento de natural desconfiança sobre as suas intenções, retiraram os japoneses as guardas ao hospital e ao palácio, cessando daí em diante qualquer fiscalização do trânsito dos portugueses entre esses dois edifícios. (...)

Em princípios de março, o engenheiro Canto trouxe de Liquiçá para Lahane, acompanhada de sua mãe, uma menina de 17 anos, filha do velho colono sr. Gregório José Morato. Apresentava uma volumosa tumefacção sobre a omoplata esquerda que diagnostiquei ser um lipoma que facilmente seria extirpado por uma operação de pequena cirurgia, se os dois médicos portugueses a praticassem, dispondo dos meios normais que antes tinham, sobretudo de material asséptico.

Verificada por mim a impossibilidade de tratarmos a menina pediu o engenheiro Canto a ajuda nipónica, no respectivo consulado, conseguindo que a operação se viesse efectuar no hospital japonês, no dia 15, sendo a menina, logo após a operação, transportada para a nossa ambulância onde terminou o tratamento.

Por este tempo, constou à população portuguesa que o engenheiro Canto havia pedido a exoneração do cargo de administrador do concelho de Díli. De facto, ele há tempos me confidenciara que a sua atuação em Liquiçá e Maubara se apresentava cada vez mais cheia de escolhos, sobretudo por nada de importante poder resolver, no momento preciso e no local, pois todas as medidas necessárias que poderia aplicar para a resolução de problemas prementes e urgentíssimos tinham, obviamente, de esperar por despacho favorável do Governador, necessariamente moroso pela dificuldade de comunicações entre a zona e o palácio.

Assim, ele estava na disposição inabalável de se demitir, no caso de o Governador não o nomear seu delegado na zona de concentração. Confirmada a apresentação do pedido de exoneração do administrador do concelho de Díli, foram presentes ao Governador duas exposições, uma de chefes de família e outra de «mulheres e mães portuguesas» pedindo a sua não concessão.

Redigidas e assinadas pela grande maioria da população da zona, foi, a primeira, trazida ao hospital de Lahane onde lhe foram apostas as seguintes assinaturas (1) : José dos Santos Carvalho, Roque da Piedade Pinto e Rodrigues, António de Oliveira Oscar Lemos, Manuel da Costa, Júlio Madeira, Adão Exposto, Joaquim Francisco da Silva.

O despacho do Governador a estas petições (1) não pôde ser favorável, o que nele era lamentado, pelo que foi nomeado administrador do concelho o capitão Manuel do Nascimento Vieira, por portaria de 9 de março de 1944. (...)


(ii) A visita, de uma semana, iniciada em 19 de março de 1944,  do cap art José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau, fazendo-se transportar numa aeronave japonesa, não trouxe benefícios percetíveis à população do território.

Em 29 de abril, dia em que se comemorava o aniversário do imperador do Sol Nascente, Dília sofre forte bombardeamento por parte da aviação  dos Aliados.  O engº Canto e o tenente Liberato são presos. Sabe-se também da prisão do tenente Pires, antigo administrador de Baucau.


(...) Após estes acontecimentos foi a população informada de que estava para chegar a Timor um enviado do Governo de Portugal.

De facto, no dia 19 de março aterrou no campo de aviação de Díli um avião japonês que trazia o capitão de artilharia José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau comandante Gabriel Teixeira, o qual vinha a Timor como delegado especial do Governo português.

Neste mesmo avião viajaram o novo cônsul japonês em Timor, senhor Sotaro Hossokawa e o vice-eônsul, senhor Suzuki.

O capitão Silva Costa demorou-se em Timor uma semana,  tendo-se deslocado a Liquiçá e Maubara, para entrevistar vários portugueses e assistido a um almoço no palácio e a um jantar no consulado, para os quais o engenheiro Canto e eu fomos convidados e em que estiveram presentes o general comandante dos japoneses e os seus oficiais ajudantes, os dois cônsules, o Governador e o seu ajudante, capitão Vieira.

Das entrevistas que o capitão Silva e Costa teve comigo e com outras pessoas, depreendeu-se que ele estava a fazer um inquérito sobre os acontecimentos passados e a situação atual na Colónia. Bem informado, regressou a Macau no dia 26, seguindo no mesmo avião o ex-cônsul, senhor Yodogawa e o chanceler senhor Irie.

O novo cônsul japonês falava espanhol e o vice-eônsul senhor Suzuki, falava fluentemente português, pois, segundo referiu era casado com uma senhora brasileira. O novo chanceler do consulado, senhor Yanaguiwara, não comprendia ou falava senão o inglês.

A vinda do capitão Silva e Costa não trouxe melhoria de situação, como se esperava. Logo a seguir a ela, no dia 9 de abril, o tenente Liberato foi preso, na sua residência em Liquiçá, por três agentes da Kêmpy, dois dos quais eram o sargento Nerita e o cabo Kato, acompanhando-os como intérprete o chinês Há-Hói, filho do comerciante Mie-Hap de Díli, e três soldados armados de espingardas (2).

Levado de automóvel para Díli, pelo sargento Nerita, foi metido na cadeia de Díli e aferrolhado numa cela. No dia seguinte começaram os seus interrogatórios, sempre acompanhados de pancada e violências físicas, feitos pelo comandante da Kêmpy, tenente Akusawa, e pelo sargento Nerita, com o Ha-Hói como intérprete (1).

No dia 29 de abril, manhã cedo, apareceram as barracas dos aquartelamentos nipónicos, à roda do hospital de Lahane, ornamentadas com bandeiras japonesas, nas portas e outros espaços, inclusivamente nos telhados, sentindo-se bem um ar de festa e alegria da tropa. Mais tarde soubemos pelos criados timorenses que era o aniversário do Imperador do Japão que estava a ser comemorado.

Porém, ainda não eram nove horas a sereia japonesa anunciou a aproximação de aviões inimigos que não se fizeram esperar. Seguiu-se um terrível bombardeamento por dezenas de aviões que, conforme era de prever pelo tremendo estrondo e depois soubemos, reduziu a escombros a cidade de Díli, não havendo qualquer espaço que não tivesse sofrido a acção aliada.

As bandeiras nipónicas, escusado seria dizê-lo, logo desapareceram como por encanto e nunca mais as vimos em qualquer lugar, até ao fim da guerra.

Também, este bombardeamento deu origem à destruição por cargas de dinamitei das altas e elegantes torres da catedral de Díli, o que constou ter sido motivado por constituírem um precioso ponto de referência para os aviões atacantes.

Aquando do bombardeamento, estava o tenente Liberato aferrolhado numa cela da cadeia de Díli pelo que pôde num dos seus livros (2) descrever o terrífico espectáculo com um realismo que ainda hoje nos esmaga.

Atingido o compartimento onde se encontrava, transferiram-no para outra dependência menos danificada e onde já tinham sido reunidos os restantes presos, entre os quais reconheceu, a custo por estar magríssimo, ferido na cabeça, e coberto de cabeça, o chefe de posto Matos e Silva (2) .

Recebeu deste, então, algumas informações. O tenente Pires havia voltado da Austrália, num submarino americano e ficara em Timor, em serviço de observação, com um pequeno grupo de portugueses, oferecendo informações aos aliados (3).

Obrigado o grupo a fraccionar-se, para escapar às "colunas negras", haviam sido, sucessivamente, presos o tenente Pires, os chefes de posto José Tinoco e Matos e Silva, o enfermeiro Serafim Pinto e os irmãos, cabos Cipriano Vieira e João Vieira (3).

Presos, durante meses, em Baucau, foram mais tarde transferidos para Díli (3) e aí havia já falecido o chefe de posto José Tinoco e os irmãos Cipriano e João Vieira (2) . Quanto ao enfermeiro Serafim Pinto nada sabia, pois vira-o entrar um dia na prisão, de olhos vendados, mas desconhecia o destino que lhe haviam dado. Provavelmente, já não pertencia, também, ao número dos vivos (2) .

O senhor Matos e Silva, ferido na cabeça por um estilhaço de bomba, foi transferido, tempos depois, para uma casa de China Rate, onde se presume que tenha morrido (3), a 8 ou 9 de maio (2) .

«Fora de dúvida é que todos eles sofreram horríveis maus tratos e as agruras da fome, que os japoneses impunham a todos os seus prisioneiros» (3).

No dia 4 de maio, o tenente Liberato foi algemado, vendaram-lhe os olhos, meteram-nos num automóvel e levaram-no para China Rate onde o meteram na casa que era das máquinas da T.S.F., num compartimento sem janela. Aí viveu ( !) sessenta e sete dias, completamente incomunicável, a juntar aos vinte e inco passados na cadeia de Díli (2) .

Por estes tempos e, infelizmente, nos que se lhe seguiram, o cabo Kato, chefe da polícia japonesa em Liquiçá, continuava  fazer tropelias, insultando e vexando com prepotência os não- timorenses da zona de concentração.

No dia 5 de julho registou-se um ataque aéreo aliado, com fogo de metralhadoras, a Liquiçá e Maubara. Em Liquiçá ninguém foi atingido, mas em Maubara sofreram ferimentos graves  (...).

Uma das mais infelizes e inexplicáveis prepotências da polícia japonesa surgiria, com uma bomba, a 10 de julho. Cerca do meio-dia, apareceu no hospital de Lahane o sargento Nerita acompanhado de alguns soldados armados, transortado num automóvel do exército.

Não procurando o engenheiro Canto, como costumava fazer, dirigiu-se à sala onde estava instalado o telefone que estabelecia comunicação com o palácio, arrancou-o e levou-o consigo.

Apareceu, então, o Engenheiro e logo compreendemos ser ele a vítima escolhida, pois o sargento não o cumprimentou, antes lhe disse qualquer coisa, com modos bruscos, que nós não ouvimos, por estarmos afastados.

O  Engenheiro dirigiu-se, então, ao seu quarto, já acompanhado por soldados, enquanto c sargento foi procurar o gerente do Banco Ultramarino, senhor João Jorge Duarte, para o intimar a acompanhá-lo, também. Tal com estavam, em mangas de camisa, tiveram de seguir com os esbirros, levando o Engenheiro uma malinha de mão e despedindo-se com um olhar que, para sempre, ficou no nosso
pensamento.

Logo que o automóvel se afastou, o chefe de posto Torresão correu para o palácio com o fim de avisar ao Governador, seu primo, o sucedido. Mas, em vão atuou. Chegado ao cruzamento com a estrada que liga ao palácio aí encontrou um soldado japonês que lhe impediu a passagem, forçando-o a regressar ao hospital.

No dia seguinte já não houve entraves e o Governador pôde ser inteirado do acontecimento, não tendo os protestos que, pronta, enérgica e repetidamente, pessoalmente apresentou no consulado nipónico, obtido resultado favorável nem qualquer explicação para tão arbitrário ato. (...)


(iii) Surpreendente, ou talvez ou não, é a situação do tesouro público: o gerente do BNU é preso, e o seu quarto fica trancado...É lá que ele guardava parte do pecúlio da colónia, ou seja, o "mealheiro" do Governador, o cofre forte do  banco... ~

Como pagar agora aos funcionários, civis e militares,  que restam na colónia, incluindo os deportados (que também comiam à "mesa do Estado" )?... Sem esse dinheiro, agravar-se-ia  a situação de miséria em que já todos viviam, apesar da solidariedade de muitos timorenses  que, apesar de tudo, tinham os seus meios de subsistência... 

Uma solução "ad hoc", expedidta, à portuguesa foi encontrada, o clássico "desenrascanço"... Um momento algo hilariante no meio de um drama coletivo...

 (...) Entretanto, verificáramos no hospital de Lahane que o Gerente havia fechado a porta do quarto onde estava instalado e não pudera entregar a chave aos seus dois funcionários ali presente ou a qualquer de nós, pois nem sequer lhe fora permitido calçar uns sapatos em substituição das chinelas que trazia quando foi preso.

Conforme, então, o Dr. Tarroso Gomes (4) me contou,  situação complicava-se porque o Gerente, visto lhe ser impossível ir ao edifício do Banco, situado em Díli, conservava guardados no seu quarto, uma parte dos fundos da Colónia. 

Aguardaram-se vários dias, na esperança de a detenção ser temporária, mas como não houvesse indícios duma libertação próxima, o Governador, obrigado pelas circunstâncias e porque não  era possível deixar a população sem dinheiro, porque isso representava a fome, determinou que se arrombasse a porta do quarto e se retirassem os fundos da Colónia que passariam à responsabilidade do Dr. Tarroso.

Coube esta tarefa a uma comissão, nomeada pelo mesmo espacho que determinou o arrombamento, constituída pelo capitão Vieira, o Dr. Tarroso, o secretário e o tesoureiro do Banco Nacional Ultramarino, senhores Anselmo Bartolomeu e Almeida e Fausto do Amaral e eu e o sargento Vicente, como testemunhas.

Encontrou-se bastante dinheiro em gavetas e malas, mas havia vários cofres que só mais tarde o deportado, senhor Serafim Martins, habilíssime serralheiro, vindo de Liquiçá para o efeito, conseguiu arrombar e depois tornar a reparar à força de muito trabalho e competência técnica.


 (iv) A "zona de concentração" fica agira reduzida a Liquição, com a transferência forçada dos portugueses "residentes" em Maubara, que perdem os seus parcos haveres e as suas pequenas hortas...

Os bombardeamentos continuam, mais intensos em outubro e novembro. Díli é agora um monte de ruinas. 

Timorenses e portugueses vão entrar no último ano da guerra, sem saber qual é o seu desfecho, completamente isolados do mundo...


(...) Em meados de setembro surgiu mais uma grande crise para a população não-timorense de Maubara que na sua totalidade, não poupando as mulheres e crianças, foi obrigada pelos japoneses e abandonar a vila, onde tinha todos os seus haveres e cultivava hortas pelos próprios meios, e seguir para a já superpovoada Liquiçá, fazendo o percurso a pé!

Chegaram esses desgraçados, mortes de fome e de cansaço,  Liquiçá, no dia 15, tendo pernoitado na noite da véspera em palhotas de timorenses caridosos que fraternalmente os acolheram (5).

Assim, na vila de Liquiçá mais se agravou o problema alimentar que só não se tornou completamente desesperado por os japoneses permitirem que alguns nossos serviçais timorenses se dedicassem a trabalhos agrícolas na Granja Eduardo Marques, fornecendo géneros alimentícios. 

Outra grande ajuda foi sempre a da plantação de Fátu-Béssi que nunca foi ocupada los japoneses, embora eles requisitassem daí o melhor para as suas tropas. Porém, a diplomacia do senhor Jaime de Carvalho conseguiu furtar-lhes quantidades preciosas para entregar aos seus famintos compatriotas.

No mês de outubro, violentos bombardeamentos aéreos incidiram sobre a área onde os japoneses se tinham instalado em Lahane, bem junto do nosso hospital, os quais só por milagre não nos atingiram. Ficaram memoráveis para nós os realizados nos dias 14, 29 e 30 (de setembro).

Continuaram os ataques aliados em novembro, ainda a Lahane, mas, agora, nas proximidades da residência do governador. Assim, no dia 8, caíram dezoito bombas a uma distância, entre 20 e 50 metros; no dia 10, sete bombas, à mesma distância; e no dia 15, mais nove, oito das quais muito próximas (entre 20 e 30 metros) e uma que providencialmente não rebentou, a dois metros de um dos torreões da frente da residência, onde cavou um buraco. (6) .

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

________________

Notas do autor (JSC):

(1) As exposições da população ao governador Ferreira de Carvalho, pedindo para não conceder a exoneração ao engenheiro Canto, podem ler-se no In Memoriam a Artur do Canto Resende, publicação do Sindicato Nacional dos Engenheiros Geógrafos, Lisboa, 1956, pp. 37 a 41.

(2) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(3) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

(4) O Dr. Tarroso Gomes, desde Dezembro de 1942 que vinha regularmente a Díli, uma vez por mês, a fim de levantar da caixa de tesouro os fundos necessários para as despesas oficiais do mês e despachar com o governador os assuntos da Repartição de Fazenda. Hospedou- se  sempre no hospital.

(5) A odisseia dos portugueses de Maubara foi-me relatada pelo Dr. Tarroso Gomes que assistiu à sua chegada a Liquiçá onde o seu mísero estado provocou, em todos a maior indignação e profundos desejos de vingança.

(6) Os efeitos dos bombardeamentos da zona vizinha do palácio do governador, foram por mim directamente observados. O número de bombas caídas foi-me referido pelo próprio governador.
_____________

Nota do editor LG: 

(*) Vd. postes anteriores da série >





sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25895: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VI: "Conhecido comerciante e grande proprietário", dono de um dos melhores "sobrados" de Bolama nos anos 30 (António Estácio, "Bolama, a saudosa...", 2016)





Fonte: Estácio (2012) (*)


1.  Se não fosse a Op Tridente, que celebrizou a "Casa Brandão" e o seu antigo dono (**), não estaríamos para aqui hoje, sessenta anos depois (!), às voltas com o fantasma do Manuel de Pinho Brandão (**), cuja fama tem um ângulo de 360º: tanto foi considerado como um grande colono (e, aos olhos do PAIGC, um famigerado "colonialista", terror dos balantas da ilha do Como) como um "turra", um colaboracionista, que as autoridades portuguesas, a seguir ao início da guerra, terão condenado à expulsão do território).

Camaradas nossos que participaram na operação de reocupação da ilha do Como, em jan-mar de 1964, já deram aqui o seu testemunho (**):

(i) Mário Dias:

(...) Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963.

 (...) Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel de inho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil.

A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. 

(...) Meses antes, já a aviação havia attuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como. (...)

(...) Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil.

arefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras.

Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique. (...)

(ii) Armor Pires Mota:

(...) Como, 16 de janeiro de 1964

(...) Ali, em Cauane, não havia um poço sequer. Só mais longe, a uns trezentos metros, junto à casa do tal Brandão, o único branco que ali vivera, há tempos, onde montara os seus negócios e fizera fortuna.

Ele casara com a filha da rainha dos Bijagós e vivia agora em Catió. O filho, que diziam ter morrido, andara com os terroristas, o Chiquinho. (...).



 2. Mas, nos anos 30, o nosso homem vivia em Bolama, a capital, como de resto lá vivia a elite colonial da época, os funcionários públicos, os missionários, a escassa tropa e os comerciantes (europeus, cabo-verdianos e libaneses).

Ninguém sabe quando aportou à Guiné. Talvez desterrado, no tempo da República. Sendo de Arouca, logo, um "serrano", do interior do Portugal profundo, era muito pouco provável que se tivesse metido em encrencas, de natureza política. 

A ter sido deportado, tê-lo-á sido por algum crime de delito comum, como por exemplo o Abel Gil de Matos, o fundador de Catió, (Natural de Aldeia Galega do Ribatej0, hoje Montijo, foi condenado em 1913 pelo tribunal da comarca a 6 anos de prisão maior celular ou, em alternativa, a 9 anos de degredo.)

Tant0 um como outro, o Brandão e o Matos, figuram, no anuário da Guiné de 1946, como  grandes concessionários de terras, no sul da colónia, mais exatamente na circunscrição de Catió, o grande celeiro do território...  Estamos a falar de centenas de hectares...


(Bissau, 1947-Algueirão, Sintra 20222)


Mas voltemos a Bolama... Talvez ninguém como o nosso amigo e camarada António Estácio (1947-2022) tenha amado tanto Bolama. A prova é o último livro que publicou, em vida, em edição de autor, "Bolama, a saudosa..." (2016, 496 pp.) (*)

Embora tenha nascido em Bissau, em 1947,  em "chão de papel",  e estudado no liceu Honório Barreto, fez a esc0la primária, nos anos cinquenta,  em Bolama, onde a mãe foi professora primária e o pai, transmontano, encarregado de obras municipais . 

Com base na Planta Topográfica da Cidade de Bolama ( à escala 1/2000, levantada nos anos de 1920/21 pelo cor eng José Guedes Quinhones) e outras fontes documentais (como o Anuário da Guiné Portuguesa de 1946), o engº técnico agrário António Júlio Emerenciano Estácio elaborou um precioso "croquis" da sua amada Bolama.

É a partir destes documento, que ficamos a saber que, na Rua João Marques de Barros, perpenmdicular à Rua Sá da Bandeira, se destacava o grande 'sobrado' (casa de 1º andar, de estilo colonial), mandado construir pelo conhecido comerciante e grande agricultor (sic), Manuel de Pinho Brandão, em cujo rés de chão se situava a loja  de Júlio Lopes Pereira, respeitável cidadão e  referência da cidade... (*).

Ali à volta da Praça Infante Dom Henrique e do Mercado, situavam-se as principais casas comerciais da colóniua: a Gouveia, Saad, Pinto, Carlos Gomes, Pintozinho, Duarte, Guedes, Almeida, Manuel Simóes Marcelino, Santos Marques, Nunes Correia, António dos Santos Teixeira, etc.

3. Acerca do Manuel de Pinho Brandão, sabemos adicionalmente que:

 (i) residia em Bolama em 1935,    e  era solteiro;

(ii) tinha diversas concessóes de terras na região de Tombali, circunscrição de Catió, a par de outros negociantes e produtores de arroz, como o Álvaro Boaventura Camacho, o Abel Gil de Matos, o Benjamim Correia, etc.;

(iii) O gerente do BNU, em Bolama, fez-lhe o retrato-robô, em relatório para Lisboa (onde falava dos "caloteiros" do banco): (...) "Manuel de Pinho Brandão – É, francamente, má a moralidade deste indivíduo e citaram-na, decerto por mero lapso, como 'boa'. Só por um muito infeliz acaso não se encontra a ferros para toda a vida.” (...); (*****)

(iv) diz-ser que era natural de Arouca, deportado, irmão do Afonso Pinho Brandão (este, dono da embarcação "Arouca", capturada pelo PAIGC em março de 1963, a par do navio "Mirandela", da Casa Gouveia);

(v) seria tio paterno da nossa amiga Gilda Pinho Brandão;

(vi) niinguém sabe quando nasceu nem onde nem quando morreu;

(vii) não há nenhum retrato dele...

____________

Notas do editor:


(*)  
Vd. poste de 14 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9745: Memória dos lugares (179): A saudosa Bolama (António Estácio / Patrício Ribeiro)


(****) Vd. postes de:

20 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16112: Agenda cultural (478): Sessão de lançamento do novo livro do lusoguineense António Júlio Estácio, "Bolama, a saudosa...", Lisboa, Palácio da Independência, dia 25, às 18h00 - Resumo da obra: parte I

21 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16115: Agenda cultural (479): Sessão de lançamento do novo livro do lusoguineense António Júlio Estácio, "Bolama, a saudosa...", Lisboa, Palácio da Independência, dia 25, às 18h00 - Resumo da obra: parte II

 (*****) Vd. poste de 28 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19052: Notas de leitura (1104): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (53) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25890: Historiografia da presença portuguesa em África (438): O anuário turístico da Guiné, 1963-1964 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Assim que vi referência a este anuário turístico da Guiné, com o nº1, o que leva a supor que haveria o início de uma coleção, reportado a 1963-1964, fui a correr ao vendedor, folheei estas 100 páginas ricamente ilustradas com perfis de mulheres e homens, danças e penteados, fotografias de praias, de estátuas de artérias urbanas, não encontrava resposta para uma publicação desta natureza redigida em português, francês e inglês, em 1964, o conflito atingir tais proporções que qualquer um daqueles aliciantes turísticos era inviável. Muito provavelmente aconteceu que o espírito desta coleção nasceu antes da luta armada, seria de profundo mau gosto enviar para as chamadas Casas de Portugal (agências turísticas junto das nossas embaixadas) este anuário. Mas que ele foi distribuído na Guiné, a prova clara é que o exemplar traz uma assinatura, diz Guiné, 1967. Acontecimento editorial insólito, sem margem para dúvida, impensável não dar aqui esta notícia da sua existência.

Um abraço do
Mário



O anuário turístico da Guiné, 1963-1964

Mário Beja Santos

Este anuário turístico é uma verdadeira surpresa, a guerra na Guiné já começou e desenvolve-se e faz-se um livrinho de 100 páginas em português, francês e inglês, oferecendo-se a quem aqui arriba os elementos geográficos mais pertinentes, dados sobre o relevo e hidrografia, clima, população, governo e administração; segue-se o esboço histórico, dados sumários sobre a missionação e a Prefeitura Apostólica da Guiné, como se processa a educação e o ensino, o grau de assistência sanitária, os organismos da assistência social (Lar de Santa Isabel da Santa Casa da Misericórdia da Guiné, o Asilo da Infância Desvalida de Bór com creche e o internato de Bór). Aspeto bem curioso passa pelos dados económicos, a palmeira de azeite estudada pela Brigada de Estudos Agronómicos da Guiné, os viveiros de bananeiro no posto agrícola de Pessubé, onde também foram introduzidas sementes de cacaueiro, refere-se a importância das exportações de amendoim, noticia-se que há um pequeno campo de viveiros de ananás e no tocante à indústria salienta-se a grandiosa obra da SACOR em Bandim; quanto às exportações florestais, destacam-se o poilão, o bissilão, o pau-ferro, a calabaceira, a palmeira, a farroba, as acácias, a tamarindeira e o pau-sangue. Dão-se informações sobre o terceiro plano de fomento e quais as obras de fomento em curso: troço da estrada Bafatá-Nova Lamego, acessos à nova ponte sob o rio Cacheu, remodelação das obras de arte correntes do troço Safim-Buba, etc. No final de 1962 fora inaugurada a nova central telefónica automática de Bissau. Sumaria-se o que está a acontecer na energia elétrica e dedica-se um capítulo às finanças, o Banco Nacional Ultramarino tem a sua filial edição.

Apesar da guerra não há nada como saber que a Guiné tem os seus atrativos turísticos, exalta-se o quadro da natureza, as estradas de bom piso que sulcam o território em todos os sentidos, a vegetação variada, os campos lavrados, os extensos alagadiços de arrozal, o mangue da beira-rio e há as ilhas, um verdadeiro Éden com os seus palmares. Não se esquece a referência ao Macareu, aos rápidos do Saltinho e alicia-se o potencial turista com os seguintes dizeres:
“Ao viajante em breve digressão, mais patente, o pitoresco das casas circulares, primitivas, de estacaria e capim, paus a pique (estacaria e barro) ou da casa retangular, de adobes, mais recente, de influência europeia, umas e outras de cobertura palhiça com ingénuas pinturais murais exteriores, de colorido vermelho nos Felupes, da região fronteiriça do Norte litoral, ornamentações geométricas brancas, de conchas do mar, nos Biafadas; exuberantes e policromas pinturas exteriores e interiores, de vivas colorações, nos Bijagós, tão misteriosos e ensimesmados)".

Dá-se um quadro sobre os costumes, guerreiros ou pacíficos, batuques e cerimónias, vestuário e atitudes, tão dissemelhantes do Felupe ao Balanta, dos Manjacos aos Bijagós, dos Nalus aos Fulas e Mandingas e outros – os muçulmanos solenes, em suas largas e brancas, ou de cor, bordadas ou lisas, vestimentas e babuchas; os exíguos saiotes de ráfia dos ilhéus; a transição indumentária, sobretudo dos Papéis, mais em contacto de permanência com o europeu; o terçado rude e o arado em remo dos agricultores da baixa Guiné; os alfanges e punhais embainhados em couro trabalhado das gentes pastoris e seareiras da zona interior. Tece-se uma exaltação da paisagem humana que completa a paisagem natural e que faz de uma visita à Guiné um prazer turístico. E os aliciantes turísticos são denunciados:
“A Guiné Portuguesa oferece ao turista e visitante o atrativo de caça que, embora não seja tão variada como nos territórios portugueses de Angola e Moçambique, tem muitas espécies como o hipopótamo, a boca-branca, o sim-sim, porco-do-mato, o elefante raro, a onça, a gazela de lala, a garça, o búfalo, o onbi, a galinha-azul, e animais nocivos como leão, leopardo, lince, hiena, cão-do-mato, chacal, cinécefalo, crocodilo, cobras e serpentes, aves de rapina, etc. As reservas de caça existentes: Mata de Cantanhez (na área do posto administrativo de Bedanda, concelho de Catió), Lagoa de Cufada, na circunscrição de Fulacunda e zona abrangendo uma faixa de 5km em volta do parque da praia de Varela".

Há lugares dignos de menção em Bissau, Bafatá, Bolama, Bijagós, S. Domingos e Fulacunda, o visitante tem monumentos para contemplar, com destaque para a fortaleza de S. José de Bissau, mas há monumentos em Bolama, em Bafatá, em Mansabá (ao alferes Figueira, morto nas guerras de pacificação), em Bubaque, monumento a Gomes Baleeiro (descobridor e explorador do arquipélago dos Bijagós), bem como os padrões comemorativos do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, em Bissau, Cacheu e Farim; são recomendadas visitas a várias pontes e põe-se ênfase nas praias (Varela, Tor, no Biombo, Nova Ofir, em Bolama, Bruce, em Bubaque, Tropical, na área do posto de S. João); indicam-se ainda duas piscinas, em Farim e Bafatá, destacam-se as vias de comunicação, os transportes aéreos e os portos; faz-se também menção à emissora provincial da Guiné Portuguesa; à biblioteca do Museu da Guiné, com um acervo de 14 mil volumes, à imprensa existente (Boletim Oficial, O Arauto, O Bolamense, o Boletim Cultural da Guiné e o Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné; não se discura a referência a grupos ou clubes, a casa de espetáculos e a oito hotéis localizados em Bissau, Bolama e Bafatá.

A iniciativa deste anuário turístico foi do Centro de Informação e Turismo da Guiné Portuguesa, pergunta-se, com efeito, quem seria o seu destinatário quando em 1964 a Guiné já sofrera uma poderosa separação de águas, era totalmente impensável estar a propor a quem quer que seja tais aliciantes turísticos. Fica-se com a convicção de que este projeto datava de tempos anteriores a 1963, quando foi editado o anuário seria simplesmente macabro imaginar aliciantes turísticos desde a caça a muitas daquelas viagens por meios rodoviários e até ao desfrute de valiosos recursos naturais como a Lagoa de Cufada.

Daí o enigma (aparentemente irresolúvel) desta edição.


Descoberta da Guiné, tapeçaria de Renato Torres, Fábrica de Tapetes de Portalegre
Vista parcial de um dos jardins do Palácio do Governador
_____________

Nota do editor

Último post da série de 21 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25864: Historiografia da presença portuguesa em África (437): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25864: Historiografia da presença portuguesa em África (437): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
É inegável que o texto elaborado pelo comerciante francês Georges Courrent visava dar um quadro atrativo a potenciais investidores que desconheciam as potencialidades e oportunidades que o autor relata com um certo entusiasmo: uma Guiné com a reforma administrativa, pacificada, baixas tarifas aduaneiras, uma agricultura atraente, etc; deu-se ao trabalho de ilustrar este rincão colonial, explica cuidadosamente como se fazem as ações comerciais na Guiné, disseca convenientemente o regulamento aduaneiro e termina aludindo a projetos de lei que estavam naquele momento a ser apreciados no Parlamento sobre o novo modelo de administração e de organização financeira; há sempre uma tecla em que insiste; a prosperidade da Guiné é incontestável. O artigo é publicado em abril, em agosto começa a Primeira Guerra Mundial, e lembrei-me de que valia a pena pôr em cima da mesa o contraditório. E deste contraditório fui buscar os relatos do chefe da delegação do BNU em Bolama a partir de 1917, a imagem que ele dá diverge completamente: os Bijagós estão sublevados; os governadores são ineptos, uns atrás dos outros; o comércio de Bolama começa a ter um forte e temível concorrente, Bissau; a inflação arrasou as economias locais; o BNU, também funcionava como casa de penhores, encheu-se de joalharia e ourivesaria. Enfim, as previsões do Sr. Courrent não bateram certo.

Um abraço do
Mário



Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2)

Mário Beja Santos

Confesso que foi uma agradável surpresa conhecer este estudo do comerciante francês Georges Courrent publicado numa importante revista destinada a leitores com conhecimento do mundo colonial sobre o que ele entendia ser mais útil dar como síntese da Guiné Portuguesa. Vale a pena ter em conta a data da edição, 15 de abril de 1914. Considero significativo não só o que ele escreve como a qualidade das imagens que ilustram o seu trabalho, julgo que algumas delas são mesmo inéditas, e até mesmo de grande beleza, como é o caso do efeito do tornado no porto de Bissau, a vista de Bissau tomada numa embarcação no Geba, o interior da Fortaleza de S. José, o mapa que ele apresenta e que diz ser do serviço geográfico da revista, a deslocação de um efetivo militar dentro de Bissau, o que seria a vila indígena de Bambadinca e o aldeamento indígena de Geba.

Recapitulando, dá-nos a situação geográfica, expõe os serviços marítimos, as comunicações e transportes no interior (diz expressamente que o transporte de mercadorias terá de ser feito em pequenas embarcações e que a construção de vias-férreas é quase impossível e no arquipélago dos Bijagós seria totalmente inútil). Elenca os principais produtos exportados e dá um quadro aprofundado da natureza das operações comerciais e como elas podem ser efetuadas; lista as casas comerciais e companhias instaladas na Guiné Portuguesa, numa lista de oito a A.S.G., de Lisboa, aparece em penúltimo lugar. Revela-se seguro quanto à natureza do seu auditório, fala das operações bancárias, das tarifas aduaneiras, dá-nos o quadro dos produtos exportados e do movimento comercial entre 1903 a 1912; apresenta o novo regime aduaneiro e as respetivas taxas, tudo esmiuçado.

Faz um destaque à administração colonial portuguesa. Começa por dizer que o ministro das colónias acabara por enviar ao Parlamento português dois importantes projetos lei, um relativo à administração das possessões ultramarinas e o outro à sua organização financeira. Tais projetos baseiam-se no princípio de que as colónias são parcelas do território nacional, indissoluvelmente ligadas à metrópole, constituindo entidades administrativas autónomas. E faz menção de referir que o sistema ainda em vigor caracteriza-se por uma assimilação sem discussão e uma centralização excessiva. Se aprovados estes projetos de lei, haverá em cada uma das colónias um governador encarregado da administração geral, tudo na dependência do respetivo ministro; em cada uma das colónias haverá um conselho de governo que compreende os representantes dos interesses locais, tal conselho deliberará em sintonia com o governador; o conselho terá alguns membros eleitos mas haverá também na sua composição funcionários civis e judiciais; afigurar estes projetos lei, os antigos conselhos de província serão transformados em tribunais encarregados de conhecer os contenciosos administrativos e fiscais; as colónias são divididas em distritos tendo à frente os governadores distritais, haverá depois as circunscrições lideradas por administradores ou então por comandantes militares.

O regime financeiro está estabelecido nestas mesmas bases de descentralização, cada colónia estará investida de autonomia financeira, o mesmo é dizer que será dotada de personalidade jurídica, agirá sobre a sua própria responsabilidade; compete ao conselho de governo elaborar o orçamento. Para Georges Courrent era importante lembrar aos portugueses que as instituições valem sobretudo pelos homens que as dirigem. Quanto à reforma administrativa, não se pode eludir a questão que está estritamente ligada ao valor económico da região. Eis a síntese do que este negociante francês publicou antes da Primeira Guerra Mundial numa importante publicação francesa destinada a potenciais investidores, certamente também analistas da política colonial e funcionários. Meditando no quadro deixado por Georges Courrent, lembrei-me de um trabalho que publiquei há anos: Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019. Desapareceu imensa documentação dos primeiros anos do BNU, em termos cronológicos, a primeira documentação interessante data de 2017, o chefe da delegação de Bolama estava certamente autorizado a dizer verdades com punhos, como deixou escrito e eu limitei-me a transcrever: a qualidade dos governadores era péssima, vinham impreparados e regressavam impreparados, mostrando-se incapazes de inverter a degradação dos serviços públicos, gente ronceira, pouco amiga do trabalho, praticamente inerte na época das chuvas; comerciantes estrangeiros astutos, nada interessados em projetos agrícolas ou industriais, simplesmente à procura de bons preços para os produtos da terra e para as mercadorias vindas do estrangeiro; o comerciante francês em nenhuma circunstância falava em tumultos e sublevações, elas aconteciam ainda nos Bijagós, a campanha do capitão Teixeira Pinto fora determinante para a pacificação dos regulados da ilha de Bissau.

Há que fazer justiça ao senhor Courrent, ele não podia prever que dentro de meses se iniciaria uma guerra mundial, era inevitável deixar marcas na Guiné, como deixou: os interesses alemães, altamente representativos, foram neutralizados; manteve-se um bom quadro de exportações, mas perdera-se o principal mercado das oleaginosas, que era o alemão; a inflação delapidou quem tinha dinheiro, o BNU, que na época funcionava também como uma casa de penhores, encheu-se de joias e ourivesaria, o sistema de funcionamento deste comércio baseava-se nas puras operações de intermediários, havia que pagar aos produtores, os comerciantes pagavam depois das operações de exportação. Vai-se viver um período calamitoso, aparecerá nos anos 1920 um governador de mão cheia, Vellez Caroço, tentará um saneamento financeiro, mas sempre com os comerciantes a queixarem-se para Lisboa. A época áurea que o senhor Courrent preconizava não aconteceu, e a falta de infraestruturas que ele observou ao longo do seu estudo também demorou a ser invertida, Lisboa exigia um controlo rigoroso das contas, o dinheiro vai aparecer com o Comandante Sarmento Rodrigues, será ele o Governador que lançará a Guiné num modelo de progresso, de desenvolvimento, de valores culturais e até da promoção dos direitos humanos.

_____________

Nota do editor

Último post da série de 14 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25841: Historiografia da presença portuguesa em África (436): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25841: Historiografia da presença portuguesa em África (436): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Uma verdadeira surpresa, este artigo escrito por um comerciante francês instalado na Guiné, vaticinando, em abril de 1914, que a colónia portuguesa está na rampa de lançamento, tem a prosperidade ao seu alcance; é um artigo de comerciante para investidores, está magnificamente ilustrado, peço a atenção do leitor para um tornado no porto de Bissau, o que era o cais de Bissau, jamais tinha visto uma imagem de Bissau tirada do mar com esta precisão, estima a população guineense em 800 mil habitantes, não descura as referências aos serviços marítimos e outras comunicações, o que se importa e exporta, ficamos a saber que o comércio está praticamente em mãos internacionais, que a única entidade bancária é o Banco Nacional Ultramarino, elogia as tarifas aduaneiras, informa os interessados sobre a evolução comercial e os dados económicos entre 1903 e 1912. Por pura curiosidade, irei adiante referir o que fui apanhando nos relatórios da delegação do BNU em Bolama no período do fim da guerra, as coisas já não se passavam exatamente assim.

Um abraço do
Mário



Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (1)

Mário Beja Santos

Mão amiga na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa pôs-me na frente a revista La Dépêche Coloniale, com data de 15 de abril de 1914, a reputada publicação traz um estudo sobre a Guiné Portuguesa. Não escondo a satisfação de ver imagens que desconhecia totalmente e conhecer a opinião de um negociante que conheceu com alguma profundidade a colónia. Vale a pena aqui fazer uma síntese, só lastimo é não se poder tirar partido das esplêndidas imagens que o autor captou, logo na primeira página o cruzador português D. Luís, a imagem de uma família mandinga e caçadores que apanharam duas gazelas.

O autor situa a Guiné, refere os seus rios (dizendo que os principais são o Geba, o Farim e o Grande, e os secundários o Corubal e o Cacine, o que não é verdade); refere que a diocese depende de Cabo Verde, tal como a Justiça é exercida por um tribunal dependente de Lisboa; falando do Exército, o contingente militar era constituído por quatro companhias de infantaria indígena e duas secções de artilharia. Os produtos de exportação eram a borracha, a cera, o coconote, o amendoim, a cola e os couros; falando da geografia, alude à parte continental e a parte insular; as povoações principais ao tempo eram Bolama, Bissau, Cacheu, Farim, Buba, Geba e Bafatá, e estima a população em 800 mil habitantes.

Depois de nos dar um quadro das etnias existentes apresenta-nos o contexto religioso, dominado pelo animismo e o islamismo, mas não esquece os Grumetes e a sua ligação à religião católica; observa que a agricultura não conhece o desenvolvimento, limitando-se às culturas indígenas, onde preponderam o arroz, o milho, o algodão e o amendoim, a indústria era praticamente inexistente; apresenta-nos Bolama, Bissau e Cacheu. Ficamos a saber quais eram os serviços marítimos da época: o serviço regular era garantido pela Empresa Nacional de Navegação, uma vez por mês, e dá conta como o correio também podia ser expedido através de Dacar, menciona os vapores alemães da companhia Woermann que tocam Dacar e podem receber o correio vindo de Bissau; havia o cabo-submarino da companhia inglesa West-Telegraph Company, e uma linha telegráfica terrestre que ligava a capital ao interior (Farim, Bafatá, Bambadinca, Xitole, Buba e Bolama); na medida em que este estudo saiu do punho de um comerciante, é compreensível que ele enfatize os principais lugares de embarque e desembarque, a natureza das comunicações internas, os principais produtos exportados, chama a atenção quanto ao valor de certos produtos como o coconote, com grande procura no mercado alemão. Dá-nos a lista das casas comerciais e companhias instaladas na Guiné: C. F. A. O., Marselha; a Companhia Franco-Escocesa, Paris e Londres; C. F. C. A., Paris e Antuérpia; N. S. C. A., Bordéus e Nantes; R. T. e Companhia, Hamburgo; R. P., Hamburgo; A. S. G., Lisboa; S. C. C., Paris e G. C., Bordéus-Lisboa. Ficamos igualmente a saber quais as principais mercadorias importadas: os tabacos e os petróleos vinham da América mas com trânsito por Hamburgo; os tecidos eram provenientes de Inglaterra e da Bélgica; as bebidas alcoólicas e a quinquilharia vinham de Hamburgo. Os principais artigos ditos de frete, tinham o seu embarque quase exclusivo em Hamburgo. Refere as épocas das operações comerciais, a venda feita pelos indígenas aos comerciantes, todas as operações comerciais são feitas diretamente com os indígenas, através do escritório principal ou das suas sucursais.

Peço a atenção do leitor para as imagens que o autor nos dá do cais de Bissau ao tempo e a imagem fotográfica de um tornado tirada no porto de Bissau. Refere detalhadamente como se fazem as operações comerciais, lembra os interessados que as operações bancárias são feitas através do Banco Nacional Ultramarino, talvez para surpresa de muitos dos leitores dirá que as tarifas aduaneiras da Guiné eram muito moderadas, comparadas com as das colónias francesas, com baixos direitos de importação, dá-nos quadros das receitas alfandegárias, dos principais produtos exportados entre 1903 e 1912 e também o movimento comercial relativo a esse período.

Atenda-se a um aspeto curioso por ele referido. Durante muitos anos, os números da importação eram muito superiores ao da exportação, as casas comerciais faziam as suas transferências através do Banco Nacional Ultramarino; hoje é totalmente diferente. Os números da exportação equivalem-se ao da importação, isto devido ao facto de o comércio ter aumentado exponencialmente. Para o autor, a Guiné estava em plena evolução, mesmo modesta, a sua tarifa aduaneira tinha-se saldado em boas receitas. Segundo este comerciante francês, o futuro da colónia apresentava-se seguramente sob os mais brilhantes auspícios.

Nunca esquecendo que o seu estudo se destina a informar potenciais investidores, dá-nos os regulamentos e as tarifas aduaneiras, os principais artigos do novo regime aduaneiro e os direitos específicos.

Não deixa de ser curioso o mapa que ele insere no seu artigo, uma leitura atenta permite-nos ficar a saber que a Norte, indo do Cabo Roxo até à região do Gabu, os pontos mais importantes além de Varela eram Cacheu, Barro, Farim, Geba, Dandum, Coiada, Canquelifá, descendo, destacam-se Fá e Bambadinca, Gole (Porto Gole), temos depois por grau de importância as ilhas de Jata, Pecixe e Bissau; e falando da região Sul, independentemente da pontuação que ele faz sobre o Bijagós, as povoações que ele destaca são Grampará, Buba, Bolola, Contabane, Cumbijã, Cacine, há imagens surpreendentes da vida de Bissau, das tabancas e, por último, ficamos com duas imagens, uma seguramente inédita da aldeia indígena de Bambadinca e a fotografia do senhor Georges Courrent, com o seu casaco bem assertoado, gravata à maneira, o bigode aparado e o cabelo parece ter sido alisado por um profissional.

(continua)
_____________

Nota do editor

Último post da série de 7 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25817: Historiografia da presença portuguesa em África (435): Quando o Governo de Cabo Verde só noticiava as receitas alfandegárias da Guiné (Mário Beja Santos)