Como qualquer um, eu lia mais ou menos o que aparecia. Confesso que não me mandavam nada, mas lia aquilo que os outros camaradas me emprestavam.
Diga-se em abono da verdade que passava praticamente todo o tempo que estava no quartel, a ler, porque desde o início da comissão estava "dado" à Secretaria da Companhia, função que mantive mesmo após ter passado a operacional pelo acumular das baixas nos efectivos no pelotão e não só.
Lia Ordens de Serviço, Notas e Circulares, Autos disto e daquilo, etc.
Nas horas vagas, mesmo vagas, tão poucas elas foram, lia o que aparecia, revistas, jornais, livros, etc.
Não posso esquecer a leitura da imensa correspondência que recebia. Acho que posso afirmar, sem faltar à verdade, que era o campeão da 2732. Só me vencia, às vezes, o camarada Branco do Pel Art. A minha noiva escrevia-me seis dias por semana e os meus pais uma a duas vezes. Tinha ainda uma amiga no Algarve (Portimão) e outras familiares que me escreviam regularmente. Ainda trocava correspondência com camaradas em Moçambique e noutros SPMs da Guiné.
Das leituras avulsas, lembro-me de uma notícia incluída naquelas folhas que nos mandavam de Bissau, com notícias de todo o mundo, onde aparecia um tal Vignal (ou Vignale) que tinha protagonizado um assalto ou coisa parecida em França. Claro que naqueles dias fui conotado como parente daquele sujeito nada recomendável.
Outra notícia menos abonatória ao "meu bom nome", esta vinda em revista, foi o caso de um conhecido jogador de futebol, natural de Matosinhos, por acaso também meu contemporâneo na Escola Industrial, então atleta do clube da águia, que supostamente terá torturado uma mulher da noite lisboeta. - Eh pá, cuidado com os gajos de Matosinhos, diziam-me.
Na foto em cima, tirada de certeza num domingo, estou a ler um livro que fez parte da minha formação escolar, dos quais levei alguns para a Guiné para não esquecer o que tinha aprendido. No caso é o livro de Laboratório de Electricidade (já com capas não originais), do qual os camaradas que passaram pelo Curso de Formação de Montador Electricista, se lembrarão, tinha capas tipo cartolina encarnadas.
Este livro que foi e veio da Guiné comigo, que "resistiu" a imensos ataques ao aquartelamento de Mansabá, acabou por "morrer afogado" em Leça da Palmeira. Passo a explicar.
O escritório onde trabalhava ficava a cerca de 100 metros do mar, separado do areal por uma muralha que, supostamente, nos defenderia do mar em caso extremo.
Num temporal, de intensidade felizmente nunca mais repetido, ocorrido na madrugada do dia 13 de Fevereiro de 1979, o mar, coisa nunca vista até então, galgou toda a praia, saltou a muralha, partiu portas e janelas do edifício, entrou sem pedir licença e mudou o mobiliário da minha sala para as salas contíguas mais recuadas. Por azar meu, a minha secretária que estava situada próximo das janelas por onde a água entrou, partiu-se, sendo despejados todos os meus haveres, entre eles os meus livros técnicos escolares, e entre eles o meu companheiro de comissão de serviço. Nunca mais lhe pus a vista em cima.
Voltando às leituras na Guiné, mal cheguei a Bissau, depois de abandonarmos Mansabá, logo no dia 29 de Fevereiro de 72, comprei um livro, na época um "best-seller", que mais tarde deu origem a um filme, o "Papillon" de Henri Charrière, que, acusado de homicídio, protagonizou uma das mais fantásticas fugas da Guiana Francesa. Viria a falecer a 29 de Julho de 1973, vítima de cancro.
Para provar que além de ler, sabia escrever, anexo foto.
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá, 1970/72
Mansabá - Arma em repouso porque é hora de escrever à família
____________Nota do editor
Último poste da série de 14 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12447: O que é que a malta lia, nas horas vagas (16): A correspondência que me era enviada, e os autores Ramiro da Fonseca, José Régio, Vergílio Ferreira, etc. (António Eduardo Ferreira)