1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2019:
Queridos amigos,
Juntam-se últimas considerações e achegas para a
interminável polémica sobre o racismo no colonialismo português. Como
tem escrito o estudioso e romancista José Pedro Marques, há que
contextualizar em todas as circunstâncias as caraterísticas do nosso
colonialismo e fugir aos chavões de críticas desmioladas. Igualmente, na
minha opinião devemos saber afrontar as práticas racistas que
exercemos, em vários continentes.
Junta-se um conjunto de imagens sobre
marcos de fronteira em chão Felupe, é certo e seguro que haverá
surpresas, o blogue fica mais rico, como também a cultura
luso-guineense.
Um abraço do
Mário
A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (7)
Beja Santos
A instituição esclavagista vem da noite dos tempos, da captura dos vencidos que se tornam servos, mão-de-obra ou gado. Foi matéria muito delicada para as principais religiões teístas, começaram por não querer afrontar os proprietários dos seus servos, as posições polémicas virão com padres como Las Casas ou António Vieira. Houve escravatura nas naves romanas, no trabalho intelectual, na prostituição, foram práticas universais, dispomos de relatos que não se confinam à Grécia ou a Roma, nem aos mongóis nem aos potentados africanos. O tráfico negreiro assumiu novas proporções com os Descobrimentos Portugueses e com o Novo Mundo, os Estados sulistas norte-americanos dele beneficiaram e foi por causa da abolição da escravatura que se envolveram na guerra da Secessão. Discutiu-se se os negros e os índios tinham alma. E na alvorada da ciência antropológica começaram os estudos das raças e procurou-se argumentação sólida para definir as bases das raças superiores e das raças inferiores. A ascensão meteórica dos direitos humanos leva a que hoje se façam críticas completamente descontextualizadas, e nalgumas delas vem o colonialismo português, que usou o tráfico negreiro, a exploração mais despudorada desta mão-de-obra e houve práticas raciais mesmo que, como se verificou na época dos totalitarismos nazi-fascistas, nunca fomos mais longe de que num conceito completamente nebuloso da raça portuguesa, nunca ninguém teve o desplante de nos arregimentar ao arianismo, porque todos sabemos quem foram os nossos ancestrais ao longo dos milénios em que se veio a formar o português em que nos tornámos.
E curiosamente, em tantos casos do colonialismo praticado pelos portugueses juntaram-se escravos e gentes de outras origens, como vamos agora apreciar com a escravatura em S. Tomé no século XVI, de um estudo de Isabel Castro Henriques (publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6-7, 1987).
Diz a autora que o processo de colonização fez apelo a uma população heterogénea: portugueses, fundamentalmente degradados, judeus castelhanos, comerciantes portugueses, castelhanos, franceses e genoveses, escravos negros da Guiné, Benim e Manicongo, assim arrancaram as plantações do açúcar, vieram depois plantas importadas.
E regista-se um regime de trabalho bem singular, e a autora cita um estudo de Francisco Tenreiro:
“Os negros vinham do Benim, da Guiné e do Manicongo e o seu regime de trabalho era muito curioso. Só se aceitavam negros acasalados que tinham por obrigação trabalhar toda a semana para o senhor, excepto aos sábados que reservavam para si próprios. Com quatro dias mensais inteiramente livres pagava-se o trabalho árduo das semanas; o senhor não fazia qualquer despesa com eles com vestuário, alimentação e habitação. Eles próprios providenciavam no dia livre semanal às suas necessidades… Relacionando este regime de trabalho com as ordens dadas aos vários donatários no sentido de serem estimuladas as ligações entre brancos e negros e devendo considerar-se livres as mulheres e os seus ‘frutos’, sou levado a concluir que o africano, por esses tempos de S. Tomé, não estava sujeito a um regime de escravidão pura; era antes um servo a quem se pedia trabalho, mas a quem por outro lado se permitia uma relativa liberdade na prática dos seus hábitos”.
Se bem que houvesse ordens régias proibindo as relações dos portugueses com mulheres negras, eram ignoradas, constituiu-se um grupo mestiço, que terá um papel fundamental na reprodução do sistema esclavagista e a autora conclui que esta singularidade da escravatura em S. Tomé deve ser analisada não à luz de comparações com situações posteriores mas de acordo com a realidade económica do século XVI em que o escravo africano é fundamentalmente procurado como mão-de-obra e não ainda, como acontecerá um século mais tarde, como mercadoria cuja transação iria permitir lucros fabulosos. A matéria da escravatura chega aos nossos tempos e é relembrada, até porque há novas práticas de servidão, roubo de seres humanos para novas rotas da escravatura, para a prostituição e até o tráfico de órgãos humanos. A arte, a todos os níveis, colabora nessa lembrança. Lembro o monumental trabalho de Jordi Savall,
“As rotas da escravatura, 1444-1888”, à frente da Capela Real da Catalunha, Hespério XXI, até nele se refere o pungente relato de Zurara, na
Crónica do Descobrimento e a Conquista da Guiné sobre a chegada de 235 escravos a Lagos, em 1444. Jordi Savall lembra que há atualmente mais de 21 milhões de escravos, rememora o passado de todo este tráfico, lembra a costa ocidental africana, mas também o mediterrâneo, a escravatura ao longo dos séculos, dá-nos a sua cronologia, e depois toda a música escolhida tem a ver com estas rotas. Esta infame mercadoria que tem mais de 5 mil anos, que já existia em África antes das expedições massivas de portugueses e de espanhóis traduz-se em música para dar a conhecer os dados essenciais de tão funestos acontecimentos em que a música assume uma surpreendente vitalidade e emoção graças a estas músicas conservadas das antigas tradições dos descendentes dos escravos: desde as costas da África Ocidental, do Brasil, do México, das Caraíbas, Colômbia e Bolívia, mas também do Mali, de Marrocos e Madagáscar, um diálogo com as formas musicais hispânicas inspiradas nos cantos e bailes dos escravos e dos indígenas, em consonância com as tradições africanas, mestiças ou índias.
E escreve:
“Ao mesmo tempo que rendemos uma emotiva homenagem a este período sombrio através das músicas dos descendentes dos escravos, também queremos apelar para que cada um de nós tem o dever de reconhecer a extrema inumanidade e os terríveis sofrimentos causados a todas as vítimas daquele horrível comércio”.
E não deixa de observar que a tragédia continua para milhões de seres humanos de todas as idades, a nossa tolerância devia ser zero e este livro CD-DVD procura contribuir para a continuação desse combate.
Aqui se põe termo a uma curta série de textos em torno do colonialismo e das práticas raciais portuguesas, não esquecendo que o racismo assume várias caras, em que a discriminação e o preconceito são as mais evidentes.
É com enorme satisfação que se junta o esplêndido contributo da doutoranda Lúcia Bayan que gentilmente oferece ao blogue um conjunto de imagens referentes a marcos fronteiriços na região do seu estudo, o Chão Felupe, seguramente são imagens que vão impressionar muitos de nós. E a Lúcia Bayan, como nos cabe, se agradece sentidamente o valor de tal oferta, é não só um enriquecimento para o nosso blogue como para a cultura luso-guineense.
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Marcos fronteiriços em imagens, Lúcia Bayan
Como sabemos, os marcos fronteiriços identificam limites de uma linha de fronteira terrestre entre países. São geralmente feitos de pedra ou betão, com a identificação e data de colocação gravadas, e colocados em pontos críticos da linha de fronteira.
Por razões políticas e de segurança, a fronteira entre a Guiné e o Senegal foi demarcada tardiamente. Por um lado, Portugal, em Maio de 1886, cedeu a Casamansa à França em troca do apoio deste país para a pretensão portuguesa ao território do Mapa Cor-de-Rosa, e da região de Cacine, no Sul. Os trabalhos de delimitação da fronteira de Casamansa iniciaram-se em 1888, mas só terminaram em 1905, cerca de 20 anos após o acordo entre Portugal e França. Sobre esta questão ver Esteves, Maria Luísa (1988), A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, Lisboa, IICT-INEP.
Por outro lado, os Joola sempre dificultaram a entrada no seu chão. Primeiro aos exploradores e comerciantes e depois às autoridades coloniais. Lembremo-nos do célebre "desastre de Bolor", em 30 de Dezembro de 1878. René Pélissier, em História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936, (1989), Lisboa, Estampa, apresenta uma longa lista de acções militares portuguesas em chão Felupe, com vitórias e derrotas para ambos os lados, sendo que a última foi em Março de 1935.
Depois de "pacificados", os Felupe adoptaram a "revolta pacífica", palavras de Pélissier. Um bom exemplo é a história, que já relatei, sobre o marco colocado perto de Suzana, nas comemorações do V Centenário da chegada de Portugal à Guiné (1946), pressupostamente no local onde terá existido a primeira tabanca felupe, denominada Sabotul.
A linha fronteiriça entre o Senegal e a Guiné-Bissau atravessa o chão de dois subgrupos Joola, os Baiote e os Felupe. Os limites do Chão das sociedades tradicionais africanas não são fixos, mas podemos dizer que a linha fronteiriça que atravessa este Chão começa com o marco n.º 158, situado a cerca de 7 km a sul de São Domingos, e o último é o marco n.º 184, junto ao Cabo Roxo, sendo que o marco n.º 175 separa o Chão destes dois subgrupos Joola. Ou seja, do marco n.º 158 ao marco n.º 175, a linha fronteiriça atravessa Chão Baiote e, deste marco até ao marco n.º 184, atravessa Chão Felupe.
O meu trabalho de terreno permitiu-me conhecer e atravessar por diversas vezes a linha fronteiriça em zonas juntas a alguns destes marcos, mais precisamente os marcos 173, 175, 180 e 184. A meu ver, as fotos destes marcos, além do seu valor simbólico, mostram a história e o valor social que adquiriram.
O marco 184, instalado junto ao Cabo Roxo, foi recuperado durante a guerra colonial, como se pode ver na inscrição.
Após a independência da Guiné-Bissau, a zona onde está este marco, bolanhas a cerca de 1 km a sul de Kabrousse, início da zona turística do Senegal, passou a ser gerida, não oficialmente, mas na prática, por este país. A delimitação fronteiriça foi mesmo discutida entre Senegal e Guiné-Bissau, durante as disputas, entre estes dois países, para a criação da Zona de Exploração Conjunta (ZEC) de petróleo, criada em 1993.
É uma zona calma e com pouco trânsito de pessoas.
Do marco 180 pouco resta! É também o mais difícil de encontrar, porque está escondido no mato e porque poucos se lembram dele!
Está situado junto de um caminho, muito percorrido por pessoas a pé, de bicicleta e de moto, que liga as tabancas Basseor, na Guiné-Bissau, e Kahème, no Senegal.
Para os Felupe estas duas tabancas são apenas dois bairros da tabanca Hassuka, a capital religiosa Felupe. Hassuka é constituída por estas duas tabancas e mais Sucujaque, Tenhate e Caroai, na Guiné-Bissau.
Basseor e Kahème, distam cerca de 1,8 km e, como bairros, há uma enorme movimentação entre eles. Além disso, a imagem mostra também que este marco está numa zona de conflito.
De facto, em 22 de Agosto de 1991 houve aqui um grande conflito. Perto de Kahème existia um quartel do exército senegalês que foi atacado pelo MFDC e por habitantes desta tabanca. Em retaliação o exército senegalês destruiu Kahème, matando e prendendo muitos homens. Os sobreviventes fugiram para Caroai e Sucujaque. Kahème permaneceu abandonada até 2012, ano em que a população começou a regressar, para ser possível realizarem a cerimónia de iniciação masculina, o Bukut.
O marco 175 está junto a um caminho que liga Budjim, na Guiné-Bissau, a Youtou, no Senegal, duas tabancas a cerca de 4 km, em linha recta, uma da outra. É uma zona de bolanhas e o caminho que liga estas duas tabancas é, em grande parte, feito pelas divisórias das bolanhas. Por isso, este caminho é, quase exclusivamente, feito a pé pelos agricultores destas bolanhas.
O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água.
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Notas do editor:
Por lapso do editor não foi publicado em tempo útil o 7.º poste de "A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português". Aqui fica a reparação com as nossas desculpas ao Mário Beja Santos.
Postes anteriores de:
6 de novembro de 2019 >
Guiné
61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A
eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1):
Questionário Etnográfico elaborado pelo Capitão Vellez Caroço (Mário
Beja Santos)
13 de novembro de 2019 >
Guiné
61/74 - P20341: Historiografia da presença portuguesa em África (186): A
eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2):
"Portugal Vasto Império", por Augusto da Costa (Mário Beja Santos)
20 de novembro de 2019 >
Guiné
61/74 - P20366: Historiografia da presença portuguesa em África (187): A
eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (3):
"Racismos, Das Cruzadas ao Seculo XX", por Francisco Bethencourt (Mário
Beja Santos)
27 de novembro de 2019 >
Guiné
61/74 - P20389: Historiografia da presença portuguesa em África (188): A
eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (4):
"Portugueses e Espanhóis na Oceânia", por René Pélissier (Mário Beja
Santos)
4 de dezembro de 2019 >
Guiné
61/74 - P20414: Historiografia da presença portuguesa em África (190): A
eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (5): "O
Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017
(Mário Beja Santos)
11 de dezembro de 2019 >
Guiné 61/74 - P20440: Historiografia da presença portuguesa em África (191): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (6): "O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 25 de dezembro de 2019 >
Guiné 61/74 - P20499: Historiografia da presença portuguesa em África (193): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (2) (Mário Beja Santos)