quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20499: Historiografia da presença portuguesa em África (193): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
O Governador Velez Caroço encontrou a Guiné pacificada, ou quase (haverá operações na região Bijagó, ainda insurgente), traz carta branca para pôr cobro à moleza e à corrupção, encontra uma resistência feroz da classe mercantil de Bolama, o Governo de Lisboa está sem dinheiro, a crise financeira na Guiné é acentuada, Velez Caroço toma medidas, verga um antigo Secretário-Geral da Colónia, consegue ultrapassar a questão dos cambiais, caminha sempre em cima da lâmina, reorganiza serviços, lança-se no fomento em plena crise fiduciária.
É o nome sonante da governação republicana na Guiné, bem merecia um estudo mais aturado à sua obra.

Um abraço do
Mário


Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (2)

Beja Santos

A I República não ofereceu grandes vultos governativos na Guiné. A figura excecional, que se irá projetar no trabalho dos governadores seguintes, como Leite Magalhães, Carvalho Viegas ou Ricardo Sá Monteiro, é Jorge Velez Caroço, teve dimensão político-cultural e entusiasmo para deixar obra. Apanhou a paz, tinha suficiente prestígio político (era Senador) para atacar interesses instalados de gente inescrupulosa. E o mais relevante deste relatório, correspondente ao seu primeiro ano de gerência, foi a dinâmica introduzida. Já se falou do saneamento das contas, do seu pensamento sobre a política indígena, vamos continuar. Reorganizou o seu gabinete e a secretaria do Governo.
É neste momento que ele vai afrontar um tabu, a questão cabo-verdiana, veja-se o que ele envia ao Ministro das Colónias:
“Sabido é por todos os funcionários que por aqui têm transitado, que, devido à falta de instrução nesta colónia, não podem os nativos preencher os lugares que vagam nas diferentes repartições, até mesmo os de simples amanuenses. A Província encontrava-se enxameada de empregados recrutados em Cabo Verde e que, com raras exceções, as suas habilitações e competências não iam além das manifestadas pelos nativos. São raros os cabo-verdianos que falam português. A linguagem por eles empregada, até mesmo no desempenho dos seus cargos oficiais, é esse estropiado dialeto que nos envergonha aos olhos dos estrangeiros. O português ouve-se falar em Bolama e Bissau por alguns funcionários e comerciantes portugueses. Os próprios estrangeiros que forçados pela sua vida comercial se vêm obrigados a aprender a língua da colónia aprendem e falam o crioulo, julgando falar o português! A obra de desnacionalização desta colónia era lenta, mas era contínua e persistente. É preciso que não se continue a dizer que a Guiné Portuguesa é uma colónia de Cabo Verde. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres, e assim, prestando-lhe esse serviço, cumprimos ao mesmo tempo um dever patriótico ligando esta região pelo comunismo de ideias, pela conjugação de interesses e pelo amor e veneração à mesma bandeira, à terra onde nascemos e que para todos, europeus e coloniais, será sem distinções mãe extremosa”.

Velez Caroço estudara os dossiês à exaustão, daí a profundidade com que fala dos serviços da Fazenda, da política aduaneira, do movimento comercial e marítimo, dos serviços de fomento da Província, cuidando até ao pormenor do que se tinha feito nas obras públicas, satisfeito com os serviços novos, com a radiotelegrafia, registando o que se estava a fazer na saúde e nos serviços da Marinha, lembrando que se concluíra o edifício do Observatório Meteorológico em Bolama, bem como a modernização que puder imprimir aos serviços militares.
Dá igualmente conta das explorações agrícolas, é interessante o que ele nos diz:
“As explorações agrícolas mais importantes da Província são as existentes na região de Bambadinca-Bafatá. Entre elas destaca-se a dirigida pela Companhia de Fomento Nacional, que na sua exploração tem já empregado quantiosas somas. Todas estas explorações são dignas de protecção, pois do seu desenvolvimento resultarão fatalmente grandes benefícios para a Província, ensinamento para o indígena, familiarizando com os modernos engenhos, aperfeiçoadas alfaias agrícolas, emprego de tracção animal, aperfeiçoamento da pecuária, modernos processos de sementeira de arroz, cana-sacarina, milho, etc., serração de madeiras, construção de carros – tanto na parte referente a obra de carpintaria como na relativa a ferragens”.

Debruça-se sobre a pecuária, os correios e telégrafos, o orçamento colonial, exalta a honestidade de funcionários cumpridores, enumera o muito que há a fazer no setor da saúde; mais adiante, analisa os serviços da Marinha e os melhoramentos que prevê mandar executar.
E deixa um retrato duríssimo sobre os serviços militares:
“Encontrei as unidades militares da Província em condições de não poderem prestar qualquer serviço de valia, caso a elas tivéssemos de recorrer, quer para a manutenção da ordem nas populações urbanas, quer as tivéssemos de empregar para dominar qualquer revolta do gentio.
Os soldados não têm disciplina, não tinham instrução militar, nem mesmo sabiam fazer uso da arma que lhes estava distribuída. Mantinham-se as aparências, porque os indígenas são respeitadores da autoridade do branco e isto, para olhos profanos, podia dar a ilusão de haver disciplina militar. Afinal, eles distinguiam-se dos outros indígenas, simplesmente porque vestiam uma farda de caqui, em geral mal feita e deselegante.
Impunha-se uma nova organização acabando com a caótica composição das companhias mistas de infantaria e artilharia que ninguém sabe para que serviam, desdobravam-se em uma companhia de artilharia de guarnição com sede em Bissau, e em duas companhias de infantaria indígena, uma com sede em Bissau, outra em Bolama.
A instrução dos quadros tem sido lamentavelmente descurada. As exigências de competência e aptidão dos postos inferiores das tropas coloniais são mínimas, e assim chega-se a dar ingresso no quadro dos oficiais sem cultura correspondente às exigências do meio social em que vão viver e sem preparação militar para o desempenho das múltiplas obrigações hoje impostas a um oficial”.

É minucioso, daí a relevante importância que tem este documento para o estudo da Guiné no arranque da década de 1920: dá-nos conta do funcionamento da Imprensa Nacional, do municipalismo, do ensino, do fomento, até do pessoal administrativo das circunscrições. No final do seu relatório apensa documentos e dados estatísticos de grande importância. Junta-se uma imagem curiosa do croqui da Guiné Portuguesa em 1922, a ser verdade o que ali se escreve sobre etnias dominantes, os Fulas-Pretos, os Fulas-Forros e os Futa-Fulas ocupariam quase metade do território, Beafadas e Nalus a zona do Quinara e do Tombali, a norte temos Banhuns, Baiotes, Cassangas e depois os Mandingas, até chegar ao Oio, os Papel predominariam em Bissau. É um croqui interessante mas há sérias dúvidas que tenha validade para estudos etnológicos e até antropológicos.


Recomenda-se a todos os interessados por estudos desta natureza que releiam a obra “A Presença Portuguesa na Guiné, História política e militar, 1878-1926”, por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016, a partir da páginas 762, estão ali dados extremamente úteis sobre a governação de Velez Caroço, o relato das hostilidades que encontrou, destaca-se este relatório, as operações militares empreendidas nos Bijagós, a ação de fomento por ele empreendida.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20467: Historiografia da presença portuguesa em África (192): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: