sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20505: Feliz Natal de 2019 e Bom Novo Ano de 2020 (21): Fez-me bem passar por Runa. O coração voltou a sentir "aquela" emoção. Talvez por ser Natal (Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro)



1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 26 de Dezembro de 2019:

Passei ontem por Runa e a memória levou-me de volta aos dias em que, no Hospital Militar, fui enfermeiro "acidental".[1]

Era no Serviço 5, Medicina Geral, no Anexo da Artilharia 1, em que estava colocado, que se prestava assistência aos veteranos da I Guerra Mundial, recolhidos no Lar Militar, em Runa, Torres Vedras.
Iam para consultas médicas, e internamentos se caso fosse. Reclamei para mim a exclusividade do seu acompanhamento.

Era eu que me certificava das horas certas para os medicamentos, que lhes dava as refeições, que lhes dava banho.
A hora do banho era sempre um grande momento.
Passava horas a conversar com eles, a ouvir-lhes histórias antigas, da família e da guerra, mas a hora do banho é que era.

- Ó ti Chico, este... já não serve para nada, vamos mas é cortá-lo que só está aqui a atrapalhar.

Eles morriam de riso e eu de felicidade por os ver sorrir assim. - Talvez por ver neles os meus avós maternos que tanto adorava.

Acontece que fui de férias.
E na volta, falou-me o 1.º Sargento-Enfermeiro que chefiava o Serviço.
- Você arranjou aqui um bonito serviço. Vieram dois homens de Runa, perguntaram por si, disseram-lhes que você tinha ido de férias e eles queriam ir embora, que só vinham quando você cá estivesse.

Fez-me bem passar por Runa.
O coração voltou a sentir "aquela" emoção.
Talvez por ser Natal.
____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

(...)
Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.
Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.

Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.

Assim, longe da vista, Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.
Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.

Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.

Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era, levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3.ª e 5.ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.

Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?
Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.

À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.

Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.

E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.
(...)

Último poste da série de 26 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20500: Feliz Natal de 2019 e Bom Novo Ano de 2020 (20): Mesmo cansados da guerra..., votos de que possamos continuar a partilhar memórias (e afetos)... Ah!, e obrigado por tudo: confiança, lealdade, apoio, "fair play", tolerância, cumplicidade, amizade, camaradagem... (Os editores)

4 comentários:

Manuel Resende disse...

Gosto muito deste meu amigo Armando Pires. Gosto de ver os seus comentários precisos, concretos, curtos e incisivos.
Até parece que foi JORNALISTA... Mas diz as coisas de forma a não ofender ninguém.
Obrigado Armando por todos os teus comentários, e continua...
Grande abraço
Manuel Resende

armando pires disse...

Obrigado, Manuel
Um grande abraço também para ti.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Belo texto, Armando... Bom ano para ti.

Quem passou por Runa, como médico militar, foi o avô do nosso camarada José Belo, o régulo da Tabanca da Lapónia...


https://historiasdetorresvedras.wordpress.com/2012/04/17/aurelio-ricardo-belo-e-a-investigacao-arqueologica/


(...) "Aurélio Ricardo Belo nasceu em Vale de Prazeres, no concelho do Fundão, em 3 de Abril de 1877. Licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa, seguiu a carreira de médico militar, tendo sido director do Hospital Militar de Tomar. Com o estalar da I Guerra Mundial, integra um dos contingentes expedicionários enviados para as colónias, para fazerem face aos constantes ataques das tropas alemãs. Em Angola, dirige o Hospital da Cruz Vermelha de Quelimane e, em Moçambique, na Ambulância da Cruz Vermelha do Niassa e no Hospital de Sangue de Patichinembo.

"A sua acção militar, em África, valeu-lhe diversas condecorações, entre as quais as medalhas de Serviços Distintos no Ultramar, da Vitória, das Campanhas do Sul de Angola e da África Oriental. Na área da Medicina, desenvolveu alguns estudos, que culminaram na publicação da obra Hérnias de Treitz.

"A sua ligação a Torres Vedras viria a dar-se com a nomeação para Director-Médico do Lar de Veteranos Militares (então Asilo de Inválidos Militares), em Runa – onde prestou serviço durante muitos anos -, e com o casamento com D. Valdemira Gomes da Costa Belo, natural do Maxial, onde viria a fixar residência e a estabelecer-se, também, como proprietário rural. Pessoa muito conhecida e estimada na região, participou na vida política local, tendo desempenhado funções de vereador e de administrador do concelho de Torres Vedras, entre 19 de Novembro de 1923 e 1 de Julho de 1926 ." (...)

armando pires disse...

Obrigado, e um Bom Ano, Luís.
Voto que torno extensivo a todos os co-administradores do nosso blog, pedindo que a saúde e a paciência (hihihihi) lhes consinta prosseguir nesta tarefa que, ainda que já hoje se saiba, será para os vindouros o único e rigoroso acervo documental sobre a guerra na Guiné
A todos, o meu Abraço.