1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2024:
Queridos amigos,
Começo por uma manifestação de interesse, no passado domingo, 1 de dezembro, falei desta preciosa obra de literatura memorial, quiçá tratado como romance, pelas gerações vindouras, na apresentação feita na Casa do Alentejo, num mano a mano com Carlos de Matos Gomes. A singularidade detetada em Vindimas no Capim reaparece em força neste Lavar dos Cestos, a própria arquitetura da obra se assemelha com o romance premiado, é um galopar permanente em terras vindimeiras e, súbito, podemos estar em Catió, voltar à recruta e à especialidade, ouvir os estrondos em Gandembel, ter por companhia aquelas noites intermináveis em Mejo, uma emboscada perto do Corredor da Morte, e aquele frio na espinha que acompanhava as colunas de abastecimento para Buba ou Gadamael. Se alguém duvida, ainda hoje, que há memórias da guerra colonial que são inapagáveis, dê-se ao louvor, à exultação, à dor incontida que todo este livro de José Brás encerra,a modos de nos provocar no final, como se estivesse a proferir sermão, se nós não sentimos as liturgias da vinha da guerra, quem afinal, as sentiu? A cada um de nós cabe responder.
Um abraço do
Mário
Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (3)
Mário Beja Santos
Vamos hoje despedirmo-nos de Filipe Bento/José Brás com pompa e circunstância, é uma revisitação do Sul da Guiné, onde passou maus bocados, mas igualmente neste seu livro "Lavar dos Cestos" avulta a memória de acontecimentos da sua juventude em terras vindimeiras. A arquitetura da narrativa da obra é um verdadeiro carrossel de acontecimentos em terras estremenhas, fala-se no padre Gata, no Larixa, no seu avô José da Bonança, no tio Capadinho, na Mulher-João-Granja, no João Malino, no Vidigal Cigano, no Pirolas, no Zé Nicolau, tudo condimentado com intrigas e naifada, e pronto, já está, voltamos a África, mas cuidando sempre de denunciar as relações de poder envolvendo gente sem terra, lembrando tarefas de extrema dureza e até mesmo atentatórias de saúde:
“Nos sulfatos, não imaginam vocês, pelo menos os que nunca ataram esta vidinha das vinhas entre abril e o fim de junho, o cobre da solução cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra no enrugado e os poros. Se passarmos as mãos apenas por água limpa do poço, ou se as deixarmos até ao fim do dia sem uma boa lavagem dos altos para as refeições… ou até ao fim de semana… ou, havia quem fizesse assim, até ao fim da campanha em junho, três meses puxados, aquilo já não eram mãos de gente, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um bicharoco tentacular, um polvo a agitar os seus tentáculos. Eu cá, no fim do dia, lavava as mãos com mijo. Acabava o trabalho, esperava a vontade, afastava-me um pouco da maralha, virava costas a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos.
Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias.”
Estamos agora na Guiné, há ainda a recordação do Padre Francês, era assim que chamavam o Alex, que desertou e foi para Paris, vão suceder-se peripécias, montam-se emboscadas no caminho para o corredor de Guileje, há lembranças do rio Cumbijã, que ele assim apresenta: “É um senhor rio que vai subindo, subindo mapa acima, cruzando terras deste pequeno quase novo país, dando voltas e reviravoltas, a bombordo, a estibordo e de novo a bombordo, por vezes parecendo que volta para baixo, criando e recebendo dezenas de grandes e de pequenos outros rios que se subdividem e se multiplicam eles próprios, alargando chãos, chegando a aldeias, enchendo e vazando bolanhas, terras de arroz, sonhos de gente que se quer ver livre de soldados tugas, de fuzileiros, de barcaças, de canhões e de guerras.”
Mas também descreve lugares: “Catió tinha organização e disciplina militar, com cornetada da alvorada e tudo; casernas alinhadas e com casas de banho mais ou menos; não mostrava ninguém de calção e chinela havaiana; tinha comércios e café com esplanada, e até tinha igreja, aposto que com missa matinal diária, ou pelo menos dominical, arruamentos e valetas com escoamento fluvial, enfim, diziam que ainda assim, com a chatice de um ou outro ataque do inimigo e base agitada para muitas operações de Comandos, de Paraquedistas, de Fuzileiros por esse mato do Cantanhez adentro, aviões, helicópteros, barcos… o eco de muitos combates revoando por matas e ilhotas e tarrafos e bolanhas.”
Há um retorno ao mundo estremenho, novas histórias sobre as rixas, estamos de novo na Guiné, desta vez em Bolama, é este vaivém absolutamente frenético que captura o leitor do princípio ao fim, porque no final da obra José Brás vai inquietar-nos quanto às consequências que podemos tirar das misérias da guerra, das agruras dos vindimeiros, das recordações que ele guarda do Estado Novo, despede-se e deixa-nos no desconforto:
“Perco-me aqui numa embrulhada interminável de historietas sem lhes conseguir encontrar a ligação e o principal fica por contar. E quando comecei a escrever tinha quase a certeza de que iria atingir esse objetivo. Mostrar que a guerra não caiu do céu. Que antes da guerra começar a vida já existia nas aldeias e nas cidades e que não parou só porque a guerra rebentou e os soldados iam e vinham aos milhares. E que nem os soldados nem os pais dos soldados sabiam explicar muito bem porque carga de água, de repente, começou tudo aos tiros. Soldado ia, soldado vinha, quando vinha, e sinais de Pátria não se encontrava senão nas fomes, na enxada e outras ferramentas, e agora, também na G3, no morteiro, na bazuca, no canhão sem recuo e no sangue vertido das veias dos camaradas (…) E vocês viram morrer o Lemos, viram morrer o Cabo Júlio, viram morrer o Madeirense e os dois de Barcelos… Viram é uma forma de dizer!
Mas é a mesma coisa, se sentiram como eu senti ao contar-nos, ainda mais do que senti ao ver de vista mesmo, no ato da sua morte. Não necessitaram sair de casa, claro, para terem notícias circunstanciadas sobre as suas mortes.
Não precisavam de os ver agonizar, de os procurar na mata as pernas decepadas; de os olhar nos olhos na despedida; de os carregar aos ombros ainda vivos já cadáveres inevitáveis; de lhes respirar os pesados cheiros, dias e dias, até que helicópteros lhes retirassem dali as negras caixas; não tiveram de morrer também de medo, de solidão, de impotência, de fome e de sede; de calor e de frio; de mil cansaços; nos estrondos, das rajadas e de semanas inteiras de mato; nos fornilhos de fósforo, nas febres, na água podre da bolanha, nas centenas de quilómetros de picada, de caminhos, de trilhos, de selva subtropical; nas emboscadas, nas flagelações, nas horas a rastejar sobre capim, sobre ramos e raízes, sobre lamas; na lentidão do tempo para o regresso; no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gandembel; na iminência do assalto final; na vertigem da última bala e na brasa do estilhaço… Não tiveram de sentir no ombro a mordidela do arco do caneco pesado na subida inclinada da vinha do Boeiro, nem de fazer ano a ano a viagem de comboio da Beira-Alta para as vinhas do Salazar, em S. Jerónimo, por uma merda de jorna, sardinhas de três meses e feijão-frade com bicho…
Não sentiram nas tripas a frieza metálica do canivete de volta do João Gato, nem o chumbo quente no peito, como o Arlindo.
Não sentiram nunca a alma a estraçalhar-se de desânimo nos trilhos perdidos dos Pirenéus.
Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas das praças de homens; valorados em lanços de coroa ou dez tostões; um quarto de pão escuro na mesa da ceia.
Não sentiram nunca…
Não sentiram vocês…
Não sentiram?
Então quem foi que sentiu?”
Um belíssimo romance de literatura memorial, é o mínimo dos mínimos que se pode dizer de "Lavar dos Cestos", de José Brás.
- José Brás foi Furriel Miliciano de Transmissões na CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras
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Notas do editor
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e
23 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 27 de dezembro de 2024 >Guiné 61/74 - P26319: Notas de leitura (1758): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (7) (Mário Beja Santos)