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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26327: Notas de leitura (1759): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Começo por uma manifestação de interesse, no passado domingo, 1 de dezembro, falei desta preciosa obra de literatura memorial, quiçá tratado como romance, pelas gerações vindouras, na apresentação feita na Casa do Alentejo, num mano a mano com Carlos de Matos Gomes. A singularidade detetada em Vindimas no Capim reaparece em força neste Lavar dos Cestos, a própria arquitetura da obra se assemelha com o romance premiado, é um galopar permanente em terras vindimeiras e, súbito, podemos estar em Catió, voltar à recruta e à especialidade, ouvir os estrondos em Gandembel, ter por companhia aquelas noites intermináveis em Mejo, uma emboscada perto do Corredor da Morte, e aquele frio na espinha que acompanhava as colunas de abastecimento para Buba ou Gadamael. Se alguém duvida, ainda hoje, que há memórias da guerra colonial que são inapagáveis, dê-se ao louvor, à exultação, à dor incontida que todo este livro de José Brás encerra,a modos de nos provocar no final, como se estivesse a proferir sermão, se nós não sentimos as liturgias da vinha da guerra, quem afinal, as sentiu? A cada um de nós cabe responder.

Um abraço do
Mário


Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (3)

Mário Beja Santos


Vamos hoje despedirmo-nos de Filipe Bento/José Brás com pompa e circunstância, é uma revisitação do Sul da Guiné, onde passou maus bocados, mas igualmente neste seu livro "Lavar dos Cestos" avulta a memória de acontecimentos da sua juventude em terras vindimeiras. A arquitetura da narrativa da obra é um verdadeiro carrossel de acontecimentos em terras estremenhas, fala-se no padre Gata, no Larixa, no seu avô José da Bonança, no tio Capadinho, na Mulher-João-Granja, no João Malino, no Vidigal Cigano, no Pirolas, no Zé Nicolau, tudo condimentado com intrigas e naifada, e pronto, já está, voltamos a África, mas cuidando sempre de denunciar as relações de poder envolvendo gente sem terra, lembrando tarefas de extrema dureza e até mesmo atentatórias de saúde:
“Nos sulfatos, não imaginam vocês, pelo menos os que nunca ataram esta vidinha das vinhas entre abril e o fim de junho, o cobre da solução cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra no enrugado e os poros. Se passarmos as mãos apenas por água limpa do poço, ou se as deixarmos até ao fim do dia sem uma boa lavagem dos altos para as refeições… ou até ao fim de semana… ou, havia quem fizesse assim, até ao fim da campanha em junho, três meses puxados, aquilo já não eram mãos de gente, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um bicharoco tentacular, um polvo a agitar os seus tentáculos. Eu cá, no fim do dia, lavava as mãos com mijo. Acabava o trabalho, esperava a vontade, afastava-me um pouco da maralha, virava costas a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos.
Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias.”

Estamos agora na Guiné, há ainda a recordação do Padre Francês, era assim que chamavam o Alex, que desertou e foi para Paris, vão suceder-se peripécias, montam-se emboscadas no caminho para o corredor de Guileje, há lembranças do rio Cumbijã, que ele assim apresenta: “É um senhor rio que vai subindo, subindo mapa acima, cruzando terras deste pequeno quase novo país, dando voltas e reviravoltas, a bombordo, a estibordo e de novo a bombordo, por vezes parecendo que volta para baixo, criando e recebendo dezenas de grandes e de pequenos outros rios que se subdividem e se multiplicam eles próprios, alargando chãos, chegando a aldeias, enchendo e vazando bolanhas, terras de arroz, sonhos de gente que se quer ver livre de soldados tugas, de fuzileiros, de barcaças, de canhões e de guerras.”

Mas também descreve lugares: “Catió tinha organização e disciplina militar, com cornetada da alvorada e tudo; casernas alinhadas e com casas de banho mais ou menos; não mostrava ninguém de calção e chinela havaiana; tinha comércios e café com esplanada, e até tinha igreja, aposto que com missa matinal diária, ou pelo menos dominical, arruamentos e valetas com escoamento fluvial, enfim, diziam que ainda assim, com a chatice de um ou outro ataque do inimigo e base agitada para muitas operações de Comandos, de Paraquedistas, de Fuzileiros por esse mato do Cantanhez adentro, aviões, helicópteros, barcos… o eco de muitos combates revoando por matas e ilhotas e tarrafos e bolanhas.”

Há um retorno ao mundo estremenho, novas histórias sobre as rixas, estamos de novo na Guiné, desta vez em Bolama, é este vaivém absolutamente frenético que captura o leitor do princípio ao fim, porque no final da obra José Brás vai inquietar-nos quanto às consequências que podemos tirar das misérias da guerra, das agruras dos vindimeiros, das recordações que ele guarda do Estado Novo, despede-se e deixa-nos no desconforto:
“Perco-me aqui numa embrulhada interminável de historietas sem lhes conseguir encontrar a ligação e o principal fica por contar. E quando comecei a escrever tinha quase a certeza de que iria atingir esse objetivo. Mostrar que a guerra não caiu do céu. Que antes da guerra começar a vida já existia nas aldeias e nas cidades e que não parou só porque a guerra rebentou e os soldados iam e vinham aos milhares. E que nem os soldados nem os pais dos soldados sabiam explicar muito bem porque carga de água, de repente, começou tudo aos tiros. Soldado ia, soldado vinha, quando vinha, e sinais de Pátria não se encontrava senão nas fomes, na enxada e outras ferramentas, e agora, também na G3, no morteiro, na bazuca, no canhão sem recuo e no sangue vertido das veias dos camaradas (…) E vocês viram morrer o Lemos, viram morrer o Cabo Júlio, viram morrer o Madeirense e os dois de Barcelos… Viram é uma forma de dizer!
Mas é a mesma coisa, se sentiram como eu senti ao contar-nos, ainda mais do que senti ao ver de vista mesmo, no ato da sua morte. Não necessitaram sair de casa, claro, para terem notícias circunstanciadas sobre as suas mortes.

Não precisavam de os ver agonizar, de os procurar na mata as pernas decepadas; de os olhar nos olhos na despedida; de os carregar aos ombros ainda vivos já cadáveres inevitáveis; de lhes respirar os pesados cheiros, dias e dias, até que helicópteros lhes retirassem dali as negras caixas; não tiveram de morrer também de medo, de solidão, de impotência, de fome e de sede; de calor e de frio; de mil cansaços; nos estrondos, das rajadas e de semanas inteiras de mato; nos fornilhos de fósforo, nas febres, na água podre da bolanha, nas centenas de quilómetros de picada, de caminhos, de trilhos, de selva subtropical; nas emboscadas, nas flagelações, nas horas a rastejar sobre capim, sobre ramos e raízes, sobre lamas; na lentidão do tempo para o regresso; no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gandembel; na iminência do assalto final; na vertigem da última bala e na brasa do estilhaço… Não tiveram de sentir no ombro a mordidela do arco do caneco pesado na subida inclinada da vinha do Boeiro, nem de fazer ano a ano a viagem de comboio da Beira-Alta para as vinhas do Salazar, em S. Jerónimo, por uma merda de jorna, sardinhas de três meses e feijão-frade com bicho…

Não sentiram nas tripas a frieza metálica do canivete de volta do João Gato, nem o chumbo quente no peito, como o Arlindo.
Não sentiram nunca a alma a estraçalhar-se de desânimo nos trilhos perdidos dos Pirenéus.
Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas das praças de homens; valorados em lanços de coroa ou dez tostões; um quarto de pão escuro na mesa da ceia.
Não sentiram nunca…
Não sentiram vocês…
Não sentiram?
Então quem foi que sentiu?”


Um belíssimo romance de literatura memorial, é o mínimo dos mínimos que se pode dizer de "Lavar dos Cestos", de José Brás.

- José Brás foi Furriel Miliciano de Transmissões na CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras
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Notas do editor

Posts anteriores de:

16 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): Lavar dos Cestos, José Brás e Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)
e
23 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de dezembro de 2024 >Guiné 61/74 - P26319: Notas de leitura (1758): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
A originalidade desta narrativa memorial passa pela bem conseguida assembleia de conversa que o José Brás urdiu numa estonteante viagem entre a infância e a adolescência e a comissão na Guiné, toda passada em quartéis do Sul. Usa o discurso direto, aponta-nos o dedo, quase que nos pede resposta, mas nos antípodas da diacronia a que é manifestamente avesso, saltita quase febrilmente nos tempos e lugares, é uma montanha-russa que mete quartéis como o das Caldas da Rainha e Tavira, tascas com cenas de naifada, corpos carbonizados na estrada para Buba, flagelações, tudo isto se vai passar num tabuleiro restrito daquele Sul da Guiné que ele não quer ver apagado do mapa, Mejo, Cutima-Fula, Guileje, Gadamael, não terá estacionado muito tempo em Aldeia Formosa e seguramente que ouviu os rebentamentos ali ao lado, no octógono de cimento e sofrimento que se chamou Gandembel. Se um bom livro é obrigatoriamente uma história bem contada, José Brás passa com distinção e louvor.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (2)

Mário Beja Santos

Vale a pena recordar que o mais recente livro de José Brás, "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", Chiado Books, 2024, tem uma matriz de gabarito, trata-se do, seu romance premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, em 1985, "Vindimas no Capim". Está de novo em ação Filipe Bento, continuamos numa ruralidade da Estremadura e naquele Sul da Guiné onde se combate ferozmente, Filipe Bento tem a sua comissão em Mejo e arredores, não esquece de nos contar que qualquer coluna de abastecimento seja a Buba ou a Gadamael é uma autêntica operação, por vezes próximo do inferno. O poder arquitetural da escrita de "Lavar dos Cestos" assemelha-se muito às "Vindimas no Capim", salta-se com a maior das facilidades das vinhas para o mato guineense, daquela vida duríssima do preparo da terra e das cepas, a puxar terra aos pés, a podar, a empar, a cavar, a sachar, a sulfatar, a enxofrar, a vindimar, tudo para ganhar uma miséria, era esta a condição deste povo vindimador, e num ápice estamos na guerra.

Toda a obra é uma sala de conferência, temos direito a desabafos íntimos: Daniel Padeiro era um vigarista, aldrabava no pão, no carvão, no que podia, apanhamos as conversas na tasca, irmanamos com a dureza do trabalho; e, como num salto sobre o abismo, caímos na Guiné, barquinho rio abaixo até Cacine, até Catió, Gadamael, mas também Gandembel, um octógono de cimento e sofrimento, Quebo ou Aldeia Formosa, é mais ou menos esta a quadricula de eleição onde se processa a liturgia da guerra; e saltamos ao passado, isto é, a terras estremenhas, à catequese, ao rio Tejo, ao major Leiria que era lá da terra e que Filipe Bento reconheceu no quartel, integrados somos na vida das instituições militares e, por artes mágicas, voltamos à floresta subtropical, também no quartel, é como se viajássemos de um pesadelo para outro, e as viagens pelos rios não têm graça nenhuma, como Filipe Bento conta quando foi de Bissau para Mejo no batelão Anita, furando a noite já funda, caiu uma chuvada das antigas, houve quem procurasse proteção no meio dos sacos de farinha, de lá saiu enfarinhado.

Foi gerente do bar, experiência para esquecer, ou não, pelo que se viu ter apanhado contas mal feitas. E voltamos às colunas, o cabo Júlio morreu entre labaredas, é uma descrição tremenda:
“Ali aos pés tinha o volume do resto do que fora o corpo do Júlio, meio aterrado ainda, com os coutos dos braços e das pernas a fumegarem, apontando ao alto. A pele da barriga esticara, rebentado, e mostrava um amontoado de carvão.
Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também.
A posição agora seria a mesma que seria sentado na viatura, de pernas de fora.
Só que das pernas restavam uns espetos, maior o da direita, mais curto o da esquerda, mas ambos dobrados na bacia, fazendo o ângulo da posição mal sentada.
Os braços, mostrando os ossos dos pulsos, estavam também estendidos para a frente, quase perpendiculares ao corpo. Apenas as mãos haviam desaparecido.”


A pirotecnia da escrita, acompanhada destes saltos bruscos em que andamos por dois continentes, surpreendentemente, não nos desorientam porque um bom livro é sempre uma história bem contada, ainda há pouco andávamos de sachola na vindima, o Filipe Bento fez a recruta e a especialidade, já está a caminho de Buba, recorda as delícias do seu amor com Luísa, soa a voz do capitão Velês a deitar os bofes pela boca, Filipe está agora em Cutima-Fula, recorda a tasca do João Gato e a preparação que teve em Tavira, seguem-se as colunas a que não falta metralha, mas bem vistas as coisas Cutima-Fula era o paraíso, em termos de comparação com Mejo e o que se seguiu. Mas aquelas colunas ao cais de Buba não tinham mesmo graça nenhuma, dito por ele, reafirmado mil vezes:
“Eram uns trinta quilómetros para cada lado, a picar estrada, a cinco à hora, com um calor lixado, a água nunca chegava… e com a emoção da busca e descoberta de uma mina ou outra, de um fogachal daqueles e a incerteza permanente na alma dos malteses embarcados em Lisboa.
Vergar a mola à bruta na estiva do cais de Buba a carregar o material nas carripanas. Toneladas de trampa a fingir de produtos alimentares, remédios, balas, granadas, vinho mais que duvidoso, cerveja e outras bugigangas que, durante o percurso de volta, haviam de ser descarregadas para desatascar as viaturas, e transportadas ao longo da malta para uns metros à frente, atolados na chafurdice da bolanha, e carregados de novo, várias vezes repetindo o exercício no tempo das chuvas, com o estômago vazio e muita sede.”


Os nomes sucedem-se: Mejo e Guileje, Sangonhá e Cacoca, Catió e Cufar, Cabedu e Bedanda, Cacine, Mato Farroba, Cufar e Caboxanque, Salancaur e Cumbijã, e há lembranças de uma viagem em que se passava fome e foi possível comprar doze peixinhos, eram bicudas, pelo peixe, lá se fez uma fogueira em Catió, impossível não invocar aqui o repasto.

E há a denúncia dos compadrios: “O furriel Machado regressou a Lisboa tuberculoso. Deixou o pessoal de boca aberta. Parecia vender saúde e, de repente, zás, um rádio de Bissau a chamá-lo ao Hospital Militar.
E o Espírito Santo, que dois dias depois regressava de férias no Puto, informava-nos que encontrara o gajo de boa saúde no aeroporto com guia de marcha para a metrópole. Mais tarde soubemos que a doença dele se chamava Beja ou Évora ou lá o que era… seu tio.”

Voltemos ao universo estremenho, não havia campo de futebol, fazia-se bola com o que calhava, na falta do campo o adro da igreja era o único lugar capaz para garantir alguma distância entre dois pares de calhaus a fazerem as balizas e com duas equipas de cinco ou sete jogadores. Filipe é adolescente e sentiu a campanha de Humberto Delgado, o seu pai sempre prudente, talvez medroso, empolga-se com a campanha e explica porquê:
“Ponham-se vocês no meu lugar, nascido numa aldeia de ganhões de vinhas, de terceiros, de meeiros… gente que rebentava a vida inteira a fuçar sem tirar os cornos das cepas; anos e anos a fazer vinho, a bem dizer, dos torrões; a tirá-lo das veias para meter nos tonéis do senhoritos, senhorões filhos da puta; a apodrecerem na lama do inverno, a estorricarem no Sol de verão, a endoidecerem na hora dos acertos com o merceeiro, com o armazenista, com o aldrabão, sem um protesto, sem uma praga, sem um gesto de insubmissão. Na minha aldeia era tudo boa gente.”
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras


(continua)
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Notas do editor

Vid. post de 16 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerras", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26294: Notas de leitura (1756): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
O José Brás/Filipe Bento volta a vindimar com a sua escrita assombrosa, creio que traz recados e avisos solenes de que isto de fazer a vindima vai até o lavar dos cestos, ou seja, que nós combatentes não fiquemos no belo recato de ler o que os outros escrevem atirando para trás das costas as tais memórias da guerra colonial que não se apagam. É um livro comprometedor, a arquitetura vem dos tempos do seu belíssimo romance Vindimas no Capim, mas o que agora nos oferece é mais o sinal dos tempos, constrói-se pelo poder da memória, revisitam-se lugares, gentes, pesadelos e solidariedades e posso-vos dizer que dentro deste processo de escrita onde se fala em termos litúrgicos, como antífona, a oração sobre as oblatas, a oração dos fiéis, despede-se de nós com um solene aviso: compete-nos também o registo de deixar para os outros aquilo que sentimos não foi em vão que por ali andámos a penar para tudo cair no esquecimento.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (1)

Mário Beja Santos

A década de 1980 revelou que a literatura da guerra colonial estava a dar um salto qualitativo, entrara-se num período de acalmia e o pulsar da memória levedou numa quase inesperada ficção, podia aqui citar um conjunto de influentes romances, até ensaios, obras de historiografia, poesia, alguma investida memorial, mas fixo-me num surpreendente romance, justamente premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, "Vindimas no Capim", de José Brás, então um autor desconhecido. Tratava-se de um romance de formulação invulgar, uma permanente conversa com o leitor, como se estive a acirrá-lo com perguntas, dando ele próprio respostas exclamativas, uma autobiografia de alguém que passara a sua juventude em meios agrícolas, e depois no Sul da Guiné, aqui as vindimas foram outras, havia Guileje, Mejo, Gandembel, lá ao fundo, sempre próximo do Corredor da Morte, havia Cacoca, Sangonhá e Cameconde, lá em cima Balana e, claro está, Aldeia Formosa, Filipe Bento estacionará em Mejo e noutros lugares de permanente sobressalto, confessará as suas dores e amargores, escreverá de forma inequívoca aquilo que muitos de nós já sabíamos e que se veio a comprovar: há memórias da guerra colonial que não se apagam. Mas nas "Vindimas no Capim" sentia-se aquela onda de calor em comunicar a quem quer que seja que aqueles jovens saídos de terras pobres, ordenados numa vida áspera, tinham sido lançados na defesa de uma parcela colonial, acoitados nuns fortins improvisados, a experimentar as penas do inferno. E Filipe Bento perguntava vezes sem fim porque é que tinha andado naquela vindima de pesadelo e porquê tudo por que passara estava agora tão esquecido, quem iria ganhar com o desmemoriamento de tanta luta inglória.


É nisto que o octogenário José Brás salta do esquecimento em que caiu tanta vindima e nos vem alertar do seguinte modo: “Na liturgia das vinhas a vindima seria o seu último salmo. Todavia, na voz do povo se diz que não acaba a missa no corte do último cacho; na derradeira lagarada; no bago que fecha o tonel, e que muita vindima há ainda por fazer até ao lavar dos cestos. Nas courelas que restaram deste anacrónico império, depois da colheita, quantos cestos continuam melados com o mosto das repisadas uvas brancas e tintas?” Presumo que aquilo que ele nos quer dizer é que temos todos a obrigação de fazermos a nossa vindima até ao lavar dos cestos, é assim o dever de memória para que as novas gerações guardem na sua identidade um sofrimento inaudito dos seus ancestrais, participantes num desastre anunciado.

Temos agora o "Lavar dos Cestos", José Brás e Chiado Books, 2024, Filipe Bento regressa ao Sul da Guiné, quartel de Guileje, estão a ouvir-se estrondos em Gandembel, quem aqui está vive o pesadelo, um quotidiano de infortúnio, fez-se um octógono que até parece inexpugnável, ali no Corredor da Morte, o PAIGC não se intimida com aquele fortim solitário, espicaça quem lá vive com tormentosas flagelações, Filipe acordou arrelampado com tanto estrondo, reflete em voz alta:
“Mejo e Guileje, buracos abertos na mata subtropical do Sul da chamada província ultramarina da Guiné, quadrados de cem, cento e poucos metros de lado, paliçada a todo o perímetro construída por duas paredes de cibes, rijíssimas árvores cortadas a propósito e sobrepondo-se, tronco deitado sobre tronco, deitado até uma altura de um homem baixo, separadas as ditas paredes por cerca de um meio metro de vazio que seria cheio de terra, finalmente, quando não mesmo, muitas vezes ainda, e com isso, nesses casos, lá fica desasada a palavra finalmente, muitas vezes ainda, volto a dizer, cosida exteriormente a chapa dos dois lados, lata recuperada dos bidões de duzentos litros da gasolina que alimentava as viaturas, unimogs, jipes e GMC’s, e o gerador elétrico do local destas praças militares portuguesas intervaladas por postos e aquartelamentos do inimigo a escassas distâncias, quatro, cinco, sete quilómetros de mata densa e alta.”

Pode parecer absurdo um inimigo, feroz e destemido, altamente motivado, estar posicionado a tão curta distância, mas as coisas passaram-se assim, aquele corredor da morte era um cordão umbilical para abastecimentos do PAIGC, de gentes, armamento, coisas de hospital e farmácia e mantimentos para a boca. E Filipe Bento já sonha com a passagem para Bolama, mas para ali chegar há que percorrer uma boa distância até Gadamael-Porto, e então, por lancha ou batelão e rio abaixo até Bolama. Mas, ó gente, vamo-nos preparar porque Filipe Bento tem histórias passadas para contar, fez recruta e especialidade, passou pela Carregueira, vai-nos contar ao pormenor e com palavreado da caserna, tudo quanto ali viveu, nas Caldas da Rainha ou em Tavira, entra em cena o major Leiria, associado àquele território onde ele passou a juventude, o pessoal das vinhas. O segredo desta vibração da escrita passa pela recuperação da arquitetura que o José Brás já utilizara em "Vindimas no Capim", a interpelação que tanto desassossega o leitor, ora estamos no quartel ora na taberna, e até se aproveita a circunstância para se dar ensinamento ao leitor urbano:
“Se vocês pensavam que uma enxada era assim uma coisa tão simples, só uma enxada, sem mais nada, a bendizer só a palavra, desenganem-se!
Enxada de dois ferros, um pouco mais curta na chapa, a fim de realizar uma cava mais funda com duas enxadadas no mesmo exato lugar. Enxada de um ferro, mais compridita para cavar num só golpe, não tão fundo, mas envolvendo uma amplitude maior de terra. Enxada de dois bicos que, como o nome indicia, alongava a meia-lua nos bicos, mais grossa e pesada, com um cabo direito para cavar terra seca e amontoar levas atrás do cavador a fim de facilitar a entrada da luz do Sol até mais fundo.”


Umas vezes estamos lá na terra das vindimas, outras vezes nas Caldas, em Tavira ou em Caçadores de Infantaria. Mas importa que se saiba onde vivia Filipe Bento antes de pegar em armas:
“A aldeia é pequena. Apesar de ser sede de Freguesia, de ter igreja paroquial, procissão dos passos anualmente, duas mercearias, festas de verão, escola de rapazes e raparigas, tem apenas a rua principal que sobe desde o cemitério, mesmo ao pé das abegoarias do Manel, outro Manel, Cortador, dono do talho, perto também da forja do Tóino Ferreiro, e passa pela farmácia, à esquerda, sempre a subir e do mesmo lado, a loja debaixo, o casarão apalaçado do Zé Fernandes, os Figueiras com a padaria.” E a descrição vai até ao largo, ficamos também a saber que o caminho que nos levaria à Seteirinha se à Seteirinha quiséssemos ir, tínhamos duas casas grandes do lado direito de quem entra, subindo como vínhamos subindo, olhando as fachadas, tentando perceber a gente que atrás delas vive. No canto direito do limite do largo, a loja de cima que fica por baixo da escola dos rapazes.

E depois, o Filipe Bento vai-nos falar de vinhas e enxertias e até de podas, prepare-se o leitor para uma exaltação das magnificências do que se extrai da terra, que beleza de escrita.
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

“LAVAR DOS CESTOS - Liturgia de Vinhas e de Guerra” pode ser adquirido na rede de livrarias independentes espalhadas por todo o país;
É também comercializado Online na seguinte rede:
- AtlanticBookshop.pt
- Fnac.pt
- Bertrand.pt
- Wook.pt
- e ainda a pedido via mensagem na página Facebook do autor ou e-mail jasbras1@sapo.pt e enviado via correio CTT.

Último post da série de 13 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26263: Notas de leitura (1754): Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens (Mário Beja Santos)

domingo, 8 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 – P26246: Armamento (12): Apresentação do livro "G3 - A Grande Arma Nacional" (Luís Dias)

1. Mensagem do nosso camarada Luís Dias (ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74):

Apresentação do livro "G3 A GRANDE ARMA NACIONAL"

Camaradas,

Estive ontem presente no lançamento deste livro e escrevi um pequeno texto sobre o evento. Se achares de interesse e útil para colocares no "Luís Graça & Camaradas da Guiné", estás à vontade. Grande abraço. Luís Dias

Ontem, por convite do autor, tive o grato prazer de assistir no Palácio dos Marqueses do Lavradio, no Campo de Santa Clara, em Lisboa, ao lançamento do livro, “G3 A GRANDE ARMA NACIONAL”, de Pedro Manuel Monteiro, editado pela “Conta Corrente”, onde dei um pequeno contributo sobre as diferenças em combate entre a HK G3A3 e as Kalashnikov, nos modelos AK-47, AKM e outros modelos das mesmas fabricados por países do Bloco Leste e pela China, que apoiavam na Guiné o PAIGC, que se enfrentavam no meu tempo de combatente na Guiné (1971-1974).

Na presidência da mesa encontrava-se o Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército, o Tenente-General, Paulo Emanuel Maia Pereira. Na assistência diversos oficiais generais, oficiais superiores, quer ainda no activo, quer na reforma e muitos civis, entre eles, antigos funcionários do extinto INDEP.

No discurso do Tenente-General, houve um momento em que foi referida a presença e foi aplaudido de pé, uma pessoa por quem tenho grande admiração, o Coronel Tirocinado Comando, Raúl Folques que, no meu tempo de Guiné, foi o Comandante do Batalhão de Comandos, cargo onde substituiu o então Major Almeida Bruno e que, como se sabe, fez parte da 1ª companhia de comandos formada em Angola e que é um dos heróis de Portugal.

Nos anos da Guerra de África a espingarda automática HK G3 (também designada de espingarda de batalha, devido ao calibre potente que utilizava - 7,62x51mmNATO - e no formato convencional), terá passado pelas mãos de perto de um milhão de portugueses e foi a arma que Portugal escolheu, a partir de 1961, para enfrentar os movimentos independentistas nas províncias ultramarinas, iniciando-se em Portugal a sua produção, sob licença da Alemanha (então RFA), em 1962, e a sua atribuição oficial às forças armadas a partir de 1963. 

Foi esta espingarda, encimada no cano por um cravo, que se revelou um símbolo da Revolução de 25 de Abril de 1974, para toda a gente.

Após o fim da guerra em África, esta arma continuou a ser importante nas missões atribuídas às nossas forças armadas pela ONU ou no âmbito da UE, em diversas partes do mundo (Timor, Letónia, Roménia, República Centro-Africana, Moçambique, Guiné-Bissau, Somália, Mali, Afeganistão, Alemanha, Polónia e Kosovo).

As fábricas FMBP e INDEP terão produzido 442 197 G3, entre 1963 e 1988, segundo Relatórios de Contas destas fábricas referidos no livro em apreço e que serviu no nosso país por cerca de 60 anos, estando a ser substituída no Exército pela FN SCAR, modelo L e H e na Armada pela HK416. A G3, em conjunto com o mosquete “Brown Bess” de 1808, é arma recebida em maior quantidade pelo Exército Português, bem como uma das que é usada há mais tempo. 

A G3, era e é uma excepcional arma de guerra, com um projéctil poderoso – o 7,62x51mmNATO, que depois de ter sido trocado pelo calibre 5,56mmNATO, está novamente a ser recuperado, para novas gerações de espingardas de batalha e que tinha um som característico e forte que dava confiança a quem a usava. 

A G3 necessitava de alguns cuidados na limpeza (cabeça da culatra), mas em geral trabalhava bem, mesmo nas condições adversas em que foram utilizadas em África. Tinha o senão de ser uma arma grande e pesada para o tipo de guerra de guerrilha que enfrentávamos, mas também tinha um alcance útil superior às armas do inimigo e era também mais estável e precisa no tiro que as armas adversárias. 

O seu depósito de munições tinha uma capacidade inferior ao da kalashnikov mas, por outro lado, tinha um perfil mais baixo, evitando que o utilizador se elevasse demasiado, quando na posição de deitado, diminuindo significativamente a silhueta e, ao contrário da kalashnikov que possuía um carregador curvo e comprido, não tinha necessidade de se torcer para introduzir um novo carregador na arma. Também o comutador do tiro era mais simples de utilizar do que da arma preferencial rival e era silencioso, ao contrário do da AK-47 e AKM que faziam ruídos de clic, na movimentação para tiro a tiro e para fogo de rajada, o que no mato podia fazer a diferença.

O mecanismo operativo da espingarda automática HK-G3, apresentado em 1959 na então RFA é originário e semelhante ao da StG45 (Mauser) alemã, de 1945 e da CETME espanhola de 1952. O seu funcionamento é por inércia, actuando os gases sobre a superfície interna do invólucro e a culatra retarda a sua abertura (“Roller-delayed blowback”) pela acção conjunta dos roletes de travamento (alojados na cabeça da culatra), da massa da culatra e da mola recuperadora. O percutor está alojado no interior do bloco da culatra, dando-se a percussão pela pancada do cão (existente ao nível do gatilho) sobre a cauda do percutor. A alimentação é garantida pela mola do depósito (carregador). O extractor de garra, situado na cabeça da culatra, efectua a extracção da cápsula detonada no movimento de abertura da culatra e a ejecção dá-se quando a base da mesma encontra (ao nível do punho), um ejector de alavanca. Após o consumo das munições do depósito, a culatra não fica retida à retaguarda, como na FN FAL.

No tempo da Guerra de África, era conhecido o “amor” entre o combatente e a sua G3, apelidando-a, de “namorada”, a “minha querida”, a “minha amada” ou também por algum nome feminino de alguma mulher pela qual estivessem encantados. De facto, a maior parte dos militares dormiam com ela sempre ao lado, fosse no mato ou no quartel. Outros, fotografavam a arma e colocavam os dizeres “devo-te a vida”.

Luís Dias
ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872
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Nota do editor

Último poste da série > 
12 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21534: Armamento (11): Material apreendido ao PAIGC em 1972 e 1973, em Galomaro e Dulombi (Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26144: Facebook...ando (66): Sessão de apresentação do livro de poesia "NA PENUMBRA DA MEMÓRIA, VIVÊNCIAS NA GUERRA COLONIAL", da autoria de José Luís Loureiro, levada a efeito no passado dia 9 de Novembro de 2024, no Casino da Figueira da Foz (Antero Santos, ex-Fur Mil Inf)


Obras sobre a Guerra do Ultramar

NA PENUMBRA DA MEMÓRIA, VIVÊNCIAS NA GUERRA COLONIAL
Poesia
Autor - José Luís Loureiro


Ontem, num dos salões do Casino da Figueira da Foz, decorreu a sessão de apresentação do livro de poesia do Combatente José Luís Loureiro, "NA PENUMBRA DA MEMÓRIA, VIVÊNCIAS NA GUERRA COLONIAL".

Foi uma cerimónia que contou com a presença na mesa da Sra. D. Isabel Tavares, escritora, poetisa e declamadora, além de ser Deputada Municipal na Assembleia Municipal da Figueira da Foz; de Antero Santos, autor do prefácio; de Vitor Carriço da Silva, autor do texto da badana e também do autor da obra, José Loureiro, que foram Combatentes na Guiné, em Moçambique e em Angola, respectivamente.

Na assistência estavam o Dr. Fernando Matos, administrador do Casino e esposa, o Dr. Jorge Lê, vários Combatentes de entre os quais destaco o Dr. Vasco Gama, residente em Buarcos, que foi comandante da CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã - 1972/74.

Abriu a sessão a D. Isabel Tavares. Depois dos convidados terem feito as suas considerações sobre a obra e de a D. Isabel Tavares ter declamado vários poemas, foi a vez do autor falar da mesma e dos seus estados de alma. Então a D. Isabel Tavares propôs um espaço de perguntas e respostas e aconteceu uma tertúlia entre todos os presentes sobre várias facetas da guerra no Teatro de Operações, sobre a forma como os Combatentes continuam a ser "destratados" pelos sucessivos governos e também sobre a regalia que foi decretada em 2021 sobre direito ao uso da bandeira nacional no velório e funeral dos Combatentes e que, tristemente, não é respeitada pela maioria das autarquias a quem compete a execução da medida. Foi muito positiva esta pequena tertúlia.

Quase a terminar, o José Loureiro agradeceu a presença de todos. Agradeceu também à Administração e Direcção do Casino, nas pessoas do Dr. Fernando Matos e Dr. Jorge Lê

Para finalizar a cerimónia, a administração do Casino presenteou-nos com um Porto de Honra e foi tempo de um animado convívio.


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Fotos: José António Silva Teixeira
Fixação do texto e edição das fotos: Carlos Vinhal

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Nota do editor

Último post da série de 11 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26033: Facebook...ando (65): Valter Santos, em Cucujães, relembrando coisas e gente do seu tempo, em Bissau, no HM 241 (1969/71)

domingo, 10 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26136: Agenda cultural (866): Convite para o lançamento do livro "Viagem de um Capitão de Abril", da autoria de Aniceto Afonso, a levar a efeito no próximo dia 12 de Novembro de 2024, pelas 18h00, na Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95 - Lisboa. Apresentação a cargo de Lídia Jorge


Caros amigos (as),
Só para tomarem nota na vossa agenda. Quero dar-vos um abraço de muita amizade no dia 12 de novembro pelas 18h00 na Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa, quando fizermos o lançamento do meu livro “Viagem de um Capitão de Abril”, da Colibri. O Prefácio é do meu amigo e camarada Carlos de Matos Gomes e a apresentação será feita pela amiga Lídia Jorge. O convite será enviado a seu tempo, mas não é necessário, a entrada é livre.
Aproveitarei também para apresentar um outro livro de poemas e desenhos “Este Eu que Eu Sou, Não Sou Eu”, com prólogo da Dulce Afonso.
Espero muito que possam estar presentes, pois será um dia muito especial para mim.
Ainda não há capas para vos mostrar.

Abraço amigo,
Aniceto Afonso

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Nota do editor

Último post da série de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26098: Lembrete (48): Biblioteca Municipal de Gondomar, sábado, dia 9 de novembro de 2024, lançamento do livro "Crónicas de Paz e Guerra" (2014, 221 pp.; posfácio de Mário Beja Santos)







1. Recorde-.se que é já no já no próximo dia 9 de novembro, sábado, pelas 15 horas, que se vai realizar, na Biblioteca Municipal de Gondomar,  a apresentação pública do meu livro, com posfácio do camarada Mário Beja Santos~(*). 

A apresentação está acargo do dr.  Manuel Maria. Todos os meus amiogos e camaradas estão convidados (**).  

Edição: Lugar da Palavra Editora, Rua Guedes de Oliveira, 126, 4435-274 RIO TINTO | www.lugardapalavra.pt | editora@lugardapalavra.pt | telef  22 099 4591 / 91 54 16141 | Depósito legal nº 535279/24 | ISBN : 978-989-731-215-1C) | 1ª edição: setembro de 2024


CRÓNICAS DE PAZ E DE GUERRA

O SOLDADO

Nas sortes não se safou,
já homem bebeu e fumou,
em braços em casa entrou,
aa farda não se livrou.

A sorte Guiné ditou,
estúpida guerra enfrentou,
três gritos por quem lá ficou,
pelo povo se emocionou.



Posfácio 

Por considerar humanamente relevante

por Mário Beja Santos (pp. 219-221)


Quando Joaquim Costa e a sua unidade de intervenção, a briosa CCAV 8351, chegam à região de Tombali, no Sul da Guiné, decorriam modificações na manobra do Comando-Chefe, general António de Spínola, e já num quadro político-militar altamente inquietante, de profundo desalento. 

Para se entender as atividades impostas a esta unidade militar, inicialmente sedeada em Aldeia Formosa, a de reocupar posições na região do Cantanhez, onde o PAIGC circulava bastante à vontade, há que refletir sobre o que se estava a passar tanto do lado português como no pensamento estratégico de Amílcar Cabral.

Em 1972, Spínola já não tem ilusões sobre a vitória militar, disse-o frontalmente no final do ano anterior no Conselho Superior da Defesa Nacional, a situação é crítica, carece de mais recursos humanos e de novos armamentos para retomar a iniciativa, o Governo de Lisboa nada tem para oferecer. 

Na cena internacional, acentuava-se o isolamento português, a Operação Mar Verde gerou fortes anticorpos, inclusive junto de aliados tradicionais de Lisboa, levara a que a Marinha soviética estacionasse na República da Guiné. Spínola encontrou-se com Senghor, encontro amistoso, o presidente senegalês faz propostas, Spínola vem a Lisboa revelá-las, Marcello Caetano recusa categoricamente negociações, em caso extremo prefere a derrota militar. 

Do lado do PAIGC, avança-se a todo o vapor para eleições para uma assembleia popular que diga sim a uma declaração unilateral de independência e à aprovação de uma constituição do novo país, peças que o líder do PAIGC considera fundamentais para angariar apoios na ONU, na Organização da Unidade Africana, junto dos países amigos, sobretudo do bloco liderado por Moscovo. 

É nesse contexto que Spínola decide uma mudança na quadrícula, escolhe a região do Cantanhez, onde não há tropas portuguesas em permanência, e muito menos populações afetas à soberania portuguesa; envolve o Exército, a Marinha e a Força Aérea, inevitavelmente as forças especiais – a Operação Grande Empresa é posta em marcha, Joaquim Costa e a tropa comandada pelo capitão Vasco da Gama vão subir o rio Cumbijã, fundar aqui um aquartelamento e procurar outro, de nome Nhacobá, onde o PAIGC tem sustento em arroz, tudo isto muito próximo do chamado corredor de Guileje, uma linha absolutamente vital para a circulação de homens, mantimentos e armamentos do Exército do PAIGC e suas populações. 

A Grande Empresa é uma iniciativa militar arrojadíssima, é dela que Joaquim Costa irá falar.

Mas o seu livro de memórias não se confina ao que ele viveu no Tombali, tem um muito antes, o seu meio familiar, a cultura que o embebeu e de que se orgulha, os usos e costumes do seu lugar, a religiosidade, todo aquele ambiente em que ainda era impensável falar-se na sociedade de consumo, naquela atmosfera havia baldios, mercearias e tabernas e viagens extenuantes até ao local de trabalho, como ele testemunha. 

E os preparativos para a guerra, para ser furriel percorreu Caldas da Rainha, Tavira, andou em recrutas em Chaves, especializou-se em Estremoz, juntou-se à sua unidade militar em Portalegre, daqui marchou para a Guiné, Cumbijã é o destino e Nhacobá é também outra lembrança para toda a vida.

Até esta narrativa do livro de memórias, estou absolutamente seguro de que o leitor ficará cativado pela ternura que emana destas recordações do pai José, da mãe Gracinda, do elenco dos manos, dos acontecimentos do quotidiano, tudo numa aldeia onde o Minho acaba e o Douro começa, vida dura, aliviada por feiras e romarias e o embasbacamento da descoberta do cinema e também da televisão.

O autor, também conhecido por o Furriel Pequenina, falará da guerra sem alardes de heroísmo ou farroncas de que andou de peito feito às balas. Em dado passo começará um parágrafo por dizer “Por considerar humanamente relevante”, considerei a expressão um achado de tudo quanto escreveu quer na primeira edição quer na segunda. 

Fez bem em enxugar a prosa, a literatura da guerra colonial tem centenas de relatos sobre as viagens da ida, o contacto com a temperatura tropical, a má comida, aos poucos a descoberta de África, as minas e emboscadas, a profunda solidão, a chegada do correio, os mortos e os feridos, lembrança irreprimível, uma dor nem sempre discretamente contida.

Lá foram numa LDG até Buba, daqui até Aldeia Formosa. Nada de excessos no batismo de fogo, mas muita ênfase será dada às minas, as anticarro e as antipessoal. E depois do Natal em Aldeia Formosa chega a hora de partir para Cumbijã, uma terra de ninguém, um posto abandonado, também aqui se vai reocupar um lugar do Cantanhez.

E assim nasce Cumbijã, confesso que me emociona imenso as imagens daqueles tijolos amassados, vivi peripécia semelhante noutras paragens da Guiné, mais propriamente no regulado do Cuor, no Centro-Leste, uma flagelação brutal reduziu a cinzas dois terços das moranças e assentos militares, tivemos de fazer algo análogo ao que o autor descreve, Cumbijã a sair do nada e com flagelações de canhão sem recuo bastante frequentes. 
E é muito bonito saber que o forno deixado em Cumbijã ainda hoje coze pão para toda a região. 

E segue-se uma descrição sumária da Operação Balanço Final, o assalto a Nhacobá, só que, depois de muita peripécia, os Altos-Comandos decidem o seu abandono. 

Estava a fazer esta leitura e assaltou-me à mente a recordação de um outro acontecimento militar análogo, que se passou em 1968, também perto do corredor de Guileje, ao tempo do governador Schulz foi determinado construir um género de fortim que ficou conhecido pelo nome de Octógono de Gandembel, deu para muito sofrer e muito morrer, a explicação que Spínola deu para o seu abandono é que não havia população para defender (no melhor pano cai a nódoa: também não havia população a defender nestes aldeamentos por onde andou Joaquim Costa, era tudo estratégia, uma tentativa de intimidação do PAIGC, um jogo do gato e do rato).

A Grande Empresa será um assunto arrumado pelos acontecimentos de 1973, nomeadamente com a Operação Amílcar Cabral, que levou à retirada de Guileje e aos terríveis acontecimentos de Guidaje e Gadamael. Tanto sofrimento para nada.

Se já houve o antes e o durante a guerra, temos o depois, as histórias do regresso, a vida de professor depois de acabar o curso, um saltitar por Santo Tirso, Portalegre, Santarém e muito mais, um encanto de memórias avulsas, mas aonde a questão central foi o que se viveu e como se fez homem naqueles pontos do Tombali, no aceso de uma temível guerra de guerrilhas, onde aquele jovem vindo de uma aldeia entre o Minho e o Douro aprendeu que há uma camaradagem que ficará para toda a vida.

Um abraço fraterno a este contador de histórias, um narrador de afetos, exímio no que deve ser o nosso dever de memória.

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sábado, 12 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26039: Agenda cultural (861): Convite para o lançamento do livro "CRÓNICAS DE PAZ E DE GUERRA, de Joaquim Costa, a ter lugar no próximo dia 9 de Novembro, pelas 16h00, na Bibliotaca Municipal de Gondomar, Av. 25 de Abril. Apresentação do livro a cargo do Dr. Manuel Maria

C O N V I T E



Este livro não é mais do que pequenas histórias (ou estórias), de uma viagem que se inicia nos anos cinquenta e termina em 2015. Não é o fim de nada, pois aqui se inicia uma nova caminhada, já carregada de estórias para um novo livro.

Reduzido à sua dimensão, pedindo desculpa aos leitores pela presunção, nestas 221 páginas se conta a história de Portugal dos últimos 70 anos, particularmente a da guerra colonial.

Citando Mário Beja Santos:

“… um encanto de memórias avulsas, mas aonde a questão central foi o que se viveu e como se fez homem naqueles pontos do Tombali, no aceso de uma temível guerra de guerrilhas, onde aquele jovem vindo de uma aldeia entre o Minho e o Douro aprendeu que há uma camaradagem que ficará para toda a vida.”

A sua apresentação pública mais não é do que o pretexto para reunir velhas e novas amizades.

A todos convoco para esta jornada de afetos.

Conto convosco.
Joaquim Costa.

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Nota do editor

Último post da série de 22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25968: Agenda cultural (860): Convite para o lançamento do livro "Poemas de Han San", organizado e traduzido por António Graça de Abreu, dia 26 de Setembro de 2024, pelas 18h30, no Auditório CCCM, Rua Guerra Junqueira, 30 - Lisboa

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26017: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (13): Uma descida ao inferno do Anexo de Campolide do Hospital Militar Principal (onde visitou o ex-prisioneiro Manuel Fragata Francisco) e o regresso à guerra ("Cabra Cega", 2015, pp. 475 / 484)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 >


"[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar." (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

 


1. Do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, pp. 475/484) reproduzimos , com a devida vénia e em jeito de homenagem póstuma ao autor, o relato do seu reencontro, no anexo, em Campolide, do HMP (Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa) com o antigo soldado do seu pelotão, na CART 1690, o Manuel Fragata Francisco. Usámos a versão que   ele que nos deixou na sua página do Facebook, na postagem de 22 de setembro de 2019. (*)

No livro (de 2015) o Fragata aparece sob o nome fictício de Gabriel (pág. 476).

Recorde-se que o soldado Fragata (Manuel Fragata Francisco), "um alentejano de Alpiarça, do meu grupo de combate" , foi ferido e feito prisioneiro pelo IN no decurso da Op Invisível, em 19 de Dezembro de 1967. Na mesma ocasião, foi "dado como desaparecido" em companha (na realidade terá sido morto,  e o seu corpo nunca foi recuperado) o alf mil Fernando da Costa Fernandes, natural de Santo Tirso. (Este oficial tinha vindo para a CART 1690, para substituir o A. Marques Lopes, entretanto evacuado parta o HMP, na sequência da mina A/C acionada em 21/8/1967, na estrada Geba-Banjara, que vitimou mortalmente o cap art Manuel Guimarães).

O alferes Fernandes será mais tarde, substituído pelo alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, que morreu também, em 8 de Setembro de 1968 num ataque a Sare Banda.

(...) "Mas a história toda [do Fragata ] foi-me contada pelo comandante Gazela [do PAIGC, em Bissau, ]: ficou furado por vários estilhaços de uma roquetada e foi levado, em maca, pelos guerrilheiros desde a mata do Óio até a um hospital de Ziguinchor, na Casamansa, Senegal. Foi obra, hão-de concordar, e não foi fácil, como calculam. Aí, em Ziguinchor, foi tratado pelo portugês dr. [Mário] Pádua, um médico desertor, e que me confirmou isto quando, há alguns anos, o encontrei em Lisboa.

Depois desse tratamento, o Fragata foi repatriado pela Cruz Vermelha Internacional e foi para o Anexo do HMP, na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Disse o comandante Gazela que, com a simplicidade própria daqueles nossos soldados, o Fragata, ao apanhar o avião de regresso, disse: "Obrigado. Graças ao nosso partido – referia-se ao PAIGC - "posso voltar para casa".

Infelizmente, o Fragata, passado pouco tempo após a saída do Anexo, morreu num desastre de motorizada na sua terra. " (...) (**)

Quanto ao A, Marques Lopes, recorde-se que esteve em tratamento durante nove meses no hospital da Estrela. Voltou para a Guiné, em maio de 1968,  para cumprir mais 10 meses de comissão de serviço, neste casao na CCAÇ 3, que estava aquartelada em Barro, na zona do Cacheu. Foi comandante do grupo de combate "Jagudis",



 Uma descida ao inferno do Anexo de Campolide do Hospital Militar Principal (onde visitou o ex-prisioneiro Manuel Fragata Francisco)  e o regresso à guerra ("Cabra Cega", 2015, pp. 475 / 484)

por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)




Fui depois à junta médica. Era um coronel e um tenente-coronel. Não sabia mas pensei que deviam ser médicos já que chamavam médica àquela junta. O coronel puxou duns papéis. Folheou-os, os dois olharam depois para eles e cochicharam. Devia ser do meu processo, pensei.

– O ouvido esquerdo tem 10% de incapacidade, no direito tem 20%. De resto está tudo bem - ouvi dizerem.

Foi tudo rápido.

O coronel juntou os papéis e disse:

– Está apto para todo o serviço.

O tenente-coronel abanou a cabeça que sim. Levantaram-se os dois.

– Vá ao Depósito Geral de Adidos. Leve isto.

Estendeu-me um dos papéis e vi que era a ordem para me apresentar lá.

Grande fantochada, fui pensando depois daquilo. Mera formalidade porque já tinham decidido que devia regressar à Guiné. Já sabia que os feridos, depois de curados tinham que ir terminar a comissão. Mas é se estivessem mesmo curados, em condições, também sabia isso. O grau de incapacidade por eles apontado não era verdadeiro. Como é que podia ser se o médico que me tratara dissera que o tímpano esquerdo tinha colado mas o direito não, que ia continuar com um buraco? Filha da putice.

Fui para o DGA, Depósito Geral de “Ardidos”, como a malta lhe chamava.

No primeiro dia decidi deslocar-me ao Anexo do Hospital Militar em Campolide para ver o Fragata. Não foi fácil entrar.

– Só os familiares é que podem visitar os doentes  
– disse-me o Oficial de Dia, um alferes.

 – Espera lá. Não sei se és do quadro ou se és miliciano, isso não interessa porque hás-de perceber uma coisa. Eu conheço esse homem há quase dois anos, foi sempre do meu pelotão e, na Guiné, do meu grupo de combate. O tempo que lá passámos tornou-nos da mesma família, fomos unha com carne em situações complicadas. Hás-de imaginar, não? Pergunta-lhe a ele.

Nunca me chegou a dizer se era ou não miliciano. Mas, uma coisa ou outra, nunca tinha estado na guerra, concluí. Senão ter-se-ia aberto logo também, era o normal quando dois combatentes se encontravam. Depois de mais alguma conversa e reticências acabou por ceder. Sobretudo depois de eu lhe dizer que ia voltar para a Guiné.

 
– É pá, vai lá, pronto. Mas, faz favor, se alguém te perguntar diz que és irmão ou primo, ou outra coisa qualquer da família.

Consultou uma lista, disse-me qual era o quarto em que o Fragata estava e indicou-me o caminho para lá.

À medida que ia andando espreitava para os quartos e camaratas. O que via deixava-me estarrecido e sem fala, não havia palavras perante tal panorama. Havia alguns que pareciam melhor, mas vi homens sem pernas, outros sem braços, uns cegos e, destes, alguns sem mãos ou sem braços também. Ainda bem que não era para falar com eles que ia. Só de ver já era impressionante. Se tivesse de os ouvir contar como foi, estavam stressados de certeza, devia ser terrível.

Ia tão com intenção de só ver o Fragata que não me passara pela cabeça que, no quarto dele, podia encontrar igual panorama. E encontrei mesmo quando lá cheguei e vi as quatro camas. Fiquei especado à porta, atónito. O Fragata estava com uma perna engessada, numa cama estava um sem mãos e a cara com manchas esverdeadas, noutra um sem pernas e, fora o que me deixara estarrecido, vi numa das camas um tronco de homem com uma cabeça.

 
– Olha o meu alferes!

Foi assim que o Fragata me fez voltar a mim e dar uns passos até à cama dele.

– Como é que estás, Fragata? 

Ainda tinha a voz entaramelada, não me recompusera ainda daquela visão.

– Não estou mal, meu alferes. Tenho braços e pernas. Aqui sou o que estou melhor, como vê.

– Mas o que é que tens?

– Levei uma rajada e fiquei com um joelho todo lixado. Foi naquele sítio onde estivemos primeiro, em Sinchã Jobel, lembra-se? O meu alferes até ficou lá toda a noite.

Disse-lhe que me lembrava. Os outros do quarto ouviam com atenção.

– O meu alferes lembra-se daquela chapada que me deu?

Fora uma vez em que tinha ido ver como estavam as sentinelas da noite no quartel e tinha visto que o Fragata não estava no posto em que devia estar. Tinha ido ter com uma bajuda. Fora ter com ele todo chateado e perguntara-lhe se queria uma chapada ou uma participação por abandono do posto. Ele ficara à rasca e preferira levar na cara.

 
– Era melhor não ma ter dado – continuou o Fragata. – Preferia ter levado uma porrada e mudar de companhia. Já não me tinha metido nisto.

 – Foi o que foi. Não te metias nesta metias-te noutra. Mas ouve lá: o alferes Domingos Maçarico Zé Pedro, que também foi ferido numa operação a esse sítio e foi evacuado, disse-me que os gajos te levaram para um hospital deles. Como é que foi isso?

O Fragata ficou uns segundos silencioso.

 
– Olhe, meu alferes  –acabou por dizer – os mandões proibiram-me de contar mas eu estou-me cagando, quero que eles se fodam. Desculpe, meu alferes  – mera por causa da linguagem. –  A estes aqui e à minha família já contei e vou-lhe contar a si também. Aquela operação foi muito má para nós. Fui ferido, a nossa malta pensou que eu estava morto e não me pôde apanhar. Os do PAIGC,  sim, apanharam-me e quiseram-me levar para o hospital deles mas, como eu não podia andar, tiveram de me levar numa maca até Ziguinchor.

Quando o Domingos Maçarico me contara cheguei a interrogar-me como o teriam feito, não achava que fosse possível. Agora ficara admirado, fora mesmo.

 
– Desde a mata central da Guiné até ao Senegal, cuidado!

–  Foram dez dias a atravessar matas, bolanhas e rios, e a fugir dos nossos também. Nem queira saber o que eu passei.

 
– Imagino, sim, imagino. Não deve ter sido nada fácil. E como é que foste tratado lá?

 – Foi um médico português desertor, o doutor Pádua, que me tratou do joelho. E muito bem. Eu tinha a rótula partida, ele arranjou-ma e pôs-me a andar de muletas. Disse-me que tinha já uma infecção e que teria morrido de certeza se eles não me tivessem levado e tivesse lá ficado.

– Estava lá mais algum português ferido?

– Não. Onde eu estava era só malta do PAIGC, também feridos da guerra.

 
– Só!? E davam-se bem?...

Estava curioso e interessado em saber como era que os feridos pelo lado do Fragata o aceitavam ali com eles.

– Demo-nos bem. Olhe, até fiz lá amigos. O chefe deles, o Luís Cabral, levava-me, às vezes, cigarros e eu dava alguns aos outros. Era malta porreira. E olhe, meu alferes, devo agradecer ao Luís Cabral porque foi ele que conseguiu que a Cruz Vermelha me trouxesse para Portugal. É mesmo um gajo porreiro.

Espanto ouvir isto de um inimigo de um lado sobre inimigos do outro lado. E ver que estes não hostilizavam o outro. Mais uma vez me tinha de interrogar sobre o significado da palavra inimigo naquela guerra. Mais uma prova que o eram à força, que alguém é que queria que fossem inimigos.

Enquanto falava com o Fragata, ia dando umas miradas aos outros que lá estavam e via-os interessados na conversa. Acabei por ficar familiarizado com aquele ambiente e mais calmo. Senti-me mais à-vontade.

 
– Como é que foste ferido?  –perguntei ao que não tinha mãos.

 – Era o furriel de minas e armadilhas e… já sabe. Estava a desmontar uma armadilha e ela rebentou-me nas mãos.

– Aí o Quim está fodido. Nem uma punheta pode bater – disse o Fragata.

E riu-se, o sem pernas também. Menos o tronco com cabeça. Mas o Quim não se desmanchou.

 
– Trabalho mais e melhor sem mãos do que vocês com elas. Quando a minha Zulmira cá vem vocês vêem bem quanto tempo passo com ela ali no quarto do truca-truca.

Admirei-me pois não imaginava que a tropa se preocupasse em cuidar desse aspecto com os feridos que ali tinha. Se calhar era um esquema organizado por eles, também podia ser. 

Virara-me para o que não tinha pernas e ia-lhe perguntar mas ele antecipou-se.

 
–Era condutor auto-rodas e uma mina que rebentou por baixo da GMC,  levou-me as pernas. Mesmo assim, meu alferes, tive mais sorte que ali o Casqueiro  – apontou para o de tronco e cabeça. – Ele conduzia um Unimog, que é muito mais leve, e a mina levou-lhe tudo. Pernas, braços e tomates. E até o deixou surdo.

Fiquei silencioso. Além dos mortos, até tinha entre eles uns amigos, havia estes jovens com a vida desfeita, sem hipóteses do futuro que podiam vir a ter se não os metessem naquela guerra. O Casqueiro sobretudo. Estava ali, rosto fixo sem ouvir nada da conversa deles. Era um homem-saco só podendo abrir a boca para lhe meterem comida e água. Já reparara que devia ter uma fralda, de certeza que era onde fazia as necessidades. As deste muito mais, mas os outros também tinham ficado com grandes limitações. O Fragata safara-se, e graças ao inimigo. À vista disto já não era a estupidez ou as barbaridades como se fazia a guerra que me perturbavam, era a guerra em si, e sobretudo esta sem sentido que deixava tantos sem futuro.

Os outros notaram como eu estava. O Fragata quis amenizar. Era palerma, às vezes, mas era bom rapaz. Eu sabia disso.

– Eu aqui, meu alferes, sou o anjo deles  
– disse –. Ali ao Quim sou eu que lhe abro a carcela quando ele quer mijar. Mas não lhe pego na gaita! – os outros riram-se.  – O Fragoso não, que o gajo tem mãos para arrear as calças. O Casqueiro não é preciso tratar dele, ele faz tudo sozinho  – riram-se todos. – Tenho é que chamar o enfermeiro quando o gajo se borra e mija todo. É cá um pivete!  – os outros riram-se novamente. –  E à noite? Nem queira saber.  Quando estes gajos se põem a sonhar com minas e emboscadas não me deixam dormir. Tenho de os acordar e chamar o enfermeiro para lhes espetar uma agulha.

Já vira, já vira a malta inutilizada e traumatizada ali despejada. Aquelas piadas eram um intervalo curto nas suas horas longas de angústia e desespero. Tinha de sair dali.

–  Vou-me embora. Mas antes diz-me lá, ó Fragata, ainda bebes mijo?

– Não goze comigo, meu alferes. Agora é só cerveja.

 
– É melhor. Conta lá essa do mijo aos camaradas.

Apertei a mão ao Fragata e ao Fragoso, um coto ao Quim e dei uma palmada no ombro do Casqueiro. Este fez um esgar de saudação. Não ouvira nada mas já devia estar habituado a imaginar.

Dois dias depois, no DGA, meteram-me nas mãos uma guia de marcha para embarcar no Uíge e apresentar-me no Quartel-General do CTIG. O embarque era daí a três dias. Ardera mesmo, concluí. Da primeira vez ainda fora embalado na ignorância, mas agora não, já sabia bem como era aquilo, até já vira as consequências. Porque não fazer como alguns fizeram, o Gonçalves por exemplo, dar o salto para França? Andei todo esse dia em que me deram a guia de marcha a pensar nisso.

À noite marquei um encontro com o meu novo contacto. Falei-lhe da ideia de dar o salto mas ouvi-o dizer o mesmo que já o Herculano Carvalho já me dissera. Que era melhor não desertar, que havia trabalho a fazer na Guiné.

 
– Tens guia de marcha para o QG do CTIG, não é? Ali é que é porreiro. Não vais para o mato e, ali no QG, podes conversar sobre a situação com muita gente. É ótimo sítio para tal.

***

Grande navio, não era nada como o Ana Mafalda. Como não ia integrado em nenhuma companhia era só dormir, comer, jogar às cartas, apanhar sol. Ia um grupo em rendição individual e foram todos bons parceiros. Foi uma viagem magnífica.

Desta vez não foi como da primeira, quando tivera de saltar do Ana Mafalda para uma LDG e seguir logo rio Geba acima. Agora desembarquei em Bissau e fui apresentar-me na Repartição de Pessoal do Quartel General.

–  Você vai ser colocado numa companhia do recrutamento da Província que está lá em cima, ao pé do Senegal  – disse-me um capitão.

Abri a boca de espanto. Mas que merda era esta?!

– Mas, meu capitão, eu vim do hospital da Estrela. Não estou em condições de ir para uma companhia operacional.

– É, pá, tem de ser. Há um alferes de lá que teve de ser hospitalizado e é preciso substituí-lo urgentemente.

– Mas eu estou à rasca dos ouvidos. Como é que vai ser?

– Paciência, nosso alferes. Amanhã, logo de manhã, sai uma DO para levar os frescos e o correio, você vai nela. O capitão de lá já está avisado.

– E não posso ir para a companhia onde estava antes?

 
– Você já foi substituído lá há uma data de tempo. Pensa que tinham lá um lugar em aberto para si, é?  – fez um sorriso irónico. – É o que você vai fazer agora, vai substituir outro.

– Mas o que me foi substituir na outra companhia morreu, eu sei…

– E também já foi substituído, é assim. Prepare-se para partir amanhã.

Que merda! Que fazer? Nada, não podia fazer nada. Apenas ficar furioso e desforrar-me com uns uísques no bar de oficiais.  (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo de A. Marques Lopes, 1944-2024) (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).

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Notas do editor: