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terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26307: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (36): uma guerra que também era... ototóxica!

Uma preciosidade, uma relíquia farmacêutica: o célebre medicamento contra o paludismo, Pirimetamina, 25 mg,, LM (iniciais de Laboratório Militar)... 

Havia duas tomas semanais (a pastilha à base de quinino era dissolvida em meio copo de  água),  às quintas e domingo, segundo o nosso camarada médico, Rui Vieira Coelho... A imagem é do António Tavares (ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72).

 Havia diversos "mitos" à volta deste "profilático", e que levavam à recusa em tomá-lo: um deles é que “fazia mal...à tusa”!...

Segundo o nosso camarada Rui Vieira Coelho (ex-alf mil médico BCAÇ 3872 e BCAÇ 4518, Galomaro, 1973/74, hoje médico, reformado, natural do Porto ou a residir no Porto), "nas crises palúdicas o tratamento era feito com Resochina em soro polielectrolítico e aplicação endovenosa e dava sempre uma incapacidade de alguns dias, sobrecarregando os colegas e diminuindo a capacidade operacional do grupo de combate a que pertenciam ou levando á substituição por outro pessoal o que moral e eticamente era reprovável no caso de serem feridos em combate" (...) (*)

Foto: © António Tavares (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



Uma guerra que também era... ototóxica

por Luís Graça


Um dia sonhaste que tinhas uns 'ouvidos novos' . Ou melhor, sonhaste que tinhas encontrado no lixo uns 'ouvidos novos'... e que os mandaste recuperar. De outra vez, o sonho era que tinhas recebido em "herança", de um amigo querido que acabara de morrer, um par de próteses auditivas novinhas em folha, além de uns  "mocassins" (que ele nunca chegou a usar)...

Surdo que nem uma porta, o teu amigo nunca se habituara aos malditos aparelhos. Deixou de conviver, de aparecer na tertúlia dele, isolou-se e morreu sem um ai nem um ui, vítima do Covid-19...

Afinal, tens má consciência por toda uma vida em que foste predador do planeta. Agora, tarde e a mais horas, 'andas numa de reciclagem', gozam contigo os teus filhos e os teus amigos. Reciclas tudo o que podes, até querias pôr "ouvidos novos", reciclados, imagina!... (Pois é, não sabes que raio de planeta vais deixar para os teus netos e bisnetos, se os tiveres.)

− Rins, fígados, corações, e outros órgãos, dá para transplantar... Mas ouvidos, ó senhor professor ?!... Implantes cocleares, queria o senhor dizer − gozou contigo o otorrino.

− Có... quê ?! ... Ouço mal, desculpa.

Foste fazer um audiograma, mas primeiro passaste pelo otorrino, teu velho amigo e conhecido, para limpar a merda dos ouvidos. Um deles tinha "favos e favos de mel e cera". 

−  Mais cera do que mel. Ou era só cera ?... 

− Um "pedregulho"! − disse ele, para teu espanto, apresentando-o na cabeça do dedo mindinho.

Ficaste assustado. Costumavas usar cotonetes...

− Qual quê ?!... Os ouvidos limpam-se com os cotovelos... E também podes usar um óleo, até o creme Nívea, para lubrificar o ouvido... Todos os dias, um bocadinho.

Há já uns anos que ouvias mal, já não ouvias os alunos da terceira fila na sala de aulas. Muito menos o safado e emproado locutor de serviço ao telejornal. Deixaste de ouvir e ver televisão, que, além disso,  só te trazia más notícias.

Nem podias ir ao teatro, que os atores só falavam para eles e entre eles e o ponto. E a primeira fila era só para os convidados, os críticos e os amigos bons de ouvido. E mesmo para ouvir a tua querida 9.ª sinfonia tinhas que levar um "funil" (punhas a mão atrás da orelha, a fazer de funil), o que irritava o espetador da fila de trás. E logo tu que eras um melómano... Então, música de câmara, só sentado na primeira fila. o o pescoço esticado e a mão em funil.

Desististe.

− É mau sinal um gajo começar a desistir. De fila em fila acabas na última. E depois é o corredor do hospital, o terminal da morte.

Mas não eras tão melómano como aquele professor do conservatório nacional de música que te garantia que de vez em quanto tinha que ir a Berlim "limpar o ouvido"...

− "Limpar o ouvido" ?...

− Sim, ouvir a orquestra filarmónica de Berlim.

O sacana do otorrino, teu amigo, há uns anos atrás, lá no consultório dele, encolheu os ombros, e interpelou-te:

− Mas o que é o senhor professor quer que eu lhe diga ?!... A idade não perdoa, meu caro, a perda auditiva é irreversível"...

− Merda para a idade, senhor doutor!... E então os milagres das novas ciências médicas para cujo peditório também dei durante anos e anos ? Eu quero uns ouvidos novos, quero uma anca nova, quero uma recauchutagem do esqueleto, como deve ser, da cabeça aos pés... Tudo a que tenho direito...

O otorrino riu-se à gargalhada.

− A saúde custa cada vez mais caro. É já um bem de luxo. Nunca será para todos.

Nunca foste egoísta, agora estás a sê-lo... Andaste cinquenta anos a descontar para a ADSE (e continuas a descontar), nunca tomaste um medicamento, nunca foste à faca, nunca gastaste um chavo ao SNS, nem ao provedor da santa casa da misericórdia lá dá tua terra de que eras irmão... Foste amigo de ministros da saúde. Tinhas saúde para dar e vender. Nunca meteste uma cunha a Deus nem ao Hospital de Todos os Santos, também nunca te calhou o euromilhões ou a sorte grande, mas a verdade é que também não jogavas, e quem não arriscava não petiscava, lá dizia o saloio do Zé Povinho, que aprendeu a acender uma vela a Deus e ao Diabo....

Não jogaste, não ganhaste, não arrombaste os cofres da santa casa da misericórdia quando foste mesário. Agora andas a fazer as contas à vida: tanto para os ouvidos, tanto para a anca, tanto para os joelhos, tanto para a farmácia...

− E que Deus nos livre do raio do Alzhemeir! − pediste tu, à tua médica de família como "prenda de Natal"....

E no outro dia foste à audiologista:

− Otites líquidas, teve em pequeno? −perguntou-te ela, inquisitorial.

− Minha querida, quem as não teve, em pequenino, ou no Portugal pequenino em que nasci, vivi e cresci ?

E depois acrescentaste:

− E o meu médico era a ti'Gertrrudes, minha vizinha, da minha rua, guardadora de segredos terapêuticos milenares... Do sarampo à varíola, da pleurisia aos furúnculos, do quebranto à espinhela caída, tinha soluções milagrosas para tudo...

Algumas "repugnantes", como a merda de galinha em compressas no peito...

− Médicos ?... Só havia um lá na terra, e a gente só o chamava no estertor da morte ou nalgum parto de má hora.

E por descargo de consciência, ainda a esclareceste, a tua audiologista, sobre o teu passado:

− Depois disso, estive no século passado na Guiné, na guerra, ouviu falar ?... A menina é jovem, já nasceu depois do 25... E mesmo que fosse antes, nunca iria para a tropa. Só se fosse enfermeira paraquedista, conheci algumas na Guiné... Mas contavam-se pelos dedos as mulheres que foram à guerra...

− Já nasci nos anos 90, mas ouvi falar! − ripostou ela.

−  De quê, da guerra ?...

E enumeraste um rol de situações que só se viam nos filmes:

− Tiros, explosões, emboscadas, minas anticarro, acidentes com viaturas, quedas mais ou menos aparatosas, picadas, solavancos, cabeçadas, cones de fogo nas trombas, trambolhões, bezanas, esquentamentos, febres palúdicas... sabe como são estúpidas as brincadeiras da guerra, quando se tem vinte anos, sangue na guelra e as hormonas a rebentar a pele...

− Ah!, já sei!... Quinino, ototoxicidade!

− O quê... ?

− Há certos medicamentos que são otóxicos... Já passaram por aqui alguns antigos combatentes da guerra do Ultramar que se queixavam do mesmo mal... Surdos que nem uma porta!

− Ah!, o quinino, a pastilha LM, do Laboratório Militar, que a gente tomava regularmente, às refeições... Por causa das sezões,  malária ou paludismo... Lembro-me !

E, retomando o fôlego:

− Eureka!... Se me lembro !... Um pacotinho de sal e outro de quinino, ao almoço!... O quinino, pelo menos duas vezes por semana.

−Parece haver evidência científica de que o quinino pode provocar danos ao sistemas coclear e/ou vestibular"...

− Desculpe, não percebo nada da anatomia e da fisiologia do ouvido... Mas com essa do quinino, é que a menina me estar a lixar!... Não sabia, mas devia saber, porra, afinal andei anos e anos a falar de saúde e segurança do trabalho, de surdez profissional, de efeitos extra-auditivos do ruído como o stress..

− Não sou farmacêutica, mas há para aí mais do que uma centena de medicamentos ototóxicos. Acrescente-lhe o antibiótico, a penicilina, medicamentos oncológicos...

− Porra, tomávamos aos milhões, a penicilina...

− Agora, não há remédio, e não precisa de dizer palavrões... Sou sensível de ouvidos... Ou melhor: felizmente há remédio. Deixe isso comigo.

− Remédio ?!...

− Vamos lá ver o audiograma e, depois, pôr estes "brinquinhos" no ouvido, devidamente regulados...

− Com essa é que me tira o sono, que a guerra era tóxica, eu já o sabia, mas que também podia ser ototóxica, não me passava pela cabeça (nem pelo ouvido)!... Devia pedir uma indemnização ao Estado!...

− É mau para o Estado... mas é bom, para nós, multinacionais que vendemos aparelhos auditivos, um negócio de milhões (aqui para nós que ninguém nos ouve)... − e olhou para a porta do gabinete para confirmar que estava fechada.

Não podias estar mais grato à tua  jovem audiologista:

− Já percebi, é bom que os antigos combatentes não saibam certas coisas que faziam mal à saúde... Afinal, só os juízes é que são cegos, surdos e mudos como o macaco...

− E têm que ser bem pagos por isso... − arrematou a audiologista.  
− Administrar a justiça sem olhar a quem.

− Minha querida, estou encantado por ouvi-lo... Sabe, estou até a simpatizar consigo!.

... Saíste da loja com uns 'ouvidos novos'. Feliz como o gaiato, que acaba de receber um brinquedo novo. Podias agora ouvir todas as conversas, mesmo baixinhas... Até as bisbilhotices e as conversas dos espiões!... Mais importante: podias ouvir o mar no mês de agosto, e o vento a dar nos búzios dos moinhos da tua infância...

Algumas conversas bem tu as dispensavas, é certo... Mas não há mundos perfeitos... Não se pode ter tudo. Mais vale, afinal, andar neste mudo de muletas do que no outro em carretas...

Em boa verdade, compraste uns aparelhos novos. Os do teu amigo, esses, é que foram para a  "pubela",  para a reciclagem... Que desperdício!.,. Também não quiseste  os sapatos do defunto, uns belíssimos e confortáveis "mocassins" que ele comprara em Paris... Por superstição, por preconceito, por respeito .... Ias lá usar sapatos e próteses auditivas de um morto!

Mas queixaste-te, à menina audiologista, que era era indecente pedirem-te 8 mil euros por um aparelho auditivo XPTO... Mesmo com desconto de 50% por seres conhecido da casa... e a tua patroa já ser cliente da marca.

Preferias uns, em segunda mão, reciclados. Do teu amigo defunto, que nunca os usou, se vencesses a repugnância da morte e dos mortos. Sentiste  -te ofendido com o preço altamente inflacionado do raio dos aparelhos, tu que lutaste na guerra pela tua Pátria e que, se calhar, foras vítima da ototoxicidade provocada pelas drogas antimaláricas do Laboratório Militar... Agora, sim, confirmavas as tuas suspeitas: médicos e enfermeiros davam "pastilhas LM", "mezinho", a toda a gente, brancos e pretos. Algumas eram talvez placebos, outras podiam ser "ototóxicas"...

Em vez de uma cruz de guerra, o Estado devia dar-te uns 'ouvidos novos', como tu chamavas às próteses auditivas... Humor negro à parte, pagaste e não bufaste!... Quatro mil euros, já com desconto e com IVA. A ADSE deu-te mil e tal e já está. Ainda estás, afinal,  a pagar a p...da fatura da guerra. (**)

_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13743: Os nossos médicos (80): Memórias do Dr. Rui Vieira Coelho, ex-Alf Mil Médico dos BCAÇ 3872 e 4518 (12): Até a Maria Turra dizia que o antipalúdico Pirimetamina, do Laboratório Militar, fazia mal à tusa...

(**) Último poste da série > 6 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26119: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (35): Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26119: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (35): Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer



Contos com mural ao fundo (35) > Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer


por Luís Graça (*)


Estiveste no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 e tal,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos teus heróis da adolescência. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos teus amigos, da época  da tua adolescência (que em vão quiseste prolongar: acabou aos 18 anos quando viste o  teu nome na lista do recenseamento militar, no edital camarário). 

Dele, o Doc, guardarás para sempre uma grande saudade, não obstante as vidas de ambas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura foste tu para a tropa e estava ele  a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abrupta e dramaticamente. 

A imagem mais dolorosa que guardas dele, é a da cama de ferro, de um  anexo de um hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro... Como virás a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço. Pode ser cruel, mas era assim nesse tempo.

Reconheceu-te só pela voz. Não se moveu nem um centímetro. Estava lúcido, mas já em grande sofrimento, e sob o efeito de drogas.  Só lhe sussurraste, ao ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentaste, estúpida e desastradamente: 

− Coragem!

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-te a despedida, irremediável, brutal, sem retorno. Sentiste-as como um punhal cravado no teu peito. Guardaste-as para o resto da tua vida: 

 Ruizinho (tratava-te sempre por Ruizinho), vai-te embora, vai-te embora!

Nunca saberás se era uma súplica, uma ordem ou um grito, uma explosão abafada  de raiva, revolta e impotência!

Trinta anos depois, não te envergonhas de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele terá proferido, no seu leito de morte, como um urso agonisante na sua toca de hibernação, ainda hoje te martelam a cabeça. E tens pesadelos ao reviver esse momento único.

Sentiste um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por teres sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... 

Por pudor ou medo atávico da morte, não conseguiste sequer tocar-lhe. Mostrar empatia. Pegar-lhe na mão. Dizer-lhe a palavra  certa, humana,  de consolo, de conforto, de carinho. Não, só uma tímida,  inócua, cobarde,  desastrada palavra, completamente deslocada naquele momento e lugar:

− Coragem! 

Mais tarde, talvez para tranquilizar a tua consciência e não sentir o peso da tua fraqueza e sentimento de culpa, irias interrogar-te sobre o significado que ainda poderia ter o teu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um ser humano… Que é quando agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que o amaram e que ele amou!...

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, a não ser talvez o invisível e impávido anjo da morte... Morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos. Nem ninguém que o tivesse amado como ele merecia.

Tiveste um ataque de choro, convulsivo, enquanto saiste dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do anexo hospitalar, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno jardim, rodeado de gigantescos ciprestes, sinistros, apontados para o céu, e que circundavam o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, vêm-te à cabeça as cenas do seu regresso da Guiné. Tu eras o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, tu eras talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer (pensavas tu, lisonjeado).

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do liceu e do grupo de teatro amador, como era o teu caso. E tu, seguramente, eras o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-te, a ti,  que eras o seu correspondente e de certo modo confidente. Trocavam correio  enquanto ele esteve na Guiné. E no grupo de teatro fizeste todos os papéis: secretário, produtor, moço de recados, ponto, aderecista,  datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… De resto, eram amigos e vizinhos de bairro, se bem que tu fosses mais novo do que ele uns bons seis  anos.

Sabias que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano e ingrato”, como escreverá um dos seus "amigos, admiradores mas  críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da  terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa,  nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como te explicará ele mais tarde. Tu ainda não percebias nada de tropa, mas ficaste a saber, pelos aerogramas que trocavam, que ele era de “rendição individual”: 

− Vim sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar... 

− Lerpar? !... 

− Morrer, Ruizinho, morrer !− explicar-te-á ele, no aerograma seguinte... − Quem vai à guerra, está sujeito a lerpar!... É um jogo de sorte e azar.

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele te dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto te apercebeste, o Doc tinha receio que a família e a malta do teatro lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador (e também dramaturgo: escreveu, pelo menos, uma peça para o grupo).  Em boa verdade, tu nunca o viras representar, no palco do teatro (nem no palco da vida). 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Tu e a Xana terão sido as primeiras pessoas da terra, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgas até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo te contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que tu tratavas com deferência por ser bastante mais velha do que tu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana a menina prendada, a Cinderela, a alma gémea do seu filho. 

Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade; acabaste por perder-lhe o rasto, na voragem do tempo.) 

O Doc desabafou contigo, explicando-te que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e tu, na ingenuidade dos teus verdes anos, nem sequer puseste a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental", falava-se de loucura e de manicómios. E muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem tu imaginavas sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele,  que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca tinham sido boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto, feio e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica ("mais do que semântica, conceptual!") que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  o Doc ter arremessado ao  chão  a toalha com a louça posta na mesa  para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Ruizinho, não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu Velho…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que te chocou e perturbou profundamente: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcançaste  o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, como um porco, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… 

Queria poder hibernar o resto da vida. "Como um urso" (sic). Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiaste uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu contigo, pondo-te fora do quarto, aos berros… Aí ficaste chocado, assustado, com a sua brutalidade,  mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, os olhos vidrados, a cor da pele amarelada,  a barba, de vários dias, por fazer, o ar cadavérico…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-te a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de "doenças tropicais"…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confessarás mais tarde, até pensaste que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Ficaste assustado com o estado de saúde, física e mental, do teu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega teu de escola. Estavas tu de piquete na redação do jornal, fazias os "faits divers", as pequenas ocorrências, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda viste, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava, nos arredores da cidade. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, agora requisitado para transporte de tropas, o Doc contou-te que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”. 

Percebeste, por entre as lacónicas frases que ele te ia rosnando, entre dentes, que a viagem de regresso no "barco negreiro" tinha sido um pesadelo.

Logo à saída da gare marítima, chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic). Em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de quase quatro horas de viagem (ainda não havia autoestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro. Na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes de teatro e cinema... Estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado,  impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, "como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar" (segundo depois te explicou).

Sentiste que esse episódio o marcara muito, mas nunca te deu grandes pormenores. E tu respeitaste a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando sequer de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer na festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para reservar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não te permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que tu nunca puseste a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderiam estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Recapitulaste cada um deles, sem  poderes entrar em grandes pormenores por falta de informação. 

primeiro  terá tido a  ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconhecias a patente, mas o mais provável era ter sido um 1º cabo).

O teu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha, frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava sob a euforia dos vapores do álcool e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, e voaram cadeiras da esplanada, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da polícia militar. Ficou lá cerca de uma manhã. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Pelo menos, um dos  alferes ou furriéis que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia, comodismo ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. 

− Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço?! − interrogava-se o Doc, em voz alta, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se-á com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior,  um major,  que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Eis o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que ele te  escreveu: 

− Os soldados, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… À porta do bar... Valas que seriam depois encimadas por bidões cheios de areia, como proteção em caso de ataque...

Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos acompanharam as ameaças do  major, 2º  comandante  de batalhão, impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros "mimos" de semelhante teor,  que o Doc interpretei como sendo grosseiros,  descabidos, inapropriados e despudoradamente racistas...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, à porta do bar, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... 

− Este, cobardolas, branco como a cal da parede,  estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... 

Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido de raiva, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e da honra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para "se recolher de imediato ao seus aposentos".

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá ainda, "timidamente", interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. 

Não sabes bem o desfecho da história. Mas verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, "desproporcionado",  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

− Tal como cheguei, sozinho como um cão, assim parti...

Nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele.

− Nem sequer o sacana do médico. Tive apenas, à mesa, dois ou três furriéis que me estimavam... 

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soubeste ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para ti,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que te escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-te:

(...) “Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, as formigas carnívoras, a exaustão física e emocional, os tufões e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos" (...).

A mãe não conteve o espanto e as lágrimas de alegria quando ele, o Doc,  espavorido, lhe entrou,  de rompante, pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Tu só soubeste da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-te de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-te:

− Ruizinho (também te tratava carinhosamente por Ruizinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus. Mas não está nada bom da cabeça, o meu pobre filho!... 

E explicou-te que estava há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, dizendo não querer ver ninguém… 

− Passa por lá, no fim de semana, almoças connosco, vou fazer um carilada de camarão com leite de coco, que eu sei que ele gosta e tu também. Pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido tua professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, "ao tempo do senhor Dom João V".

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Tinha mais quinze anos do que ela, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Tu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo…
 
Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legal e politicamente  pelo poder  central e socialmente  pela elite local. Passando a ser considerado, ostensivamente, um “oposicionista", um indivíduo "contra a situação", deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). 

Em boa verdade, fora a sua "morte social". Amargurado,  demitiu-se das suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam, alegremente,  o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, nem mesmo nalgumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Quando muito dava um salto a  Coimbra, para ir consultar bibliotecas e arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, pela história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias fixas, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locais.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O teu amigo Doc era, para ti, o irmão mais velho que tu nunca tiveras. Partilhavam  ambos alguns interesses intelectuais, a começar pelo teatro, a poesia, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da tua idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivia-se num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que o povo podia ver, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que "tiravam do sério" o teu amigo Doc,,,  

O que é que tu sabias do que se passava em África, no "nosso glorioso Império Colonial", para usar uma expressão irónica do Doc ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado,  revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouviras falar disso, muito menos da boca da tua querida professora, a  Dona Domitília,  para quem Moçambique era "o paraíso na terra"... 

Só te lembravas, na igreja, terias tu os teus 10 anos, por volta de 1958, de pedirem uma esmola ao teu santo avô para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Tu vivias numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra… A maioria dos jovens da tua geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos arrozais  e nas fábricas, na frota pesqueira,  nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a malta sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a malta soubesse... 

− Saber ler, escrever e contar acrescentava o teu amigo Doc , o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça...

Além disso, as  aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos teus colegas de escola nunca mais os viste. Alguns como tu fixaram-se em Lisboa, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Outros foram para França,  "a salto".

Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondia-se contigo, regularmente, uma ou duas vezes por mês.  Tu  guardaste religiosamente os aerogramas que ele te mandava. Tinhas intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como tu esperavas  que ele chegasse.

Quando o foste visitar, não te deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, e que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Ruizinho, queima-os!

− É um pedido?

− Não, é uma ordem!

Não lhe fizeste a vontade. Devias tê-lo feito? Continuaram guardados ao teu cuidado. Sempre pensaste que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Era material para uma ou mais peças de teatro... Mas, não, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... E acabaste, afinal,  por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral.  Hoje tens pena de não os ter fotocopiado, limitaste-te a copiar alguns excertos. 

Curiosamente ele nunca te escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. 

− Com o dinheiro que poupo nos selos, compro livros, revistas, peças de artesanato e... uísque" − dizia-te ele, a gozar. 

Tu tinhas receio que a correspondência, trocada entre os dois, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-te a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais, revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-te ele,  deixavam muito a desejar: 

− Fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… Até o português escrevem mal e porcamente!... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação à tropa… (e vice-versa). 

− Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite – afiançava o teu amigo. 

− Cepos?!... − duvidaste tu.

− Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... 

E sentiu-se na necessidade de te explicar:

− Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca toleraria essas práticas" −  garantiu-te o Doc (a quem um dia perguntaste que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, tu é que não ias na conversa do Doc: com os teus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, te haviam metido na cabeça, achavas que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabias que o teu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, um "santarrão",  ia à missa, raramente discutia política, e muito menos contigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando se jantava lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O teu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que tinha livrado os portugueses da II Grande Guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que tu não chegaste a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-te que nesse tempo tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atlântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele, de resto, ouvia a BBC.

Tinha, por outro lado, a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o teu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo (pastas e pastas da contabilidade).

O teu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Tu gostavas muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava contigo. Dizia-te na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave do céu mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca te deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde tu trabalhavas, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tinham uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde se publicavam notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do teu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE.

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do direito ao adiamento da incorporação militar… 

Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão,  na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embora fosse um "segunda linha"...

O jornal onde tu trabalhavas (e que foi, de resto, o teu primeiro emprego), "o teu jornal",  estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal tua catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A tua terra tinha fama de acolher bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estavam as "forças vivas" da terra, aquelas que tinham nome, património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época e para a terra) armazenista de vinhos que exportava para África, e sobretudo proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero). O teu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso dispicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para ti a a tua escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar contigo por causa do teu “jornaleco”… Pensas que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tu e o teu diretor tinham uma diferença de quase trinta anos.  A ele ficaste a dever alguns favores e até confidências. Por ele soubeste que tinha vivido numa república de estudantes, em Coimbra, acabando por se envolver na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto,  mais tarde – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde tu te incluías, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como tu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio te confessara que, na "Lusa Atenas",  publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentaste tu, com alguma irreverência e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebeste o seu "recado" (que, no teu caso, visava as "más companhias" como o teu amigo Doc e o grupinho do teatro amador da cidade)... Mas só mais tarde é que eu vieste a contextualizar  as suas esporádicas conversas na redação do jornal, depois de descobrires que 
 o “teu patrão” se tinha tornado,  rapidamente, um entusiástico defensor do marcelismo...

Mas, voltando ao teu amigo Doc, que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez... A malta do liceu e do teatro sempre o tratara por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica… Era uma alcunha carinhosa. E ele não se importava.

Tu, pelo teu lado, ainda estavas longe de saber o querias fazer da tua vida...  Começavas a preocupar-te , isso sim, com a guerra que alastrava em Angola em 1961 e com a mobilização dos teus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica... E em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, em menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da tua formação intelectual e até literária deves-lha a ele, ao teu amigo Doc. Emprestava-te livros, trazia-me jornais e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoólica, deves acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxera da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo.  

Mas foi também a época em que tu deixaste de ver o Doc, com regularidade. Soubeste depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causa das eleições legislativas de 1969, rompendo então, definitivamente, com a sua cidade natal. Há muito que  deixara, de resto, o teatro da cidade, que passara a ter um novo diretor, aquando da sua partida para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E tu nessa altura acabavas de chegar à  Guiné, onde votaste em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ias tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo, o seu "caçula". 

Depois tu e o Doc perderam o contacto... Deixaram mesmo de ser "íntimos", se bem que a  amizade entre ambos estivesse para durar até ao fim da vida... Soubeste, por outras vias, que ele se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tens  aerogramas dele do teu tempo de Guiné. Nunca se  corresponderam nesse tempo. E um ou dois que lhe escreveste, não tiveste coragem de os pôr no correio...

Depois do teu regresso à Guiné, e da tua própria "cura de sono", tiveste em Lisboa notícias dele e da família:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que é que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda dera ao pai do Doc algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à autodeterminação de Angola, Guiné e Moçambique... 

Mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o "velho republicano e maçónico, admirador do Norton de Matos"; morreu em finais da década de 1970, sem nunca ter podido  realizar o sonho de voltar às terras do Índico, que ele amava de alma e coração.

Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, quinze anos depois, no princípio de 1990 ?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e depois numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimento para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

− Enfim, ando por aí  
− como te garantiu ele, da última vez que falaram ao telefone  − a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade... 

Mas nunca mais voltou  à Guiné, nem nunca manifestou desejo de o fazer. E nunca sabias ao certo por onde ele parava... Era ele que te costumava telefonar pelos teus anos. Tinha esse gesto bonito para contigo. Gostava, contudo,  de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Em tempos tinha-te manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E tu ainda o ajudaste a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de aventura e liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que tu soubeste que ele estava a morrer. No anexo do hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do teu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão. Sem uma palavra.  Sem um gesto de compaixão. Sem um adeus. 

© Luís Graça (2020). Revisto: 6 de novembro de 2024.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico


Contos com mural ao fundo >  Ciúme patológico

por Luís Graça (*)


A Nucha ainda estava bastante combalida quando tu, na semana seguinte, lhe telefonaste. Por mero acaso, numa daquelas vezes em que te lembravas de fazer a ronda dos amigos que viviam longe.  (Gostavas de saber, de viva voz, que  a malta "ainda ia estando por cá",  se bem que já com a saúde "remendada"...   Tudo isto antes da pandemia, tragédia que mudou para sempre as nossas vidas. )

A Nucha estava viva, graças a Deus. Mas tinha tido um “acidente de percurso” (sic), nesse princípio de verão de 2017. Desconfiaste do eufemismo...

− Acidente ?!...

− Num ataque de ciumeira, o meu ex tentou estrangular-me!

− O quê, estrangular-te ?! Quem, o teu ex ?!... Não posso acreditar!...

− Desculpa, 
 nestes anos todos nunca te cheguei a falar dele, e da nossa relação!...Mas tu conheceste-o, uma vez na Casa da Música.
 
Sentiste que ela precisava de desabafar.  Nada, afinal,  como ter um velho amigo (e confidente). A 300 km de distância. Longe mas sempre ao alcance de um clique. 

Ainda os telemóveis não faziam videochamadas. Pelas fotos que ela te mandou,  dava para perceber a gravidade da agressão de que fora vítima… Trazia um colar cervical.

Segundo as suas queixas, sofrera diversas contusões no pescoço, mas também na couro cabeludo e no peito. Felizmente não havia vértebras cervicais partidas.

Logo que pudeste, em meados de julho desse ano, arranjaste um pretexto para estar com ela
. Tinhas uma viagem no Alfa, paga. Até Braga, por razões profissionais. Aproveitaste para ir na véspera e ficar no Porto nesse fim de semana.

A Nucha era uma das “mães-fundadoras”  da Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**). Juntavam-se às quintas feiras.  
Tu havias entrado neste grupo, como "observador-participante", justamente através da Nucha e do seu projeto local de promoção do envelhecimento ativo e saudável. 

−  Deixou-se ir abaixo com esta história toda, anda deprimida 
− confidenciou-te uma das pessoas do grupo que lhe estavam mais próximas. 

Mas, não faltaram logo, à boa maneira nortenha, as manifestações de afeto e de solidariedade, por parte dos caminheiros e demais amigos.  O  “caso” tornara-se público, contra a sua vontade. 

A Nucha fora vítima de violência doméstica. Disso ninguém tinha dúvidas. Algumas pessoas do grupo estavam chocadas, umas mais do que outras.

− Uma brincadeira, ao que parece, que poderia ter acabado em tragédia – terá comentado um dos caminheiros com quem falaste ao telefone.

Ninguém achou graça nenhuma  à subtil insinuação desse caminheiro. "Brincadeira" ?!... Para mais vinda  de alguém que, no passado, também fora vítima de violência conjugal. Neste caso por parte da companheira, que sofria de graves problemas de saúde mental. 

Enfim, o termo “brincadeira” não estava isento de uma conotação algo machista.

− O gajo, no fundo, está a insinuar que a Nucha também tivera culpas no cartório, “ao andar a brincar com o fogo”... Estás a ver a mente pornográfica destes sacanas?! 
− comentava uma amiga dela.

Quanto ao ex-companheiro da Nucha (que vivia com ela há cerca de oito anos, e que ela te apresentara uma vez como "amigo" ) contaram-te que fora ouvido, no dia seguinte, na polícia e depois no tribunal, na presença do seu advogado.

A Nucha apresentava, pelas fotos que tu viste,  claros sinais de ter sido vítima de uma grave agressão, com escoriações ao nível do pescoço, peito e cabeça. Teria havido uma tentativa de estrangulamento, num acesso de fúria provocada, ao que parece, por uma crise de “ciúme patológico” (sic).

− Patológico ?... Dizem-me que o ciúme é o fogo que alimenta, a lume brando, o amor.

− Todo o ciúme é patológico!... Não me lixes − asseverava ela.

A verdade é que a Nucha ficara muito afetada, física e psicologicamente. 

“In extremis” conseguira libertar-se das mãos do agressor, e chamar o 112. O INEM veio com a polícia. O  fulano acabou por cair em si e deu-se por “culpado”. (Até por que era um homem "educado, culto e inteligente", disse o advogado no tribunal.) 

A Nucha foi levada, à meia noite, para o Hospital de São João,   tendo estado dois dias em observação e depois em tratamento.

Compreensivelmente, ela nunca mais quis voltar à casa da Foz. Nem sequer para ir buscar uma muda de roupa e alguns objetos pessoais mais urgentes.  Incumbiu, p
ara essa tarefa, uma amiga, que morava para os lados da avenida da Boavista. 

A Nucha voltou, de vez, para o seu apartamento na Rua da Alegria. 

− Os 50 metros quadrados da sua ilha preferida.

Costumava dividi-los  com o confortável casarão da Foz, nomeadamente no outono e inverno, estações mais "tristonhas".

− Na primavera e no verão, preciso de sentir na pele a maresia, preciso de estar junto ao mar, como a Sophia [de Mello Breyner], faz-me bem aos quatro humores… 

A Nucha confidenciara-te que nunca mais  poderia viver por detrás de uma serra!.,. Detestava o rosmaninho e a urze, aromas de uma infância em que decididamente não fora feliz!

O juiz impôs ao agressor,  como medida de coação, o simples termo de identidade e residência... Aguardou o julgamento em liberdade...


− É a merda da nossa justiça, no seu melhor, uma justiça ainda com muitos tiques de classe... Pior ainda, misógina, sexista, homofóbica e racista 
−  comentou-se no grupo que, em peso,  foi solidário com a Nucha.

Sobretudo as mulheres não escondiam a sua indignação:
 
− Os nossos juízes, e nomeadamente os machos, mas também algumas juízas que vestem calças, parecem, às vezes, ter dois pesos e duas medidas... Pelo menos, em matéria de crimes sexuais e de violência de género, incluindo a violência doméstica. Tudo depende do sexo e da classe social da vítima e do agressor.
 
Mas, afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha ?...  O "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico   nortenho.

Bom, vieste a conhecê-lo melhor mais tarde. Não no Porto, mas em Lisboa. Por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum,  fotojornalista, que to apresentou:

− O eng. Vaz C... (vamos omitir o apelido por razões obvias.)

− Por acaso, já nos tínhamos visto antes...

Não vais dizer que ficaram amigos, seria uma fanfarronice da tua parte. Afinal não costumavas fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição", uma quebra de solidariedade para com a tua amiga Nucha que tu conhecias há mais de vinte anos, e que era uma boa e leal amiga do Norte.

Mas tiveste depois, mais tarde, uma conversa franca,  com o "engenheiro"... Ele prometeu que, "um dia", iria contar-te a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... De
 resto, ele sabia  tratar-se de uma amiga tua de longa data.  

O tribunal condenara-o a a 30 dias de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos corporais e morais, à Nucha.

Deves ter-lhe inspirado confiança. Por outro lado, tu tinhas a vantagem de estares em Lisboa, de não seres do Porto nem viveres no Porto. E muito menos na Foz.

O  Vaz C...  era um engenheiro químico. Fizera toda a vida no Porto mas tinha as suas raízes no Alto Minho (curiosamente, tal como a Nucha).

− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho, neto e bisneto de engenheiros... O meu bisavô, esse, era engenheiro militar e ainda chegou a conhecer o Fontes Pereira de Melo. Tenho orgulho nas minhas raízes.

Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade. Nem muito menos aos seus colegas,  professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia.  (E onde, de resto, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí que tu a conheceste.)

Também eram muito raros 
os amigos comuns. O Vaz C... não te explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem chamavam, no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...

Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, "cada um na sua casa, como convinha".  A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Formavam um casal atípico. "Andavam juntos" há cerca de oito anos, com interregnos, e com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que, é curioso,  ela nunca quis conhecer.  

Preferiam dizer que "andavam juntos" do que "viviam juntos". A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por conveniência, comodidade, preguiça,  inércia, etc. "Por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar"... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados". Nem nunca terá estado atenta a eventuais "sinais de crises de ciúmes"... Consideravam-se pessoas adultas, cultas, racionais, livres...

− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-te ela.

Ele também raramente a apresentava como "namorada", e apenas  aos vizinhos e conhecidos, mais próximos. Não era nada "exuberante" no que dizia respeito à sua vida..."amorosa". Era um "cavalheiro",  em suma.

Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pela segurança e condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Nas despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar.

 De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogio que ele próprio fez, na conversa que teve contigo. 

A Nucha confirmou-te que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.  Adorava o "Alvarinho" da sua terra...

Não, não  era um desses "antigos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico". Vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. 

A casa na Foz ("um casarão", integrada agora num condomínio fechado) já vinha de família, mas fora remodelada. O pai tinha sido um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário). E dera-se bem com as obras públicas do Estado Novo.

− Pela minha parte, investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...

Foi ele próprio que te deu alguns detalhes do seu currículo profissional. Tinha sido, durante mais de três décadas, um alto quadro de um conhecido grupo empresarial do Norte,  ligado à indústria transformadora.

Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)

− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos. Se o grupo não se abre (ao capital estrangeiro), os filhos e os netos estariam hoje na miséria. A empresa familiar não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... 
Hoje está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional.

E prosseguiu o teu interlocutor (que parecia ter necessidade de falar do seu passado):

− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um tumor. Fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. 

Com um prognóstico tão reservado, toda a gente entrou  em pânico. Ele era muito centralizador, para não dizer autocrata. Gostava sempre de ter a última (e decisiva) palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". 

- Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, eu não tinha funções executivas.

Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão.  Este regressara  à fábrica, vindo da América, com o canudo de um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, "com toda a legitimidade", o lugar que um dia, pela "ordem natural das coisas", o pai deveria deixar ... ao "morgado". 

Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão... E confessou-te, o Vaz C...,  o que sentiu com a morte do "Velho":

− No dia seguinte, tive a sensação (sufocante) que aquela casa também já não era a minha...

A correlação de forças mudara com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.

O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", embora com funções consultivas. 

Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine". Acusavam-no  de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nada benéfica) sobre o "Velho".

− Substituiram o rei (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se... Vi este filme noutras empresas aqui do Norte.

Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...

− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...

O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do seu curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.

O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele gostava de  dizer, na brincadeira entre "colegas"), mas era de outra geração... 

Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar" e de sobretudo de "resolver problemas práticos sem grandes equações".

− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa. E, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se. Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, 
ao PREC, à deriva totalitária, às nacionalizações, à intervenção do FMI, , etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...

Não foram trinta, emendou ele:

− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...

 Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de contratar o jovem e brilhante Vaz C...para a sua equipa de gestores e assessores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, ou seja, meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa... 

Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e confidente do "Velho", e um homem, afinal, poderoso. 

Resumindo:

− Eu era um "colarinho dourado" muitíssimo bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. 

E arrematou: 

− A única coisa boa que me aconteceu nestes últimos oito anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabei de a perder, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher. Perdi completamente a cabeça, meu Deus!

Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso. O teu interlocutor ia sendo traído pela emoção. Recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:

− Há coisas que fazemos que não têm volta a dar: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo de um negro que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...

Depreendeste, ou deduziste,  que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...

Ainda estavas à espera que ele te contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso... 

Respeitaste o seu silêncio, levantaste-te, despediste-te dele... e nunca mais o voltaste a encontrar.

Só mais tarde é que conseguiste saber mais pormenores, através da Nucha,  sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação... 

 − Um relação que tinha tudo para ser tranquila e até feliz − assegurou-te o engenheiro,  quase no fim da conversa (que foi mais um monólogo).

Eis,  em resumo,  alguns excertos de longas conversas que tiveste, entretanto, com a Nucha, permitindo completar o “puzzle” do retrato do seu ex-companheiro e da narrativa sobre a relação de ambos, que terminara num já longínquo mês de junho de 2017:

− De qualquer modo, houve uma punição legal e uma reparação material… A justiça é sempre relativa.

− O tanas, minha querida!... Ele teve uma pena suspensa, caricata, e foi obrigado a indemnizar-te por danos físicos e morais…mas isso para ele foram "peanuts".

− De mal o menos… Se eu fosse uma verdadeira lutadora, como a minha vizinha Maria da Fonte, ter-me-ia esforçado por provar que vivíamos juntos a maior parte do ano, em união de facto… Por uma questão de orgulho, não o fiz… Bloqueei!... Nunca me tinha visto num tribunal, com montes de gajos a despirem-me, mentalmente, de alto a baixo!

− Ias pôr em causa o teu autoconceito de mulher livre e independente ?!

− Posso estar a ser burra, mas assim foi-me mais fácil varrê-lo completamente da minha vida e das minhas memórias…

− ?...

− Sou uma mulher do Minho… de pêlo na venta e nas pernas!... Nisso sou uma cópia, a papel químico,  da minha mãezinha, que era capaz de ser má como as cobras, quando lhe pisavam os caules!

− Que disparate!

− ... Legalmente não houve violência… doméstica! Não éramos um casal, o juiz deve pensado que eu era um cabra, julgou o caso como uma simples agressão corporal…

−… na cama!

− Foi tudo muito sórdido!... Ele [o Vaz C…] tinha massa, arranjou um advogado, conhecido aqui na praça, que lhe limpou  a barra...

− E inverteram-se os papéis, não ?!

− Sim, às tantas, eu é que era a má da fita, a fria e astuta Eva que ludibriara o pobre e indefeso Adão!... Tive de reconstituir não sei quantas vezes a cena dessa maldita noite!...

−  Tens de ma repetir para eu poder defender-te quando as pessoas vêm insinuar que fizeste uma cena de teatro só para provocar o teu ex...

− Foi o que o advogado dele procurou demonstrar perante o juiz, passando da defesa ao ataque… A minha advogada era uma jovem, minha conhecida, que estava mais atrapalhada do que eu!...

A Nucha reforçou-te a ideia de que o tipo afinal tinha uma dupla personalidade:

 − Sabes, ele era um tipo misterioso… E deixa-me, desde já,  falar dele como sendo um fantasma do passado!... Pensava que o conhecia minimamente, que estupidez a minha!...Vivi com um animal estranho, durante oito anos, se não foram oito, anda por lá perto, com muitos intervalos pelo meio entre a casa da Foz e a da rua da Alegria…

− Ele falou-me em tiros de G3, deu a entender que andou na guerra colonial… Não quis aprofundar o assunto, seria indelicado da minha parte...

− Sim, ele esteve na Guiné, entre 1963 e 1965, se não erro… Não sou boa em datas. Regressou com 25 anos e só depois é que acabou o curso de engenharia, faltava-lhe um ano ou coisa assim… Deve ter apanhado a crise estudantil de 62… Não te sei dizer.

− Nasceu portanto em 1940 ou por aí…

Sim, ele era mais velho do que a Nucha uma boa dúzia de anos… Ela era de 1952.

− Falava-te da guerra ?

− Pouco ou muito raramente... Sim, quando fomos à Guiné-Bissau, ou melhor, à ilha de Orango, no arquipélago dos Bijagós… Fomos de avioneta, diretamente de Dacar para Orango… Em rigor, não estivemos na parte continental da Guiné-Bissau. Nesses dias, que adorei, vi os estranhos hipopótamos que vivem tanto em água doce como salgada, e que vão desaparecer com a subida do nível do mar, daqui a algumas décadas… Sim, nesses dias, ele falou-me por alto de algumas recordações do tempo da Guiné… Tinha estado em Bubaque, em 1964, numas curtas férias…

− Mas nunca te falou em episódios de guerra ?!... De um prisioneiro que terá tentado fugir e que ele terá abatido à queima-roupa...

− Não... Acredito que não deve ter sido fácil para ele. Mas eu também não queria saber nada sobre esse passado obscuro. E muito menos da merda da guerra!...  

− Deve ter tido também um divórcio litigioso… E deve ter havido, aí, no passado dele, mais episódios de violência doméstica, não ?!

− É bem possível, mas era assunto tabu entre nós. Nunca falámos da ex-mulher dele. Nem eu queria ouvir falar dela, nem de filhos e netos... Afinal, também sou ciumenta, como toda a gente.

− Estranho, não ?!,,, O passado de cada um de nós é sempre uma caixinha de Pandora...Percebi que também perdera os pais, ainda relativamente cedo…

− Sim, num estúpido acidente automóvel, nas vésperas de Natal quando iam para Viana do Castelo. Há uns trinta e tal anos. Ele é que ia a conduzir. Os velhotes iam atrás. Ficaram esmagados pelo embate de um camião TIR, que ficou sem travões…

− Não o amavas assim tanto…

− Vamos lá a ver: habituámo-nos à companhia um do outro. Tínhamos, de facto,  algumas coisas em comum. Por exemplo, éramos cinéfilos, adorávamos o cinema italiano do pós-guerra... Ele era um gajo culto, para os padrões burgueses do Porto… Gostava de ir ao teatro, gostava de ouvir um bom concerto sinfónico, etc. Não discutíamos política... Ele ia a missa, eu não...Sempre respeitei as suas convicções... Mas, amor, amor… É uma palavra demasiado forte que eu não gosto de pronunciar em vão… 

E depois de retomar o fôlego, a Nucha lamentou: 

- Andei toda a vida à procura do grande amor da minha vida, como quem joga no Euromilhões… Desisti, olha, agora jogo à raspadinha...  

− Somos utópicos…

− Somos mas é estúpidos, pelo menos nós, as mulheres, somos mais estúpidas do que vocês…

− Não digas isso, estás ainda magoada ao fim deste tempo todo.

− O meu sexto sentido, a minha inteligência emocional, o meu faro de felina... falharam redondamente desta vez… Aliás, têm falhado bastas vezes. Afinal, nunca acertei com os gajos que passaram pela minha vida, ou pela minha cama, que são coisas que deveriam ser completamente diferentes!

− Não, quando se tem vinte anos!... 

− Sim, nessa altura o sexo era tudo… E ainda não havia, felizmente, a Sida!.... Mas já tínhamos a pílula, ao menos… Nós, as mulheres!...  Lembras-te ? Dizíamos que era o "amor livre"!...

− Mas, afinal, ainda o odeias, ao teu último ex ?

− Se queres que te seja franca, tenho-lhe um pó danado. Só consigo fazer o luto de uma relação, através do ódio… Ainda não deixei de o odiar, acredita... E não quero encontrá-lo nunca mais, o que é difícil para quem vive numa cidade provinciana como o Porto. Evito, por exemplo, ir à Foz, e aos locais que frequentávamos... Felizmente que ele não vai ao Parque da Cidade... Nem temos praticamente amigos comuns...Vivi meses enclausurada como uma monja...

− O amor e o ódio são as duas faces da mesma moeda… Mas como é que se risca uma pessoa da nossa vida ?... Foram oito anos de vida juntos…Ou em que andaram juntos.  Vocês partilhavam algumas coisas boas da vida: as galerias de arte, Serralves, a Casa da Música, o teatro, o cinema, a música, a boa comida, as viagens…

− Até o nosso álbum de fotografias destrui, num acesso de raiva, as férias “maravilhosas” que ele me proporcionou na ilha do Príncipe ou na ilha de Orango… Queimei todas as fotos em que aparecíamos juntos. É assim que eu faço o luto de uma relação quando as coisas acabam mal por culpa dos gajos…

− Parece-me que o teu ódio também é contra a injustiça da justiça, digamos, falocrática, não ?!

A Nucha fez questão de te acompanhar ao comboio, apanharam o metro até Campanhã. Pelo caminho foi-te então contando, mais descontraída, o que se passara nessa noite de junho de 2017…

Vieste no comboio, de regresso a Lisboa, a tentar reconstituir, por escrito, o longo monólogo que a Nucha teve na cama com ele, o Vaz C…, e que terá sido o “móbil do crime”… Ou pelo menos a gota de água que fez transbordar o copo de uma relação já há muito desgastada pela usura do tempo, da rotina e do medo do futuro… 

(...) "Imagina, encontrei o Mastroianni em Lisboa! [começou ela a contar ao Vaz C..., os dois já deitados na cama]... Um Mastroian
ni grego, ateniense. Foi um dos estrangeiros que participou na conferência. Ele era lindo como um deus do Olimpo. Mais novo do que tu, muito mais novo. Um quarentão, charmoso, brilhante, sedutor, como Apolo. De facto, dava muita parecença com o Mastroianni quando novo... (Como sabes, sempre foi o meu ator italiano preferido... Isto de ser cinéfilo é o que dá: confunde-se às vezes a ficção com a realidade. Gostamos de tirar parecenças dos atores que vemos na tela com as pessoas de carne e osso que vamos conhecendo na vida.)

"Em boa verdade, já nos tínhamos encontrado antes, uma vez, em Barcelona, há uns poucos anos atrás, recordava-me do seu nome... Era o último da lista, o Zacarias, mas nem ele reparou em mim nem eu nele. Também era mais novo e desconhecido.  E eu era já uma cinquentona nesse tempo... 

"Desta vez, em Lisboa,  ele era a estrela da companhia. Intelectualmente brilhante, fisicamente atraente. O encontro foi de dois dias, 5ª e 6ª. No primeiro dia, à noite, houve o tradicional jantar de gala, oferecido pela organização. O sítio não podia ser mais romântico e inspirador, no terraço coberto de um hotel de charme, um antigo palacete do séc XVIII, revestido a fabulosos azulejos da época, e que milagrosamente sobrevivera ao terramoto... Com vista para a Baixa e o estuário do Tejo, estás a ver ?!... A noite estava perfeita, com uma temperatura já de verão, e Lisboa estava em festa com a proximidade dos santos populares.

"Comeu-se bem e bebeu-se melhor, sabes como são os estrangeiros quando vêm cá, a Lisboa ou ao Porto, em negócios ou trabalho, gostam de juntar o útil ao agradável, o dever e o prazer. São muito trabalhólicos mas à noite tiram a gravata e o casaco, o mesmo é dizer, a máscara. O ambiente era descontraído, e desinibido, e havia uma tremenda carga de energia positiva no ar. 

"Os trabalhos, no dia seguinte, só recomeçavam às 10h00, por alteração de última hora do programa. Esperava-se a presença do ministro. Ainda fomos ao Bairro Alto, mais para ver o ambiente e andar um pouco a pé. Depois regressámos ao hotel, que não era longe, estávamos alojados no mesmo sítio, e por coincidência no mesmo piso. Como estava sem sono e, em boa verdade, sentia-me 'very, very free, cool, happy', uma sensação que há muito não experimentava. 

"Apesar da nossa diferença de idades, para aí uns vinte, o Mastroianni quis ser gentil comigo, ficou mais tempo na conversa, bebemos o último copo 'para a sossega' (fez ele questão de mo oferecer!), acabámos por subir juntos, no elevador, despedimo-nos com um beijo e eu aí..., tive uma sensação estranha, um impulso irresistível: agarrei, qual leoa, com as duas mãos, aquela cabeça de Apolo e,  zás!, ..."

(...) "Foi nesse preciso momento que o gajo [ela estava agora a referir-se ao Vaz],  o cabrão que estava a ler, a um canto da cama, a fingir que me ouvia, saltou como o tigre da Malásia, ferrou-me o pescoço com os dentes, tapou-me a boca com uma mão, puxou-me os cabelos com a outra, e deu um urro que ecoou pela casa toda: 'Cala-te, sua caaaaa... braaaaaa...!'... 

"E tentou estrangular-me, quase até à asfixia total...

(...) "Tive uma fração de segundo de lucidez para perceber o que estava a acontecer e que ele me ia matar... Foi aí que consegui, num derradeiro esforço hercúleo de mulher minhota, libertar a minha perna esquerda e dar-lhe uma joelhada fortíssima no baixo ventre. 

"Deu um urro de morte: 'Sua....caaaaa... braaaaa, filha de uma ganda puuuuu...ta!!!".

"E, 'in extremis', largou-me, desistiu, bloqueou, caiu exausto na cama, teve um ataque de choro, histérico ...  

(...) "Sim, consegui chamar o 112...Saltei da cama, cheia de dores, num estado miserável, desgrenhada, a roupa rasgada, pedi socorro ao 112... 

"Não ofereceu resistência quando chegou a polícia... Só voltei vê-lo no tribunal.   O processo correu célebre.

" Cabra, eu?!... O gajo ficou completamente desvairado com a cena que eu estava a contar, em voz alta, mais para mim do que para ele... Uma verdadeira fantasia erótica, se queres que te diga!...Mas na sua imaginação pornográfica ele viu-me agarrada ao grego, a rebolar na cama de gozo!... 

"O gajo tratou-me como uma puta, privativa, a quem pagava, de vez em quando,  uns jantares em restaurantes de luxo, só para eu ser dele!

"Fantasia erótica ?!...Não vou dizer que não estava excitada... Sim, se calhar até era capaz de ir para cama com ele, mas fiquei por ali, peguei-lhe na cabeça com as duas mãos, como uma mãe faria a um filho, dei-lhe um longo beijo de boas noites ... e de despedida!... 

"No dia seguinte, trocámos olhares cúmplices, algo embaraçados, como  dois tímidos adolescentes, acabou a conferência, ele apanhou o avião para Atenas e eu o comboio para o Porto... Nem sequer sei onde mora!...

"No fundo, fiquei com uma pena danada de não ter  dormido com ele nessa noite, única, irrepetível! E ainda hoje não sei por que é que não o fiz... 

"Muito provavelmente porque ele não me deu  'luz verde'... Sou muito intuitiva nestas coisas, dou muito importância ao comportamento não verbal dos meus parceiros... Senti atração por ele, não senti atração dele por mim...

"Sim, o meu Apolo não estaria nos dias dele... Os deuses são caprichosos... tão ou mais que os humanos... Ou então ele era um falso deus, uma merda de sedutor, um daqueles gajos que têm medo das mulheres inteligentes e dominadoras...

"Claro que eu fui completamente idiota ao contar esta história do Olimpo ao meu ex... Se calhar até fui cruel, sem intenção de o ser... Ou, se calhar, inconscientemente, eu quis provocá-lo, testar os seus limites de racionalidade, pôr á prova o amor dele...  

"Dir-me-ás, também tu, que, antes de seres meu amigo, és macho, que as mulheres não podem brincar com o fogo... Se calhar foi por  isso que os homens, com medo, nos roubaram o fogo!... É um dos mitos mais antigos da humanidade!

"Que parva que eu fui!... Afinal, uma mulher não pode ter desejos, não pode ser proativa em matéria de sexo...E muitos menos se tiver cabelos grisalhos... Uma gaja aos 65, era a idade  que eu tinha na altura, em 2017, não pode desejar um homem, vinte anos mais novo... Grego, lindo com o Apolo!... 

"Sabes uma coisa ?!... Tenho reconhecer que estou velha e acabada, não tenho a pedalada dos miúdos de hoje, como os que são (ou foram) meus alunos". (...)

Não voltaste a ver a tua amiga Nucha desde a vossa última conversa, em Campanhã. Meteu-se, entretanto, a maldita pandemia... E, pior do que tudo, a Nucha sofreu, entretanto,  um surto psicótico, esteve internada em psiquiatria, um irmã dela, mais nova, veio ao Porto buscá-la... 

Vive hoje triste, apática, solitária, numa casa de repouso em Terras de Bouro... Por ironia, voltou aos montes da sua infância raiana, cobertos de rosmaninho e de urze. Coisa que já não a incomoda,  felizmente, para ela, que perdeu o olfato. E também já não sai nem ninguém a visita para além da família mais próxima...

Quanto a ti, tu nunca foste a Terras de Bouro. Nem sabias exatamente onde era, antes de ires ao Google... Mas ficaste  devastado ao saber do fim desta história de uma mulher que tanto acreditara, em vida, na arte e na ciência  da promoção do envelhecimento ativo e saudável.


© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.
Última revisão: 19 de outubro de 2024
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'

(**) Vd. poste de 18 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros