1. Mensagem de Alberto Branquinho, ex-Alf Mil da CArt 1689, Guiné 1967/69, com data de 2 de Fevereiro de 2009:
Caros Editores
Junto o texto do UMBIGO nº. 19, com os agradecimentos de continuarem a aceitar o título da série.
Três abraços
Alberto Branquinho
2. NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (19)
O ANIVERSÁRIO DO CABO TOMÉ
- Eh pá! Deu a “maluca” ao Tomé. Ele vem aí.
- Qual “maluca”… Ele está é com uma “cardina” que nem se endireita.
O cabo Tomé aproximava-se daquele espaço chamado “bar”, feito de tábuas e de chapas de zinco. Vinha em tronco nu, debaixo de uma chuva contínua e miudinha, que há um mês caía sem parar. Trazia um guarda-chuva aberto, quase sem pano, na mão esquerda e uma garrafa de cerveja na mão direita. Tinha as divisas de cabo penduradas das orelhas. E berrava:
- Cá o filho da Marianinha é maior. Não há pai para ele.
Repetia e repetia o discurso. E cantava:
- “Ó rosa, ó linda rosa, ó rosa da Alexandria, tu és a mais linda rosa…
O cabo festejava, assim, os vinte e três anos.
Não entrou no bar e atravessava a parada, em chinelos, calções e tronco nu, pisando água e lama. Sentia-se grande, agigantado pelo álcool, com a água a correr por ele abaixo. Sentia a cabeça do tamanho do rebentamento de uma granada de obus, a ferver, a ferver e a pôr-lhe à frente dos olhos pataniscas de bichas-de-rabear.
Era um entardecer cor de chumbo, com pequenas pinceladas de amarelo-rosa no horizonte, por cima da cobertura de zinco da caserna.
- Ó rosa, ó linda rosa, ó rosa… Anda uma mãe a criar um filho… p’ra… p’ra…
Tropeçou e caiu de joelhos na lama, apoiado no cotovelo direito. Tentou levantar-se, mas o pé direito fugiu-lhe muito lá para trás. Até pareceu que o pé lhe ia fugir do corpo. Agarrou o pé com a mão direita e fugiu a garrafa. Puxou o pé, puxou, puxou, perdeu o equilíbrio, caiu sobre o lado direito e, depois, ficou deitado de costas. Ouviram-se gargalhadas do pessoal que, em volta e debaixo dos telheiros, observava a cena.
O Tomé atirou o guarda-chuva. Tentou abrir a braguilha, não conseguiu e rebolou sobre si mesmo, rindo, rindo. Cheio de lama, voltou a tentar abrir a braguilha, mas não conseguia.
- Quero mijar. Eh pá, abram-me aqui isto, qu’eu quero mijar.
Dois ou três tentaram levantá-lo.
- Eh pá, eu só quero mijar.
Com a ajuda conseguiu levantar-se. Os que o ajudaram correram para debaixo dos telheiros. Conseguiu abrir a braguilha e, com a mão direita, procurava, procurava dentro dos calções, em dificuldades de equilíbrio.
- Perdi a picha. Perdi a picha.
Ajoelhou-se e desatou a chorar:
- Perdi a picha. Perdi a picha. Ai minha mãezinha…
Levantou-se, escorregou na lama e caiu de novo.
- Sou um desgraçado! O filho da Marianinha… Mãe, mãe, cortaram-me a gaita!
Chorava, chorava. As lágrimas corriam pela cara, misturadas com chuva e ranho. Tossia, tossia, engasgou-se e desatou a vomitar. Acudiram-lhe de novo.
Vomitava aos arrancos e estremecia-lhe todo o corpo. Levaram-no, amparado pelos sovacos.
Colocaram-no debaixo da água do “chuveiro” que corria dos bidões, ao lado da caserna. Deitaram-no na cama, ainda molhado. Chorava abraçado aos mais próximos, entre risos de uns e críticas de outros.
- Este gajo é sempre a mesma merda.
- Sou uma merda. É, sou uma merda… Mas não vou mais p’ró mato. Nã é Zé? A gente nã vai mais p’ró mato, nã é Zé?
O Zé abanou a cabeça, concordando. O Tomé agarrou-o pelo pescoço, puxou e deu-lhe um beijo na cara.
- A gente nã vai mais p’ró mato. Que vá o capitão, que leve o comandante e os oficiais todos. Que se fodam. P’ra que é a guerra? P’ra ganhar a taça? Que se foda a taça. Andamos aos tiros p’rás árvores. Os cabrões dos turras pintam-se de verde. Nã é Zé? A gente nem os vê. Deixa vir o alferes: - “Ó Tomé, tu hoje levas a basuca.” – “Leve-a você”.
- Vá pá, tem calma. Vou-te buscar uma Pérrier.
- Água?! Arranja-me uma cerveja.
- Não. Tu já bebeste muito.
- Apetece-me apanhar chuva.
- Não, tens que dormir. Faz-te bem.
- Dormir? Ah Zé, a gente nã vai mais p’ró mato. Que se fodam. Um gajo quase na “peluda” e ir p’rá Metrópole num sobretudo de pau.
Teve um vómito e sujou a almofada.
- Deixa lá. Está na hora do jantar. Queres que te traga alguma coisa?
- Nã. Não.
Ficava mais calmo. Adormecia. O outro foi jantar.
No telheiro grande, coberto de zinco, que servia de refeitório, amontoavam-se para o jantar, apupando o cozinheiro.
- Ide-vos foder! ‘Ó tempo que não há frescos…
No meio do barulho das conversas ouviram-se, lá longe, para norte o som das “saídas” de granadas de morteiro pesado e de canhão.
Num instante era uma barafunda. Corriam aos magotes em varias direcções, para as armas pesadas, para os abrigos, em busca das G-3s e cartucheiras, para os abrigos. As primeiras granadas começaram a assobiar por cima das cabeças, seguidas dos rebentamentos e dos ruídos que parecem loiça a partir-se.
Gritos, ordens, cheiro intenso, excitante a explosivos, pó, fumo, mais rebentamentos, gritos e mais gritos. Duas ou três granadas caíram dentro do quartel, voaram coberturas de zinco em placas retorcidas, pedaços de tijolo e cimento, vidros partidos. Um barracão começou a arder.
Dois grupos saíram a correr, pelas portas norte e leste, para cortarem caminhos de acesso. Parecia que o pandemónio nunca mais parava.
Começou a diminuir o fogo. Só pequenas rajadas de arma ligeira e vozes que interpelavam ou berravam ordens. Vultos apagavam o fogo com baldes de água. A serenidade voltou aos poucos. Havia movimentações para o posto de socorros. Alguns comeram como puderam o que, frio, ficara a aguardar nos pratos. Outros não saíram tão depressa dos postos ou dos abrigos.
Quando os primeiros voltaram à caserna, viram o cabo Tomé mesmo à entrada, nu, deitado de costas, de olhos espantados, como que olhando o tecto de zinco, retorcido, enquanto um fio de sangue lhe escorria do lado esquerdo da boca, passava pelo pescoço e fazia uma poça de sangue debaixo da cabeça.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3805: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (18): O doutor não tem um remédio para a guerra?