Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Guiné 63/74 - P4243: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (21): Poema à volta do umbigo
Caro Carlos Vinhal
Com este UMBIGO (21), que vai junto, dou por terminada a série. Com ela procurei dizer que não é absolutamente ncessário falarmos SEMPRE e SÓ na primeira pessoa do singular (por narcisismo ou por outras razões). Não sei se fui compreendido.
Sabemos que toda a experiência é feita através do suporte físico do EU de cada um, sentida na pele ou na alma, mas... há mais mundos...
Um abraço (mais um para cada um dos ausentes)
Alberto Branquinho
NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (21)
POEMA À VOLTA DO UMBIGO *
Eu, me, mim, migo
falo com os meus botões
centrado no meu umbigo
não falo disto e daquilo
dos problemas do mundo
falo somente de mim
das minhas recordações
pois só estou tranquilo
a pensar assim comigo
a falar do meu umbigo
que é tema bem profundo.
É por isso que vos digo
se não falarem de mim
é coisa que me aterra
e vos digo em segredo
mesmo não estando em guerra
tenho medo:
o Eu está em perigo.
----------------------
* Este umbigo, mais uma vez, não é o meu.
2. Comentário de CV
Caro Alberto Branquinho
Como já te disse em mail pessoal, espero(amos) que após o fim anunciado desta série, dês continuidade a uma outra, porque não podemos perscindir da colaboração de camaradas como tu.
Colaborações esporádicas da tua parte não são suficientes. Ficamos à espera de uma colaboração contínua e regular, tua.
Foi e é um prazer ler-te.
Um abraço
CV
__________
Nota de CV
(*) Vd. poste de 3 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4138: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (20): Vultos na noite
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Guiné 63/74 - P4138: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (20): Vultos na noite
Caros Editores
Agora que o Carnaval está quase passado e ninguém (?) teria levado a mal a sua publicação, venho dizer-vos que retiro o anterior texto que enviei para o UMBIGO 20 ("A QUESTÃO EM JOGO") como anexo ao mail de 10 de Fevereiro.
Em sua substituição vai, em anexo a este, o seu substituto e, por essa razão, terá o nº. 20 ("VULTOS na NOITE).
Três abraços
Alberto Branquinho
NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (20)
VULTOS NA NOITE
Era a segunda ou a terceira noite seguidas passadas na mata, retomando a caminhada ao amanhecer.
Instalaram-se, como habitualmente, dois a dois, deitados atrás das árvores de troncos mais grossos ou de uma ou outra baga-baga, Em quadrado não muito perfeito, cada lado feito com cada um dos quatro pelotões.
A lua estava em quarto crescente ou quarto minguante, do tamanho de uma unha, entrevista no meio da folhagem. A bicharada estava já queda e calada, o que era bom sinal.
Ao longe, muito ao longe, tinham-se ouvido sons de tiro a tiro, intercalados com rajadas curtas.
Passaram duas ou três horas. O pessoal começou a acomodar-se, aproveitando o macio dos tufos de ervas, a vegetação rasteira e os requebros do terreno. Não demorou muito tempo para se começar a ouvir ressonar a solo e, logo a seguir, em dueto, próximo e do lado direito do furriel Nero. O furriel fez uma bola de terra e arremessou-a na direcção dos executantes. Acordaram em espanto e susto, atordoados, fazendo “hum...hu…hu…” Soergueram-se e colocaram-se de ombros encostados à árvore.
O furriel, que se levantara, voltou para o seu lugar, junto do cabo enfermeiro. Pouco depois, estavam já os mesmos a ressonar – primeiro um (que, entretanto, parou) e, depois, ambos, executando, de novo, a peça em dueto, alternadamente. Estava a preparar a segunda bola de terra, quando detectou sobre a sua esquerda, mas um pouco mais longe, outro dueto ou, talvez, um grupo coral, emitindo idênticos sons guturais.
Deixou em paz os do lado direito e, agachado, dirigiu-se para o lado esquerdo da instalação. Acordou-os com pontapés nas pernas.
- Que merda é esta? – sussurrou. – Valia mais termos trazido o clarim.
Em pé e apurando o ouvido, do lado do outro pelotão, instalado sobre a esquerda, também havia outro coro. Voltou ao seu lugar, mas, antes, foi acordar, de novo, os primeiros executantes.
Deitou-se preocupado, olhando fixamente em frente, com a G-3 colocada paralelamente ao corpo, do lado direito.
Ciciou para o enfermeiro: - Estes gajos são inconscientes. Parece que estão na caserna.
- O nosso capitão, que está lá no meio, não ouvirá esta merda?
- Sei lá.
- Se calhar também está a dormir.
- Pode estar, mas um a dormir e outro alerta.
- Pois.
- Vê lá se queres dormir. Depois chamo-te.
O enfermeiro acomodou-se, usando a mala como almofada.
Tenso e preocupado com a “sinfonia”, o furriel Nero continuou olhando em frente, procurando detectar qualquer ruído ou movimento. Olhava de cabeça junto ao chão, oscilando-a contínua e suavemente para a esquerda e para a direita, aproveitando a pouca luminosidade do céu estrelado e da lua, já mais alta, por entre as árvores. Assim esteve por longo tempo.
Num repente teve um sobressalto. Pareceu-lhe entrever um vulto agachado. Depois dois ou três, que se movimentavam lentamente, com um leve restolhar. Começava a ter medo. A sua própria respiração ofegante não lhe permitia confirmar os ruídos. Já “via” uma avantesma negra, caminhando lenta e pesadamente para ele. Esfregou os olhos. Voltou a olhar e lá estavam os vultos agachados, a movimentarem-se lentamente, muito lentamente. Acordou o enfermeiro: - Eh pá, estou a ver ali uns gajos agachados e a mexerem-se. – segredou-lhe ao ouvido.
- Onde? Não estou a ver nada.
- Ali, caralho! – agarrou-lhe na cabeça e pôs-lhe um dedo indicador à frente do nariz.
- São dois… três… gajos. – gaguejou o enfermeiro.
- Ai porra! Se vêm para o corpo a corpo estamos fodidos, com estes gajos todos a dormir.
Retirou uma granada ofensiva do cinto, tirou a cavilha, soergueu-se e BBUUUUUM!!!
Imediatamente rebentou um fogachal doido. Logo a seguir saíram duas bazucadas quase ao mesmo tempo.
O furriel Nero apercebeu-se que não havia fogo inimigo e começou a andar em volta e berrando:
- Pára!!! Pára fogo!!!
Os tiros foram diminuindo gradualmente até cessarem. Ouvia-se o capitão a berrar no meio da instalação:
- Os nossos alferes!! Os nossos alferes venham aqui!
Então o furriel Nero disse para o enfermeiro:
- Agora vamos nós dormir…
Ao amanhecer, quando retomaram a marcha, viram dois porcos-de-mato mortos.
Alberto Branquinho
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3845: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (19): O aniversário do Cabo Tomé
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
Guiné 63/74 - P3845: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (19): O aniversário do Cabo Tomé
Caros Editores
Junto o texto do UMBIGO nº. 19, com os agradecimentos de continuarem a aceitar o título da série.
Três abraços
Alberto Branquinho
2. NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (19)
O ANIVERSÁRIO DO CABO TOMÉ
- Eh pá! Deu a “maluca” ao Tomé. Ele vem aí.
- Qual “maluca”… Ele está é com uma “cardina” que nem se endireita.
O cabo Tomé aproximava-se daquele espaço chamado “bar”, feito de tábuas e de chapas de zinco. Vinha em tronco nu, debaixo de uma chuva contínua e miudinha, que há um mês caía sem parar. Trazia um guarda-chuva aberto, quase sem pano, na mão esquerda e uma garrafa de cerveja na mão direita. Tinha as divisas de cabo penduradas das orelhas. E berrava:
- Cá o filho da Marianinha é maior. Não há pai para ele.
Repetia e repetia o discurso. E cantava:
- “Ó rosa, ó linda rosa, ó rosa da Alexandria, tu és a mais linda rosa…
O cabo festejava, assim, os vinte e três anos.
Não entrou no bar e atravessava a parada, em chinelos, calções e tronco nu, pisando água e lama. Sentia-se grande, agigantado pelo álcool, com a água a correr por ele abaixo. Sentia a cabeça do tamanho do rebentamento de uma granada de obus, a ferver, a ferver e a pôr-lhe à frente dos olhos pataniscas de bichas-de-rabear.
Era um entardecer cor de chumbo, com pequenas pinceladas de amarelo-rosa no horizonte, por cima da cobertura de zinco da caserna.
- Ó rosa, ó linda rosa, ó rosa… Anda uma mãe a criar um filho… p’ra… p’ra…
Tropeçou e caiu de joelhos na lama, apoiado no cotovelo direito. Tentou levantar-se, mas o pé direito fugiu-lhe muito lá para trás. Até pareceu que o pé lhe ia fugir do corpo. Agarrou o pé com a mão direita e fugiu a garrafa. Puxou o pé, puxou, puxou, perdeu o equilíbrio, caiu sobre o lado direito e, depois, ficou deitado de costas. Ouviram-se gargalhadas do pessoal que, em volta e debaixo dos telheiros, observava a cena.
O Tomé atirou o guarda-chuva. Tentou abrir a braguilha, não conseguiu e rebolou sobre si mesmo, rindo, rindo. Cheio de lama, voltou a tentar abrir a braguilha, mas não conseguia.
- Quero mijar. Eh pá, abram-me aqui isto, qu’eu quero mijar.
Dois ou três tentaram levantá-lo.
- Eh pá, eu só quero mijar.
Com a ajuda conseguiu levantar-se. Os que o ajudaram correram para debaixo dos telheiros. Conseguiu abrir a braguilha e, com a mão direita, procurava, procurava dentro dos calções, em dificuldades de equilíbrio.
- Perdi a picha. Perdi a picha.
Ajoelhou-se e desatou a chorar:
- Perdi a picha. Perdi a picha. Ai minha mãezinha…
Levantou-se, escorregou na lama e caiu de novo.
- Sou um desgraçado! O filho da Marianinha… Mãe, mãe, cortaram-me a gaita!
Chorava, chorava. As lágrimas corriam pela cara, misturadas com chuva e ranho. Tossia, tossia, engasgou-se e desatou a vomitar. Acudiram-lhe de novo.
Vomitava aos arrancos e estremecia-lhe todo o corpo. Levaram-no, amparado pelos sovacos.
Colocaram-no debaixo da água do “chuveiro” que corria dos bidões, ao lado da caserna. Deitaram-no na cama, ainda molhado. Chorava abraçado aos mais próximos, entre risos de uns e críticas de outros.
- Este gajo é sempre a mesma merda.
- Sou uma merda. É, sou uma merda… Mas não vou mais p’ró mato. Nã é Zé? A gente nã vai mais p’ró mato, nã é Zé?
O Zé abanou a cabeça, concordando. O Tomé agarrou-o pelo pescoço, puxou e deu-lhe um beijo na cara.
- A gente nã vai mais p’ró mato. Que vá o capitão, que leve o comandante e os oficiais todos. Que se fodam. P’ra que é a guerra? P’ra ganhar a taça? Que se foda a taça. Andamos aos tiros p’rás árvores. Os cabrões dos turras pintam-se de verde. Nã é Zé? A gente nem os vê. Deixa vir o alferes: - “Ó Tomé, tu hoje levas a basuca.” – “Leve-a você”.
- Vá pá, tem calma. Vou-te buscar uma Pérrier.
- Água?! Arranja-me uma cerveja.
- Não. Tu já bebeste muito.
- Apetece-me apanhar chuva.
- Não, tens que dormir. Faz-te bem.
- Dormir? Ah Zé, a gente nã vai mais p’ró mato. Que se fodam. Um gajo quase na “peluda” e ir p’rá Metrópole num sobretudo de pau.
Teve um vómito e sujou a almofada.
- Deixa lá. Está na hora do jantar. Queres que te traga alguma coisa?
- Nã. Não.
Ficava mais calmo. Adormecia. O outro foi jantar.
No telheiro grande, coberto de zinco, que servia de refeitório, amontoavam-se para o jantar, apupando o cozinheiro.
- Ide-vos foder! ‘Ó tempo que não há frescos…
No meio do barulho das conversas ouviram-se, lá longe, para norte o som das “saídas” de granadas de morteiro pesado e de canhão.
Num instante era uma barafunda. Corriam aos magotes em varias direcções, para as armas pesadas, para os abrigos, em busca das G-3s e cartucheiras, para os abrigos. As primeiras granadas começaram a assobiar por cima das cabeças, seguidas dos rebentamentos e dos ruídos que parecem loiça a partir-se.
Gritos, ordens, cheiro intenso, excitante a explosivos, pó, fumo, mais rebentamentos, gritos e mais gritos. Duas ou três granadas caíram dentro do quartel, voaram coberturas de zinco em placas retorcidas, pedaços de tijolo e cimento, vidros partidos. Um barracão começou a arder.
Dois grupos saíram a correr, pelas portas norte e leste, para cortarem caminhos de acesso. Parecia que o pandemónio nunca mais parava.
Começou a diminuir o fogo. Só pequenas rajadas de arma ligeira e vozes que interpelavam ou berravam ordens. Vultos apagavam o fogo com baldes de água. A serenidade voltou aos poucos. Havia movimentações para o posto de socorros. Alguns comeram como puderam o que, frio, ficara a aguardar nos pratos. Outros não saíram tão depressa dos postos ou dos abrigos.
Quando os primeiros voltaram à caserna, viram o cabo Tomé mesmo à entrada, nu, deitado de costas, de olhos espantados, como que olhando o tecto de zinco, retorcido, enquanto um fio de sangue lhe escorria do lado esquerdo da boca, passava pelo pescoço e fazia uma poça de sangue debaixo da cabeça.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3805: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (18): O doutor não tem um remédio para a guerra?
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
Guiné 63/74 - P3805: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (18): O doutor não tem um remédio para a guerra?
- “É a guerra aquele monstro que se alimenta das vidas e das fazendas… e até Deus… não está seguro”.
Assim dizia solenemente o médico (tenente miliciano médico) que acabava de chegar, aproximando-se do grupo de oficiais que, em pé, se juntavam à volta de uma mesa, apreciando os jogadores de poker.
Não obteve resposta.
O médico tinha lugar na mesa do major oficial de operações, com quem discutia tácticas e estratégias. O oficial de operações não o levava a sério, mas alimentava a conversa sem deixar escapar qualquer informação, não confirmando ou negando as que o médico dizia ter.
- O doutor também faz planeamento das suas guerras subterrâneas? – perguntou um capitão que estava na mesma mesa.
O médico não respondeu, mas ficou incomodado. Era uma referência às instalações que ocupava: um abrigo com dois metros e meio abaixo do chão, com tecto e paredes de ferro e cimento. Para conseguir essas instalações argumentara que a enfermaria deveria ser instalada em abrigo seguro. Então tomou como suas parte das instalações, que passaram a ser o seu quarto e local de trabalho.
Um dos alferes milicianos lançou-lhe outra farpa:
Também não respondeu. Era outra referência aos rumores sobre a sua militância política nos tempos de estudante.
- Então doutor, quantos homens tem internados com paludismo?
- Três. Um vai ter alta amanhã. Acho que o pessoal não toma o quinino.
- Eu também não o tomo há mais de três meses - disse um alferes – quando os mosquitos me picam, começam a voar aos ziguezagues e caem bêbados no chão.
O médico voltou-se para a mesa ao seu lado esquerdo:
- Então, meu Comandante, notícias de Lisboa?
- Ó doutor, você é que está sempre informado.
- Mas o senhor recebe notícias diárias de Bissau…
- De Bissau só dizem o que querem.
- Oi! Cuidado, meu Comandante! Ainda tem alguma visita inesperada!
- Só se for por sua causa, doutor.
- Não se chateie, homem. Olhe, dizem que a PIDE vai acabar.
- Não acredito.
- Ó doutor, você quer que eu ensine o padre-nosso ao vigário?
- Verdade… Não sei nada.
- Sr. Capitão – chamou o médico para uma outra mesa – aquele rapaz do pelotão do alferes Silva, que teve ontem um ataque de abelhas, não estava nada bem. Fez uma reacção anafiláctica. O rapaz quase não respirava.
- Ora! Quase todo o pessoal chegou aqui com a cara inchada. Nem conseguiam ver.
- Pois. Cara, pescoço e braços inchados, mas não foi a mesma coisa. O rapaz contou-me que foi durante uma emboscada.
- Eu sei.
- Da população, o que é que lhe aparece mais?
- Coisas que o furriel enfermeiro e os cabos tratam: suturas, pensos, feridas infectadas… Apareceram dois casos de infecção depois do fanado.
- Rapazes?
- Sim, rapazes. Recentemente houve dois partos. E agora está a aparecer muita garotada com infecções causadas pela matacanha. Mais que no ano passado.
- Bonita conversa para o jantar – disse um alferes.
- O que é preciso é conseguir um remédio para a guerra. O doutor não tem um remédio para isto?
O médico bebeu o último gole de café. Começou a levantar-se.
- Dão-me licença?
Fez com a mão um sinal de despedida e continuou:
- Remédio? Mésinha? Mésinha cá tem!
Ia sair pela cozinha, como sempre, mas voltou atrás. Irónico, falou para toda a sala:
- Tenham cuidado com as cadeiras. Podem cair quando menos esperam.
E recolheu aos aposentos subterrâneos.
Alberto Branquinho
ex-alf mil da CArt 1689, 1967/69.
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sábado, 17 de janeiro de 2009
Guiné 63/74 - P3753: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (17): com a arma na mão e o credo na boca. (Alberto Branquinho)
CAMBANÇA – II
Sempre que havia uma operação para norte do aquartelamento era necessário atravessar o rio, que distava, em linha recta, uns três ou quatro quilómetros.
A companhia saía, de noite, para sul, virava a leste ou oeste (como manobra de diversão), serpenteava pelo terreno uns quilómetros, até que invertia para norte, a caminho do rio.
No local da travessia o rio tinha cerca de duzentos metros de largo. Tudo era planeado de modo a que chegássemos junto ao rio quando a maré estava no seu pleno para evitar chafurdar (e perder tempo) nos dez ou quinze metros do lodo da maré baixa.
Com o rio iluminado pelas estrelas, os homens, em grupos de dez, carregados de G-3, cartucheiras, cantil, bazuca, granadas, metralhadora, embarcavam na canoa, que teria dez a doze metros de comprimento e um metro de largura.
A canoa aguardava encostada à margem, agarrada pelo remador. Baloiçava com a entrada de cada um dos passageiros e respectiva carga e metia uns goles de água. Completado o embarque, o remador, homem idoso e experimentado, empurrava a canoa para dentro do rio, entrava e, com um único remo, fixado à ré, fazia-a seguir silenciosamente.
A meio do rio e no meio da noite só se viam as estrelas no céu ou reflectidas na água, bamboleantes, devido ao leve chapinhar do remo e da proa a rasgar a água.
Alguns iriam rezando, encomendando a alma a Deus, mas todos iam tensos e silenciosos, tentando, talvez, localizar na água algum crocodilo noctívago.
Qualquer pequeno baloiçar ou movimento (sempre seguido da tentativa de o compensar para o lado contrário), fazia a água quase galgar as bordas da canoa. O risco de baldear a carga estava sempre presente e maior era quanto mais bruscos fossem os movimentos.
Chegados à outra margem, o remador saia e puxava a canoa para uma posição paralela à margem, para o pessoal sair.
A canoa regressava vazia à margem de onde partira e as viagens sucediam-se até passarem os últimos homens.
No fim de cada travessia o remador retirava do fundo da canoa a maior quantidade possível de água, com a ajuda de uma lata velha que transportava pendurada no apoio do remo. Ficava sempre alguma água, que aumentava com as oscilações do embarque.
No regresso da operação, dois ou três dias depois, o pessoal, cansado, voltava a fazer a travessia do rio do mesmo modo, mas, agora, em pleno dia.
Foi no início de umas dessas travessias nocturnas que um furriel, porque os soldados não acatavam a ordem para se sentarem no fundo da canoa, teimando em seguir de cócoras e com as mãos agarradas de cada lado para não molharem os fundilhos, que, sentado em último lugar, puxou a culatra atrás e berrou:
- Eu não sei nadar. Quero toda a gente com o cu sentado no fundo. Se esta merda vira, varo-vos a todos.
Notas de vb:
1. Alberto Branquinho foi alf mil da CArt 1689, 1967/69. Andou por Gandembel, Empada, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bafatá, Banjara...
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quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
Guiné 63/74 - P3708: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (16): Uma retirada ordeira e silenciosa.
Alberto Branquinho
CAMBANÇA – I
O cabo cripto bateu à porta.
-Dá licença, meu capitão?
- Entra. Então?
- Já está pronto. Entregou uma folha de papel, dobrada em quatro.
O capitão olhou o papel.
- OK. Diz ao nosso alferes Lopes que chegue aqui.
O cabo já saía, mas o capitão chamou-o:
- E diz, também, para vir o nosso alferes Sousa.
Leu, então, a mensagem, analisando bem as palavras: “Elementos IN número quinze/vinte entram hoje noite zona cambança montante Rio Chibari. Emboscadas imediato.”
Fez o cálculo para a maré baixa – seria cerca das duas horas da manhã. Procurou o mapa donde constava a zona de cambança mencionada na mensagem e estendeu-o em cima da mesa. Ao de leve fez sobre ele riscos com um lápis. Procurou recordar a configuração do terreno – elevava-se um pouco para nordeste, com uma mancha verde bem acentuada nessa zona; depois, vegetação de tarrafe, seguida de mata não muito densa. Levantou os olhos do mapa e ficou a pensar. Apagou os traços que fizera no mapa e fez outros.
Chegaram os alferes. O capitão entregou-lhes a mensagem. Esperou um pouco.
- Vocês saem hoje depois do jantar, sem aviso prévio ao pessoal. Aí pelas oito horas. Evitem ser vistos pela população. Passem bem ao largo. Antes da meia-noite tenham o pessoal instalado. Você, Lopes, instala-se aqui (indicou o traço no mapa, paralelo ao rio). Próximo da vegetação de tarrafe.
Depois, voltando-se para o alferes Sousa:
- Você segue na retaguarda do Lopes e, ao chegar aqui – fez um arco de leste para nordeste – instala. Fica, portanto, na orla da mata, a fazer protecção à retaguarda.
Depois de instalados, informem todo o pessoal, principalmente os furriéis, da posição de cada um. Mantenham contacto rádio permanente.
Os três trocaram impressões para acerto da movimentação e sobre o percurso a seguir. Depois, cada um dos alferes foi falar com os furriéis sobre a hora da saída.
Pouco depois das oito horas da noite estavam os dois pelotões a sair pela porta leste. O capitão, depois de falar com os dois alferes, ficou a olhar a fila que desaparecia no escuro.
Chegados ao local, instalaram-se.
A lua estava em quarto crescente, a meio da inflação e em posição descendente no céu.
O pelotão que estava próximo do rio ocupava uma extensão de cem a cento e vinte metros, dois a dois, com uma metralhadora em cada um dos extremos da emboscada.
Já não havia lua e a vigília estava a tornar-se monótona.
Começou a ouvir-se, mais ou menos em frente ao espaço central da emboscada, a água a ser remexida, depois um pequeno marulhar, que aumentou de intensidade. Todo o pessoal se esticou, deitado, de arma aperrada e dedo no gatilho, à espera da ordem de fogo – que não veio. Os barulhos na água cessaram, mas o pessoal continuou tenso. O tempo foi passando, passando, voltou o cansaço a impor-se e as armas voltaram ao chão, encostadas aos corpos.
Mais tarde voltou o barulho de água. No início, a água agitou-se francamente, depois de forma suave e tudo acabou mais depressa do que na primeira vez. As mãos largaram, de novo, as armas e os corpos distenderam-se.
O tempo foi passando, lentamente.
O alferes Lopes encostou o relógio aos olhos – quase quatro horas
- Mais uma hora e “pico” e amanhece – pensou.
O céu foi clareando, clareando continuamente para o lado montante do rio.
Em primeiro lugar dois soldados, depois mais dois e, pouco depois, todos os que estavam mais no centro da emboscada sobre o rio, começaram a notar que, à beira da água, estavam umas pedras escuras, mais escuras que o lodo, que… afinal não eram pedras. Eram cabeças de crocodilos, Seriam uns cinco ou seis, a uma distância de quatro a cinco metros dos homens mais próximos. Estavam adormecidos, com a cabeça assente na margem lodosa.
Sem ordem do alferes, a emboscada começou a ser levantada, de forma ordeira e silenciosa, em rastejante marcha-atrás, que se converteu em marcha erecta alguns metros adiante. Então, o alferes Lopes contactou o outro pelotão, através do rádio “banana”, para encostarem à retaguarda da coluna.
Notas de vb:
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segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3680: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (15): Uma história real.
Pretende ser um pequeno complemento à matéria do POST 3662 da autoria do Virgínio Briote – "As nossas mulheres, companheiras, amantes e casadas com a Guiné".
Alberto Branquinho
NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (15)
SURPRESAS
Aconteceu em Bafatá, no regresso de uma operação de quatro dias.
A acção fora concertada com pára-quedistas e comandos e apoio permanente da Força Aérea.
O sucesso militar que se pretendia terá sido alcançado.
Houve muitas baixas, mortos e feridos, muitas vezes evacuados só no dia seguinte, porque as sessões de fogo mais violentas foram ao anoitecer.
No final, a Companhia foi recolhida pelas viaturas próximo do local que fora, quatro dias antes, o ponto de partida.
O capitão saltou da viatura, chamou os alferes e, depois, berrou para as viaturas:
O Furriel Jerónimo, cansado e sedento, saiu da viatura e foi sentar-se à sombra, na pedra da porta de uma casa, no outro lado da rua. A bandoleira da G-3 escorregou-lhe do ombro e a coronha bateu com violência contra a porta. Esta abriu-se quase imediatamente e surgiu um homem fardado, que se lhe ia dirigir de forma pouco amistosa, quando o Furriel Jerónimo o fez calar, exclamando:
O outro ficou com a fala presa atrás da garganta e, engasgado:
- Oh! Oh! … Que fazes aqui?
- Estou a regressar de uma guerra.
- Estavas na operação "Bate Forte"?
- Sei lá como se chamava…
- Eu estou nos Comandos. Estive lá também até ontem à tarde. Manga de porrada, hein?
- É verdade. Mas que estás tu a fazer aqui, numa casa civil? Putas?
- Não, pá. Lembras-te da Eduarda Costa, que andava um ano atrás do nosso? O pai dela era o gerente da firma Costa & Lopes, mesmo ao lado do Liceu?
- Sim… sim.
- Casámos antes do embarque. Teimou em ir para Bissau, quando nós lá estávamos. Ficou lá quando saímos e depois veio para aqui. Só a malta do meu Grupo de Combate é que sabe. Já lhe disse e repeti que ela não pode estar aqui. É uma chatice quando eu tenho que sair para o mato. Mas ela falou com as freiras e fica lá. Quando estou cá, desenfio-me.
- Dáda! Dáda! Vem aqui. Tenho uma surpresa para ti.
- E para ti, também.
Eduarda aproximou-se da porta, olhou, receosa, para o exterior, tendo a figura do Jerónimo em contraluz. Não o reconheceu. Trazia, ao colo, um bebé adormecido, vestido só com uma fralda.
- É um rapaz. Nasceu em Bissau há três meses.
Notas de vb:
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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3663: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (14): Jubi, bô tem dos ôbo na mão?
FEITIÇO
No pátio junto às instalações dos alferes, estava sentado um garoto de sete ou oito anos, com um ovo em cada mão.
Passou o furriel Pinto, viu o garoto, reparou nos ovos e lembrou-se da bola de pingue-pongue que tinha no bolso dos calções. Perguntou-lhe:
- Jubi, bô têm dos ôbo na mão?
- É. É p’ra noss’ alfero Silva. Num ‘stá lá.
O furriel Pinto retirou do bolso, com a mão direita, a bola de pingue-pongue, deixando entrever grande parte da bola entre o indicador e o polegar. Perguntou ao garoto:
- Esso é ôbo?
- Sim.
- Suma esso?
- Sim.
Então, arremessou a bola contra o chão de cimento, voltando a agarrá-la. O rapaz levantou-se num repente, olhando o furriel com grande espanto.
- Ué!!!!
- Jubi, bô faz cum ôbo suma esso! – e atirou a bola ao chão repetidas vezes, agarrando-a a seguir.
- Nega! Nega! – gritou o rapaz, entre espanto e medo.
- Bô faz suma esso! Bô faz suma esso! – repetia o furriel, batendo a bola no chão .
- Nega! Nega! Nega! – berrava o rapaz, desesperado, mantendo os ovos bem agarrados nas mãos. Ao mesmo tempo, dizia “não” com o corpo todo – abanando a cabeça, batendo (repetidas vezes) com os cotovelos contra o tronco e com um joelho contra o outro joelho.
- Bô faz suma esso! Bô faz suma esso! – repetia o furriel.
- NEGA! NEGA! NEGA! – berrava o garoto, enquanto fugia.
Já longe, passou por uma mulher, que o interpelou. Parou, apontou para o furriel e, assustado, berrou:
- Feitiço!!! Tem feitiço!!!
E refugiou-se na tabanca.
__________
Nota de vb:
Último artigo da série em
11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3603: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (13): Quatro actos para um ponto de vista...
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3603: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (13): Quatro actos para um ponto de vista...
Especialmente para o Luís: Obrigado pelas referências aos meus textos.
Para todos UM ABRAÇO do
NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (13)
QUATRO ACTOS PARA UM PONTO DE VISTA
No bar da messe de oficiais de sede de batalhão, estavam um jornalista e o seu “cameraman”, encostados ao balcão, bebericando whisky com gelo. Tinham chegado nessa tarde, na Dornier do correio. Aliás, a tez pálida de ambos denunciava que não eram gente da terra nem da guerra. Faziam horas para o jantar.
Entrou um alferes em traje civil, que se sentou ao balcão.
- Boa tarde, cumprimentou-os. – Oh Bigodes, sai um whisky com Pérrier.
- E gelo?
O alferes fez que sim com a cabeça.
- Permita-me que me apresente. Sou Amplexo da Silva do “Notícias Dia-a-Dia”.
- Alferes… quer dizer, Manuel Gonçalves. Prazer.
Cumprimentaram-se.
- O prazer é meu, em estar aqui entre combatentes da Pátria. Estou, quer dizer… estamos em missão de reportagem sobre a guerra na Guiné.
- Guerra?! Oh senhor jornalista, afinal há guerra aqui? O que aqui temos é uma insurreição armada, vinda e alimentada do exterior.
- Pois, mas há acções armadas, tanto quanto sei e eu sou… repórter de guerra.
- Mas o senhor sabe que aqui não há guerra, segundo a TV e os jornais da Metrópole.
- Já tive o prazer de conversar com o Senhor Comandante do Batalhão, a quem venho recomendado. Amanhã vou ter um briefing com o Sr. Oficial de Operações e depois de amanhã espero sair para o mato com uma unidade operacional, para sentir a realidade.
- Eu disponho-me já para o enquadrar no meu pelotão quando formos para uma zona de… porrada. Não é preciso ir muito longe.
- Sr. Alferes, muito obrigado. Vou falar da sua disponibilidade ao Sr. Comandante. Para onde o Sr. Alferes sugere que se deva ir?
- Sabe, estas coisas não dependem de irmos para norte ou para sul. Depende mais das fases da lua, da orientação do vento ou da humidade do ar…Com sorte ou com azar, pode alcançar a verdade e a vida a pouco mais que quatro/cinco quilómetros. Sempre será melhor que estar para aí a filmar a mata com meia dúzia de figurantes de armas na mão, tendo o homem da câmara encostado ao arame farpado…
Quando o Comandante chegou para jantar, convidou o jornalista para a sua mesa.
No dia seguinte o Comandante mandou chamar o Capitão Gomes. Disse-lhe para, com cuidado, dar umas voltas com o jornalista pelas tabancas mais próximas e terminou:
- Faça-me o favor de dizer ao seu alferes Gonçalves para ter tento na língua.
ACTO 2 – Passeios
A Dornier sobrevoou o aquartelamento e começou a fazer uma volta larga, para aproximação à pista.
- Segurança à pista!! Olh'ó correio!
Mal a aeronave descolou e tomou altura, abandonaram as posições defensivas à volta da pista e regressaram, ansiosamente, ao quartel.
Imediatamente o escriturário, à porta da secretaria, começou a gritar os nomes dos destinatários das cartas e aerogramas, à medida que os retirava do saco. Tinha à sua frente um amontoado de caras ansiosas, que levantavam a mão e empurravam os outros, quando ele berrava um nome.
O Fabiano recebeu o aerograma e afastou-se, com o coração aos pulos. Sentou-se contra uma parede e, ao abri-lo, quase rasgou a folha de papel. Começou a ler: “ Tu dizes que sais para batidas, patrulhas, operações e emboscadas. Ainda dás uns passeios. Eu para aqui estou e é só de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Passear, passear é só à missa nos domingos e……”
Voltou atrás para ler de novo.
Desolado, amarrotou o aerograma com a mão direita e ficou longo tempo a olhar para as biqueiras das botas.
Nunca mais escreveu.
Na aldeia constou que tinha morrido.
ACTO 3 – Conselhos de mãe
O Capitão, apontando no mapa colocado na parede, fazia, depois, uns traços, círculos e semicírculos sobre o papel branco colado ao lado, expondo aos quatro alferes o plano e a missão de cada um dos quatro pelotões quanto à operação que a Companhia iria executar, com a duração de três dias, saindo do quartel às três horas da madrugada.
Acabada a explanação, perguntou:
- Alguma dúvida?
- Meu capitão, eu não posso ir, disse o alferes Branco.
- Deixe-se de merdas! Porquê?
- Recebi hoje uma carta de minha Mãe, que me diz para eu não sair à noite e não apanhar muito sol.
ACTO – O problema é de “isolamento”
A professora de ensino primário, a exercer numa localidade próxima da fronteira com Espanha, lia pela terceira vez a carta acabada de receber:
“Prima Isabel,
Estou cansado, saturado e desiludido com tudo isto aqui na Guiné, para não falar da brutalidade e dos riscos que aqui corremos. Depois te contarei em pormenor.
Não sei se já te disseram que vou aí de férias em Julho.
Queria pedir-te que vás pensando e, com cuidado, fazendo contactos para me arranjares um “passador” que me leve para Espanha e, depois, me entregue a alguém que me passe para França. Preferia que fosse para o sul de França, saindo pela fronteira a norte de Barcelona, para, depois, ir para Marselha, onde tenho uns amigos.
Não fales disto a ninguém da Família, muito menos à minha Mãe ou ao meu Pai.
Um beijo do
Augusto."
A prima acabou de ler e ficou a olhar pela janela. Ao fundo, no horizonte, eram terras de Espanha.
Não demorou a resposta. Foi no dia seguinte. Com a autoridade que assumia por ser uns anos mais velha, foi assim:
"Augusto,
Tens que ter paciência e, além disso, ter juízo. Já viste o disparate que ias fazer?
Eu também estou para aqui isolada no meio da serra e só vou à Guarda de mês a mês. Daqui a dois anos espero ser colocada numa ……"
Notas de vb:
1. Alberto Branquinho foi alf mil da CArt 1689, 1967/69. Andou por Gandembel, Empada, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bafatá, Banjara...
2. para além de trabalho é uma diversão publicar estes "umbigos" do Alberto Branquinho. A série pode ser vista/revista em
2 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3554: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (12): Há momentos em que um homem sente culpa e angústia...
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3554: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (12): Há momentos em que um homem sente culpa e angústia...
Alberto Branquinho
O capitão miliciano Silvério estava sentado na mesa de canto da denominada “messe de oficiais” com um copo de whisky entre as mãos, assente na mesa. Tinha o olhar fixo no vazio e repetia, repetia em surdina:
- E matavam-se por não saberem…/ por que… por que… os mandavam matar/ sem saberem as razões/ por que matavam… matavam… matavam…
Calou-se durante uns segundos. Depois, elevando a voz, começou a cantar:
- Heróis do mar, nobre povo…
- Oh capitão Silvério! – interrompeu o comandante do batalhão olhando para ele, enquanto segurava, com a mão direita, a carta que ia jogar. – Pare lá com isso!
O capitão parou subitamente de cantar e ficou a olhá-lo com ar apatetado:
- Meu comandante, desculpe. São erupções…
Sempre que não estava ausente em operações, o capitão Silvério ocupava aquela mesa depois do jantar, quase sempre sozinho. Não gostava de jogos de cartas. Bebericava whisky, dose atrás de dose. Quando a visão se lhe turvava, falava baixo, dizia poemas e pedaços de textos sem nexo, que pareciam não ter fim.
Voltou ao texto, repetiu, repetiu. Tinha a certeza que não era bem assim, mas, afinal, dava quase no mesmo.
Relacionava-se melhor com os alferes milicianos, mas estes, à noite e quando não tinham saídas, também eram jogadores de cartas. Ficava só. Ou quase.
Tinha dois inimigos de estimação. Um era o major do planeamento de operações, acusando-o de ele ver o terreno (bolanhas, rios, tarrafos, matas, etc.) como se tudo fosse um mapa plano, sem dificuldades nem obstáculos à progressão da tropa. O outro era o agente da PIDE, instalado junto ao quartel, que, solenemente, desprezava. Chamava-lhe o “homem das antenas”.
Com o correr dos meses tornou-se cada vez menos comunicativo e bebia cada vez mais.
- Capitão Silvério, você está a precisar de umas férias - aconselhou o comandante.
- Pois – respondeu secamente.
Foi de férias. Mas não regressou. O alferes Matos, por ser o mais antigo, passou a comandar a companhia, aguardando o capitão substituto.
Passados quase três meses sobre a data em que o capitão Silvério deveria ter regressado, o alferes Matos recebeu uma carta, enviada por alguém que não conhecia. Abriu o envelope e reconheceu a letra:
"Olá, Matos. Pedi ao meu amigo para te enviar esta carta para o SPM. Dá-me notícias vossas. Escreve para este meu amigo, para o endereço que está no envelope. Ele enviará a carta ou o aerograma para mim. Diz-me o que se vai passando com vocês, com todo o pessoal. Espero que não tenham tido azares.
"Há momentos em que acho que não deveria ter vindo para França, que deveria ter voltado para aí. É assim como uma espécie de culpa e fico angustiado. Principalmente à noite.
"Fica ao teu critério falares disto a quem tenhas confiança, mas acho que devia ficar só entre nós dois. Até para tua segurança.
"Escreve, está bem? E vai dando notícias de tudo.
"Um abraço do
Silvério ".
__________
Notas de vb:
1. Artigos do Alberto Branquinho em
26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3521: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (11): Um cabo que conheceu Bissau vinte e três meses depois... (Alberto Branquinho)
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
Guiné 63/74 - P3521: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (11): Um cabo que conheceu Bissau vinte e três meses depois... (Alberto Branquinho)
Alberto Branquinho
ex-alf mil CArt 1689
1967/69
Renderam outros que os aguardavam ansiosamente no cais de destino. Reparou no rosto esverdeado da maior parte dos "velhinhos" que os esperavam e que lhes berravam em tom agressivo:
Agora, passados vinte e três meses e à espera de embarcar para a "Metrópole", já com aquela cara amarelo-verde azeitona, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez.
Perdiam-se pela cidade que, embora não fosse uma das grandes capitais do Império, era maior que a aldeia natal.
Por vezes, a Companhia recebia ordem para fazer cerco aos bairros negros, periféricos de Bissau. Cada bairro era cercado cerca das quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completado o cerco, grupos de militares inspeccionavam casa a casa, pedindo os documentos aos residentes.
A moça, que teria uns catorze ou quinze anos, estacou momentaneamente, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou:
- Porque é que você não fala comigo Português direito?
O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado a vê-la passar.
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
Guiné 63/74 - P3493: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (10): Eh mulher! Bó tem sanju na barriga... (Alberto Branquinho)
Alberto Branquinho
ex-alf mil CArt 1689
1967/69
Em sentido contrário aproximava-se uma mulher em adiantado estado de gravidez, caminhando com dificuldade, amparada ao muro.
O sargento, que estava a observá-la:
– Ó meu alferes, escute lá esta.
Então, dirigindo-se à mulher grávida:
– Eh mulher! Bô tem sanju na bariga…
Ela disparou imediatamente:
– É, noss’ sargenti. Fidju di bô.
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Notas de vb: Artigos da série em
3 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3395: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (9): Tempo de Gandembel...(Alberto Branquinho)
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Guiné 63/74 - P3395: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (9): Tempo de Gandembel...(Alberto Branquinho)
Alberto Branquinho
ex-alf mil
CArt 1689
1967/69
Outra forma de falar
GANDEMBEL
Sangue
fome
suor
sede sede
urina
sono sono
cansaço
fezes
medo medo medo
medo e pó.
Gandembel
um homem dissolve-se no tempo que não passa
na merda
na esperança no pó no fumo
e ficam só cabeças em suspensão
a sede mata sorrisos
pedaços de corpos fecundam a terra
ávida de sangue de sangue e água
prenhe de chumbo e cinza.
Gandembel
o tempo não passa não anda
o tempo espera pelo tempo
espera espera espera
amanhã amanhã depois de amanhã
coração-detonador
estilhaçado de saudade
de raiva e de tempo parado.
Gandembel
tempo de sangue
tempo de morte
tempo de espera
tempo de sono
tempo de sede e fome
tempo sem amanhã
tempo de raiva
tempo de medo e de pó.
________________________
in “SobreVivências” (Espólio de guerra) -2004
__________
Notas: artigo da série em
28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3368: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (8): Navegações...
terça-feira, 28 de outubro de 2008
Guiné 63/74 - P3368: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (8): Navegações...
por Alberto Branquinho
ex-alf mil da CArt 1689 (1967/69)
Muitas foram as andanças, mudanças e transferências com a “casa” às costas, em transportes por terra e por água. Com carácter provisório ou mais ou menos definitivo. Por água – em braços de rios, canais, rios e grandes rios e, por vezes, quase oceano. Com armas e bagagens, mudando de quartel para quartel ou para bases (provisórias) de operações.
Um homem tem que levar tudo o que é seu, sem o qual não se diferencia dos demais e, também, o material de guerra que lhe está distribuído.
Em batelões rebocados, mas quase sempre nas LDG’s, LDM’s e LDP’s. As mais das vezes em LDM’s e LDP’s, porque tinham capacidade de manobrar naqueles rios de curvas e contra-curvas (em maré cheia), em apertos de canais e de marés, de ilhotas, de lodo, lodo, lodo, sempre lodo. De dia e de noite, no chegar das madrugadas.
Houve aquela situação insólita, em que, navegando no Rio Geba em LDG para jusante e com a maré a vazar de maneira acelerada, o homem ao leme virou francamente à esquerda para evitar um baixio e, poucos metros adiante, a proa estacou. Tentou safar-se, mas já grande parte do fundo da “chata” estava preso no areal lodoso. A margem esquerda ficou a cem, cento e vinte metros; chão com pouco lodo e arenoso, com pequenos lagos. À direita da lancha a água corria, indiferente. A sensação era de encurralamento. Houve que esperar a subida da maré. Foi montada segurança no lado esquerdo da lancha, com muita atenção à vegetação na margem. Não houve surpresas.
Insuportável era o transporte, por lancha, em dias de chuva. O pessoal cobria com lona o espaço à proa, que era destinado à concentração para desembarque. Devido à ondulação, sem visibilidade para o exterior e sem ventilação suficiente, havia enjoos e vómitos.
O pessoal chegava debilitado, incapaz de uma “guerra” imediata, a necessitar de se sentir com os pés em terra, mas teriam que sair correndo furiosamente, a chapinhar naquela água-lodo da maré alta, fazendo uma linha-de-fogo, derivando metade para a direita e a outra metade para a esquerda.
Naquela viagem em LDM em que, quando o fogo rebentou da margem direita, os marinheiros (donos e senhores da sua casa), berraram para baixo:
- Vocês aí quietos!
O pessoal da guerra apeada não entendeu porquê, mas agacharam-se contra a chapa. Na sua farda azul e abrigados como podiam, os marinheiros responderam ao fogo, enquanto a metralhadora pesada, da torre, abriu fogo cadenciado, com uma força que impunha respeito.
Quando um marinheiro saltou para baixo, agarrado a uma perna que sangrava, um grupo da tropa que estava a ser transportada, contra as ordens recebidas, passou, também, a fazer fogo para a margem.
Num canto da lancha um soldado começou a disparar para o céu.
– “Pára com isso! Que estás a fazer?”
– “Estou a meter-lhes medo, meu alferes.”
Era uma noite sem nuvens e de lua cheia. Navegavam ao longo da costa, em LDP. O coração muito apertado, com a imaginação a trabalhar furiosamente, prevendo o pior no desembarque, ao amanhecer, quando a “chata” baixasse aquele nariz em prancha. Mas era, ainda, muito noite.
Observando o recorte das palmeiras mais altas, de ramagem forte, recortadas no céu e as sombras das ilhotas em contraluz com o mar adiante, iluminado pelo luar, esfumavam-se os maus presságios. À medida que a lancha avançava, as ilhotas iam-se confundindo ou separando umas das outras. A luminosidade da lua estilhaçava-se numa imensidão de pequenos requebros até ao horizonte, que era já oceano. Do lado esquerdo da lancha a terra firme, a mata escura e densa, onde, com o luar, se adivinham os poilões mais altos, frondosos, imponentes ou tufos de palmeiras que sobressaíam do escuro da mata.
Sobrevém a grane interrogação sobre o futuro próximo, quando amanhecer, sobre que pedaço de terra, lodo, tarrafo, bolanha, pode um homem vir a morrer ou poder ficar estropiado.
Voltam-se os olhos de novo para as ilhotas que vão passando ao lado da lancha, para o mar, depois para a lua. Ela vai passando devagar, muito devagar para o outro lado da lancha. Os olhos acompanham-na, inconscientemente, nesse movimento vagaroso. Subitamente, um ruído lá atrás obriga a olhar nessa direcção. Uma figura surge iluminada pela lua e berra:
- Que merda é esta, pá? Tínhamos a lua a estibordo e agora está a bombordo. Estás a dormir?
Era o “patrão da lancha”.
__________
Notas: artigos da série em
22 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3224: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (7): Honório, o aviador...
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
Guiné 63/74 - P3224: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (7): Honório, o aviador...
por Alberto Branquinho, ex-alf mil da CArt 1689 (1967/69)
Recordando o piloto-aviador HONÓRIO (2)
O Honório, já falecido, que, quando saiu da Força Aérea, seria sargento piloto-aviador, cumpriu, pelo menos, duas comissões na Guiné. Era natural da Cidade da Praia, na, agora, República Democrática de Cabo Verde.
Notas de vb:
(2) Também conheci o Honório. Em 1965/66 era Furriel Pil Av. Dava-nos apoio aéreo nos T6 e levava correio e mantimentos nas DO aonde fosse preciso. Era muito estimado pelo pessoal apeado. Abaixo segue transcrição de parte do relatório de uma das operações em que o Honório deu apoio aéreo:
-"6/04/66, Op. 'Olinda', Buba. Reconhecimentos aéreos confirmam a existência de uma base IN junto ao pontão de Buba Tombó. Na última operação ali efectuada, as NT foram emboscadas por um grupo calculado em cerca de 100 elementos. Na mesma acção foram levantadas 2 minas a/c e um fornilho na estrada Buba-Buba Tombó. Sabia-se que o mesmo itinerário se encontrava minado e que a picada Sare Tuto-Buba Tombó também devia estar minada contra pessoal pois já nele tinha sido accionada uma mina a/p.
(3) Quem é que está lá em cima? É o Honório, quem havia de ser! O Honório, naqueles anos, era mais que um piloto, era um símbolo, representava a ajuda vinda dos céus. Não é de estranhar que tudo o que voasse fosse "pilotado" pelo Honório. Camaradas que com ele voaram nos anos 1968/1970 sustentam que, nesses anos, pilotava "apenas" as Dornier-27.
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
Guiné 63/74 - P3166: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (6): Tempos Modernos.
Tempos modernos
por Alberto Branquinho (*)
Era Domingo.
Quem àquela hora passasse na Avenida da República em frente à Catedral de Bissau (talvez a caminho da 5ª. Rep…), não poderia deixar de notar a algazarra que cerca de dez mulheres idosas faziam. Umas trajavam de negro outras de tons escuros. Aparentavam grande nervosismo, apertando e desapertando os panos da cintura, falando todas ao mesmo tempo, enquanto olhavam a porta da Catedral.
A tempos, faziam um batuque com pequenos paus de dez a quinze centímetros, batendo uns contra os outros ou batendo em pequenas latas. Por vezes duas ou três aproximavam-se da porta batucando paus e latas, cantando e dançando, batendo com raiva ritmada as plantas dos pés contra a laje, ao alto das escadas.
Mais ninguém estava pelas redondezas, excepto algum transeunte que, em vez de usar o passeio de Avenida, caminhasse pelo pátio da Catedral. Quedava-se por um instante, olhando a cena e seguia o seu caminho.
De entre as velhas notava-se uma ainda mais velha, com uma cara preta acinzentada, cobertas de rugas profundas. Permanecia sentada num degrau e a sua voz esganiçada e raivosa estimulava as demais, enquanto dava palmadas nos joelhos. Elas rompiam numa algaraviada estridente entre berros e lenga-lengas, novamente batucando. Acabavam as vozes e voltava a cantilena sincopada, mais raivosa que melódica e, de novo, duas ou três caminhavam, batucando, até próximo da porta da Catedral.
Assim estiveram bastante tempo.
Abriu-se a porta da Catedral. Saíram para o exterior sons de órgão e algumas pessoas. As mulheres precipitaram-se para a porta cantando, dançando, batucando. O som do órgão abafava o barulho que faziam.
Era um casamento.
Surgiram os noivos impecavelmente vestidos. Ela de tez mais clara, de vestido de noiva com uma grande cauda, que arrastava pelo chão. Ele, negro puro, de fato azul-escuro. A música do órgão subia, subia, abafando a algazarra das velhotas. Estas colocaram-se ao lado do noivo, algumas ostensivamente encostadas a ele, sempre a cantar, a dançar, a batucar. Assim os acompanharam, descendo as escadas para o passeio da Avenida, seguidos pelo cortejo de convidados.
Aguardava-os um automóvel escuro de boa marca, que, entretanto, chegara. O motorista segurava a porta traseira do lado direito, aberta.
Os noivos, assim como os convidados, continuavam, aparentemente, a desconhecer o batuque, embora o noivo mantivesse o rosto tenso e o olhar fixo.
Quando entraram no carro, o batuque, raivoso, subiu de tom, agora mais audível, ou porque a música do órgão cessara ou porque estava mais longe. O carro partiu, com um arranque rápido. Algumas velhotas pretenderam segui-lo. Era impossível.
Sentaram-se no lancil, repentinamente caladas, colocando as mãos, com os dedos enlaçados, sobre a cabeça.
Notas de vb:
(*) Alberto Branquinho, ex-alf mil da CArt 1689 (1967/69).
(**) Vd. poste anterior desta série:
1 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3160: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (5): (Des)temor...
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
Guiné 63/74 - P3160: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (5): (Des)temor...
Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (5)
por Alberto Branquinho (*)
(Des)temor (**)
Amanhecia. Cacimbo muito espesso, agarrado às árvores, às ervas, ao chão. Os primeiros homens começavam a sair dos abrigos onde passavam as noites enterrados, a quatro e quatro, a cerca de metro e meio do chão. Os abrigos estavam cobertos de troncos de palmeiras, depois chapas de bidões e, por cima disto, uma espessa camada de terra. Vinham de gatas passando pelo buraco aberto para o lado interior do aquartelamento que estava, ainda, em construção. Dirigiam-se às valas, que serviam de sentinas, verter as urinas da manhã ou algo com mais consistência. Outros faziam flexões junto aos abrigos para desentorpecer o corpo ou movimentos de braços à frente e atrás para aquecer, entre bocejos e mais bocejos das noites mal dormidas, devido aos consecutivos ataques nocturnos.
Na cozinha – que era um buraco no meio do aquartelamento, parcialmente coberto com chapa de zinco – alguém tentava acender o lume. Uma chama rasgou a espessura do cacimbo. Imediatamente e não muito longe, ouviu-se gritar, em sotaque crioulo:
-Fogo!
O grito rasgou a quietude da manhã e, imediatamente, rebentou uma fogachada fortíssima (e próxima) de armas automáticas e lança-granadas. Os utentes das sentinas correram desesperadamente para os abrigos, com as calças nas mãos. Formou-se imediatamente uma nuvem de pó e fumo, acompanhada do habitual cheiro intenso das explosões. Apesar de ser dia, viam-se as chamas de boca das armas e as balas tracejantes. Os morteiros, instalados no centro do aquartelamento, pouco demoraram a responder. As G-3 eram usadas através das seteiras dos abrigos, deixadas entre o chão e o primeiro tronco de palmeira.
O alferes sentiu passos por cima do seu abrigo e a terra que o cobria começou a escorregar, quase tapando a seteira. Alguém, colocado em cima do abrigo, despachava as munições de uma metralhadora em forte cadência de tiro, quase sem parar. A metralhadora parou.
O alferes espreitou pelo buraco do abrigo e viu um vulto no meio do pó, fumo e cacimbo que insultava:
- Dispara essa merda, cabrão! Dá cá isso!
O alferes berrou-lhe:
- Vai lá para dentro! Lá para dentro!
Lá fora ouviu gritar:
- Ajuda aqui.
Começou a entrar pelo buraco terra arrastada pelo sopro e pelo cone de fogo das granadas de bazuca. Quando o fogo quase tinha cessado, havendo somente disparos ao longe, o alferes saiu. Uma gritaria infernal vinha de dentro dos abrigos. Os homens começaram a sair.
- Quem era o gajo que andava cá fora?
Várias cabeças se voltaram numa só direcção.
- Eras tu que estavas ali em cima com a metralhadora?
- Sim, meu alferes.
- Não voltas a fazer uma coisa dessas!
Embaraçado, como uma criança apanhada a fazer asneiras, esclareceu:
- Ó … meu alferes… eu estava cheio de medo, carago!
__________
Notas de vb:
(*) Alberto Branquinho foi alferes miliciano na CART 1689 (1967/69). Foi um dos construtores do quartel de Gandembel e do de Gubia /Empada. Fez, além disso, "várias movimentações terrestres, fluviais e costeiras para outros quartéis-base de operações conjuntas (por ex., Bambadinca, Buba, Bedanda, Bafatá, Banjara)".
(**) Vd. poste anterior desta série:
22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...
terça-feira, 22 de julho de 2008
Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...
"Encontrei esta fotografia num Boletim Cultural da Guiné Portuguesa de 1972. Lembrei-me logo dos meninos de Missirá educados por Lânsana Soncó,lembrei-me das tábuas com os versículos do Corão que se podiam comprar ao pé de Fá Mandinga.Em Missirá e Finete tínhamos acordado que estas aulas eram complementares às do professor da primária,foi assim que os meninos tinham uma boa parte do dia preenchido"(BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Cidade de Bafatá > Finais de 1969 > Vista aérea da mesquita de Bafatá. A Zona Leste da Guiné (região de Bafatá e Gabu) é aquela onde se pratica mais a Mutilação Genital Feminina (MGF)... As populações islamizadas representam quase metade dos guineenses.Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
1. Mensagem do Alberto Branquinho, com data de 8 de Julho (Recorde-se que o nosso camarada Alberto Branquinho, hoje jurista de formação e profissão, foi alferes miliciano na CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) (1).
Caro Luís Graça
Junto vai o texto do UMBIGO nº. 4, que fala de religiões. Tem matéria meramente de facto. Não tem juízos de valor. Assim, espero que não levante polémica.
Um abraço e os meus agradecimentos.
Alberto Branquinho
Ex-alferes miliciano
CART 1689 /BART 1913
2. NÃO VENHO FALAR DE MIM … NEM DO MEU UMBIGO (4) > UMA ESCOLA MUÇULMANA
por Alberto Branquinho
Sempre que havia necessidade de fazer colunas auto para abastecimento do quartel, situado a noroeste, o pessoal saía pela porta norte, com os picadores à frente e com instruções para irem ficando abrigados ao longo do itinerário a percorrer, fazendo segurança ao vaivém das viaturas. O movimento da tropa começava somente quando havia já alguma luz, com o sol a tentar romper entre a folhagem da mata e os troncos das árvores.
Isto era o habitual em qualquer aquartelamento, em circunstâncias idênticas. A diferença estava no facto de, no lado norte e nordeste deste aquartelamento, haver uma grande tabanca de população fula e de, junto a essa porta norte, haver uma escola ao pé da casa do padre.
Os alunos, entre (talvez) os sete e os dez anos, com vestes compridas e cabeça coberta, estavam sentados em esteiras à volta de uma fogueira, com labaredas baixas, para afugentar o frio e o cacimbo da madrugada. Cada um empunhava uma tábua de cerca de trinta a quarenta centímetros por uns vinte centímetros, onde estavam escritos textos em caracteres arábicos (excertos do Corão?). A configuração das tábuas era idêntica à das tábuas dos desenhos bíblicos em edições juvenis, que representam o Senhor a entregar a Moisés as tábuas da lei no Monte Sinai, quando o povo judeu transgrediu no peregrinar pelo deserto.
A cena que se nos deparava era um círculo de garotos à volta da fogueira, entoando, em uníssono e a média voz, uma cantilena cheia de aa, acompanhados de sons guturais ou aspirados, enquanto o fumo da fogueira, no centro, subia, se dispersava e os envolvia, misturando-se com o cacimbo. Tudo isto era batido pelos, ainda, fracos raios de sol, rasante, fazendo um quadro quase irreal. Era belo e quase místico, não fosse a perturbação introduzida por alguns soldados que, passando em fila de um, opunham à cantilena:
- Há… há…há… há…
- Gá… gá… gá… gá…
- Olarilálá… olarilálá… olarilálá…
Apesar de os graduados os mandarem calar, o contraponto feito pela tropa continuava, à socapa.
Os garotos, inicialmente divertidos ou espantados, levantavam os olhos das tábuas para observar os intrusos e voltavam à leitura.
Só o padre, postado atrás, em pé, hierático e digno, de boné de lã na cabeça, com uma barbicha que lhe alongava o rosto, olhava fixamente o fogo e, com as mãos dentro das vestes, desconhecia a tropa que passava (2, 3).
_______
P.S. - Este "Post Scriptum" vem a propósito de um "POST ante" (POST 3025 de 5 de Julho último) do Jorge Cabral, para esclarecer que:
(i) O Branquinho que ele refere no nº. 1 desse POST sou eu, que tenho o nome próprio Alberto;
(ii) O Branquinho mencionado no nº. 2 do mesmo POST é meu irmão, de nome próprio António, como o Jorge Cabral sabe.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. poste de 1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3011: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (3): Fornilhos e despojos humanos
(2) Esta cena é-nos familiar a todos nós, camaradas da Guiné, que andámos pela Zona Leste, em pleno chão fula... Os meninos à volta da fogueira, decorando versículos do Corão... O contexto é outro, mas lembrei-me do célebre poema e música, belíssimos, do angolano Rui Mingas (Manuel Rui Monteiro), interpretado entre outros pelo nosso Paulo de Carvalho
Com fios feitos de lágrimas passadas
Os meninos de Huambo fazem alegria
Constroem sonhos com os mais velhos de mãos dadas
E no céu descobrem estrelas de magia
Com os lábios de dizer nova poesia
Soletram as estrelas como letras
E vão juntando no céu como pedrinhas
Estrelas letras para fazer novas palavras
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade
Com os sorrisos mais lindos do planalto
Fazem continhas engraçadas de somar
Somam beijos com flores e com suor
E subtraem manhã cedo por luar
Dividem a chuva miudinha pelo milho
Multiplicam o vento pelo mar
Soltam ao céu as estrelas já escritas
Constelações que brilham sempre sem parar
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade
Palavras sempre novas, sempre novas
Palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo
Assim contentes à voltinha da fogueira
Juntam palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo
(3) Também evoquei esta cena, num poema em falo do ao Iero Jaló, o primeiro homem (da CCAÇ 12) que morreu ao meu lado:
(...) Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te puto
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os meninos à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe (4).
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo. (...)
(4) Há tempos o António Santos (ex-soldados de transmissões, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74), mandou-me imagens dessas famosas tabuínhas... Não as localizo, de momento. Recordo-me de lhe ter prometido que ia pedir a alguém (um aluno meu, médico, muçulmano, de origem argelina) para as traduzir, o que nunca consegui... Se ele, António, me estiver a ler, que me mande essas imagens em 2ª via...
terça-feira, 1 de julho de 2008
Guiné 63/74 - P3011: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (3): Fornilhos e despojos humanos
1. Texto enviado, em 1 de Julho, pelo Alberto Branquinho, advogado, ex-alferes miliciano na CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69):
Camarada Luis Graça
Com os meus cumprimentos pelo Post 3000, estou a enviar mais um texto para o UMBIGO (*), o nº3.
Um abraço
Alberto Branquinho
2. NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (3) > DESPOJOS
por Alberto Branquinho
Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007)(**)
Mais ou menos nove horas da manhã. O pessoal da Companhia estava pronto e equipado, com os seus pertences arrumados nos sacos de lona e espalhado pela proximidade dos abrigos (não fosse necessário recorrer a eles). Aguardava a coluna auto que chegaria de norte, para sair dali nessa mesma coluna, no movimento de retorno. A impaciência era grande para abandonar aquele inferno de guerra, sofrimento e privações de há longos, longos dias.
Exactamente a norte – três, quatro (cinco?) rebentamentos de grande potência. A primeira reacção foi correr para os abrigos. Muitos estacaram imediatamente, porque estouros com aquela força nada tinham a ver com saídas de canhão ou de morteiro. Todos os olhos dos corpos agachados se viraram para o lado dos estouros, com expressão ansiosa. Uma nuvem de pó (e fumo?) começou a surgir e a avantajar-se muito acima das copas das árvores, lá ao longe.
- Que merda foi aquela?
A resposta chegou pouco tempo depois, via rádio e retransmitida:
- Fornilhos.
Chamam-se enfermeiros e saem viaturas com pessoal, em socorro. A coluna tarda e não há mais notícias.
Chegam as viaturas que tinham saído. Os homens vêm com um ar soturno. Duas viaturas tinham sido afectadas e havia muitos corpos despedaçados.
– Quantos? - Ninguém sabe.
- Quando se fizer a chamada é que se pode ver. Sabe-se que falta um alferes.
Entra no recinto do aquartelamento a viatura de caixa aberta, com os pedaços dos corpos. Curiosos agarram-se às cancelas e espreitam.
– Foda-se! Parecem todos pretos!
A viatura é coberta com panos de tenda amarrados e enxotam as moscas que teimam em ficar por baixo dos panos. Uma raiva enorme, surda e irracional enche as cabeças e os peitos. Muitos cospem para o chão de forma maquinal, continuada e inconsciente.
As viaturas são abastecidas de combustível para o regresso, ao mesmo tempo que é retirada a carga que se destinava ao aquartelamento. Tenta-se reorganizar a coluna para o regresso, com a indicação de que a viatura com os restos dos corpos seguirá na retaguarda. O pessoal da Companhia que aguardava a chegada da coluna, seguirá a pé, espaçado, pelotão a pelotão, entre as viaturas.
Começa o andamento, desenrolando o novelo de viaturas e homens. A raiva sobe-lhes, os peitos arfam, os dentes cerrados. Há ordem para, além de olhar à direita e à esquerda, estarem atentos, também, às grandes árvores que ladeiam o itinerário. Não demoraram muito a chegar ao local do rebentamento dos fornilhos. Cabe um homem agachado dentro de cada buraco.
Um furriel viu, pendurado de um ramo alto, um braço ou, talvez, fosse uma perna.
- Eh, pá! Deixa aqui a G-3 e vai lá buscar aquilo, que a gente dá-te cobertura.
- Foda-se! Ir lá em cimba ?! Bá lá bocê!
Frente à recusa, desistiu e ficou parado, a olhar fixamente aquilo. Depois olhou para o chão, na beira do itinerário, ao lado da árvore. Três ou quatro formigas grandes e pretas, com as pinças cravadas, tentavam arrastar um pedaço de carne, que tinha colado um farrapo de farda camuflada. Com raiva, elevou o tacão da bota de lona para esmagar as formigas, mas susteve o pé no ar, com a perna flectida, para não esmagar, também, a carne. Acabou por dar um passo mais largo. Voltou-se para observar melhor e verificou que havia mais pedaços de carne espalhados em volta.
Ficou a olhá-los sem dar conta que as viaturas e os homens continuavam a passar.
Retomou a marcha devagar, muito devagar, titubeante e, entre dentes, ia repetindo Lavoisier:
-“Na Natureza nada se cria, nada se perde…nada se perde…nada se perde…nada se perde…nada se perde"...
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Notas de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores desta série:
30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2903: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (1): Palavras e expressões do crioulo
12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2931: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (2): Da solidão de pides, padres, administradores, mascotes...
(**) 1º Cabo Radiologista Carlos Cardoso, dos Serviços de Saúde Militar (1972/74). Vd.postes de:
1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso
7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)