Foto (e legenda): © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Na manhã do dia 14 de outubro realizou-se a entrega do Palácio do Governo, tendo assistido a esta cerimónia o comodoro Vicente Almeida d' Éça, em representação do Governo Português (segundo Jorge Sales Golias, este foi o último acto oficial antes da retirada de todas as Forças Portuguesas) (**)
O comandante das Forças Terrestres a embarcar foi o coronel de infantaria António Marques Lopes: este sim o último contingente militar a abandonar o TO da Guiné, no T/T Uíge, em 15 de outubro (chegado a Lisboa, a 20; nele veio também o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro) (*).
(i) desmobilização, até fianl de agosto, das forças de recrutamento local, que lutaram a nosso lado contra o PAIGC, razão pela qual o seu desarmamento e desmobilização constituíram período crítico na fase final da nossa permanência na Guiné;
(iii) neste período, o potencial relativo de combate das NT relativamente às do PAIGC era-nos desfavorável, pelo que se tornou necessário gerir o evoluir da situação com o maior tacto político e militar, garantindo sempre o máximo possível de segurança para as nossas tropas.
- 26 de agosto, em Argel, assinatura do acordo entre o Governo Português e o PAIGC para a independência da Guiné-Bissau, tendo-se assentado nos seguintes pontos essenciais: (a) independência em 10 de setembro de 1974; (b) retirada das Forças Armadas Portuguesas até 31 de outubro; (c) cessar fogo "de jure" desde a mesma data;
- de 4 a 9 de setembro, chegada a Bissau de vários membros do Governo e responsáveis do PAIGC; no dia 9, chegou também o primeiro contingente militar do novo Estado;
- 10 de setembro, em Lisboa, cerimónia formal de reconhecimento da independência da Guiné-Bissau por Portugal; na mesma data, em Bissau, iniciava-se a transferência dos principais serviços públicos para a responsabilidade da administração do novo Estado;
- 15 de outubro, retirada dos últimos contingentes das forças militares portuguesas estacionadas em Bissau; regresso nos TAM e no T/T Uíge e navios da marinha;
- no total, regressaram a Lisboa cerca de 23.800 combatentes do efectivo metropolitano.

Estávamos em finais de setembro de 1974 e o recinto da “feira” era a pequena “parada” defronte do edifício do QG/CTIG.
Com efeito, havia muita movimentação de pessoas e bens e o asseio parecia ter sido algo descurado. Notava-se algum nervosismo e pressa em fazer malas. Lembrava o término de um qualquer período de férias de Agosto no Algarve em que havia necessidade de andar lesto, a fim de se evitar as longas filas de trânsito das estradas algarvias daqueles tempos.
As entradas e saídas do Quartel-General eram constantes e respirava-se, efetivamente, um fim de feira com desfazer de tendas. A grande maioria das Unidades Militares que tinham estado sediadas no interior do território, já tinha regressado à Metrópole e era agora chegado o momento dos últimos “moicanos”, nomeadamente os militares metropolitanos que se encontravam presos na Ilha das Galinhas.
A pequena Ilha das Galinhas, com apenas 50 km² de área, é uma das oitenta e oito ilhas que compõem o Arquipélago de Bijagós. Durante o período colonial funcionou nesta ilha uma prisão, designada por "Colónia Penal e Agrícola da Ilha das Galinhas".
Esta colónia estava destinada, essencialmente, a presos políticos, incluindo elementos do PAIGC, alguns dos quais ali estariam em trânsito para a prisão do Tarrafal (Ilha de Santiago, Cabo Verde).
Os prisioneiros andavam soltos pela ilha e a maioria trabalhava na bolanha (cultivo de arroz) e nas plantações de ananás e mancarra (amendoim) que havia pelo campo.
Nos finais de setembro de 1974, um desses prisioneiros, militar metropolitano, andava por ali no recinto da “feira” do QG/CTIG a aguardar não se sabia muito bem o quê.
Fazia-se acompanhar por um corpulento macaco-cão que segurava por uma trela de corrente de aço.
Este “prisioneiro à solta” apresentava uma tez bastante avermelhada, indiciando excesso de sol recente (ou algum excesso de aguardente) e trajava de um modo demasiadamente informal para um militar naquele local; camisa, calções e sapatos de ténis militares. Na cabeça, sempre descoberta, ostentava uma farta cabeleira arruivada e encaracolada e, nas pernas e coxas, várias tatuagens “pornográficas” a necessitarem de “bolinha vermelha”.
Era de poucas falas e parecia andar por ali apenas com o intuito de desafiar “altas patentes”, digo eu.
Com efeito, dava-me um certo gozo ver majores, tenentes-coronéis, coronéis, etc., que entravam ou saíam do QG, depararem-se com aquela figura acompanhada do “seu animalzinho de estimação” e, pasmados, fitando o “moicano”, receberem em troca um olhar ostensivamente desafiador que os desarmava por completo e os “aconselhava” a prosseguir o seu caminho, o que faziam sem pestanejar.
Com muito custo lá conseguimos chegar à fala com o “moicano” e, segundo recordo, ele aguardava autorização para trazer o “companheiro” para a Metrópole, mas, confrontado com a nossa convicção de que isso não seria possível, logo afirmou que “então cortava o pescoço ao símio!”
Eram dias de muita rebaldaria e, lá fora, na estrada que passava em frente ao QG/CTIG, era constante o movimento de negros alombando para suas tabancas “troféus de guerra” diversos, tais como: colchões, frigoríficos, aparelhos de ar condicionado, etc.
Alguns capitães conduziam jipes bastante “mal-tratados” que avariavam constantemente e era vê-los a empurrar a “sucata” com a ajuda de um ou outro militar…
Uns dias depois é chegada a hora do meu regresso a casa e lá estava no aeroporto de Bissalanca o “moicano”, sem macaco. Viajou connosco e disse-nos que o tinha matado (??).
Há algo de pungente na tua descrição, tão singela, ingénua e ao mesmo tempo tão realista e quase cinematográfica dos últimos dias de Bissau... São pinceladas, são apontamentos, são "flashes", são pequenos detalhes de uma atmosfera, única, a da véspera de se partir, definitivamente, para casa e deixar atrás a tralha da História, e as ruínas de uma guerra, que vai, contudo, continuar a arder em lume brando...
Acho que, quem como tu, foi um dos últimos guerreiros do império, mesmo tendo sido um honestíssimo e patriótico amanuense, não mais poderia esquecer esses últimos dias, essas últimas horas...
O teu "prisioneiro da ilha das Galinhas" é um "boneco" bem apanhado!... Estou a imaginar a cara de desagrado, confusão e impotência dos nossos "maiores" (tenentes coroneis e majores) ao tropeçar, à portas do QG, com o teu "moicanho"... Mas todos foram, "chefes e índios", tristes figurantes do filme em que os "tugas" sairam de cena... daquela parte de África aonde justamente tinham sido os primeiros, dos europeus, a chegar, em meados do séc. XV!...
Obrigado, mano Magro, por mais este delicioso naco de prosa!..
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(*) Vd. último poste da série > 14 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12979: Memórias dos últimos soldados do império (3): (Albano Mendes de Matos / Magalhães Ribeiro)
(***) Vd. poste d3e 14 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24952: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (23): A narrativa da CECA (Comissão para o Estudo das Campanhas de África) - Parte I