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domingo, 8 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23961: Agenda cultural (825): Entrevista do nosso confrade Mário Beja Santos ao programa "Mar de Letras" da RTP África, emitido no passado dia 4 de Janeiro de 2023


1. Mensagem de Imelda Monteiro, Jornalista/Produtora da Panavideo, com data de 6 de Janeiro de 2023, enviada ao nosso camarada Mário Beja Santos:

Bom dia, prezado Dr. Mário Beja Santos
Envio link do programa "Mar de Letras" da RTP África emitido na passada quarta-feira. Mais uma vez obrigado pela sua presença.
Vamos continuar a acompanhar a sua obra.

Um braço de toda a equipa "Mar de Letras"

Cumprimentos,
Imelda Monteiro
Jornalista/Produtora

Ver entrevista de Mário Beja Santos aqui: "Mar de Letras" - RTP África


2. Comentário do editor:

Nesta entrevista, Mário Beja Santos começa por falar do seu passado profissional ligado à Defesa do Consumidor, traçando o paralelismo entre a situação económica actual e a dos anos 70. Também da dependência, então dos pais em relação aos filhos, em contraponto com o que acontece hoje, em que os filhos cada vez mais saem tarde de casa, continuando em alguns casos a dependerem da ajuda dos pais.

Revive os seus tempos de Guiné passados em Mato Cão, Missirá e Bambadinca, com as emboscadas diárias ao Geba Estreito. Não esquece os seus soldados africanos que revisitou em 2010.

Termina, falando dos seus livros de memórias e romances, cujo mote é sempre a Guiné, como é o caso do seu último romance "Rua do Eclipse", publicado aqui no nosso Blogue, assim como das suas publicações dedicadas à História da então Colónia da Guiné, sobre a qual se tem dedicado com afinco e sobre a qual está a terminar mais um livro. Quis a sorte e o destino que profissionalmente estivesse durante meses a trabalhar naquela antiga colónia portuguesa.

Uma entrevista que se vê com agrado, na qual o nosso camarada Beja Santos denota que ainda está longe de esgotar o assunto Guiné-Bissau, uma das suas paixões, a par da cidade de Bruxelas, que confessa ama profundamente.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23954: Agenda cultural (824): Livro: "De puto irrequieto á guerra na Guiné como Ranger" - J. Casimiro Carvalho, ex-fur mil OpEsp/Ranger, CCAV 8350 e CCAÇ 11 (Guileje e Gadamael, entre 1972 e 1974)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22838: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória (Conclusão)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Foi esta a surpreendente viagem de Paulo, despedida e reconciliação, muita emoção e comoção, como se esperava. Encontrou destruições do conflito político-militar, encontrou muita gente desavinda, visitou os lugares mas sentiu que lhe faltara tempo para cumprir à risca o programa que desenhara. É no regresso que escreve a Annette, em breve partirá para a sua companhia, vivem dez anos de felicidade e parece que chegou o momento de esta cronista pôr termo ao pedido que Paulo lhe fizera de fazer cruzar a ficção com a realidade, romance dentro de romance, ainda não estão bem reformados, dispersam-se por diferentes atividades, a vida corre-lhes de feição, nunca se poderá ponderar a importância que teve na vida deles a Rua do Eclipse e o romance que lhe deve o nome.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Lisboa, 2 de dezembro de 2010

Ma gentille Pénélope, cheguei ontem ao amanhecer, o avião saiu de Bissalanca perto das três da manhã, vi o despontar do dia muito antes da chegada a Lisboa. Não te escondo que venho profundamente emocionado, fisicamente exausto. Mas rapidamente me restabelecerei, certo e seguro. Quando em março tomei a decisão de me ir despedir das minhas gentes no Cuor, em Bambadinca, e em regulados limítrofes, tu mostraste profunda apreensão, o que vai fazer este homem com 65 anos, põe-se ao caminho sozinho com o exclusivo propósito de uma derradeira visita? Falei-te no meu estado de alma de que sentira que chegara a hora da reconciliação plena, tu conformaste-me neste meu sonho. Tive sérias ajudas, é bem verdade. Um amigo embaixador deu conta da minha viagem ao atual embaixador português, que me recebeu com muita afabilidade e que me mandou pôr em Bambadinca. Um antigo embaixador guineense contactou o irmão em Santa Helena, na margem esquerda do Geba, em frente a extensa bolanha de Finete, para me dar guarida. Fodé Dahaba arranjou um daqueles carros desconjuntados onde cabem todos e mais algum e durante alguns dias foi agradável andar com velhos camaradas naquela carripana ainda útil para lugares acessíveis. Mas eu desejava vivamente ir a pontos remotos, como Madina e Belel, Buruntoni e Ponta do Inglês, ir até ao fundo do Corubal, lá consegui recrutar um jovem motociclista natural da Guiné Conacri que me acompanhou até 28 de novembro, data em que regressei a Bissau, aqui queria encontrar alguns dirigentes do PAIGC para falarmos desinibidamente do passado. Cumpriu-se o programa, despedi-me da Avó Berta na Pensão Central passava da meia-noite de 30 de novembro.

Quando saí daqui de casa na companhia do Abudu, era um carregamento de perto de 40 quilos, houve peripécias no check-in, quando eu parecia resignado aos 24 quilos prescritos, o Abudu fez-me ver que havia muita expetativa na minha viagem, que tivesse coragem e alombasse com o resto do peso até ao interior do avião, como aconteceu, e ainda bem.

Aqui tens imagens estarrecedoras do que foi o conflito político-militar de 1998-1999, aqui estão as marcas da destruição, do Palácio Presidencial, do Centro de Medicina Tropical, do Mercado de Bandim, do Grande Hotel. Visitei os Soncó, a mulher de Abudu e os filhos e Tumblo, o único irmão de Abudu, não sei se te recordas de uma fotografia que lhe tirei em Missirá era ele um miúdo de 10, 11 anos, e muito me impressionava vê-lo na picada, quando íamos em coluna até Bambadinca, com a Mauser a tiracolo.

Matei saudades, percorri o cais do Pidjiquiti, vi muita destruição, desapareceram hotéis e restaurantes, estão agora transformados em escombros, pus-me à porta do antigo Comando da Defesa Marítima, recordei que ali tinha visitado Teixeira da Mota, fui até à Pensão Central, aí houve choraminguice quando me reencontrei com a Avó Berta, ela anda de andarilho, no dia seguinte à minha chegada ali almocei a minha canja de ostra na companhia do embaixador Ricoca Freire. Entreguei as encomendas, depois telefonei-te na agora chamada Praça dos Heróis Nacionais, tinha tomado no Café Império uma bica, que alegria em falar com a minha adorada mulher de Bissau para Bruxelas!

Não te vou contar pormenorizadamente todos os encontros que tive, na maior parte deles chorei desabridamente, deixei muita gente atónita, vi muita pobreza, não ignorava as tremendas condições em que vivem estes antigos camaradas, pediam-me constantemente ajuda, não poucas vezes me fui emocionalmente abaixo, eles então pediam desculpa e logo lhes respondia que era do cansaço, não tinha importância nenhuma, quem pedia desculpa era eu por ofertar insignificâncias. E houve o choque dos mortos ou dos ausentes: Mamadu Silá morrera na semana anterior à minha chegada, Serifo Candé, que eu estimava profundamente, quando lhe disse que o queria ir visitar a Bricama, logo me disseram que não valia a pena, falecera há anos. Jobo Baldé, o nosso padeiro de Missirá, vivia algures na região de Galomaro, não sabia onde, alguém lhe telefonara, não tinha dinheiro para a viagem e tinha vergonha que nosso alfero o visse velho e desdentado.

Inesquecível foi a viagem a Missirá e ao Gambiel, encontrarás uma fotografia com aproveitamento das chapas do meu tempo, usávamos folhas de Flandres, houve sábias reciclagens. Estive com a mãe de Abudu, adornou-se para a fotografia destinada ao filho, de repente apareceu-me Braima Mané, alguém que fora escorraçado pelo irmão que lhe queria ficar com a mulher, ele tinha então um braço tolhido, numa flagelação a Finete um estilhaço de granada de morteiro fendera-lhe os ligamentos. Consegui que fosse visto no Hospital de Bissau, perdera-lhe o rasto, saíra-me da memória de tão penosa situação. Ali em Missirá, avançou para mim e ergueu os braços como se fosse voar, quis surpreender-me com aquele braço ágil que eu conhecera inerte. Sabia perfeitamente que o meu irmão Bacari Soncó tinha falecido anos atrás, fui visitar o seu túmulo, voltei a desabar as emoções, vertiginosamente passaram-me as imagens de conversas, de patrulhamentos, de idas a Mato de Cão, das minhas estadias em Finete em que ele me falava da sua juventude com intensa alegria.

Não te escondo que o programa da minha viagem era excessivamente ambicioso: acabei por não visitar todo o Cuor, a picada entre Canturé a Gã Gémeos ainda estava cheia de água, gostava muito de ter ido a Gã Gémeos, usávamos este local como porto para o Sintex, aqui se deu um acidente que vitimou Cibo Indjai, alguém lhe desfechou um tiro por total imprevidência de uma arma que não estava em segurança, era o nosso exímio caçador e um excelente guia, e fora ele que na Operação Tigre Vadio, no final de março de 1970, levara a corta-mato um contingente de cerca de 300 homens depois da destruição de Belel; vi a correr os Nhabijões, é verdade que visitei o Xitole, o Enxalé, Madina e Belel, obrigatoriamente Mato de Cão, tirei imensas imagens, aqui vão algumas para mostra.

Dói o estado em que vi o país, ter encontrado tanta gente desavinda, enormes potencialidades ao abandono. Tinha partido ciente de ser confrontado com muita dor e muita miséria e muitas perdas. Como compreenderás, meu amor, não regresso confortado a não ser por se ter cumprido esta viagem em que sempre tenho contado contigo como escriba intransigente, rigorosa, exultante. Não ia à procura de alívio, mas testemunhar reconciliação, gravar algum dever de memória que me assiste às gerações futuras.

Há dez anos, Deus permitiu o nosso encontro e a nossa viagem em comum onde tão graciosamente coligiste este cadinho de lembranças de uma guerra que se vai apagando do sentimento geral dos portugueses, o tempo imperial não lhes diz nada e muito menos aquela gente africana que, por diferentes razões, nos acompanhou sacrificando a vida ou o seu futuro, destino trágico tiveram muitos dos meus soldados.

Deus permitiu que na velhice eu tenha voltado àqueles cheiros tropicais, a sentir o deslumbramento dos meandros do Geba ou do denso arvoredo da floresta de galeria, pasmado diante do poilão sagrado, sabendo que na Rua do Eclipse tu organizarás esta minha derradeira memória, chave de um passado digno de ser encarecido. Regresso dentro de dois dias para nossa casa, vou ainda aqui visitar os nossos netos, e estou também ansioso por visitar os nossos que aí vivem, uma doce alegria da nossa velhice, a estampa do nosso amor. Avec une tendresse très spéciale, Paulo.

FIM

O Palácio Presidencial como o encontrei em novembro de 2010
Era uma das mais úteis instituições de saúde de toda a Guiné, este Centro de Medicina Tropical, uma das pérolas da cooperação portuguesa, tinha sido seriamente afetado pelo conflito político-militar
A comida era muito boa, a dormida não tanto. Mas não merecia este final de vida, jamais se poderá entender porque se deixa destruir o que podia ser recuperado, vê-se à vista desarmada a qualidade dos materiais
O que fora o Mercado de Bandim: aqui a imagem, por si só, vale por mil palavras
Do mal o menos, é departamento da Marinha, e se por fora está deteriorado, é patente que não o deixaram cair em suave derrocada
Quantas vezes por aqui passei, por esta entrada para o quartel de Bambadinca, durante o dia era permitida a circulação de civis em direção ao mercado ou ao porto ou em sentido contrário, para o Bambadincazinho
Que dor, metíamos as botas neste enlameado, entrava-se na piroga conduzida por Mufali Iafai, ao fundo havia um estreito caminho que os hábeis condutores contornavam as terríveis ciladas do percurso, não poucas vezes se caía no charco e era um bico de obra pôr o guincho a tirá-lo da água fétida
Não me importarei que seja uma das últimas imagens da minha vida, depois de me despedir dos meus entes queridos, não conheço nada de parecido com este fim do dia em que escurece o coberto vegetal
Cancumba, foi uma das minhas alegrias, era povoação abandonada, quando aqui a visitei dispunha de um belo poço, graças à ajuda de uma ONG italiana, uma natureza cheia de vida onde outrora houve percursos de morte
O túmulo do meu irmão Bacari Soncó, valente e corajoso, meu fiel companheiro de armas
Missirá, vinte anos depois, o que gostei mesmo muito foi ver a reciclagem da folha de Flandres, mesmo que enferrujada
Quando vejo esta imagem só falta pôr-me em sentido, quantas vezes aqui vim para garantir, com os meus bravos soldados, que este rio pudesse ser navegável, que a pontos ermos chegassem víveres, armamento e tudo o que se carece para fazer a guerra
Chama-se Albino Amadu Baldé, tratava-o por Príncipe Samba, era o comandante efetivo das milícias de Missirá, tive a dita de o fixar nesta pose, é uma figura principesca e nada mais acrescento
É a foz do Corubal ou Cocoli, quando retive a imagem, sabe Deus porquê, só pensei no sofrimento que se viveu nesta região chamada Ponta do Inglês, destacamento de vida inglória, um local bafejado pela grande beleza, fazer como eu fiz o itinerário Xime – Ponta do Inglês com toda esta luminosidade vizinha certificou-me que a Guiné, digam o que disserem, tem alguns dos lugares mais vibrantes do mundo
É a despedida, os amigos do nosso alfero vestiram-se a preceito para o almoço, a guerra acabou, ficou esta cumplicidade, e o Branco de Missirá está-lhes eternamente grato
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Enquanto Paulo arruma os trastes em Lisboa, deixando temporariamente a casa a dois filhos em trabalho precário, Annette escreve-lhe para lhe contar que acha que chegou ao fim do romance da Rua do Eclipse, coligiu as lembranças do período até 1999, ano em que se conheceram e começaram dois romances. Annette dirá mais tarde que foi uma trabalheira, papéis soltos, cartas vindas da Guiné, fotografias tiradas em Lisboa, antigos camaradas que tinham fugido ao pelotão de fuzilamento deixavam fixar a imagem onde pairava um semblante com uma infinita tristeza. Annette não entendia como tinha falhado redondamente aquela missão que ele vivera com tanto entusiasmo em 1991, parecia que tinha havido uma concordância desde o Palácio Presidencial aos diferentes ministérios, tinham passado vários programas televisivos sobre os desafios postos àquele milhão de consumidores e quais as respostas possíveis, juntando esforços entre as diferentes agências das Nações Unidas, e organizações não-governamentais que de bom grado acederam a cooperar.
Paulo confessava a Annette que fora uma das maiores amarguras da sua vida, ainda por cima ele se sentia ludibriado, tinha acreditado que no advento do multipartidarismo havia grandes oportunidades para as iniciativas de cidadania. O que Annette não sabe ainda é que meses depois de Paulo estar em Bruxelas irá fazer uma viagem, essa sim, o fecho de cúpula daquele romance. Porque o outro romance, em que eles já estão quase sessentões, esse não encerrou e possui ingredientes suficientes para continuar a ser lido à luz da vela ou ao sol fervente.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo mon adoré, mon chevalier, ma joie de vivre, antes de regressares à tua casa na Rua do Eclipse quero fazer-te uma grande surpresa, já fiz uma sinopse da tua estadia na Guiné, vinte anos depois. Está concluído o resumo daquele período de adaptação logo a seguir à tua chegada a Lisboa, usei os teus apontamentos quanto ao tempo que passaste em Mafra, entre outubro de 1970 e finais de abril de 1971, vinhas nitidamente em forma e nem todos os recrutas receberam bem o entusiasmo, a forma impetuosa, com que os preparaste para as lides futuras. Estudaste, tinhas a vida simplificada num organismo chamado Agência Militar, manuseaste milhões de contos (ainda não fiz a conversão ao euro) e pagaste às famílias esses tantos milhões. Ficaste bacharel, logo concorreste ao ensino, quiseram-te como professor de História de Arte, a vida deu as suas voltas, foste parar ao Ministério da Economia, será aí, mais propriamente com o 25 de Abril, que irás descobrir a tua profissão. E cerca de vinte anos depois voltas à Guiné, imagine-se, para fazer cooperação, ali passarás alguns meses, dormes nas instalações de uma fábrica de cervejas, de nome CICER, e almoças e jantas na Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, quem ali manda é dona Berta de Oliveira Bento, a quem irás chamar Avó Berta, nessa Pensão Central farás conhecimento do Dr. Francisco Médicis, será ele que te levará a Missirá num género de furgonete de caixa aberta. Felizmente que guardaste os apontamentos dessa viagem e dessa experiência sobre a qual escreveste quando entraste em Missirá e comovido até às lágrimas voltaste para Bissau, na caixa da furgonete, empertigado, vitorioso, vinha Cherno Suane, mais tarde virá para Portugal, aqui viveu e faleceu.

Não posso esquecer aqueles dias vibrantes que se seguiram ao teu regresso, as visitas de alegria e as de dor, neste caso à mãe do teu mais querido amigo, e aos teus sinistrados. Mas, primeiro os estudos, e depois a compulsão do trabalho, o casamente e os filhos, as recordações da Guiné pairavam num limbo, acompanhei cheia de curiosidade aqueles dias de adaptação a Lisboa em que voltaste aos alfarrabistas, ao departamento de mecanografia em que trabalhaste até 1967 e registei como Mafra foi determinante para as decisões que tomaras quanto ao rumo da tua vida. Escreveste em várias folhas o teu permanente espanto como aqueles oficiais passavam as tardes a jogar e a bebericar, juraste a ti mesmo que em circunstância alguma era fadário que te coubesse. Envolveste-te a sério nas duas recrutas que deste, deram-te como merecimento o encurtamento de um ano para seis meses. Mantiveste correspondência com a Guiné, encaraste sem amargura a diluição dessas responsabilidades. Chegava gente que trazia notícias e inopinadamente recebes uma carta do Benjamim Lopes da Costa se era possível ajudar o irmão, estava a estudar em Lisboa com uma bolsa, precisava de um suporte na disciplina de Filosofia, que foi dado pela tua mulher. Formavam-se companhias de Comandos e antigos soldados teus para lá foram.

Os anos passam, chegam notícias funestas, fuzilamentos, prisões arbitrárias, gente em fuga, gente que tu amas muito. Sofres mas a Guiné parecia uma gaveta a abrir e rapidamente a fechar, nem titubeaste quando se deu o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, há muito que descortinaras que o azeite não é miscível com a água.

Lá para os finais de 1989, os teus superiores informam-te que o Ministro do Ambiente, numa reunião com ministros do PALOP, recebera o mais inusitado pedido que seria suposto vir da Guiné, um protocolo de cooperação na área da defesa do consumidor. O ministro empenhava-se para afinar uma estratégia comum para a Cimeira da Terra, que se realizaria no Rio de Janeiro em 1992, disse logo que sim e o teu nome veio à cabeça, seria primeiro uma semana para avaliar a situação e aquilatar da viabilidade de tal missão. É assim que no segundo domingo de janeiro de 1990 tu regressas a Missirá, deixaste escrito um texto lindíssimo sobre essa viagem, o tumulto, o frenesim, os abraços, a gritaria a acolher o Branco de Missirá a quem os homens grandes as narrativas falam aos mais novos do N’Baké, um guerreiro de pele branca que faz parte daquele chão. Há mesmo um parágrafo em que tu descreves a viagem, muito gostava que este parágrafo viesse reproduzido no romance da Rua do Eclipse, vão pela estrada alcatroada e passam perto do Enxalé, vais completamente alvorotado:
“Via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendia-me com as culturas do cajueiro; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentia-me desnorteado, o novo traçado da estrada afastara-se ligeiramente do rio, chegou-se a Saliquinhé, perguntou-se aos passantes onde estava o rio, que estava mais longe, agora não era fácil, com o crescimento do tarrafo, chegar próximo daquele lugar mágico que visitara todos os dias, não faz mal, atirara-se ao caminho mais pelos homens e menos pelos lugares, mas não resiste aos cheiros, ao oceano florestal, o importante é que regresse ao Cuor, sua pertença. É um dia de janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, eleva-se a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá, naquela estrada que fora o seu tormento e de que sempre fugira, na prevenção de minas e emboscadas, entra em transe, avista-se a curva de Canturé, mais adiante, no tormento daquela estrada alcantilada que atira os viajantes uns contra os outros dentro da cabine, passa-se ao lado de Mato Madeira, Missirá está pertíssimo, agora a estrada alarga-se, alguém aparece e explica que há gente a viver em Maná, Cancumba renasceu, a carrinha inflete numa picada, outro alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá, e então reconheço os altos poilões e o mar de cajueiros, ouve-se perfeitamente o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, cercam-nos com sorrisos, abraços, especado, quando se abre aquele círculo infrene, está Bacari Soncó, é emoção superior às minhas forças, este homem é meu irmão, viveu algumas das grandes agruras que o mundo nos oferece lado a lado, não posso mais esconder a emoção, encosto a cabeça no seu ombro, soluço sem parar, é verdadeiramente irrepetível este dia da ressurreição dos vivos”.

Voltaste no ano seguinte, li de fio a pavio o documento que elaboraste sobre essa missão, dedicaste a fundo em preparar uma estrutura para servir os mais necessitados, houve muitas promessas, até um despacho presencial, tudo acabou na água, nunca se saberá porquê. Deliberaste pôr ponto final no assunto, mas os silêncios africanos são de pouca dura, aí por 1996 chegou Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo Malam, era professor primário, viera para uma ação de formação em Setúbal, farto de privações com vários filhos para sustentar, tomara a decisão de aqui ficar, atirou-se às mais humildes tarefas da construção civil, retomava-se o contato com o Cuor, tinham reaparecido povoações que tu conheceras reduzidas a estacas calcinadas, Finete mudara de lugar, havia vida em Sansão, em Aldeia do Cuor, em Chicri, aparecera perto de Gambiel um local chamado Madina de Gambiel. Por Abudu, foi-te dado perceber que não houvera reconciliação, pairavam rancores, medos, muitas feridas por sarar.

Meu adorado Paulo, esta é a síntese desses papéis avulsos, de tudo quanto aconteceu até nos conhecermos, há ainda umas folhas avulsas da chegada de antigos soldados teus que escaparam a fuzilamentos e prisões. Caso tu entendas é aqui que se fecha o ciclo das tuas viagens, aqui Penélope pode pôr o termo ao extenso bordado, Ulisses não chegou a Ítaca, o seu domínio espalha-se por duas cidades, numa delas está a Rua do Eclipse para onde ele vem em breve, mais uma vez para se envolver no interesse público, de que tem longo lastro.

Outra surpresa reservada é a readaptação dos espaços, vais ter o teu próprio escritório no quarto que foi da Noémie, pressinto que vais encontrar esta casa na Rua do Eclipse mais formosa à tua espera. Quantas vezes, na quietude da sala, me questiono dos muitos anos que aqui vivemos e dos outros muitos anos que a velhice nos poderá reservar na nossa bela casinha de Lisboa. Vem depressa, gosto muito daquela expressão portuguesa “paixão ardente”, o que importa é que já não sei viver sem a tua vibração, a tua voz, o teu corpo. À tantôt, ta chérie, Annette.

(continua)

Carvalho Araújo, nele viajei em outubro de 1967 para Ponta Delgada, de novo em abril de 1968 para Lisboa, e no regresso de Bissau, em agosto de 1970
Este é o rio da minha vida, é bem provável que por aqui naveguem barcos como estes, que nós protegíamos em Mato de Cão, vinham em comboio, tinham um cheiro caraterístico a mancarra e a coconote, rebocando-se uns aos outros nas curvas apertadas do Geba estreito
Agora, que procuro pôr um ponto final no acervo de recordações que me levaram a conservar algumas dezenas de imagens, aqui venho publicamente renovar a minha preferência por aquela que mais me impressiona. Contaram-me que o arquiteto Luís Saldanha fora a Varela acompanhar as obras do aldeamento turístico. No regresso, um jovem Felupe fez questão de posar, o arquiteto acedeu, tudo isto se terá passado perto do final da década de 1950, em 1961, depois do ataque a S. Domingos, o grupo dos Manjacos de François Mendy tudo vandalizaram
Perguntei em Bambadinca se ainda havia cemitério para soldados portugueses. Ainda restavam alguns túmulos, a informação que me davam era de que a Liga dos Combatentes gradualmente fazia a trasladação. Fiquei chocado com o que vi, espero que a esta hora este camarada da Guiné repouse em paz junto dos seus, ou perto dos vivos que guardam lembrança
A imagem é de um conhecido fotógrafo, Francisco Nogueira, foi ele o responsável pelas belas imagens de um livro dedicado ao património arquitetónico dos Bijagós, uma edição da Tinta da China. É um dos mais impressivos monumentos de Arte Deco em toda a África Ocidental, uma oferta de Mussolini para lembrar as vítimas de um desastre aéreo que ocorreu em Bolama, ainda na década de 1930
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (82): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (82): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
Paulo arruma a casa de Lisboa, vai ser ocupada por dois filhos, é menos uma despesa para estes dois filhos que vivem tão precários. É arrumação de papéis, Annette insiste que ainda podem vir acasos felizes, uns papéis soltos, umas fotografias, alguns documentos esclarecedores que melhor iluminem tudo quanto até agora se escreveu. Faltava a chegada a Lisboa, já tinham conversado sobre as peripécias daquela viagem que durou 12 dias, a satisfação de conhecer a ilha de S. Vicente, ter encontrado ali gente a falar um português tão doce e tão bem articulado, aquela chegada a Ponta Delgada, uma multidão silenciosa, as mulheres de preto, a mesma expetativa a bordo, os em terra à procura de descobrir o ente-querido, e este ansioso por ver diante dos seus olhos a gente do seu sangue. Ouve-se um grito estridente e por magia vão-se fazendo reconhecimentos, é quase alucinante a vozearia estentórea que toma conta daquele cais e daquele velho paquete. E nós, que ainda vamos continuar até Lisboa, não resistimos a choramingar. No último dia a bordo, escrevinha-se no caderninho a agenda social, bem pesada de encargos, há tanta gente a agradecer, a beijar, a abraçar, houve tantos amigos que deram consolo, houve aquela mana que em todos os sábados, fizesse chuva ou sol, percorria enfermarias na Rua Artilharia 1 para visitar os feridos companheiros do irmão, nunca ia de mãos vazias, sempre a sorrir e com voz consoladora. São as recordações que subsistem em Paulo, nada disto passou a letra de forma, nem mesmo, no dia seguinte à sua chegada, quando recusou vir a integrar-se na vida militar, fez um contrato que lhe permitia acabar os estudos. Ora acontece que Annette quer ir mais longe, é uma verdadeira Penélope, não desmancha o que fez na véspera, mas reclama mais tecido para continuar. "Conta-me, Paulo, tudo quanto aconteceu depois, os tais meses que passaste na Guiné. Depois veremos se o romance da Rua do Eclipse chegou a seu termo, mas só depois".

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (82): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, percorro a nossa casa de Lisboa na azáfama de deixar tudo limpo, a Delfina esteve cá ontem a limpar os vidros de todas as janelas, quero entregar a casa ao Henrique e à Mafalda, bem como ao Ricardo, nas melhores condições, os móveis brunidos, a cheirar a óleo de cedro, os tapetes desempoeirados, as estantes dão-me um trabalhão imenso e nunca me esqueço do teu pedido de mexer em todas as pastas à procura de mais elementos sobre a Guiné, que eu descubra fotografias, relatórios, pasmei com a nossa conversa de ontem à noite, também queres começar a ler livros escritos por outros, comparar emoções, como os outros sentiram a adaptação, as emboscadas, as penúrias alimentares, os sobressaltos das flagelações. Prometo-te que não regressarei a Bruxelas sem vasculhar toda a papelada que ainda possa andar dispersa por algumas estantes ou gavetas.

Está a correr-me muito bem este final de ano letivo, tanto no Monte da Caparica como em Santarém. Foi rapidamente deferido o meu requerimento, vou entrar em licença registada, coincidente com a data em que começa o meu contrato com a Confederação Europeia dos Sindicatos. Acho que o Bengt Ingerstam persuadiu bem os outros elementos da Direção que aceitaram a nomeação da Rossana Olivieri para me substituir. Já chegou a minha agenda do mês de setembro, tenho uma deslocação a Dublin e outra a Haia, haverá dois dias de seminário em Turim, compete-me a organização, prende-se com a temática dos novos padrões sustentáveis no consumo, abarcando a habitação, o transporte e o empacotamento dos bens perecíveis, em Dublin estará em discussão o futuro do tratamento dos resíduos eletrónicos e qual a melhor resposta a ser dada pelos consumidores, em Haia far-se-á o ponto da situação dos cemitérios para os automóveis em fim de vida. Já me está a ser enviada documentação, mas para nosso consolo não vejo que as nossas férias fiquem minimamente comprometidas. Fiquei feliz por teres aceite prontamente passarmos três semanas de agosto em Portugal, beneficiarás de uma casa com menos pó, mais arrumada, estou a dar uma nova ordem às coisas para que os meus filhos sintam espaço desafogado, se bem que toda a traquitana do pai ande pendurada pelas paredes. Ficaram muito contentes com a ideia de pouparem nas rendas de casa, informei-os que viremos em princípio no Natal, com a Noémie e o Jules.

Não me quero esquecer de contar que aceitei ficar com a responsabilidade de algumas páginas de jornais, quando falei com diferentes diretores eles ficaram profundamente agradados com a possibilidade de eu ir dando em primeira mão informações sobre o que se está a passar nas instituições comunitárias e com fortes incidências não só no consumo como na Saúde e no Ambiente.

Por último, minha adorada Annette, dou-te conta das minhas recordações, que não constam de correspondência nem de quaisquer papéis, daqueles doze dias de viagem até Lisboa. Não conhecia nada de Cabo Verde e apreciei a ilha de São Vicente, creio que já te disse que a cidade do Mindelo me pareceu uma vilazinha tipicamente de província, mas com marca de água africana, claro. Reencontrei a bordo gente com quem convivi em Mafra e na Guiné, muita conversa sobre tiroteios, minas e emboscadas, mortos e feridos. Vivi uma situação de comédia no camarote em que fiquei com dois camaradas, tínhamos recebido instruções de que a água para os banhos estava racionada, no nosso caso havia chuveiro e água no lavatório entre as 6h45 e as 7h30, impreterivelmente. Nós os três nem comentámos, havia somente que repartir a dosagem do tempo, ofereci-me para ser o primeiro, o Gonçalves ofereceu-se para segundo, o Faria nem resmungou, demos a situação como tratada, tacitamente. Tudo parecia correr bem, fui a correr para o duche às 6h45, chamei o Gonçalves, 15 minutos depois, ele disparou para a casa-de-banho, vinha o Gonçalves a sair e gritei ao Faria que a casa-de-banho lhe pertencia, resmungou entre lençóis que não precisava de tomar banho. Esta cena repetiu-se três dias a fio, e então abordei o Gonçalves no convés, na maior discrição, seria que o Faria considerava que tínhamos agido incorretamente com ele, queria começar primeiro, onde, com os diabos, ele tratava da higiene? O Gonçalves pareceu-me surpreendido com a minha inquietação, não havia ninguém na Guiné que não soubesse que o Faria nunca tinha tomado banho, viesse de uma operação ou depois de um jogo de bola molhava uma pequena toalha ensaboada e lavava-se sumariamente, o que surpreendia todos, ele não cheirava mal, fazia de facto a barba e punha camadas de brilhantina no cabelo. Nunca mais esqueci o Faria, como podes imaginar.

O mais impressionante da minha viagem, Annette, foi quando o Carvalho Araújo se aproximou do porto de Ponta Delgada, imagina uma multidão onde predominava a indumentária de preto, como se todas aquelas mulheres estivessem lutadas, um silêncio sepulcral, o paquete a aproximar-se do cais, todos nós nas diferentes amuradas a presenciar aquela multidão quieta, e eis que súbito ouve-se um grito de uma mulher a chamar pelo filho, uma resposta vibrante vem de bordo e então ergue-se um clamor como nunca vi igual, era a festa do reencontro, toda aquela alegria esfusiante se irá intensificar quando os militares açorianos começam a descer o portaló e a serem afogados pelos abraços das famílias, ver toda aquela multidão em movimento da amurada parecia um ballet gigantesco a dar hossanas à vida. Também fui premiado, tinha amigos à espera, organizara-se um jantar para me receber, pude confirmar, se dúvidas subsistissem, que também tinha o meu coração ligado a São Miguel.

À chegada a Lisboa, metido num táxi com carregamento ligeiro, sabia que no dia seguinte iria a um quartel na Calçada da Ajuda buscar os malões feitos em Madeira, dei comigo deslumbrado a caminhar pela cidade, na véspera desenhara no meu caderninho um programa para os dias seguintes, visitas obrigatórias, ir ver a minha mana e os meus sobrinhos, a mãe do Carlos Sampaio, os meus doentes no Hospital da Estrela, uma lista com muitos nomes, muitos agradecimentos a fazer, e mal sabia eu que no dia seguinte, no tal Regimento da Calçada da Ajuda um senhor major insistia que eu me inscrevesse no Quadro Especial de Oficiais, nada de fazer contratos como eu desejava para acabar o curso, o senhor major insistia que com aquela folha de serviços eu teria o mais promissor dos futuros na glória militar. Bem tristonho ficou com a minha resposta, depois das férias iria dar recrutas em Mafra, no horizonte perfilava-se um serviço ligeiro num qualquer departamento do Ministério do Exército, com força de vontade, e com o estatuto de estudante militar, era bem possível ir fazendo exames ao longo de cada ano escolar, como veio a acontecer.

Dou voltas à cabeça, minha adorada, que emoções mais fortes houve no termo desta viagem, talvez de olhar à volta e rever a minha cidade e os lugares conhecidos com o profundo agradecimento de guardar o meu entusiasmo, a minha curiosidade, os meus sonhos, mesmo sabendo que vinha muito diferente do que fora. E talvez valha a pena terminar esta elucubração lendo-te uma linha numa carta que me esperava assinada pelo meu amigo Ruy Cinatti: “Você veio diferente, veio liberto e melhor preparado para lutar na vida. Não se arrependa pelo amor que deu e recebeu. É bom tê-lo de volta. Não se esqueça do que viveu. Não se esqueça do que sofreu. Transforme tudo em dívida consigo”. Minha companheira para toda a vida, não achas que seria neste parágrafo que devíamos pôr ponto final para o nosso romance da Rua do Eclipse? Tu decidirás se é o momento do ponto final. Milles bisous, en attendant ton retour à Lisbonne, Paulo, à partir du mois d’août à vivre à Bruxelles.

(continua)


Carta da Guiné Portuguesa, 1899
Era assim no nosso tempo e permanece a disposição comercial, uma autêntica caverna de Ali Babá, não vemos nesta imagem mas há seguramente fita de nastro, candeeiros, tecidos, loiça esmaltada e muitíssimo mais. Quando o consumo não muda de perfil a organização das prateleiras acompanha a rotina das necessidades dos consumidores
O que deslumbra nesta imagem no Pidjiquiti é o imenso colorido, a azáfama de partir, talvez para Catió ou Bolama, os barcos de pesca, aquela imensidão de azul que parece prolongar as águas do Geba e aquele contraste de gruas e de contentores que nos falam da contemporaneidade, em choque com o que vemos em primeiro plano
Bissau em perpétuo movimento, entre o mercado de Bandim e Bissalanca, é um ritmo frenético que a noite não quebra, quando escurece abrem as discotecas, acendem-se lampiões, o comércio não pára
A Andrea Wurzenberger cedeu-me três imagens muito semelhantes para a contracapa de um dos meus livros, ainda hoje me emocionam com aquela luz translúcida, o avanço sereno daquela mulher (que até pode ser uma bideira), a sensação de apaziguamento que no seu todo nos provoca este caminhar onde até podemos querer supor que ao fundo o paraíso espreita
Quem vem do cais do Pidjiquiti confronta-se com este busto de Amílcar Cabral que parece olhar para o fundo da Guiné, para o Sul, onde começou a realizar-se a sua estratégia militar. É hoje um herói esquecido, como nos parece sugerir este ciclista que passa por ali, indiferente ao pai fundador, parece que no seu itinerário é totalmente dispensável lançar um olhar ao construtor da nação
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22776: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (81): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22776: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (81): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
É um momento de viragem, está em cima da mesa uma proposta de trabalho, pelo menos para os próximos cinco anos. Paulo já falou com antigos responsáveis por aquele departamento, são reuniões, conferências, inúmeros relatórios, representações e algo mais, essencialmente tudo se passará em Bruxelas mas haverá participações obrigatórias em reuniões sindicais nacionais. Ele pode estar descansado, haverá sempre revisores para tudo quanto escrever em francês ou inglês, os alemães exigem os documentos na sua própria língua, um tradutor fica com essa responsabilidade. Mas acontece algo de insólito, quando ele sai daquele imenso edifício no Boulevard Albert II, tendo a tarde por sua conta, corre em paralelo na sua mente a viagem que faz através do Geba até Bissau, a melancolia e o desprendimento físico, a convicção de que se estava num virar de página, como neste exato instante. Outra surpresa grande, como ele irá contar ao seu amigo Gilles Jacquemain, em jeito de desabafo, é que Annette não quer dar por findo o seu trabalho, o romance ainda não acabou, não se pode amar a Guiné com aquela intensidade e pô-la numa prateleira. O romance continua, disse-lhe ela, mesmo quando tu vieres viver para Bruxelas, talvez mesmo quando eu for viver para Lisboa, logo se verá.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (81): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Gilles Jacquemain, fiz uma viagem-relâmpago a Bruxelas, fui recebido na Confederação Europeia dos Sindicatos por um dos patrões, Gottfried Scholtak, um alemão singularíssimo, de estatura pouco mais que meã, uma cabeleira farta entre o louro e o grisalho, olhar agitado, nariz proeminente, beiça larga, uns braços em permanente agitação acabando em mãos pequenas, cabeludas, enclavinhadas quando postas no tampo da secretária. Não foi a primeira vez que vim à Confederação, no Boulevard Albert II, enquanto fiz o percurso a pé a partir do metro na Place de Brouckère, recordei as muitas reuniões que tive na então sede na Rue Montagne aux Herbes Potagères, aqui recebi muitas ajudas para elaborar documentos, pareceres, comunicações, quem diria que agora voltava como colaborador, encontrei aqui um final feliz para todo este desatino em que tenho vivido entre Lisboa e Bruxelas, nunca suspeitei que pudesse vir trabalhar em Bruxelas até à hora da reforma, vivendo ao lado de quem tanto amo.

Reunião longa, foi-me apresentada uma proposta de contrato até cinco anos, com sede em Bruxelas, deslocações obrigatórias quando os sindicatos requeressem a minha presença em conferências ou reuniões nos seus países, o meu antecessor já me tinha falado desta situação, nada que me possa apoquentar, são curtas digressões, exigem obviamente preparação nos três pelouros constantes do documento de trabalho, a que fico adstrito: Consumidores, Saúde e Segurança Alimentar. Expus, questionado, o meu itinerário curricular, o meu vínculo ao funcionalismo em Portugal, e as responsabilidades em curso, designadamente no ensino e na direção da Associação Europeia de Consumidores, precisava de alguns meses para resolver problemas domésticos, finalizar exames, contribuir para encontrar uma solução na Direção da Associação de Consumidores; e, obviamente, obter uma licença sem vencimento invocando serviço europeu, ficando a meu cargo as contribuições para a pensão de reforma. Juntaram-se funcionários superiores que acompanham em segunda linha estes diferentes dossiês, trouxe para Lisboa uns bons quilos de papel.

Entrarei em funções em pleno verão. A versão definitiva do meu contrato vai-me ser enviada para eu assinar. Com expressão risonha, Gottfried Scholtak convidou-me a almoçar com ele na cantina da Confederação, no último andar, com uma vista panorâmica sobre esta parte da cidade, comemos minestrone, spaghetti alla crema di basilico e noci e depois tiramisu, era dia da cozinha italiana. Despedimo-nos calorosamente, como tenho no próximo mês reunião associativa, ficou acordado que contatarei estes funcionários que compareceram à reunião e que de certo modo acompanham os três pelouros que marcarão a minha vida profissional, para prosseguirmos o diálogo de integração do meu trabalho na estratégia da Confederação.

Tinha a tarde livre, temperatura amena, imagina tu, meu tão querido amigo, que comecei a deambular em direção ao centro da cidade, Annette estava em pleno Edifício Berlaymont até às 17h30, tínhamos combinado encontrarmo-nos à porta de um restaurante junto da Igreja de S. Nicolau, Á la Bécasse, seguiríamos depois para a Rua do Eclipse, tinha regresso a Portugal no dia seguinte. Passeava-me num estado quase de êxtase, recordei o peso da melancolia, a noção física do despreendimento quando apanhei um barco num local chamado Xime em direção a Bissau, tinha então acabado a guerra, aquela guerra que me levou a conhecer Annette, e andava por ali com a sensação de uma irrefragável perda e um sentimento de expetativa sobre o que me reservava o futuro, lembrava então todos aqueles a quem queria comunicar a notícia, queria mesmo escrever a um ror de gente, amigos a combater noutros teatros de guerra, à minha gente que eu acabava de deixar. Telefonei em Bissau a meio mundo, dizendo que me tinha sido reservada uma viagem de regresso no mesmo barco em que, em outubro de 1967, partira para Ponta Delgada, mas era uma sensação de desalinho, a mesma sensação que agora me tomava, ia fechar livros, ia abrir outros, dentro de poucas horas sabia que teria pela frente uma mulher que tanto amo a soluçar de alegria. Sentei-me num banco em frente da fachada do Teatro de la Monnaie, dançam-me estas imagens do passado com as do presente, farei uma viagem de cerca de 12 dias, virei com tropa cabo-verdiana a regressar à ilha do Sal, mais adiante pararemos no Mindelo, terá sido uma cidade muito importante, a arquitetura é genuinamente portuguesa, até no coreto, a vista sobre a ilha de Santo Antão assombra, eu e mais três camaradas fretámos um táxi para ir às praias, há muita secura, vegetação mirrada, mas o mar é impressionante e no Mindelo comprarei livros de autores do arquipélago de que nunca me desfiz, tal a impressão que me deixaram.

Gilles, e agora? Vou conversar com os meus filhos, antes vou ouvir a opinião da Annette, com a Rita não tenho que me preocupar, é autónoma, sempre que a ajudo ela não deixa de mencionar que a prioridade está no Ricardo e depois no Henrique. Tenho de conversar com estes meus filhos se querem ficar lá em casa, está fora de questão que eu a venda, Annette adora Lisboa, está sempre a falar-me dos passeios que temos dado um pouco pelo país e anseia continuar, é mulher para fazer novas amizades, mas reconheço que ela vive sempre inquieta com os problemas de Jules, inadaptado, Noémie também causa sobressaltos. Bailam-me diante dos olhos a minha despedida da guerra, a alegria de antigos soldados que tinham passado à disponibilidade a abraçar-me, ali no cais, tinham-me acompanhado a fazer compras de artigos tradicionais, ajudaram-me a transportar as malas para bordo, não sustive as lágrimas, parece que estou a ver o espanto e a confusão no rosto dos meus amigos, ouviu-se uma sirene a chamar-nos para bordo onde num salão um oficial general fez preleção e agradeceu a todos os serviços prestados à Pátria.

Não me sinto em ansiedade, para ser sincero contigo, Gilles. Sei que vou ter tempo e estado de espírito para fechar os tais livros de uma vida devotada a diferentes atividades que sempre assumi como causas públicas, as alegrias que tive no ensino e na vida associativa, eram as mesmas convicções que fui firmando naquela viagem do Sal para Mindelo, daqui para Ponta Delgada até à chegada a Lisboa. Não haverá seguramente qualquer complicação com a minha licença da Função Pública, tenho problemas sérios, como tu conheces melhor do que ninguém, na Associação Europeia de Consumidores, preciso de falar urgentemente com Bengt Ingerstam, é um homem avisado, talvez a pessoa mais indicada para me substituir seja a Benedetta Olivieri. E naquela tarde amena começou a soprar um vento frio, subi ao Monte das Artes, dei comigo a caminhar sem destino, a rever itinerários que para mim são sempre aprazíveis, vejo ao fundo o faraónico, o desmesurado Palácio da Justiça, fui rezar à Igreja de Notre Dame du Sablon, pedir coragem e lucidez para encontrar as melhores soluções, depois de amanhã vão encetar-se rituais de despedida, processos de afastamento, naturalmente são coisas que vão mexer comigo e não posso esquecer os interesses dos meus filhos, felizmente que não se prevê qualquer rombo nos meus rendimentos, mas é evidente que vou entrar na vida em comum com a Annette com despesas em partes iguais.

Enviara a Annette antes de aqui chegar mais peças sobre estes últimos tempos da minha guerra na Guiné, sempre meticulosa, ela vai pondo ordem em tudo, pergunta quando precisa de esclarecimentos, para minha surpresa pediu-me mais informações sobre aquele período de sobreposição, o que fiz, com quem fiz, de quem me despedi, quis pormenores detalhados sobre a última viagem de Bambadinca para o Xime.

Deixo-te a última surpresa para o fim. Annette não quis ir para aquele restaurante, pediu-me para tomarmos o carro, fomos até Tervuren. No parque, as suas emoções desabaram, abraçava-me muito. Fomos jantar num restaurante sérvio e regressámos para casa. Acariciamo-nos muito e nisto Annette dá-me a notícia: o livro está longe de ter terminado, quem viveu o que tu viveste tem que deixar escrito que amor tão intenso está sujeito às leis do movimento perpétuo, vamos continuar a escrever o que se passou depois e em que lugar do coração tu guardas a Guiné.

Era o que sumariamente queria desabafar contigo, afinal a Guiné continua, e seguramente continuará, a dominar muitas das nossas emoções quando eu me mudar para Bruxelas. Nunca pensei que aquele projeto da Rua do Eclipse fosse levado tão a sério por aquela mulher que, algures, ainda em 1999, me olhou arrelampada quando lhe pedi ajuda para escrever um certo livro onde cruzámos o nosso destino. Podes imaginar a alegria que sinto em saber que dentro de alguns meses a nossa amizade se estreitará muito mais, aprecio-te muito e à tua extremosa família. Bien à toi, amitié énorme, toujours, Paulo.

(continua)


Place de Brouckère, num passado recente
Place de Brouckère, na atualidade
Rue Montagne aux Herbes Potagères, aqui mesmo funcionou a Confederação Europeia dos Sindicatos
Rue de la Régence com o Palácio da Justiça ao fundo, Bruxelas
Bruxelas, uma ruela que encanta pelas suas ruelas
Pormenor do teto da Igreja de Notre Dame du Sablon, Bruxelas
Uma imagem do Parque de Tervuren
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
É bem provável que este fim de comissão coincida com a concretização de trabalho de Paulo em Bruxelas, seria uma verdadeira revolução, os cinquentões apaixonados juntos no ninho. Esta carta com apontamentos do quase final da comissão também deixa transparecer que Paulo, num curto lapso de tempo, terá que tomar decisões, é funcionário público, terá que pedir licença registada, seguramente que será deferido, são casos tratados como conveniência de serviço; dois dos filhos singram na vida, mas há aquele Ricardo que sofre de Síndrome de Asperger, é muito agarrado ao pai, há que adotar um procedimento de o deixar bem acompanhado, talvez mesmo haverá a necessidade de ele ir para Bruxelas, tudo isso vai pesar nas decisões de Annette e Paulo. Acontece que Annette trouxe uma questão nova para o romance: será que a comissão do Paulo acabou exatamente no dia em que ele desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos? É possível acabar uma ligação que teve afetos tão poderosos? Não houve um depois? Então o Paulo não voltou à Guiné? Não seria melhor a Rua do Eclipse prosseguir por esse mar fora, dado que é notório a relação inquebrantável? Paulo cisma, é preciso ser prudente, tudo vai do trabalho que lhe vão propor em Bruxelas, e, francamente, agora não há caderninhos viajantes, há escassas memórias, talvez Annette pudesse encontrar agora um remate inspirador para o fim do livro. Vamos esperar.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma chérie, aí estarei amanhã ao fim da tarde, como, infelizmente, tenho viagem marcada dois dias depois, permito-me fazer seguir pelo correio todo o restante material que guardei do final da minha comissão em Bambadinca. Entrego-te com muito carinho o caderninho viajante que andava sempre comigo, aquelas últimas viagens no período de sobreposição com o Nelson Reis, as últimas fotografias tiradas nas tabancas em autodefesa, comoveu-me profundamente os abraços recebidos por chefes de tabanca e mesmo do régulo de Badora, de nome Mamadu Sanhá, andava sempre com os seus galões de tenente e viajava até Bambadinca numa motoreta. Registei que estava a partir e chegou Dauda Bari, era um cabo Fula que viera de Gandembel. Registei um comentário de Sadjo Seidi que se queixava das aulas de ginástica da escola, achava que já não tinha idade para aprender mais letras. Irei reencontrá-lo décadas depois, não esquecera o seu comentário, e manifestava pesar por não ter estudado. Como te disse na última carta, fiz um telefonema a Cherno Suane, que tu conheces, ele trabalha num estabelecimento de eletrodomésticos de um senhor que se chama Adolfo Brilhante, perto do Largo de São Paulo, pedira-lhe se ele podia escrever umas notas sobre os episódios da nossa vida entre julho e agosto de 1970, sabendo eu de antemão que o Cherno depois do seu duplo traumatismo craniano tinha falhas de memória. Apareci na loja depois de ter feito ginástica e fomos os dois para um café-restaurante ali ao pé chamado Pérola de São Paulo, o papel do Cherno segue nesta carta, ele relata emboscadas em Samba Silate, a nossa permanência na ponte de Undunduma, patrulhamentos em direção a Taibatá, noites na Missão de Sono, os dois dias que passámos em Mansambo, a vigilância que fazíamos na estrada alcatroada do troço Amedalai – Ponta Coli – Xime.

O Cherno tem um curioso contrato com o senhor Adolfo, este cede-lhe uma casa ali no Largo de São Paulo que o Cherno enche de gente que vem ou vai para a Guiné, um dia fui lá visitá-lo com o Abudú Soncó, a certa altura pensei que estava num terminal de aeroporto. E sempre com a sua voz ciciante e com aqueles olhos que volteiam e revolteiam, penso sempre que é uma questão de timidez não me olhar fixamente, falou dos dois últimos dias que passei em Bambadinca, não sei porquê perguntou-me se eu me lembrava de Damba Trilene, fui sincero com ele e disse-lhe que não me lembrava, depois fiquei a saber que fora fuzilado depois da independência, gritara desalmadamente que não tinha feito mal nenhum. É nisto que o Cherno me pergunta se o livro que eu estou a escrever já está pronto, e então perdeu a timidez quando eu lhe disse que o livro estava avançado, fez-me inúmeras perguntas sobre pessoas, se estavam incluídas no meu trabalho, fiquei atónito quando ele me perguntou se eu ia dizer que Serifo Candé fizera parte da 3.ª Companhia de Comandos, aquele meu amigo do coração que eu fora visitar à tabanca dele em 1991 e que julgou que eu o vinha buscar, como é que tu me deixas aqui a passar fome, não tenho comida para dar aos meus filhos? Eram pormenores sem conta, procurei suavemente explicar ao Cherno que não podia entrar em tanto detalhe, era um livro sobre a minha comissão, jamais poderia esquecer a lealdade e a fidelidade de todos aqueles que tinham combatido ao meu lado, mas este tipo de livros tem que respeitar as recordações. E pela primeira vez na vida o Cherno repreendeu-me: “Escrevi aqui tudo de que me lembrei porque pensava que tu querias que toda a gente ficasse a saber que combateste com um grupo de africanos que acreditaram sempre em ti, por isso nós devíamos constar da história desse teu livro”. Fiquei com a garganta seca, prometi-lhe que iria rever todo o trabalho já passado a escrito, estamos os dois de pé, e neste exato momento, estou na véspera da tarde da minha partida, ando na companhia do Cherno, do alferes Reis e do furriel Pires, despedi-me dos comerciantes de Bambadinca, visitei as famílias dos soldados, fui aos Correios agradecer todas as gentilezas de D. Leontina, foi penoso despedir-me de D. Violete e da sua mãe, subimos a rampa de Bambadinca e Cherno, como é seu hábito, ajuda-me carinhosamente a arrumar todos os meus trastes num caixote que foi feito na carpintaria, anda por ali o jovem Mamadu Soncó que teima em que eu o leve para Lisboa, continuo a olhar para o Cherno, agora seguro-lhe as mãos, já abracei quem fica no quartel, o rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, sei que me vais esquecer, eu estudei português, matemática, desenho e ciências naturais, deixa-me ir estudar… Fiz-lhe promessas, fui-lhe escrevendo ao longo do tempo, encontrei casualmente um aerograma que ele me enviou em setembro de 1973, já tinha feito a quarta classe, continuava a estudar, trabalhava como escriturário na Polícia Militar, sabia datilografia. Continuando a olhar este meu irmão Cherno Suane, estamos numa coluna que vai em direção a Xime, despedi-me de quem está na ponte de Undunduma, de quem faz vigilância nas obras do alcatroamento da estrada, cumprimentei quem me esperava em Amedalai, alguém subiu para uma viatura para me contar que o PAIGC celebrara o 3 de agosto flagelando o Enxalé, foi fogo de pouca monta porque houve a reação do fogo de obus do Xime.

Estou agora a despedir-me do Cherno, ele vai voltar para o local de trabalho e eu vou apanhar o Metropolitano até ao Saldanha, o pelotão despede-se de mim e eu dele, depois de um aperto de mão a mão direita vai até ao coração, mais uma vez pedi a todos que ajudassem o alferes Reis, ajudam-me a levar a bagagem para dentro da lancha, mostro a guia de marcha, mandam seguir. E é neste exato momento , meu querido Cherno, que eu dei comigo a pensar como iria cumprir os meus sonhos, os olhos não param de se deslumbrar com aquele Geba que parece uma folha dourada, os tufos de vegetação de um lado e do outro, já passámos a embocadura do Corubal, então sento-me, rezo, oiço o ronronar dos motores, venho à amorada e avisto o Ilhéu do Rei, desembarcamos no Pidjiquiti e alguém me leva com a mala para o Vaticano III, um albergue de curta permanência já dentro do quartel de Santa Luzia, a mala seguiu para Brá, para o Depósito de Adidos, anoiteceu, sinto que todos os perigos da guerra estão passados, agora tenho que prospetar o futuro, mas há uma sensação muito dolorosa, minha adorada Annette, começara, eu estava a sentir, aquela dolorosa separação dos meus bravos soldados.

Não sei o que me reserva a reunião com o Diretor da Confederação Europeia dos Sindicatos. Falei telefonicamente com Paolo Adorno e Michel Renard, eles suspeitam que me vão propor um contrato até cinco anos, renovável mais um ano, intuem que me vão propor os pelouros dos Consumidores e da Saúde, já sabem que rejeito categoricamente as áreas da Concorrência e da Agricultura. Das informações que aqui pude obter, é possível obter uma licença registada, por conveniência de serviço em organizações comunitárias, vou ver as condições financeiras que me oferecem, espero que o destino nos prepare uma bonita surpresa. Parece que estou a sofrer daquela inquietação que relatei acima, quando eu sabia de ciência certa que já nada tinha a ver com os meus bravos soldados, não via ser difícil suspender todas as minhas colaborações, poderei até conservar alguns artigos em jornais e revistas, atendendo ao acesso a informações que no futuro disporei. Há a situação dos meus filhos, o Henrique tem presentemente trabalho, vejo-o muito estabilizado, ele e a mulher constituem um casal que vive em rigor orçamental; o Ricardo está presentemente desalentado, ele precisa muito de mim, gostaria de conversar largamente contigo se era possível encontrarmos algo em Bruxelas em que ele se inserisse perfeitamente, a Rita vai de vento em popa. Não quero acrescentar mais nada a esta carta, sei que amanhã vou ter a grande alegria de estar contigo, e que no dia seguinte, muito provavelmente, te transmitirei notícias que te encherão de felicidade. É bem engraçado escrever estas coisas e saber que tu as vais ler algum tempo depois de termos vivido o nosso presente, não achas? Bien à toi, bisous milles, comme toujours, Paulo.


Vejo vezes sem conta a rampa de Bambadinca, aqui cheguei extenuado, vindo de Missirá ou Mato de Cão, muito provavelmente com o Unimog 411 do outro lado da bolanha, pronto para receber bidons de gasóleo ou petróleo, sacos de cimento, rolos de arame farpado, as vitualhas possíveis, aqui se chegava e um pequeno grupo dividia-se com obrigações: uns para as munições, outros para o material de Engenharia, aqueloutros para equipamentos de transmissões, questões relacionadas com a manutenção de viaturas, o economato, o abastecimento alimentar, sempre discutido, por vezes com gritaria, não há isto nem há aquilo, tem latas de chouriço e barricas de pé de porco, umas latas de feijão-verde, e viva o velho. Por vezes tínhamos sorte, disponibilidade de viaturas àquele arremedo de cais, entrar na canoa de Mufali Iafai com as pernas na lama até às coxas, e nunca esqueço a noite de 28 de maio de 1969, viemos de Missirá a trote alta noite para apoiar os flagelados de Bambadinca, o Zé Maria Tavares trouxe-me até aqui, o Geba estava na vazante, tinha uns bons quilos de lodo em cima da farda, mas fiquei feliz, havia um pequeno sinistrado depois de todo aquele angustiante foguetório.

Aqui está a erosão do tempo, é capaz de ser uma daquelas fatalidades das alterações climáticas, a rampa achatou-se, até parece que a laterite se descoloriu, era um caminho vistoso até ao cais, passados todos aqueles anos dói que se farta ver a incúria e o abandono, todos aqueles edifícios podiam ser úteis para as populações, os armazéns estão destruídos, o porto desapareceu, fiquei especado junto à casa de Mufali Iafai, o jovem faleceu e o caminho da bolanha de Finete também desapareceu.

Quantos telefonemas vim fazer para Lisboa na estação dos CTT, era um edifício impecável, tinha pessoal garboso, gente atenciosa, vinha à procura de selos também, não só para a minha correspondência, mas havia quem me solicitasse, por hábitos filatélicos, as últimas edições. À chegada ou à partida cumprimentava este pessoal, de cortesia esmerada.

E também quantas vezes entrei nesta escola para cumprimentar Dona Violete e acertarmos uma hora do chá, ela fazia sempre questão, e apareciam papéis sobre a história da Guiné e recordações dos tempos em que ela fora professora em Gã Gémeos, no início da década de 1950, era um encanto ouvi-la e devo-lhe a iniciação dos estudos deste país fascinante, preso ao meu coração.

Neste dia parto do Xime na lancha de desembarque grande Alfange. Era um cais sólido, preparado para receber pesadas cargas, a navegabilidade do Geba ficou alterada a partir de outubro de 1969, os barcos mais possantes atracavam aqui, só as embarcações civis seguiam até Bambadinca. Ironia do destino, esperaram a minha transferência para Bambadinca para pôr este cais e porto operacionais, aguentei a pé firme as idas a Mato de Cão, ininterruptamente, de agosto de 1968 a outubro de 1969. O cais morreu, o porto também, ficou esta camada de alcatrão que a natureza se encarrega de atapetar, o Xime parecia fadado, com a independência, a ser um porto influente, ali perto está um silo monumental, que deve ter custado uns bons milhões de dólares, nunca foi usado, pode ser exibido como um dos elefantes brancos de gente que sonhava em grande esquecendo que era preciso cuidar dos pequenos.

Este homem que sorri com riso franco chama-se Samba Gebo, assim que me viu chegar a Bambadinca, antigo companheiro de armas, nunca mais me largou. Viemos até à velha ponte do rio de Undunduma, ali perto estava um destacamento infecto onde passei muito sobressalto, pelo temor de uma flagelação brutal, felizmente que nunca aconteceu. A guerrilha do PAIGC atacara Bambadinca vindo por aqui, a partir desse momento criou-se um destacamento onde passávamos a noite e se faziam uns pequenos patrulhamentos de dia, à volta de Amedalai.

Guardei as melhores recordações da Pensão Central, aqui almoçava e jantava durante os meses que fiz cooperação, em 1991. Comida gostosa, preços económicos, por vezes cooperantes interessantíssimos, caso dos holandeses do saneamento básico, os profissionais de saúde da Medicina Tropical, e numa mesa ao fundo, sempre com o seu sorriso doce, Dona Berta, uma senhora que fez milagres aí por 1977, quando não havia praticamente comida em Bissau e aqui nunca faltou a sopa, o prato e a sobremesa aos cooperantes. Um mistério que nunca se irá apurar.

A Fundação Mário Soares recuperou entre o material calcinado pelo vandalismo das tropas senegalesas imagens de rara beleza, que subsistiram das fogueiras feitas por estes colaboradores de Nino que destruíram a maior parte do acervo histórico da Guiné-Bissau. É uma imagem que foi publicada no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, um Mandinga prepara uma esteira.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
São os derradeiros episódios em Bambadinca, ou quase. Porque umas boas décadas depois Cherno Suane encarregou-se de me revelar as suas recordações destes últimos tempos da minha comissão, por portas e travessas meteu férias e veio ter comigo a Bissau, que eu não esquecesse que era guarda-costas para toda a vida, como veio a acontecer. Contei a uma fascinada Annette a visita que ele me fez na primeira operação à L4, no Hospital de Santo António dos Capuchos. Apareceu-me com três garrafas de 1,5 L de água e aquilo que me pareceu um cacho de bananas, e quando protestei logo comentou que a água sempre faz falta e que a banana engana a fome, eu estava mesmo com aspecto de que andava a passar fominha, talvez exigências da operação, a banana tudo remedeia. Mas voltando àqueles acontecimentos, diluiu-se aquele primeiro choque da chegada do meu substituto e do protesto da tropa, foi no fundo a última manifestação a que assisti dos graves problemas raciais que não iludiam que a apregoada unidade Guiné-Cabo Verde não passava de um expediente de ocasião. Annette lá vai organizando metodicamente o final da comissão mas já por duas vezes perguntou a Paulo o depois, o que aconteceu depois, aquelas amizades inquebrantáveis, aquele fascínio pela Guiné era impossível extinguir-se. Paulo, meio a sorrir, perguntou-lhe se ela queria exercer o papel de Sherazade, fazer umas mil e uma noites de um afeto interminável e ela prontamente respondeu que se há amores para toda a vida eles merecem ser registados.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, mon adorée infiniment, de posse do último alinhamento que fizeste para aqueles últimos tempos de Bambadinca, imagina tu que me ocorreram, inopinadamente, imagens dolorosas da derradeira visita que fiz àquele local onde vivi em permanência de novembro de 1969 a agosto de 1970, o aquartelamento, incluindo a capela, a escola, a mãe de água, a residência do administrador, a messe e o refeitório dos soldados, a rampa para o rio, o edifício dos CTT onde até conseguia telefonar para Lisboa, o estanco do Rendeiro, o estanco do Zé Maria Tavares, onde se realizou o meu almoço de despedida com os meus soldados na véspera de partir para Bissau. Imagens dolorosas, explico porquê. Não vinha à espera de encontrar as instalações cuidadas que tinham sido as dos oficiais e sargentos, mas era um equipamento tão funcional que para mim era inimaginável encontrá-lo em derrocada, ainda por cima estava ocupado por uma unidade militar. Houve um coronel que fez questão de me acompanhar na visita, penso que este senhor a certa altura julgou que eu ia ter um enfarte, foi crescendo uma lancinante crise de choro, soltaram-se impropérios, uns quase uivos ao presenciar aquela inusitada degradação de que trouxe fotografias que te enviei, casas de banho destruídas, canalizações roubadas, a messe e a cozinha em estado escalavrado, toda a ira se avermelhou de cólera no meu rosto, era inacreditável ter-se votado ao abandalhamento um espaço que era aprazível, quartos dignos, boas salas e a comodidade higiénica que dava aquela casa-de-banho. Era uma memória um tanto diacrónica, eu estava a rever aquelas imagens de destruição e a recordar as instalações em que vivi, o quanto suspirava chegar do fornecimento de munições a Taibatá e Demba Taco e ter este aconchego à minha espera, ou do regresso de uma coluna ao Xitole, e depois de termos levado à arrecadação os cunhetes das munições poder limpar a pele e vestir roupa lavada.

E a memória ainda foi mais longe, naquele fim de julho, quando regressei de algures a Bambadinca e alguém me anunciou que chegara o substituto e qual o meu espanto quando encontrei no quarto um jovial cabo-verdiano que não deve ter percebido muito bem a minha inquietação, seguiram-se aqueles momentos que já descrevi, a gente guineense em fúria, propagara-se como rastilho a notícia de quem me vinha substituir, depois de mudar de roupa desci a rampa do quartel e fui com o Nelson Wahnon Reis até à loja do Rendeiro, ali ficámos a bebericar um uísque e a formular as primeiras perguntas e a receber com avidez as primeiras respostas. Era um homem de formação europeia, quis saber quem iria comandar e eu fiz-lhe o gosto, não regateando que iria ter pela frente homens destemidos, a primeira água do valor militar. Tal como eu, tinha estudos interrompidos, quis depois saber o tipo de atividades que nos estavam destinadas, ouviu atentamente os tais destacamentos que havia no Cuor, os aquartelamentos do Xitole e do Xime e Mansambo, desfiei o nome das tabancas em autodefesa, as idas a locais que davam pelo nome de Samba Juli ou Sinchã Mamajã ou Saré Adè, regulados como o Cossé ou Badora, havia também as emboscadas no Bambadincazinho, as noites na ponte do rio Undunduma e as vigilâncias nos Nhabijões e, claro está, de vez em quando uma operação dentro deste vasto setor.

Ouvia-me atentamente, com leveza e discrição levantei o véu dos problemas raciais e ele respondeu com gentileza: “Gostaria muito de ser bem recebido, vê se me podes ajudar junto do pelotão, procurarei fazer o meu melhor, sabendo que há desconfiança da minha origem. Tenho que aceitar a decisão de me terem posto aqui. O que não tem remédio, remediado está”. Seguiu-se mais um uísque, era para desejarmos as maiores felicidades um ao outro. Irei acompanhar nos primeiros meses da nossa separação a vida daquela minha gente. Foram para Fá, não era propriamente um merecido descanso, ali ao lado formavam-se fornadas de Comandos africanos, havia que lhes prestar segurança. Escrevi várias vezes ao Nelson, fez-me a vontade de um pedido especial, que festejasse o Natal, foi cumpridor, enviou mesmo fotografia, enviei-te com o último maço de documentos. Conseguiu-se quebrar naquela última semana de sobreposição o pior das reticências dos soldados, pelas informações colhidas acabaram por se dar bem embora em março de 1971 por razões que nunca alguém me explicou, o Nelson partiu de Fá, com paradeiro incerto.

Adorada Annette, segue também uma folha com uma visita que ocorreu, eu penso que a 24 ou 25 de julho, apareceram em Bambadinca deputados da Assembleia Nacional, quando entrei no bar estava ali sentado e com um copo na mão José Pedro Pinto Leite que eu tinha conhecido nas minhas andanças da Juventude Universitária Católica. A sala completamente vazia, pediu-me para eu me sentar e responder a algumas questões. Com frontalidade, disse-me que queria absoluta franqueza, o governador dera-lhe conta da gravidade da situação, pedia o meu ponto de vista sobre a guerra em curso, falei-lhe do que tinha vivido, lembro-me que até quis saber se havia por ali regiões libertadas, pedi licença e fui buscar vários mapas, mostrei-lhe em concreto onde vivia a população e atuavam as milícias e a tropa da PAIGC na região de Madina e Belel, bem como a partir da mata do Poidom e descendo o Corubal era impensável desalojar civis e guerrilheiros daqueles pontos para nós quase inatingíveis, uma coisa era chegar àqueles abarrancamentos e deitar-lhes fogo, outra coisa ali estacionar, esta era a lógica da guerrilha; e o que me parecia mais grave é que se via perfeitamente que aqueles guerrilheiros não quebravam e que tinham cada vez mais armamento sofisticado.

Agradeceu-me as informações, por duas vezes me deu a saber que iria informar o Presidente do Conselho da gravidade de tudo quanto lhe fora dado ver. Dias depois, veio a notícia da sua morte, seguia num helicóptero que foi tombado por um tornado sobre o rio Mansoa, morreu ele e outros deputados. E tens aí a narrativa de tudo quanto aconteceu nessa última semana, sempre ao lado do Nelson Reis houve um pouco de tudo em patrulhamentos, visitas a tabancas, vigilâncias. Do novo comandante de Bambadinca recebi a anuência de louvar alguns dos meus bravos, guardo os louvores que me saíram do punho e que foram dados a Benjamim Lopes da Costa, Domingos da Silva, Queta Baldé, Manuel da Costa Victória, Quebá Sissé, Cibo Indjai, António da Silva Queirós, minha adorada, enviei-os também num maço de documentos, para meu orgulho impante vieram todos a ser dados por oficiais-generais.

Rememorando todos estes aspetos da sobreposição, fiquei felicíssimo, como disse atrás, por se ter quebrado tão rapidamente o gelo entre os soldados e o futuro comandante, fiz todo o possível durante essa semana em que andámos todos juntos em apresentar um por um as praças e os sargentos ao Nelson. E assim chegou aquela noite da inevitável despedida, já me foi entregue uma guia de marcha, no princípio da tarde do dia seguinte tomarei a lancha Alfange no Xime. Enternecido, ouvirei cumprimentos de despedida e numa curta cerimónia o segundo comandante leu uma proposta de louvor que seguia para Bissau, ouvi tudo de cabeça baixa e as lágrimas a dançarem-me nos olhos. Tens aí a fotografia daquele jovem, Mamadu Soncó, filho do antigo guia e picador Quebá Soncó, há semanas que montou tenda no nosso quarto-camarata, estranhei não ter havido nenhuma queixa dos outros alferes, creio que eles se aperceberam que o jovem estava plenamente convencido que eu o traria para Lisboa, o Mamadu já conversava com toda a gente, era um dado adquirido que o nosso alfero cumpria as suas obrigações com a família Soncó, a que se vinculara.

Na derradeira manhã em Bambadinca passei o termo de responsabilidade para o Nelson, assinámos a papelada necessária, o mesmo fiz na secretaria. E na hora aprazada a coluna saiu de Bambadinca, já me despedira das famílias dos meus soldados, daquela gentil professora primária que tanto apreciava conversar comigo sobre o passado recente da Guiné, ela fora professora no Cuor, quando me dirijo para a coluna vejo o insólito de levar a bandeira portuguesa hasteada, toda a gente fardada num brinco, tudo solicitude, vieram ao quarto buscar as caixas e as malas que transportarei comigo. Haverá muitos acenos pelo caminho, os que estão na ponte do rio Undunduma exigem abraços, o régulo de Amedalai, toda a milícia, um ror de população, veio cumprimentar-me. O mesmo acontecerá no Xime, estou emocionalmente dividido, a guerra acabou, está a entrar por uma nesga da minha alma a saudade inextinguível, despeço-me de todos, noto que o meu guarda-costas desapareceu e explicam-me que ele está em grande sofrimento, o seu maior amigo vai desaparecer da sua vida, nós, os africanos, nosso alfero, não quero que nos vejam a sofrer e muito menos a chorar. Tomo o meu lugar na Alfange, é o último aceno para terra, a lancha começa a viagem, estou terrivelmente só, espacialmente perdido entre aquele passado turbilhonante, a inquietação do presente, os sonhos ardentes do futuro.

Minha adorada, vou agora contar-te um encontro que tive com o Cherno Suane aqui há uns dias atrás, perto do local onde ele trabalha, almoçámos na Pérola de São Paulo, o Cherno fez-me uma surpresa de ter passado a escrito aqueles últimos tempos em Bambadinca, espero que fiques maravilhada com as recordações deste homem que eu amo como um irmão.

Parto dentro de três dias, estou ansioso por saber o que o destino nos reserva, sem qualquer ponta de exagero acho que merecemos que esta oportunidade de trabalhar em Bruxelas se concretize, a despeito da multitude de problemas que tenho para resolver em Lisboa, só que tu, e a felicidade dos meus filhos, se sobrepõem a estes pequenos obstáculos. Vou telefonar esta noite, para te dizer que sonho viver contigo e, quando tu quiseres, casarmos. Un quilomètre de bisous, Paulo.


Aqui houve o bar da messe de oficiais, estamos em Bambadinca
Aqui houve uma cozinha equipada
Aqui funcionou no espaço da cozinha a zona dos fogões
Imagem do corredor que ligava a entrada para os quartos e que se prolongava até à messe dos oficiais
Aqui houve chuveiros e uma casa-de-banho perfeitamente equipada
Foi neste lugar, no início de agosto de 1970, no estanco do Zé Maria Tavares, que ofereci o almoço de despedida aos bravos do pelotão
Rua Oliveira Salazar. Bilhete Postal, Coleção "Guiné Portuguesa, 135". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte, SARL)
Outra imagem do Bissau Velho, quase na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22712: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (78): A funda que arremessa para o fundo da memória