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sexta-feira, 10 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24135: Notas de leitura (1562): "Livro de Vozes e Sombras", de João de Melo; Publicações D. Quixote, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
É um belo romance, urdidura sólida, sempre a satisfação do autor a retratar personagens, a vincar ambientes, a levar-nos com imenso prazer pelos prados de S. Miguel, a sentir o vento e a humidade. Dá um tratamento imaginativo àquilo que se designa por uma história de retornos e até de exílios. Com um bom ponto de partida, uma entrevista com um operacional lendário da Frente de Libertação dos Açores. Deplora-se que o autor imagine uma Guiné de clichés, numa atmosfera de Angola de 1961, não houve o cuidado de perguntar a alguém como era o orografia daquele terreno, senão não teríamos o falsete de um operacional dementado a querer atirar um guerrilheiro para um precipício, é mesmo não ter o cuidado de saber que naquela terra há tudo menos montanhas e abismos. Mas do mal o menos, tirando este episódio menor, mal talhado e engerocado, lê-se com imenso agrado, toda a descrição turbilhonante daquela Angola em chamas, convulsiva, de 1975, assegura páginas brilhantíssimas do que há de melhor na nossa literatura contemporânea.

Um abraço do
Mário



Um ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores na guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Não hesito em considerar o romance "Livro de Vozes e Sombras", de João de Melo, Publicações D. Quixote, 2020, como uma das obras mais bem conseguidas do autor de "Autópsia de um Mar de Ruínas" e "Gente Feliz com Lágrimas", tem sólida estrutura, ressuscita o período da agitação independentista nos Açores, dá-nos quadros fulgurantes, entre os melhores que a literatura portuguesa produziu sobre o fim do nosso Império, da tragédia da descolonização angolana, e estabelece um arco feliz, original, nestes diferentes passos tumultuosos. Tudo começa quando uma jornalista, umas boas décadas depois das turbulências em que se contextualizaram as atividades da FLA – Frente de Libertação dos Açores, consegue permissão para ir entrevistar um antigo operacional, de nome lendário. Aqui se inicia uma narrativa de múltiplos regressos. Não menos singular e inspirador é o modo como decorre a entrevista e a substância da mesma, o jogo de cintura entre entrevistado e entrevistadora, a importância do não dito, como igualmente, pela voz de uma cega é-nos dada uma apreciação do retorno, e poder discretear sobre o fim do Império, obrigando aquela jornalista a entender que algo havia de novo no seu trabalho: a dignidade das vítimas.

Mariano Franco, o ex-operacional da FLA, combateu na Guiné, o tema surgiu necessariamente na entrevista. Foi voluntário, quis ir defender a sua pátria de então, passou pelas Operações Especiais, esteve em Tancos, a aprender minas e armadilhas. “A pátria que fui defender à Guiné unia num todo as nossas terras ultramarinas e europeias, a História nacional, séculos carregados de obras por esse mundo fora, a luz acesa da civilização lusíada nas trevas primitivas de Catió, Bafatá, Farim e Bassorá [provavelmente o autor queria ter escrito Bissorã]. Conheceu rios e pântanos, matou cobras e ratazanas, adoeceu de paludismo, começou a ficar louco. Confessa à entrevistadora que viu de tudo na Guiné, “pernas e braços decepados pelo rebentamento das granadas, peitos abertos e vazios como arcas arrombadas, negros degolados e com as cabeças empaladas, cadáveres sem sepultura na sua própria terra, e que dariam de comer aos crocodilos; vi mulheres esventradas que acabavam de dar a vida pelos filhos, restos humanos cobertos de enxames de moscardos, à espera dos abutres e das hienas malhadas; vi corpos despedaçados no meio da lama, olhos abertos de espanto e ainda por morrer: pareciam seguir-nos no caminho que levávamos, tal e qual os olhos dos retratos e das pinturas nos salões e nos museus. A minha loucura foi varrida pelo sopro dos canhões sem recuo nos ataques ao quartel. Aguentou o clamor, o desvario das explosões, o fogo repentino das emboscadas, capaz de resistir a qualquer massacre. Até que um dia ela, essa minha loucura, se moveu dentro de mim, entre silêncios e estrondos, para me tornar mais feroz do que tudo quanto nos feria e nos matava na guerra”.

E conta uma história, durante uma operação intersetaram gente que à cabeça carregava cestos, trouxas de roupa, sacos de farinha e arroz, decretou-se uma sentença de morte para alguns deles, era o olho por olho, dente por dente, ainda recentemente tinham tido mortos e feridos no pelotão de Mariano Franco. Bem podiam ter dado voz de prisão a uma vintena ou até um pouco mais daqueles carregadores do mato e trazê-los para Bissau, o general Spínola até podia atribuir uma condecoração, daquelas que eram dignas do 10 de junho. Mas Mariano tinha sede de sangue, estava turvado pela vindicta, ordenou que lhe reservassem um prisioneiro só para ele. O prisioneiro, um carregador do mato, dir-lhe-á, pensa ele em imaginação: “Branco colono, tuga militar, traficante de escravos, limpa-retretes do Salazar, capataz do fascismo português em África!”. E continua: "ele a tratar-me por esclavagista e por colonizador, veja, estando eu na Guiné a arriscar a vida civilizadora de tantas etnias da pretalhada: mandingas, manjacos, fulas, papéis, balantas, bijagós, felupes, uns macacos do inferno que cuspiam no prato que se lhes dava a comer!”.

E avançam para um penhasco, do cimo do qual se precipitava um barranco fundo. O prisioneiro continua a fazer frente ao torcionário, já descontrolado preparou-se para o degolar, e foi Pires, o seu guarda-costas que se atirou ao prisioneiro de catana em punho, despachou-o com uma guilhotinada na nuca. “Voou-lhe uma rodela do casco traseiro da cabeça. E empurrou-o para o abismo. O corpo guinou, deu meia volta no ar e ainda se voltou para mim, parecia que o comissário da guerrilha pretendia olhar-me uma última vez nos olhos e acusar-me do meu crime de guerra. Não sinto culpa nem remorsos de nada. A minha ideia de pátria multicontinental começou a morrer aí. E acabou de vez no meu regresso ao país anterior, não este; o que me mandou morrer e matar para defender o que nunca fora meu”. Mariano Franco guarda alguns cadernos onde fez o inventário dessa guerra que teima em não lhe sair da pele. “A minha guerra pessoal amarrei-a com uma mordaça em cinco cadernos escritos à mão. Depois de a escrever, expulsei de mim o espírito do mal que me possuíra. Pude voltar a dormir, sem pesadelos nem sonhos, sem novos regressos a África por entre suores ardentes e sobressaltos, a boca seca e as goelas a arder, com uma sede de tísico a meio da noite, e eu afinal deitado na minha cama”.

É o troço da obra de João de Melo menos inspirado, tudo aquilo é um cenário de papelão, não procurou informação condigna sobre o terreno da Guiné, senão não teria inventado aqueles precipícios e abismos que seguramente viu em Angola, quando por lá andou, e que não existem na Guiné, o que há de mais elevado é na região do Boé, umas elevações raquíticas, inadequadas à fantasmagoria que ele criou. Acresce que não há nada de novo, é uma escrita mastigada, em que se rebuscam violências, cabeças empaladas, gente sanguinária a dar com um pau. Mesmo a imagem do guerrilheiro resistente, convertido em mártir, é aqui excessivo e postiço, e João de Melo socorre-se de frases destemperadas, do género: “Tinha pela frente o meu Gungunhana, novo imperador de Gaza: tão soberbo quanto ele perante o Mouzinho ao mandá-lo sentar-se no chão, a seus pés, e ele a recusar dizendo que não se sentava. Porque não? Porque o chão estava sujo! Assim via eu esse homem à minha frente, de pé, qual feiticeiro da tribo, de rosto levantado, a olhar de alto para mim. Eram sobretudo os olhos que me desafiavam. Os olhos, os olhos. Sanguíneos, na expetativa de um desvario na cobardia dos meus atos”.

É um belíssimo romance, bom será que em novas edições este ridículo episódio guineense seja totalmente retocado para ser digno de caber num romance onde se fala de alguém que viveu as asperezas de uma vida operacional, mas sem os delírios, os precipícios e os abismos que não houve na guerra e continua a não haver no espaço físico da Guiné.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24123: Notas de leitura (1561): Curiosidades guineenses no fundo do baú (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20700: Notas de leitura (1269): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
São notórias as mudanças que João de Melo introduziu no seu romance dado à estampa em 1984. Onde, na primeira versão, dominavam as sequências da guerra à volta da qual se movia a exploração colonial numa atmosfera caótica de vida de sanzalas, agora há um confronto permanente entre o que se passa na guerra em geral no Norte e as suas incidências em Calambata, quartel e duas sanzalas. Nesta nova versão é o libelo anticolonial que triunfa, o destino da guerra tornara-se cada vez mais turvo.
É um livro duríssimo, a dimensão ideológica é muito mais saliente, por vontade do autor é um livro para ser amado ou detestado, a despeito dos inegáveis primores literários.

Um abraço do
Mário


Autópsia de um mar de ruínas, nova edição reescrita pelo autor (2)

Beja Santos

Importa recordar que este romance “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo, Publicações Dom Quixote, 2017, é uma versão reescrita daquele que foi dado à estampa em 1984. É mais encorpado e, como o autor justifica, potencia duas narrativas paralelas: “Uma centrada na ação dos militares portugueses no Norte de Angola, outra no quotidiano de medo e de miséria, na revolta silenciosa e fria, na vitimização de duas sanzalas. Numa delas vivem pessoas de distintas etnias que para ali foram desterradas sob suspeita de relação familiar ou cumplicidade com os guerrilheiros. A outra aldeia fundaram-na soldados que desertaram dos exércitos de libertação e se renderam à tropa, para com ela combater a guerrilha que se infiltrava em território angolano a partir da fronteira”.

Há que reconhecer que o texto que João de Melo reserva à atmosfera das sanzalas é muitíssimo bem elaborado, implica o leitor em ambiente africano que o autor estudou com apurado rigor: “Mamã Josefa zanga de repente. Berra para os miúdos que nada disso interessa nas pessoas que não podem ir na escola aprender as coisas que estão falar para aí. Calem-se a boca, já! Tou doente em minha cabeça. Tomara haja sempre comida para se comer e não venha a guerra na Calambata matar nas pessoas. Logo vem vavó Katuela se manifestar, com sua voz envinagrada: menino pequeno tem mesmo é de falar da boca para fora as coisas que vai aprendendo e que precisa nunca esquecer, pró bem da nossa terra e do nosso povo, ‘tá ouvir, Josefa? E fala sua infância distante, sempre na escuridão da ignorância, que nem mesmo pôde aprender nas letras do português dos brancos”.
Os meninos da sanzala vão até ao quartel na mira de arrecadar os restos do rancho, por vezes havia respostas cruéis, como a do primeiro-sargento que assolava os cães nas pernas dos cambutas, mas os meninos não desistiram: “Os miúdos iam saltar os muros baixos do refeitório, à espera dos restos da comida dos soldados. A fome que eles tinham, esses meninos! Xi, mesmo magoa o coração da gente. Barriga parecia que falava no lugar da boca, as tripas enroladas como jiboias enfurecidas. Se sobrava comida, cozinheiro Augusto, um bailundo, sipaio da tropa, procedia à distribuição: concha de sopa em cada um, uma batata, bocado de pão misturado nas latas velhas – onde que as mãos desses fulaninhos mergulhavam à pressa, pois a fome estava lhe esperar havia muitas horas”.

O furriel Gouveia percorre a cidade de São Salvador, encontrou alguém que lhe traz notícias da família, por ali deambula, e tem aqui lugar um episódio tocante:
“Sentiu à sua beira a presença de um menino perdido que o seguia e o fixava pelas costas. Devia querer pedir-lhe uma moeda. Procurou nos bolsos do dólman, e nada: não tinha trocos. Quando atentou melhor na criança, viu um rosto largo, salpicado de lama, com muito ranho no nariz. Enojado, pensou em enxotá-lo, mas suspendeu o gesto e disse-lhe:
- Tem dinheiro não, minino preto; paciência então, minino preto.
- Furrié, nosso furrié…
- Estou-te a ouvir ainda, minino preto. Diz logo.
- Não queres ir foder na minha mãe?
- Se você queres ir fodes na minha mãe, nosso furrié, vem então, que está te esperar ainda. Cinquenta escudos, é só.
- Nosso furrié, ouve ainda: se não queres mesmo ir na minha mãe, eu vou então te fazer punheta, vinte e cinco tostões o meu preço”.

É um romance em que não se dá tréguas à brutalidade: emboscadas com muitos mortos e feridos, agonizantes, muito trabalho forçado, a exploração dos preços do café, um alferes a passear-se em Luanda com um colar de orelhas ao pescoço, a destruição de sanzalas, medida punitiva, um exemplo para que os guerrilheiros não se esqueçam de que morrem homens, mulheres e crianças nos locais que os acolhem. Os guerrilheiros aparecem sobredimensionados, agressivos, fulminantes:  
“A nova ofensiva chegou na manhã do dia seguinte, à entrada para a ponte do rio Luvo. Um sopro de aço explodiu e ergueu no ar a pesadíssima ferragem da Berliet, obrigando-a a sair da picada para a orla do capim, com a dianteira destruída. Aconteceu algo de idêntico a uma coluna da Luvaca, dias depois: viajam ao encontro de um fim de semana na cidade de São Salvador, quando de novo uma mina de alta potência explodiu, destroçando uma segunda Berliet. Seguiram-se os ataques, numa só noite, aos quartéis do Luvo, do M’Pozo e da Mama Rosa. Todo o Norte se encheu de sons, estouros e desvarios. Voaram casernas desfeitas pelas balas de canhão, telhados, placas de zinco, trens de cozinha, bidões crivados pelo tiro a tiro das espingardas e de outras armas ligeiras. Os cães do quartel a uivar à morte”.

Calambata irá sofrer as consequências, mais patrulhamentos e interrogatórios nas sanzalas. Iremos assistir a nova onda de violência, os guerrilheiros estão manifestamente próximos, a polícia política entra em campo. João de Melo encaminha o desfecho final para um martírio que deixa uma mensagem de esperança. O herói chama-se Romeu, andava desaparecido, o alferes Alexandrino ameaça com uma terrível repressão, Romeu aparece, sabe que vai ser executado para não haver mais imolações. O alferes Alexandrino parece o demónio à solta:  
“Morde os lábios, puxa o bigode. Terá de enfurecer-se. É o que esperam dele: uma fúria a fim de repor a normalidade. Fecha os punhos, dá alguns passos em frente, sopra a sua ira na cara do outro. E larga-lhe um pontapé que lhe acerta em cheio no baixo-ventre. Romeu enrolha sobre a barriga, fica de joelhos. Alexandrino, que ainda não cumpriu o seu papel, despede-lhe um murro na nuca, o qual soa na noite como uma marretada. Ainda assim, Romeu não se defende, não grita nem geme. A sua dor é também a dos outros”.
Está sentenciado o martírio, falta a execução:
“Dois soldados erguem-no pelas axilas e levam-no de rastos, semiconsciente. Ajudam-no a subir para o carro. O povo assiste ao endireitar do busto e à altivez da cabeça levantada, a escorrer sangue como um Cristo coroado de espinhos. Os carros afastam-se, ganham a subida da rampa até à porta do quartel e à pista dos helicópteros. Só então o silêncio do povo se rasga de alto a baixo. Ficam para trás os gritos, os prantos, as raivas loucas que as pessoas guardam dentro de si, no sítio que os missionários estrangeiros do Sul falavam outrora se chama alma, mas não é nada. A alma é o coração em sangue. O que nos dá e o que nos tira a vida, mais a razão e a luz perpétua da nossa única estrela”.

O romance reescrito de João de Melo toma novos revérberos, assume novo peso literário nesta mudança, é mais um retrato de uma tropa exangue e um libelo anticolonial onde no passado sobressaía um indiscutível romance da literatura de guerra, a sua primeiríssima narrativa, que agora fica sujeita à esperança o dia da independência de Angola.
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Notas do editor

Poste anterior de 24 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20691: Notas de leitura (1268): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (47) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Em 1984, João de Melo deu à estampa, sob forma de romance, a sua experiência como furriel enfermeiro em Calambata, São Salvador, Norte de Angola. Livro duríssimo, a contingência militar entremeada com a opressão colonial explorando os paupérrimos agricultores do café, a vida martirizada nas sanzalas onde não se pode iludir que há simpatias com os movimento os de libertação.
Em 2017, temos uma versão reescrita que veio acentuar as duas narrativas paralelas entre tropa e colonos e tropa, colonos e colonizados. Esta nova versão é deliberadamente excessiva em tudo: muita gente gananciosa e torpe, muito ideal revolucionário, a tal ponto que podemos encarar esta nova versão como um manifesto anticolonial a pretexto de se situar inteiramente num palco de guerra, Calambata, onde o autor ganha contornos de um verdadeiro apóstolo amado pelo gentio.
Texto de inegável qualidade, e exigente na interpretação desses excessos que foi aquele mar de ruínas em que viveu João de Melo e que agora o reconta sob a forma de uma guerra sem sentido.

Um abraço do
Mário


Autópsia de um mar de ruínas, nova edição reescrita pelo autor (1)

Beja Santos

João de Melo
“Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor, Publicações Dom Quixote, 2017 tem por base uma das obras consagradas da literatura da guerra colonial, cuja 1.ª edição data de 1984. João de Melo explica o ponto de partida e a reformulação. Onde inicialmente pesava a narrativa da presença colonial em Calambata, perto de São Salvador, no Norte de Angola, um quartel erguido sobre um monte estratégico tendo duas aldeias africanas por baixo, agora as duas narrativas decorrem paralelamente: o que fazem os militares em contraponto com a vida quotidiana nas duas sanzalas, onde vivem pessoas de diferentes etnias e soldados que desertaram dos exércitos de libertação. Nesta reescrita, torna-se mais claro quais as duas razões sociais do que nas edições anteriores. Reescrever tem os seus custos, João de Melo, conscientemente ou não, alterou o cerne da obra, de um romance de guerra toda a trama ganha a dimensão de um retábulo barroco, não há roupagem que não se torne excessiva, ondulante, sujeita a leituras diferenciadas.

Logo aquele soldado no seu posto de sentinela em completa tensão e desorientação com os movimentos que pressente na mata, seguem-se fogachos, a tropa responde a um ataque fantasma:
“Dezenas de metralhadoras ligeiras, apontadas ao foco luminoso do Seixel, uniram-se às rajadas das quatro Bredas dos postos. Bocas de chamas em crepitação, das quais saíam, numa torrente, balas incendiárias que pareciam lançar para os céus de Calambata um estrondo de um vulcão em atividade”. Entra em cena um capitão medíocre e reles, de nome Marinho, oficiais e sargentos são pessoas pouco estimáveis, depois deste grotesco capitão surge o alferes Alexandrino que leva uma coça valente no escuro. Mas a figura do capitão é alvo de uma atenção implacável: “Ia na terceira comissão de serviço, depois de Moçambique e da Guiné. Envelhecera depressa de mais. Era-lhe difícil lembrar-se de quais eram, e como, as suas qualidades marginais. Deixara-se cair no cerne das maquinações de guerra”. O capitão também não aprecia o alferes Alexandrino: “Nunca gostara daquele bigodinho ralo e descaído sobre as pontas. Detestava a sua cabecinha adamada, a voz aflautada, o risinho tortuoso”.

Como se tece a narrativa em planos paralelos, estamos agora na sanzala, Romeu pontapeou o cão do senhor Valentim, autoridade colonial, vai ser sovado, brutalmente sovado. O soba Mussunda não reage, a sua autoridade é simbólica, sabe que não manda na sanzala, vive sob a ordem dos brancos. Num rasgo de dignidade pede ao polícia Valentim para parar, o agente colonial fica enraivecido, o chicote vira-se contra o soba: “Vibra o primeiro golpe no pescoço de Mussunda, que abre muitos olhos atónitos, ante a violência da agressão. Mais cego ainda, o golpe seguinte atinge-o em pleno rosto. O branco não está pelos ajustes. Assenta-lhe um punho na boca, estende-lhe uma joelhada por baixo, nos órgãos sensíveis dos machos”. Está esclarecida a correlação de forças, é a vez de a tropa transpor os velhos perigos do mato, uma coluna põe-se em movimento.

E João de Melo mostra os beneficiários da guerra, gente do quadro permanente e colonos, em pinceladas brutais:
“Tinham vindo ali parar trazidos pela mãozinha rufiona do dever patriótico dos outros, dos outros que serviam a pátria à sombra das cidades e dos seus palmares junto ao mar; dos outros que ganhavam o dinheiro com a guerra, dormiam, tranquilos e saciados, com um braço por cima do corpo amado das mulheres; dos outros que planeavam surdamente a morte à distância e criam mais e mais e sempre mais das tropas: armas apreendidas, mortos e feridos em combate, prisioneiros de guerra para interrogar sob tortura da fome e da sede, muita pancadaria, mutilações e mortes anunciadas. Havia-os de todos os aspectos próximos e distantes, desde generais velhos, atormentados pelo reumatismo, que usavam faixas cor de quaresma sobre as fardas de gala e traziam os dedos sáurios em louvados de negro, não possuindo mais nada de seu: nem o cabelo, nem o bigode com que lambiam a hierarquia dos poderes militares, de baixo para cima. Havia sargentos excedentários nos depósitos e arrecadações de víveres, outros à sombra dos paióis e das secretarias, outros de quem se dizia serem de uma palidez assustada, de uma fealdade fria, com o mistério profissional que a toda a gente lembrava negócios secretos, expedientes turvos, favores, homossexualidades reprimidas. Havia cabos gorduchos, de fardas muito coçadas pelo uso, com uns olhos alcoólicos e muito propósito de estragar a vida dos inferiores – campónios pouco mais do que analfabetos que pela mesma via das comissões sucessivas de serviço no ultramar reclamavam a promoção a sargentos. A outra realidade da guerra começava na figura dos colonos, donos de tabernas, mercearias e lojas de roupa, alguns dos quais, ao serem desmobilizados, acabavam por ficar em África, cafrealizados em pleno mato. Outros perdiam-se por outros caminhos, no tráfico dos homens contratados para irem trabalhar como escravos nas roças e fazendas, nos negócios do café e do algodão, nos comércios e contrabandos das cidades”.

Mas João de Melo tece considerações ainda mais punitivas:  
“Colonos de ontem e de hoje. Antes, usavam caçadeira e chicotes sangrentos nas costas nuas dos negros. Agora, dão o braço aos funcionários da Administração, aos polícias à paisana, ao regedor e ao pároco”. Parte a coluna e entra em cena João de Melo com o nome de furriel Gouveia, o enfermeiro, é um apóstolo estimado por todo aquele gentio: “As 750 pessoas de Calambata, entre militares e civis, ficavam entregues ao expediente, à intuição clínica e ao honesto estudo de Gouveia, um rapaz que sofria de insónias e não dava nada por aquela guerra nem por outra qualquer. A esperança do furriel estava toda posta nas crianças desprotegidas de Calambata, nos partos improvisados, no olhar de lodo e de pura bondade das velhas senhoras, que se sentavam à porta das suas cubatas, na tensão arterial, no pulso agónico dos anciãos, nos assobios de asma que se lhes soltavam dos pulmões para os seus ouvidos. Vacinava os meninos contra a cólera, a difteria, o sarampo, a Varíola e a tuberculose”. Parece que este furriel Gouveia precisa de ser vigiado, jamais o leitor merecerá a explicação sobre o seu passado antifascista ou os seus credos anticoloniais.

E temos a apresentação das crianças que vêm até ao quartel à espera das sobras do rancho:  
“Os pobres infelizes meninos atacaram em bando os caixotes do lixo rasparam com as mãos o arroz encaroçado no fundo dos tachos e panelas, serviram-se de gravetos para remover as bolas de cimento do esparguete e as cabeças do peixe. Com as mãos a servirem de conchas, foram pondo para dentro das latas enferrujadas, com uma pressa de predadores, porções de sopa, pedaços de pão ensopado no caldo, os ossos mal raspados ou ruídos que levaram para os irmãos mais novos e mais velhos, para mamã doente, para vavó com fastio de morrer em breve”.

E a trama romanesca volta a centrar-se nas sanzalas de Calambata.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20672: Notas de leitura (1266): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (46) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20660: Notas de leitura (1265): Dicionário de Paixões, por João de Melo; Dom Quixote, 1994 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
João de Melo não precisa de apresentações, basta pensar nesse livro memorável que é "Autópsia de um Mar de Ruínas", em Fevereiro de 2017 apareceu a 9.ª edição reescrita pelo autor, é romance marcadamente autobiográfico da sua experiência como furriel enfermeiro algures no Norte de Angola.
Peguei neste "Dicionário de Paixões" à procura da alma açoriana, que ele tão bem exprime e dei com estas páginas a que nenhum velho combatente pode voltar a cara. Alguém que sabe confessar-se assim: "Trata-se de uma paixão inquieta, povoada, um pouco depressiva talvez. Mas trago-a desde a minha infância numa ilha dos Açores - desde o tempo em que me era preciso ser amado por todos; justamente porque tinha já uma imensa e universal paixão por toda a gente".

Um abraço do
Mário


A guerra de África em páginas soltas de João de Melo

Beja Santos

O escritor João de Melo é a figura cimeira tanto no estudo da literatura da guerra colonial como operário dessa escrita. Devemos-lhe “Os Anos da Guerra”, organizou em 1988 uma antologia de escrito representativos das três frentes da guerra e que ainda hoje é de consulta obrigatória. Em 1984, publicou “Autópsia de um Mar de Ruínas”, em 9.ª edição, reescrita em 2017, está na lista das obras-primas da literatura de guerra. Em “Dicionário de Paixões”, que apareceu em 1994 nas Publicações Dom Quixote, João de Melo deu à estampa crónicas que são textos que falam de sentimentos, visões, desejos, estranhezas, aproximações, experiências dos sentidos. Chamou-lhes crónicas sentimentais e ensaios de sonhos, fragmentos de uma autobiografia apócrifa.

Respigo das suas lembranças de África, combateu na região de S. Salvador, no Norte de Angola:  
“Continuo a vê-las, as crianças de África, chegaram à porta de armas, obedecerem à ordem do soldado louro que está de plantão e as manda pôr em formatura. Trazem velhas latas cheias de ferrugem, os rostos sujos, os pés descalços, as roupas inacreditavelmente rotas: ainda assim, há nelas uma muito extraordinária dignidade, uma alegria que só é possível no rosto e na inocência das crianças. Vêm pelos restos e comida, pelo rancho que sobra sempre do fastio da tropa. Entram em fila, quartel dentro, marchando ao som dos dedos que tamborilam o fundo das latas. Vejo-as e oiço-as. São as crianças de África, e vão-se lentamente acercando do refeitório da tropa. Param alguns metros, suspendem o clamor do batuque. Faz-se um silêncio trágico, feito de uma paciência triste, árida, longamente vexada. Penso: não é o justo o mundo tão grande e a grandeza humana tão pequena (…) Vejo-as, ontem e hoje, com os olhos da memória, nos livros que li e na prosa que em mim regressa. Continuam as sôfregas mãos, trémulas de febre, a mergulhar no lixo, no riso e nas vozes trocistas da tropa. Com os dedos em concha, pescam escamas, espinhas trucidadas de peixe, bagos encaroçados de arroz, ossos esburgados, batatas por descascar. Comem clandestinamente, devorando, rilhando o dente, ardendo em febre fria, escondendo-se do soldado que varre agora do lado de lá do refeitório. Disputam aos cães os restos de comida, com a avidez canina e a maldade de se empurrarem umas às outras, numa rixa surda. Enchem as latas com lixo e comida, deitam a correr parada fora, papá, mamã e os cambutas vão ter enfim o jantar assegurado”.

Estamos agora em plena guerra colonial, chegou uma mensagem ao aquartelamento, o operador de transmissões, qual alquimista, decifra códigos ultrassecretos, e a mensagem decifrada é entregue ao superior. “Lendo-a, o capitão estremeceu, pálido, quase estarrecido, como se nele viesse a notícia do seu próprio funeral. Ao entrar no gabinete, vinha aéreo, poroso, levitante. Chamando os alferes à sua presença, trancou a porta por dentro, abriu perante eles grandes gestos nervosos, antes de partilhar o insuportável conteúdo daquele segredo. Nela se garantia (e a PIDE nesse tempo, tal como Deus, nunca se enganava, que cerca de 300 elementos inimigos e respetivas famílias haviam atravessado a fronteira, a fim de se entregarem às tropas portuguesas. Impunha-se, por isso, que os quartéis do Norte ficassem em estado de máxima prevenção”. Começava assim a operação para intercetar e recolher os tais desertores. Marcara-se um lugar previsto e saíram pelotões a cumprir a sua missão.
E temos o desfecho:
“Um quarto para a meia-noite, e nós no mato, abrindo trilhos no capim, em progressão para o objetivo. 200 metros à frente, desarmados e em pânico, o alferes e os furriéis repetiam o santo e a senha. De duas uma: ou o guia dos desertores inimigos já lá estava à espera, de braços erguidos e pronto a entregar-se, ou então seriam eles a cair, abatidos como tordos, trespassados por uma rajada de metralhadora (…) Longas horas à espera desses corvos noturnos – espiando o capim, ouvindo a ilusão dos pequenos ruídos da noite, vendo o que por força sempre fora invisível. Até que o dia clareou e pelo rádio veio a ordem de suspender a operação. No regresso, com alma embrulhada nos logros frios do desencanto e da derrota, vivêramos não um pesadelo, mas a crueldade de mais uma mentira de guerra… Ao fim desse mesmo dia, uma segunda mensagem veio repor a outra, a segunda verdade da nossa tragédia: afinal, tratara-se de um simples exercício militar; nunca estivera prevista a entrega voluntária de quaisquer desertores. Mas, em contrapartida, os sublimes comandos portugueses mandavam dizer que as nossas tropas tinha estado perfeitamente à altura das circunstâncias”.

E fala também dos heróis da guerra, operacionais que nunca se separavam da sua faca de mato, nem das granadas presas ao cinturão. “Muitas virtudes assistiam aos heróis da minha guerra. Era o caso de dormirem apenas o essencial. Sem sono nem fadiga, passavam as noites à bebida, temperando-as com latinhas de anchovas, atum, sardinha de conserva, pasta de fígado. Ao terceiro dia de permanência no quartel, entre uma operação e a seguinte, urravam como bois pela parada, clamando contra o tédio, desesperados com os formigueiros do cio, fartos de tudo, implorando que os deixassem voltar depressa para a mata (leia-se guerra) e lhes dessem turra a matar (…) Os heróis da minha guerra espumavam de raiva contra as ideias dos traidores de Portugal, e largavam bojardas, partiam garrafas de cerveja contra o pavimento da messe dos sargentos. Mas eu sabia que eles, todos eles, absolutamente todos, um dia, quando as coisas mudassem e outra fosse a linguagem (e outros os donos e servos dela), seriam impolutos, sérios, democratas. E havia de ouvi-los garantir que nunca tinham dado um tiro ou maltratado um prisioneiro de guerra, que também eles eram vítimas do fascismo, que em Angola, em Moçambique e na Guiné se tinham empenhado não em fazer a guerra, mas em sabotar as operações, numa espécie possível de desobediência ao regime colonialista de então”.

Falando do seu autorretrato, volta a falar da guerra:
“Dizem que por ter feito a guerra colonial em Angola (1971-1974), perfilhou dela uma visão sensível, determinante, porventura radical, nos romances, novelas, contos e antologias que sobre ela publicou. Nada disso é certo nem falso”.

Não esqueçamos que o título da obra é Dicionário de Paixões, onde o autor explicita:
“A paixão existe. Não é um sentimento perdido. Ela tem a idade, a sombra, a explicação e o destino da literatura. A sua honra, também. Nunca o esquecimento foi necessário à literatura. O prazer e o sofrimento sim. Os seus excessos, também. E as suas perdições”.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20649: Notas de leitura (1264): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (45) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17949: Notas de leitura (1012): "A Antepenúltima Caravela", de Emanuel Filipe, inserido na obra “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (Abel Santos)



1. Em mensagem do dia 2 de Novembro de 2017, o nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos o texto, que se publica com a devida vénia, da autoria de Emanuel Filipe, que faz parte da obra “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988.[1]


A ANTEPENÚLTIMA CARAVELA 

pp. 205-212) (excerto)

por Emanuel Filipe

Há treze anos de guerra, e ainda se julgam inocentes, limpos, sem nódoas de sangue na roupa, nem indícios de pólvora nos poros minúsculos das mãos. Deixara apenas de poder suportá-los, tanto quanto ao homenzinho que, lá dentro aos microfones de bordo, entre uma música e a seguinte, aproveitava para contar uma anedota sem graça. Esgotara-se há muito o reportório das suas mulheres maliciosas e cínicas. Não havia pachorra para ouvi-lo imitar os improvisos do general Spínola. E a ninguém ocorria que o general Kaúlza pudesse ser comparado a um treinador de futebol.

Quem poderá compreendê-los, a esses homens, quando daqui a algum tempo, estando nós longe deles, pudermos acusá-los de tudo o que nos aconteceu em África? Vê-los-emos baixar os olhos e cerrar os punhos, apenas. Seremos infinitamente piores do que eles. Somos a geração do ódio, da vingança desnecessária e do discurso fácil. Cometeremos não os seus crimes sórdidos, mas crimes de palavra, delitos ociosos. Quem poderá então compreender-nos também a nós?


Homens geralmente brunidos, em cujas fisionomias avançavam já os primeiros sinais de velhice, mas os subalternos jamais perdoariam o toucinho dos seus ventres, o princípio da calvície, as suíças ruivas ou malhadas e sobretudo os dentes postiços. Começavam a cheirar a treze anos de guerra, em comissões sucessivas, e ao sacerdócio político das armas. Não poderia haver compaixão para esses homens proscritos?


Passaram os anos, mas nunca mais seremos os mesmos. Vivos e mortos por dentro, e não mais aqueles rapazinhos especializados à pressa, para fazer uma guerrazinha menor, onde nunca nada de importante aconteceria. Passaram os anos, e o país continua heroicamente de cócaras, mas se o puserem a falar do seu remorso de guerra, só um arrepio conseguirá atravessar-lhe a voz. (...)


Vd. aqui o índice da obra, na qual colaboraram alguns escritores consagrados.
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Notas do editor

[1] - Vd postes de:

23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)
e
27 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17940: Notas de leitura (1011): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
O trabalho de investigação de João de Melo foi tão rigoroso e cuidado, que publicados estes dois volumes sobre a literatura das três frentes em 1988 a sua leitura continua a ser imprescindível, bem entendido para quem pretenda conhecer as primeiras décadas da literatura da guerra.
O jornalista e escritor Joaquim Vieira contextualiza os acontecimentos, seguem-se as antologias.
Deixamos para a próxima incursão a revelação de um conto de Álvaro de Guerra de altíssima qualidade, e até agora não divulgado entre nós, "O Tempo em Uane".

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (2)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, dois volumes, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, constitui o primeiro e até agora o mais significativo levantamento sobre a literatura da guerra colonial, nas suas três frentes. No primeiro volume, o escritor João de Melo passa em revista as principais etapas que conduziram os movimentos de libertação à luta armada, percorrem-se os itinerários da preparação militar e analisa-se a literatura de Angola. Este segundo volume integra as literaturas de Moçambique e da Guiné e diferentes olhares sobre e no regresso da guerra. Como sempre, Joaquim Vieira procede às introduções dos respetivos conflitos. No caso de Moçambique, refere que em 1964 a FRELIMO procurou lançar a insurreição em cinco distritos, descobrirá que não possuía forças suficientes e concentra-se em Cabo Delgado e Niassa, aproveita-se dos apoios situados na Tanzânia. A FRELIMO demorou a impor-se, sofreu divergências internas, tinha no seu seio duas grandes correntes, a pró-ocidental e a francamente pró-chinesa. O projeto de Cahora Bassa, no distrito de Tete alterou por completo o ruma da situação em Moçambique. Eduardo Mondlane foi assassinado nos escritórios da FRELIMO em Dar-es-Salam, Samora Machel sucede-lhe na presidência no ano seguinte e a ala mais moderada do partido é afastada, tendo-se alguns dos seus dirigentes entregue às autoridades coloniais. O período do Comandante-Chefe Kaúlza de Arriaga irá ficar assinalado pela operação Nó Górdio, proclama que a guerrilha está à beira do aniquilamento, numa altura em que a FRELIMO se concentra no distrito de Tete e ameaça a construção da barragem de Cahora Bassa. A guerra avança, o equipamento da FRELIMO melhora e em 11 de Abril é disparado o primeiro míssil Strella. Escreve Joaquim Vieira:
“O relatório do quartel-general da Região Militar de Moçambique, referente aos quatro primeiros meses de 1974, indica um acréscimo global da atividade da guerrilha, um pouco por toda a parte. Impressionado pela deterioração da situação, Costa Gomes decide afastar o Comandante-Chefe”.

Vários são os autores referenciados, mas a figura principal é necessariamente Carlos Vale Ferraz e o seu “Nó Cego”, aqui fica um estrato:
“Ao Passos pareceu-lhe distinguir silhuetas de palhotas, de gente entre os arbustos. Parou, avisou os soldados da sua equipa, o alferes e o capitão. Agachados, dispostos num rosário de contas ao longo do trilho, pressentindo a chegada do momento, retida a respiração, os homens, em equipas de cinco, foram-se desfiando em linha.
Prontos? Interrogaram os olhos antes de se lançarem ao assalto correndo e disparando sobre tudo o que bulisse, sombras e corpos. Atiravam as granadas de mão para o interior das palhotas como garotas assustando galinhas, rebentavam a pontapé as frágeis portas enquanto atravessavam o pequeno aldeamento, agarravam pelos panos os corpos dos negros que não tinam conseguido fugir.
- Encosta esse par de jarras aí a essa árvore para lhes retirar o retrato! – gritava o Pierre o para o Vergas, que passava arrastando um casal de negros velhos, ela, a cocuana, de tronco nu, as mamas descaídas quase até à cintura, a pele cinzenta escamada do calor e da sujidade, ele, curvado e dorido, as articulações deformadas.
O Vergas hesitou em entregá-los ao Pierre, sentia-se estranho, já não possuía as mesmas certezas dos primeiros meses de guerra, abriu a mão para os deixar entregues ao pequeno tripeiro e ficou de olhos parados vendo-o colocá-los a jeito antes de disparar uma rajada curta. Seguiu o descair lento deles até se enrolaram sobre a terra nos últimos estertores.
- Esta não! – rugiu o Passos, com uma negra jovem agarrada por um braço, para o Pierre a rir-se ainda com a G3 a fumegar, preparando-se para repetir a cena. 
– Esta vai pagar-mas doutra maneira! Puxou-a para trás de um arbusto enquanto os homens da companhia continuavam a disparar e a partir os potes de barro. Deitou-a sobre o capim seco, escutando deliciado os gritos e os tiros, arregaçou-lhe o pano da saia, abriu-lhe as pernas e enfiou-se nela. Resfolgou que nem um toiro cobridor.
A negra continua deitada depois de ele se levantar limpando-se antes de apertar as calças, os panos enrolados na cintura, os olhos parados, muito abertos, apenas os músculos tensos do pescoço erguiam ligeiramente a cabeça fixando inexpressiva, a cara dos soldados que se aproximavam.
- Vá, ó Transmissões de um cabrão, vá, agora tu! – berrava o furriel.
O Brandão, pálido como sempre, cuspiu e passou adiante. Foi o Freixo quem lhe tomou a vez, deitou a G3 ao lado do corpo e bombeou-se para cima e para baixo, rápido a despachar antes que outros viessem ou o capitão passasse por aquele canto escondido na periferia do aldeamento assaltado”.

E chegamos ao contexto da Guiné, Joaquim Vieira fala do significado comercial da colónia, da pujança da ofensiva rebelde, da desarticulação do território, da chegada de Spínola, da sua ofensiva psicológica e militar, são informações que todos nós já dispomos no blogue. A escolha de João de Melo para a literatura inclui nomes grados como Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Começa logo por destacar o conto “O Tempo em Uane”, que veio incluído em Histórias Breves de Escritores Ribatejanos, antologia organizada por António Borga, Lisboa, 1968, mas que apareceu também numa antologia de literatura ultramarina organizada por Amândio César em 1966. É uma narrativa belíssima, merece destaque no próximo texto, nunca dela se falou aqui. Uma das razões fundamentais por que se deve procurar conhecer os textos que João de Melo escolheu para esta obra incontornável é a visão do depois da guerra a diferentes vozes e aí depõem escritores como Olga Gonçalves, António Lobo Antunes e Lídia Jorge, entre outros. “Os Anos da Guerra” incluem a bibliografia geral sobre a guerra colonial e a cronologia sobre as lutas de libertação, evidentemente tudo reportado a 1988. É ocioso dizer que muitíssima água correu depois sob as pontes.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Foi graças a "Os Anos da Guerra", de João de Melo que encontrei azimute para me abalançar a escrever o livro "Adeus, até ao meu regresso", um percurso da literatura da guerra da Guiné.
João de Melo foi muitíssimo bem-sucedido na investigação a que procedeu sobre os escritos das três frentes, inventariou ao tempo o que havia de melhor. Acertou em cheio com os três escritores que combateram na Guiné. Álvaro Guerra, José Martins Garcia e Álamo Oliveira. Estranhamente, reduziu Armor Pires Mota a uma mera referência, justiça incompreensível.
Não hesitem em comprar ou procurar nas bibliotecas públicas esta preciosidade.

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (1)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, dois volumes, continua a ser a obra de referência para toda a literatura da guerra que travámos em África, até ao fim do império. Meticulosamente, ao longo de seis anos da década de 1980, João de Melo procedeu a um levantamento das vozes, e Joaquim Vieira fez o estudo de localização histórica e política.

João de Melo arranca os dois volumes com o seguinte ensaio:
“A guerra colonial e as lutas de libertação nacional nas literaturas de língua portuguesa". Fala-se de toda a literatura de colonização, do espírito civilizador, questiona-se a seguir o que é uma literatura de guerra e se, mesmo aqueles que contestavam a guerra e não foram combatentes não tiveram um papel pioneiro na construção de uma cultura conducente a um ideal de libertação. E depois João de Melo pergunta se há uma geração literária de guerra colonial, responde positivamente e apresenta uma listagem desde os percursores até aos anos 1980. Termina assim este seu ensaio sobre a literatura de guerra:
“Ela é um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja muito discriminada entre nós. E daí também que a sociedade do presente, parecendo enjeitar os seus males de guerra, continue a produzir a comprazer-se com o espetáculo da sua própria violência interior”.

Joaquim Vieira contextualiza a África nos anos de 1960 e a multiplicação das frentes. E chegamos à Gare Marítima de Alcântara e às atividades militares que a precedem. Logo um magnífico texto de Filipe Leandro Martins intitulado “O couro selvagem das botas”, que assim começa:
“O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos 20 anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarelo da estação e ouvia alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de voltar. Não me apetecia partilhar o que ia ser a vida dali em diante”.

Álvaro Guerra fala da sua recruta, tal como José Martins Garcia, e depois Álamo Oliveira descreve o cais de Alcântara:
“Talvez fosse febre aquele arder de Julho em Lisboa. O sol esgazeante e bravo. Meio-dia. João à beira do desmaio: uma dor nos olhos que cega. Do alto, na amorada do Uige, esforça-se por distinguir os corpos que enforma aquela pequena multidão, que se mexe e confunde, água oleosa batida por ventos sensuais, bailada, traindo os olhos, sempre o calor imperturbável, o corpo empastado de suor febril. A cabeça cresceu e pesa como nunca. João não consegue estar lúcido e, no entanto, sabe que não está louco. Ainda. Embaraça-se nos tentáculos do polvo, a multidão uivante, espasmódica. Lisboa ao fundo, postal quieto, enorme. O navio atracado. As escadas de acesso, altas e trémulas, enchem-se de soldados, as mãos a abanar, com fúria, com tristeza, olhos vermelhos como peixe-rei, os gritos da multidão lá em baixo a morrerem de afastamento e de cansaço”.

Joaquim Vieira dá-nos uma moldura dos acontecimentos angolanos de 1961, e depois o nacionalismo e o tribalismo, o aparecimento da Frente Leste, a guerrilha angolana dividida em três movimentos, seguem-se as narrativas dos escritores que em Angola combateram, ou sobre a guerra falaram: Manuel Alegre, Octaviano Correia, Manuel dos Santos Lima, José Luandino Vieira, Jofre Rocha, Wanda Ramos, David Mestre, Abílio Teixeira Mendes, Mário Varela Soares, Costa Andrade, António Lobo Antunes, Pepetela, João de Melo, Vergílio Alberto Vieira. A palavra a Mário Varela Soares no texto “O gajo de Cinfães”:
“O rapaz estava caído, branco, de um branco sujo onde se viam as riscas do suor cortando a poeira que tinha na cara. Um dos ombros estava descaído ao peso do sangue e do buraco negro que se avizinhava junto ao pescoço. E o borbulhar de sangue ouvia-se cavernoso e profundo como se viesse mesmo das entranhas do seu peito magro.
- O gajo tem a clavícula perfurada; não é grave mas precisa de ser evacuado…
O cabo enfermeiro quase soletrava as palavras, na importância da sua sapiência. O homem que se podia gabar de ser o tipo que mais mal dava injeções em todo o mundo. O rapaz olhava para todos sem perceber nada mais para além da sua dor e da surpresa de ter sido apanhado pelo único disparo nesse dia e nessa sua primeira guerra. A sua cara, de olhos esbugalhados, andava de um lado para o outro seguindo os movimentos lentos do cabo enfermeiro e do seu ajudante improvisado, o guia bailundo (…) Apeteceu-lhe dar uma das suas mãos para que o gajo de Cinfães a agarrasse no estertor das suas convulsões dolorosas. Nos seus olhos lia-se já o desmaio próximo; a camisa interior toda esfarrapada deixava à mostra a placa de sangue coagulado que era constantemente lavado por pequenas golfadas de sangue novo e brilhante. O buraco da bala persistia, negro e aberto, de bordos queimados.
- Tem orifício de saída – explicava o cabo enfermeiro ao guia bailundo.
O que seria o orifício de saída? As caras interrogavam-se numa mudez de desconhecimento. O que seria o orifício de saída. Os olhos do gajo de Cinfães reviraram-se ficando estrábicos numa incontinência de controlo; um vómito sobreveio ao desmaio encharcando com plaquetas brancas – o leite em pó do pequeno-almoço era sempre intragável – os braços do enfermeiro”.

E vamos despedir-nos com um texto de João de Melo, extraído de uma das obras incontornáveis da literatura da guerra, “Autópsia de Um Mar de Ruínas”:
“O furriel enfermeiro sacou rapidamente da faca-de-mato e cortou-lhe as calças, o dólman e a camisa. Fazia-o com a determinação dos olhos perdidos, dos homens que não iriam, nunca mais, perder a sua memória dos outros e de si mesmos. Cortava grandes pedaços de tecidos à navalhada e estava já ensopado daquele suor de lágrimas que tem a espessura da chuva e o salitre de uma navegação brutal. Ao ver os intestinos espalhados por todo o baixo-ventre do ferido, abri muito os olhos e disse três caralhos à vida, duas porras e três conas de madrinha-de-guerra aos capitães do Norte e, pondo-se a coçar a cabeça, sem saber o que faria àquele balão fumegante, começou por tomar as mãos do Gonçalves e disse: - Juro que não te vou deixar morrer, irmãozinho”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16113: Nota de leitura (840): “Outro Olhar, Guiné 1971-1973”, por Francisco Gamelas, edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14978: Notas de leitura (744): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
Acabou-se a narrativa de Calambata, romance memorável de João de Melo onde encontramos a tragédia da guerra e as facetas mais boçais do colonialismo. Há para ali aerogramas de intenso lirismo e descrições onde a senhora da gadanha triunfa em majestade. E despeço-me com uma citação:
- Prometes que ficas aqui à minha espera? O ferido disse vagamente que sim com a cabeça, nada era já importante; se algo de importante houvesse na vida, era estar-se vivo e certo de se ser ainda o único dono dela. O furriel desandou a correr, mas parou a dois metros do sítio onde o Gonçalves se afundava sem remédio. Como um barco, pensou, como um barco a ser devorado pela grande e definitiva tormenta. Recebeu ainda o seu olhar de animal abatido no último instante, recordou que tinha mulher e três filhos e quis fugir dali. Encostou a cabeça ao peito dele. Não corria o rio sonoro de um coração, corriam águas mansas; deslizavam cinzas e pequenos animais de agonia. O furriel descarregou os dois punhos sobre o peito do moribundo, ouviu-se o som das costelas partidas com a pancada, e nada mais, a não ser os olhos, perdurou no último sopro da respiração.
Estou a escrever-vos esta citação e comovo-me pelos meus mortos, os mortos de todos nós, não só no norte de Angola, mas naquele território de palmares, bolanhas, rias e florestas-galeria, a nossa inconfundível e transcendente Guiné.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (4), por João de Melo

Beja Santos

João de Melo foi furriel enfermeiro, dividiu a sua comissão num destacamento perto de S. Salvador, norte de Angola, entre o apoio direto aos militares e os cuidados com os civis de duas sanzalas de Calambata. Tornou-se um bom observador social, mostra-se esclarecido quanto às relações de domínio entre colonizador e o colonizado, entre a polícia branca e o soba, conhece as doenças tropicais, vê a miséria, pressente nas entrelinhas a pressão dos guerrilheiros junto das populações. A todos os títulos, “Autópsia de Um Mar de Ruínas” é um livro referencial, há um cuidado inexcedível em registar os falares nativos, os usos e costumes, é magistral quando capta a atmosfera de repressão.

Vem aí a caminho uma coluna que é fundamental para a economia de quem vive da agricultura do café, e o autor dá-nos uma impressiva água-forte:
“A polícia branca de S. Salvador vinha a escoltar essa coluna, com os seus jipões azuis, descapotados e sujos de lama, trazendo homens fardados que apontavam as armas no capim.
Os homens tinham-se reunido no centro da sanzala, de braços cruzados no peito, na conversa ou no difícil silêncio; uns e outros mostravam apreensão por esse dia que chegava finalmente. Vender café e receber dinheiro de volta não podia meter cerimónia? Vestiam fatos puídos e remendados, esquecidos muito tempo no caixote das arrumações. Soba Mussunda usou mesmo uma gravata muito velha, talvez quase da sua idade, e o chapéu cinzento dos distantes tempos de contratado.
Madrugada ainda, puseram os sacos do lado de fora da cubata, emparedando-os em pilhas de diversas alturas que, em alguns casos, chegavam mesmo ao zinco ou atingiam a casa a todo o comprimento. Depois, o sol veio subindo nos morros. Bateu no zinco das casas com a bola de fogo que alumiava e ia deslizando vagarosamente. Também as senhoras andavam num remoinho, falando, sorrindo, imitando a felicidade da vida. Houve quem pusesse um rádio a tocar alto as músicas congolesas – canções batucadas e sacudidas que vinham mexer no corpo das pessoas e obrigavam a abanar as ancas e a gingar, gingar sempre (…).
Entrou, primeiro, um jipe da polícia. Logo de seguida, um camião vermelho, de três rodados. Deram a volta ao largo e foram parar em frente da casa do chefe Valentim que esperava à porta, de mãos na barriga. O povo observou os carros a enfileirar cuidadosamente, uns ao lado dos outros, os jipes intercalados com os camiões cobertos pelas lonas que pendiam dos taipais. Lá dentro, centenas de garrafas tilintavam, e os homens sorriam entre si, satisfeitos. As mulheres, não; compreendera imediatamente que o propósito desses brancos era arrancar mais um dia de negócio, levando de volta o dinheiro que traziam, recuperado das monstruosas bebedeiras”.

Começa o cerimonial da apreciação. Todos deram pela chegada do chefe da polícia secreta, limitou-se ao cumprimento de continência de Valentim. Os comentários dos comerciantes brancos são de puro desdém. Começam as negociações para comprar o café, os comerciantes oferecem quatro angolares por cada quilo, os africanos contrapropõem com seis, os brancos não saem dos quatro. Um deles comenta:
”E quem não estiver interessado, guarde o café em casa ou então junte-o, espalhe-o pelo quintal fora, misture-o com a estrumeira que lá tem”.
A contraproposta desce para cinco angolares. O árbitro será o polícia Valentim:
“Quem quiser vender por quatro e meio, vende; quem não quiser, que se lixe. Toca a trazer o café, gente. E eles obedeceram. Vencidos e calados”.

Seguir-se-á a orgia do álcool e os vários negócios em que os agricultores deixaram o seu precioso dinheiro. E regressamos à guerra, dias de marcha através dos pântanos. O cronista chama-se Renato, alguém que teme morrer, invoca a mãe, olha assombrado para a vastidão do território e o seu espetáculo de formas:
“Calambata é este promontório suspenso sobre formas pardas, ao qual trepamos dois caminhos em S e onde as viaturas derrapam na época das chuvas. Por ali passaram todos os mortos: passou a morte de Júlia, a mulatinha do sorriso verde, passaram as viaturas sinistradas pelas minas, os rapazes adormecidos, tapados com a lona mortuária. Era por ali que se regressava sempre, depois de todas as coisas terem acontecido muito longe, nos caminhos por onde não transita a memória, nem o esquecimento”.
Renato olha à volta, vê bambus, hortas de milho e mandioca, os lastros de abacaxi e das bananeiras, os canaviais de uma sanzala. É um momento patético. E de novo o escritor volta ao aerograma e aos chilreios do amor:
“À da Canda, amor, aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a amargura das noites de guerra. Calambata é um morto que não morre mas adormece. Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior do que tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam. Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores, ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite (…). É o que escrevo aqui, sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os morros que cercam o Calambata cercada de guerra pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que não morre”.

E temos uma nova coluna em movimento, até que se ouve um estrondo, um Unimog explodira.  
“Voavam ferros e pneus e peças de motor: caíam corpos decrépitos, e uma fumarola negra, de um negro muito denso, abria-se numa espiral. Do capim em chamas, subiu logo o bafo de dezenas de metralhadoras”.
E fica-nos a ilusão do que o narrador morreu simbolicamente em nome de todas aquelas mortes que lhe tinham passado pelos olhos e ferido a alma. É uma morte universal com que o romancista trava combate:
“Amor, eu não sei se dói. Caiu-me a arma das mãos. O meu último pulmão enche-se de uma agonia de corais, como quando os navios encalham nas rochas. Sei que viram os médicos, os helicópteros: alguém chamará pelo meu nome, abre os olhos, abre os olhos, respira fundo, respira fundo”.

E o romance de João de Melo acaba como um pesadelo, os soldados andam à procura de Romeu, o agente da guerrilha, empurram e pontapeiam, tudo revistam. O soba apercebe-se que se avizinha uma tragédia, se Romeu não aparecer haverá fuzilamentos, e então oferece a sua vida:
“Respondo sempre na minha gente. Deixa viver esses homens, nosso arferes. Grande favor…”.
E então Romeu surge de uma sombra, explica que esteve no mato a montar armadilha, o alferes está fora de si, bate-lhe desalmadamente. Romeu é levado para a viatura, nunca mais voltará a Calambata.

João de Melo burilou um universo concentracionário onde se movem militares e civis num ponto do norte de Angola. Tragédia, agonia, o levantamento do homem, e aquele furriel enfermeiro em que o romancista se vêm ao espelho zela, solícito, tem um pé na guerra, outro na construção do desenvolvimento. Assombra a cultura registada, a perceção de que toda aquela beleza não pode iludir o mar de ruínas deixado pelo colonialismo.
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Nota do editor

Postes da série de:

27 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14934: Notas de leitura (741): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (1) (Mário Beja Santos)

31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)
e
3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14963: Notas de leitura (743): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14963: Notas de leitura (743): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
É uma obra magnífica, duríssima, questiona-se a todo o momento como é que um romance desta envergadura não voltou à guerra, seja no romance, conto ou poesia. É facto que leu muito, em todos os quadrantes da guerra, o que lhe permitiu elaborar uma obra de referência, “Os Anos da Guerra”, de 1988, foi o pioneiro e devemos-lhe obra muitíssimo asseada.
Falando por mim, deu-me pistas valiosas para o livro que escrevi sobre a literatura da guerra da Guiné. No meio da brutalidade e das descrições horrendas, João de Melo ascende ao volteio poético, e permitam-me este exemplo magnífico, em jeito de quase despedida: “Eu, soldado ocidental, demoro aqui os olhos: uma seta voa ao encontro dos sítios, do seu conhecimento. sirvo-me dos morros de Calambata, da Canda (a serra azul), da Binda (as tagarelas árvores-garrafas) e bebo a invenção destes nomes. sentei-me na noite, em Calambata, com um cigarro suspenso da ferida visível do rosto e de lá vos mandei escrito de toda a memória que há sobre os dias desta guerra”.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (3), por João de Melo

Beja Santos

Em Calambata, vai crescendo a tensão emocional, os mortos por ali andam, em bolandas, aguardam transporte que tarda em chegar. Na sanzala sonha-se, estão a chegar os dias de pesar o café e receber nas mãos o dinheiro quente. Já se sabe que vão chegar as grandes bebedeiras, o que sobrar não dará para o ano todo. É nisto que uma espetacular queimada vem alvoraçar Calambata. E volta o ramerrão, a mansidão dos dias, tal como vai ser vivida na messe de sargentos:
“O Furriel Silvares sorvia e mastigava a cerveja morta, com a repugnância de quem estivesse bebendo a própria urina – e o carão habitualmente rubro de Octávio enchera-se de covas vivas. Apenas o furriel das transmissões dormitava no seu canto, de novo desesperado, sem saber por que motivo a cortiça do cérebro não cedia já ao torpor e à hipnose do álcool, ao uísque e ao martini, ao gin tónico com uma rodela de limão; Tavares escrevia uma nova página do seu diário de campanha, memórias de guerra sobre o título de De Como Nos Fomos A Eles Em África E Asinha Os Tornámos Escravos Nossos E De Nossa Única Vontade; escrevia em duplicado, com um químico, sendo o original para a mulher e a cópia para guardar num cofre de folha retangular. De uma forma geral, estavam para ali, tardes inteiras, e não falavam, por quanto já nada havia para dizer, nem o jogo das cartas servia de pretexto para empurrar o tempo e as palavras”.

E abruptamente a guerra reacendeu-se, as minas rebentavam em todas as picadas matando homens e Berliets. Chegaram tropas de intervenção de Luanda, tomaram conta de todo o Norte, parecia que a guerrilha queria aniquilar a cidade de São Salvador, a população pôs-se ao trabalho, construiu abrigos e valas. Começa a espera, prevê-se que a próxima grande flagelação será Calambata. É neste contexto que João de Melo escreve belíssimas páginas sobre o amor, antológicas:
“Nas mãos incertas do meu amor repousarão algumas das palavras. Escrevo-as nuns transparentes, levíssimos aerogramas de um azul de anjos, porque vem avião, são três da tarde e o amor desespera tanto. Ninguém melhor do que tu, amor, lembrará vivo. São três da tarde e eu de ti tão sedento como da água que pudesse caber nos mares do deserto. Sou porém um homem com mãos de cedro (…). Porque demoram tanto os abomináveis sargentos-de-dia a distribuição do correio? Não sabem, não saberão nunca, amor, que uma carta não tem só a importância de ser escrita. Abre-me os lençóis para que o sono te doa como um címbalo acordado em Lisboa. Falas-me de um país às três da tarde, 1972, e nunca foi tão triste o mês de Novembro (…). … eis meus dias serenos, parados iguais: um exílio de homem na guerra, enquanto acredita no amor, amor, tem seus recados e não conhece outros países. Por isso te digo que em tudo há um tempo e um lugar para ele até que o amor ausente seja um canto. Este canto ausente és tu, amor, e só a ti o digo, escrevendo-o com o abandono e o desamparo de um sentimento de amor que há de ser sempre maior do que a minha vida”.

A brutalidade começa a tomar conta dos militares de Calambata, são as lavadeiras quem pagam, as chuvas são imensas, as gentes das sanzalas andam apressadas a proteger o café. Cresciam as nuvens, uma bravia tempestade rebentou, tal e qual um estrondo de guerra. “E quando, finalmente, essa chuva rompeu, as pessoas calaram sua boca de repente e ficaram a pensar as pedradas de granizo davam gozo ouvir no silêncio porque adormeciam por dentro. Pouco a pouco, pelo chão, a água formava poças, levava consigo o lixo e as areias e ficava tão avermelhada como o sangue que podia escorrer das feridas das pessoas”. O envolvimento do escritor com a vida dura dos nativos é permanente, pela sua voz ouvimos os anseios, as promessas e as esperanças nos dias melhores. A realidade é dura, a comida falta e os meninos lá vão ao quartel buscar a comida para o jantar.

Os meses passam, a fadiga toma conta de todos, é bem patente naqueles patrulhamentos de vários dias:  
“Eram vinte e sete homens destroçados, vencidos pelo cansaço de três dias de marcha através da selva. Trazida na memória do corpo, e vinda de todos os meses que levavam já daquelas andanças, a fadiga reduzira-os à condição de peregrinos da própria terra que pisavam. À ordem de parar, deixaram-se logo cair para o chão, com tudo o que transportavam às costas: armas e granadas, bornais de campanha com panos de tenda e um cobertor, algumas caixas de ração de combate, colchões pneumáticos, os cantis, uma ou outra lata de cerveja. Colava-se-lhes o cabelo à testa e ao pescoço – e nos rostos empoeirados, com sulcos de transpiração que pareciam mascará-los, alastrava agora um fogo convulso e sanguíneo, de uma cor afiambrada”.
São patrulhamentos incessantes, evita-se a todo o transe que a guerrilha esfarele quem vive em Calambata. E num desses patrulhamentos encontram os guerrilheiros, há fogo confuso e depois o silêncio. E João de Melo pincela primorosamente a descrição de um rasgo de bravura, a alucinação e o destemor que nada faz prever:
“Viu o olhar alucinado do furriel Octávio e teve logo a certeza de que ele ia desatar a correr pela mata fora, disposto a enfrentar o risco de ser atravessado pelas balas dos guerrilheiros. Tentou agarrá-lo por uma perna, mas falharam-lhe os dedos. O furriel caiu, levantou-se, pôs-se a rolar no chão, como uma bola, até se estatelar ao comprido numa plataforma baixa da mata. Aí, despejou o primeiro carregador de munições sobre o chapinhar invisível daqueles passos lançados na fuga. Sacou a Breda das mãos do soldado Monteiro e desfez-se rapidamente de uma fita de balas. A seguir, correu de novo pela mata e recomeçou a disparar às-cegas. Acreditou que faria alguns mortos: os cadáveres teriam de ser iguaizinhos aos dos companheiros mortos nas outras emboscadas, com aqueles estranhos braços rígidos apontados a um céu sem altura. Sempre jurara vingá-los. Com um pouco de sorte, o seu nome constaria em breve dos relatórios de guerra, ficaria indissoluvelmente ligada à história de um Batalhão martirizado. Quando se viu sem balas, assumiu um ar idiota. Meio atordoado, puxou da única granada que trazia enganchada no cinturão e retirou-lhe a cavilha com os dentes. Ficou a seguir com os olhos o gesto circular da mão que a atirava para longe, por cima da copa das árvores, e esperou a explosão. A mata encheu-se logo de ecos. Regressou cabisbaixo, de cócoras e olhos no chão, porque tão-pouco podia oferecer o espetáculo de trazer consigo um prisioneiro de guerra, uma arma ou mesmo as orelhas de um cadáver”.
O alferes anda por ali descorçoado, já só pensa nas férias. É nisto que se ouve ao longe o zumbido dos helicópteros.

O romance avança rapidamente para o fim, vem a caminho uma coluna civil com gente de Makela do Zombo, vêm fazer negócios de café e outras coisas mais, e vem também a caminho a tropa especial ávida por matar os combatentes da revolução.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
O romance de João de Melo centra-se em Calambata, junto de S. Salvador, norte de Angola. É muito mais do que um romance de guerra, analisa usos e costumes, vai cerzindo o português gentílico, analisa a compra do café pelos colonos a preços miseráveis, e assistimos às bebedeiras monumentais dos trabalhadores que tudo compram a esses colonos até ficarem sem um angolar. O escritor desenha um cenário em que a guerrilha vai em crescendo, o que obriga a multiplicar as operações e a procurar suspeitos nas sanzalas. É um livro que ficará nos anais da literatura, de uma amargura sem fim, entremeando a candura e a brutalidade sem restrições.
Leitura imperdível, portanto.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (2), por João de Melo

Beja Santos

Estamos em Calambata, não muito longe de S. Salvador, norte de Angola, em plena guerra, João de Melo descreve a sua vida como furriel enfermeiro, é implacável nas suas descrições anticoloniais, não esconde o seu asco à violência das polícias, tem sempre um olhar de aconchego, de delicadeza, com os mais frágeis, com os inocentes. Veja-se como descreve os meninos que vão buscar as sobras das refeições no quartel:
“Vindos numa corrida desde a porta de armas, com os cães ladrando-lhes à canela, no meio de um rumor de latas suspensas do arame, os miúdos enxameavam por ali. Tristes na sua sujidade e na sua nudez, vinham derriçar-se nos muros do refeitório, à espera dos restos que sobrassem dos pratos de alumínio. Por vezes um cozinheiro gordo agarrava na colher de pau e gritava:  Putas daqui pra fora, não há nada para ninguém!
Alguém o enfrentava, de cinturão nas mãos, pronto a malhar naquele costado gorduroso: 
- Deixa lá os putos em paz, texugo de panelas. Bota cá para fora as sobras, quando não ponho-te a derreter nesse maldito fogão de lenha. 
De sorte que os miúdos, os pobres e infelizes meninos atacavam em bando os caixotes do lixo, raspavam com as mãos o arroz encaroçado no fundo daqueles tachos medievais, serviam-se de um espeto para remover as bolas de cimento do esparguete e as cabeças do peixe – e enchiam à pressa as suas latas enferrujadas com restos de sopa, pedaços de pão molhado, ossos moribundos que levavam para os irmãos mais velhos, para mama doente ou para vavó com fastio de morrer em breve”.

Há descrições da messe de sargentos que entrosam o lirismo, mas também o homem reduzido a uma ilha deserta, a sensualidade epidérmica:
“O furriel Borges sentava-se à tarde, olhando para muito longe e pensando na mulher e as filhas. Era dos tais que bebia sem jeito, por força daquela espécie de elixir que levava a ver os anjos nos sítios improváveis e um inferno com anjos. Bochechava o uísque, dava-lhe pequenas dentadas, e os seus grandes dedos de gafanhoto apalpavam o copo ao longo das arestas. O furriel Tavares escrevia três cartas por dia à mulher da sua vida, e eram tratados práticos acerca do futuro de ambos, com poemas espontâneos ou minúsculas zangas a propósito de uma frase ou de um facto sem importância. O furriel vaguemestre combinava repetidamente com o furriel Silvares um encontro em Lisboa no dia 18 de Julho do próximo ano, quando fossem de férias à Metrópole. Iriam fazer uma orgia ou uma bacanal com as gajas da Faculdade de Farmácia, grande e especial coxame aquele, rapaz, que havemos de vir de lá de gatas ou de ambulância".
Também a descrição da chegada das lavadeiras ou dos doentes é parágrafo antológico, como segue:
Por volta das cinco da tarde, chegava a população civil à porta de armas, para receber os tratamentos do furriel enfermeiro. Ou eram as lavadeiras trazendo as roupas aos mui respeitosos patrões de sábado, dia de pagamento desse trabalho de lavar os brancos até nas partes proibidas. Vinham velhas com rosto de pergaminho e crianças com a febre das abelhas, tão comidas pelos furúnculos e pequenas descargas da diarreia que já não eram abelhas nem sentiam a sua febre; vinham velhos coxos e sem sangue: tinham a tosse consente e o ar ensimesmado dos eternos incompreendidos deste mundo e apoiavam-se a um graveto com a vaga forma de uma bengala, chupando sem cessar os cachimbos de bambu. Vinham mulheres sem sorriso nem alvoroço, com filhos às costas ou grávidas de muito tempo. Tão velhas eram, algumas delas, que mais pareciam avós engravidadas à força, pois o seu olhar de terra atingira já a baciez das lulas, a água parada dos pântanos, a idade dos metais inutilizados. As restantes recebiam os soldados e devolviam-lhes a roupa lavada e cerzida; recebiam a furiosa arremetida das mãos de ferro que lhes procuravam os seios; eram homens de dentes cerrados, tontos do seu desejo de mulher, cujo olhar se turvava como o dos violadores enlouquecidos, enquanto a fúria delas crescia, tornava-se lívida e dava ao bronze da sua pele um brilho de punhais esquivos”.

As descrições dos ambientes nativos têm uma força invulgar, são telas vivas, parece que atravessamos os caminhos entre as cubatas, ouvimos falar um português gentílico, João de Melo entremeia os registos duros com o olhar antropológico, prepara na lentidão deste morno olhar grandes angulares como a chegada das tropas a S. Salvador, sentimos a euforia dos militares, o olhar duro dos colonos que parecem dizer:
“Vão-se embora e deixem a guerra por nossa conta: uma simples batida pelo Norte serve-se ao domicílio um cadáver por cada terrorista, e Angola é nossa”.
É a primeira vez que lá vai o furriel enfermeiro, anda por ali embasbacado a ver a estação de rádio, o aeroporto de terra atida, a própria sanzala. Espera o amigo Gonçalves que lhe traz notícias da família. A alquimia da escrita toma também conta de nós quando se vão pincelar cenas de batalha, o autor introduz a África mágica:
“Eram apenas as nove da manhã em ponto, e as nervuras vermelhas das acácias destilavam sobre as lavras de mandioca o óxido do seu cobre solar; os imbondeiros e as palmeiras, assim à distância, devolviam-nos o mar sem água, e era o deserto; a areia fumegava, húmida, no salgema da pista de aviação, e entrara pelo quartel dentro a paz sem cor dos dias em que se espera a morte e ainda nada aconteceu (…).
E foi então que a voz do Santiago telegrafista, saindo disparado do posto da rádio, chegou ao meio da parada e gritou: O pelotão está debaixo de fogo! O pelotão está debaixo de fogo! De modo que, sabendo nós que trinta desgraçados rapazes da nossa idade começavam a morrer, pusemo-nos todos de pé, em grande e alvoroçada agonia. Corremos à procura dos camuflados e das armas (…). O furriel Borges reapareceu da névoa, como se emergisse do fundo do mar de ruínas. Era um homem ainda maior do que o deus da morte. Pairava nele uma espécie de paisagem naufragada no mar, porque apenas abriu os braços e disse: Tudo morto. Tudo morto. O alferes Abílio morreu. Está tudo cheio de mortos”. 

Segue-se a dimensão do desastre, os feridos agitam-se, o furriel enfermeiro acorda, grita por um helicóptero com serviço de sangue a bordo. E há os sinais grotescos desses objetos que sobravam da destruição:
“Eram gorros fitas vazias de munições, estúpidas bocas de cartuchos de balas, um cantil sem água; uma bota desgarrada sorria de lado à morte acontecida há umas horas apenas, tendo dentro de si alguns dedos destruídos, com enegrecidas unhas podadas à navalhada; um papel com manchas de gordura fora espetado numa árvore muito sofrida, com grossos nós onde alguns elefantes teriam já coçado os seus parasitas. O alferes ficou um instante a decifrar aquela letra torcida e incerta. Seguiu com o olhar todos os riscos e gatafunhos, fascinado mas enchendo-se aos poucos de cobre. Acabou por dizer em voz alta: Filhos de uma grande puta!”.

Há gente perdida, vai reaparecendo marcada pela alucinação, e dá-se ao regresso lento e doloroso, têm oitenta quilómetros a percorrer, é grande a fome e muita a sede, Calambata está longe, o furriel enfermeiro marcha transfigurado, quando recupera o ânimo vai cuidado dos seus feridos.

(Continua
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Nota do editor

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