1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2019:
Queridos amigos,
Enquanto o bardo espraia a sua existência na rotina pacífica de Bissau, porque já se andou no Sul, na batalha do Como, se fez itinerância pelo Oio e arredores, havendo paz nos Bijagós, ocorre visitar um dos locais mais ásperos de toda aquela guerra, Madina do Boé, cedo o PAIGC se apercebeu que aquele lugar, aquele isolamento permitiam fazer um bulício tremendo, ter sempre à mão uma carreira de tiro, até para mostrar aos jornalistas e amantes da revolução.
O livro de Gustavo Pimenta contribui para se perceber a psicologia do combatente, resistente, preparado para viver todas as contingências da mais imprevista morteirada ou canhonada. E havia também que destilar alguns estados de alma. Gustavo Pimenta refere o que se sentia a levantar uma mina, o que nos deu aso a republicar belíssimas páginas escritas por Francisco Henriques da Silva na sua "Guerra da Bolanha".
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (45)
Beja Santos
“Este amigo e camarada
a camisa e os calções mudava.
Quando não ia passear
as botas eu não largava.
Às seis horas o clarim a tocar,
o Andrade se erguia,
e os calções ele vestia
e as botas a acompanhar.
A cara eu ia lavar.
Junto com a maçaricada
a bexiga era despejada
voltando para a caserna,
e punha a boina moderna
este amigo e camarada.
Depois de beber o café
levava horas pensando
e por letras ia contando
o que sofria na Guiné.
Eu tive sempre muita fé
que à terra natal regressava.
Na Amura os dias passava
ou alegre ou chateado,
e para andar sempre asseado
a camisa e os calções mudava.
De noite eu espairecia
a ver a mana russinha
e o nosso amigo Vidinha
com o Horta para lá ia.
O 49 e o Joaquim Maria
até chegaram a rastejar.
No canhão se vinham sentar,
junto de mim e do Teixeira.
Espiava as moças a noite inteira
quando não ia passear.
Tinha um barrete camuflado
que eu não podia deixar.
Servia para me sentar
ao chegar a qualquer lado.
Na minha cama recostado,
lia, escrevia e contava,
muitas noivas arranjava,
para não pensar na amargura.
E no quartel da Amura
as botas eu não largava.”
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O bardo deu em intimista, desabafa sobre o seu quotidiano, é como se nos desse luz verde para discretear sobre a guerra que continuava, ao rubro em Madina do Boé, como noutros pontos do Sul, no Oio e arredores. Porque em 1965, quando o bardo está na Amura, o PAIGC já não tem só pistolas nem armas antiquadas, há mais de um ano que usa minas, flagela com morteiros e bazucas, sobre quartéis e nas picadas. Alguns aquartelamentos, pelo seu isolamento, são o bombo da festa. É o caso de Madina, como escreve em “sairòmeM, Guerra Colonial”, Gustavo Pimenta, Palimage Editores, 2000. É um romance inequivocamente diferente de tudo quanto até agora se referiu, como logo o título alude é escrito do fim para o princípio, o leitor é forçado a um exercício de dilucidação, tem pela frente uma leitura em vários sentidos. É muito intimista, não se fala em nomes, regra geral, não há assomos de farronca nem tiques de heroísmo, temo-lo a observar a inquietação que assedia os outros que o acompanham.
Assim:
“Que sentirá um condutor-auto quando vê minas a destruírem sucessivamente as viaturas que o precedem e tem, de súbito, de ser ele a conduzir a que vai na cabeça da coluna? Sozinho, entregue aos seus pensamentos, que pensará?
Na mulher? Nos filhos?
Há poucos gestos comparáveis aos daqueles que vi, serenamente, sem protesto nem resmungo, assumir o lugar da mais presumível das vítimas. Quero supor que os animava o sentido do mais sagrado dos deveres. Que é o de, pela simplicidade de quem acredita e cumpre um destino, se oferecerem à troca por quem foi condenado a enfrentar desigualmente a roleta da vida e da morte”.
Gustavo Pimenta |
E descreve onde e como vive:
“Se o aquartelamento, com as enormes clareiras que o rodeavam, era praticamente inexpugnável a qualquer tentativa de assalto, a verdade é que se tornava extremamente vulnerável como alvo das elevações que o circundavam.
Deslocarmo-nos para as tarefas mais comezinhas, para uma simples mijada fora do abrigo, tornara-se numa espécie de jogo do gato e do rato. Nunca sabíamos se eles estavam à coca e nos sairia na rifa o tiro isolado do dia. Aos mais afoitos, os mais loucos, já lhes dava, às vezes, para subirem ao alto de um abrigo e despejarem insultos a tudo quanto fosse guerrilheiro inimigo e respectiva família, enquanto evidenciavam convenientes manguitos.
Foram os mais insustentáveis tempos da nossa guerra.
As múltiplas inscrições que o pessoal foi colocando, em estacas ou nas árvores, um pouco por todo o lado, eram significativas. Na zona mais exposta a esse verdadeiro exercício de tiro ao alvo, qual barraca de feira, ficava uma avenida Lee Oswald. Na parte central do quartel, protegido por quatro estacas com arame à volta, estava o monumento ao mijo, uma granada de morteiro semienterrada, que não rebentara. Do lado da pista, na única entrada, protegida com cavalos de arame farpado, por onde entravam viaturas, estava uma banca repleta de recordações de Madina: empenas de granadas de morteiro e de canhão sem recuo. Se pudéssemos, tínhamos lá misturado todas as nossas angústias.”
Numa atmosfera destas, importava manter regras, incentivar o lúdico, jogar a sério o jogo da normalidade, o capitão exigia que andassem indumentados, limpassem as armas, engraxassem as botas, o pessoal ocupava-se do lúdico, como Gustavo Pimenta observa:
“Para além dos jogos de cartas ou de tabuleiro, que se podiam praticar dentro dos abrigos, recorria-se aos que se pudessem concretizar no exterior mas que não implicassem grandes ajuntamentos. Uma granada de morteiro no meio de um campo de futebol seria uma tragédia.
A malha era dos jogos que mais se praticavam. Na zona de cada abrigo, com mais ou menos vales pelo meio, havia um espaço onde se arremessavam as pedras escolhidas ou as rodelas de tronco de árvore que serviam de malha. Os mecos, executados com primor, quase carinho, partir-se-iam amiudadamente, a cada mecada, senão tivesse havido o cuidado de escolher a madeira adequada”.
Num contexto de iminência de flagelação, naquele isolamento quase perpétuo, há alguém que é saudado com especial fervor:
“Cada piloto que nos visitava era recebido na pista: balde de gelo, água Perrier e garrafa de uísque na mão. A evidenciar a gratidão pelo risco, sempre grande, de o atrevimento de poisar em Madina. Se alguém nos podia pedir o que quisesse, eram esses bravos homens que nos consentiam, em regra semanalmente, a partilha de outros mundos, do mundo dos outros, que tínhamos a ilusão de ter quase à mão”.
E um dia saíram de Madina e mudaram de rumo, no entretanto ocorreu aquela catástrofe de fevereiro de 1969 que dizimou muita gente na travessia do Ché Che. Já estão em S. Domingos, este nosso alferes Gustavo Pimenta levanta minas, e não omite a aflição que pode ir na alma de quem o faz. Livro de uma urdidura raríssima, um verdadeiro filme desbobinado, que assim começa para depois preparar o seu termo:
“O beijo da minha mãe durava uma eternidade. Fechara os olhos para que o retrato fosse imperecível. Nas cores esmaecidas da casa, no amarelo tímido do meu quarto, o da frente, junto à rua. Nos meus, que me prodigalizavam abraços, venturas e lágrimas.
Tinha o pressentimento de que nunca mais seria o mesmo. Estava a despedir-me de mim”.
Houve Madina do Boé, depois S. Domingos, como já tinha havido Fá Mandinga e a região do Xime. Fez-se uma viagem para o Norte, depois de desembarcar e ganhar a disponibilidade. Regressa como cão, o motorista de táxis bem protestou.
E tudo acaba onde começou:
“A casa antiga – para não dizer velha – acolheu-me com o cheiro e o conforto que a memória reconheceu. Quanto tempo passado e como tudo me pareceu, de súbito, regressar ao princípio. As mesmas cores esmaecidas, em particular o amarelo da porta e janelas, o mesmo soalho corrido com tábuas carcomidas entremeadas, aqui e ali, por novas impecavelmente aplicadas, a motorizada logo à entrada do corredor e, ainda, a mesma cortina encobrindo o cubículo das garrafas de gás”.
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E a pensar no terrífico desse levantamento das minas, ocorreu-me alguns dos mais belos parágrafos que vi escritos sobre os estados de alma que percorrem esse levantador na hora da verdade, belos parágrafos que constam no livro “Guerra na Bolanha”, por Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, março de 2015:
“O que se passa pela cabeça quando estamos a desmontar uma mina com cerca de seis quilos e meio de trotil? Sabemos que qualquer erro seria, como diziam os nossos instrutores em Tancos, o primeiro, o único e o fatal. Nesse momento tudo nos incomoda, as pessoas, o arvoredo, a areia seca do arremedo da estrada em que nos encontramos, os ruídos indefinidos da floresta, as formigas que, indiferentes, passeavam num carreiro ali ao lado; alguém que assobiou lá ao longe, sem qualquer motivo; o fundo de um cigarro que o furriel deitou ali bem perto de nós, há minutos. E depois o que nos passa em flashes sucessivos pela cabeça: os eléctricos amarelos de Lisboa, tão perto do nosso coração e tão longe; a namorada que já não tínhamos, mas que podíamos ter; a última música dos Beatles, que era bem gira; os pais, os irmãos e a avó, com os seus límpidos olhos azuis e o seu ar autoritário; os estudos inacabados; a estupidez incomensurável da guerra naquele país ignorado e que poucos sabiam localizar com exatidão no mapa. Enfim, o que é que, em boa verdade, não nos passa pela cabeça? Mas, atenção: temos de nos concentrar, o importante é desactivar a mina, tão depressa quanto possível, mas sem grandes pressas. Temos medo? Creio que não. Estamos apenas apreensivos. Como é que isto se define? Não sei. A juventude e alguma inconsciência que a caracteriza acaba com qualquer vislumbre de medo e a prudência não é para aqui chamada.
Francisco Henriques da Silva |
Com efeito, ao escavar a terra sob a parte inferior da caixa de madeira da mina anticarro, deparei com algo de estranho, não sabia exactamente o que era. Parecia-me um arame, junto com um objecto redondo metálico em forma de pastilha. Não percebi muito bem o que era, mas estava desconfiado. Não conseguia, porém, escavar mais, até porque podia desequilibrar a mina e se esta estivesse contra-armadilhada podia dar por terminada a minha comissão na Guiné e começar outra de imediato no Além. Acresce que, à torreira do sol, estava com as mãos suadas e sujas de terra. Não podia continuar. Lembrei-me de um alferes sapador que, uma semana antes, lá para o Sul, deixou escapar o percutor e ficou feito em carne picada, que, segundo me contaram, mal cabia toda dentro de um quico. Para rematar, com todos os acontecimentos do dia, estava enervado com pequenas coisas e não com a mina propriamente dita, ou seria por causa dela?”
(continua)
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Notas do editor
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