Guiné > Zona Leste >
Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Belíssimma vista aérea da tabanca de Samba Juli, sendo visível o perimetro de arame farpado, as valas e os abrigos individuais > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera.
Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos
nharros da CCAÇ 12... Neste episódio, passado m Dezembro de 1969, Beja Santos refere a sua ida a Samba Juli, fazer um transporte de doentes, com o seu Pel Caç Nat 52, agora destacado em Bambadinca e morrendo de saudades de Missirá ... A lealdade dos fulas(ou a sua aliança política com os
tugas contra o PAIGC) era paga com estes e outros serviços... (LG)
Foto: ©
Humberto Reis (2006). Direitos reservados.
Capa (deteriorada) do livro de Georges Simenon,
Maigret em Nova Iorque. Lisboa: Livros do Brasdil., s/d. (Colecção Vampiro, 111). Capa de Cândido Costa Pinto. "Luís, foi assim que ficou o Maigret quando cai em
Ponta Varela. Cheira ainda a água da bolanha" (BS)
Foto: ©
Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.
Texto enviado, em 18 de Novembro de 2007, pelo nosso camarada e amigo
Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70):
Luis, aqui te entrego mais um texto, não sei porquê fora da medida habitual. Não te esqueças que já te enviei as ilustrações do Tennessee Williams, o livro do Simenon segue hoje pelo correio. Dou-te a notícia cheio de alegria: telefonou-me ontem o escritor Mário de Carvalho a dizer que aceita, na sessão de lançamento de
Na Terrra dos Soncó apresentar o livro, com o general Lemos Pires. Tenho uma profunda admiração pela obra dele, sinto que ele está a crescer e se aproxima do Saramago e Lobo Antunes. Espero não fazer pausa até ao Natal, para depois fazer uma semana de férias. Recebe um abraço do Mário
2. Operalção Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVIII > OPERAÇÃO PUNHAL RESISTENTE
por Beja Santos
(i) Bambadinca, entreposto de encontros e desagravos
Já se passou um mês, Bambadinca entranhou-se finalmente na minha vida desde o cais até às tabancas próximas, desço com a toda a naturalidade até à povoação, vou palrando com militares e civis, estonteio-me com os cheiros do mercado, no cais olho ao fundo, com pudor, os palmares de Finete, subo a rampa para o quartel a conversar com Queta Baldé, Serifo Candé e Tunca Sanhá, vamos ver o estado das munições, convoco o pelotão para a revisão das armas, quero ver os carregadores dos apontadores de dilagrama, as granadas de bazuca e de morteiro.
Nisto, aproxima-se de mim o milícia Gibrilo Embaló, de Missirá, já tinha saudades deste excelente soldado, sempre amável e de uma compostura inexcedível. Olhando para o chão, pede-me para vir para o pelotão, conversamos sobre tal impossibilidade, se ele quer ser caçador nativo terá que se inscrever e depois fazer a recruta em Bolama, estou pronto a fazer uma declaração que refira as suas qualidades. Queta Baldé aproveita para lhe dizer que no seu tempo (isto é, 1966) a recruta e a especialidade eram 8 meses a fio, agora é menos, em seu entender isso é mau, reflecte-se na preparação das tropas...
Há quem esteja a ouvir a conversa e manifeste discordância, é malta da CCAÇ 12, Serifo manda calar os meninos, pergunta-lhes se eles já estiveram debaixo de fogo em Porto Gole, Enxalé, Bissá, se já subiram a Madina, se fizeram a estrada Xime-Ponta do Inglês, se entraram no Buruntoni, se sabem o que é uma emboscada de duas horas ou ver Missirá em chamas, a contar as balas, se sabem o que é ir todos os dias a Mato de Cão, depois a gritaria sobe de tom, insultam-se, vejo punhos ameaçadores, olhares chamejantes, é o momento exacto em que partimos para ver o estado das munições, eles ainda não sabem mas ao anoitecer partiremos para Fá Mandinga, daqui andaremos às voltas entre Fá de Baixo, Santa Helena e Mero, o pretexto é um recenseamento das populações, a verdade é que apareceu um grupo armado em Bricama, teme-se que tenham atravessado o Geba, um informador avançou mesmo que é gente que terá vindo através de Bucol, da base de
Sinchã Jobel.
As munições estão em ordem, com uma secção ainda vamos buscar doentes a Samba Juli, chegou depois a hora do almoço. As refeições na messe, já constatei, podem ser litigiosas. O tenente Gilde apanhou dez dias de prisão por ter gritado com o major Sampaio, recordando-lhe que já se servira três vezes de leitão, havia oficiais que ainda não tinham comido, era o meu caso, que ouvi toda esta discussão aos berros na porta de vaivém, o tenente Gilde saiu aos palavrões, o major Sampaio perseguiu-o a gritar, comi o mais rapidamente que foi possível, agoniado por estas guerras da comida.
Sim, ao fim de um mês, quase esqueci os petromaxes de Missirá, o bingo a feijões na messe, as rondas de madrugada, tenho muitas saudades das conversas com o Lânsana, o gralhar das crianças, recordo agora o Natal passado, que vivemos tão intensamente. Pelo meio, o Moreira e o Abel, os meus camaradas de quarto, são muito tolerantes com os meus gostos musicais. O Moreira, no entanto, logo me advertiu:
-Pá, aquela gaja que canta em italiano e parece que está a morrer, ainda podes ouvir um bocadinho alto, não sei o que ela canta mas é bonito. Mas aquela outra gaja que está mais de vinte minutos aos berros e que consegue cantar mais alto que a música, por favor, ouve-a quando estiveres aqui sozinho.
O Moreira, afinal, gostava de
La Bohème, de Puccini, e detestava o final da
Salomé, de Strauss, cantada pela Inge Borkh. Até o correio aqui tem outro sabor. Recebo notícias do Fodé Dahaba, parece que a distância aumentou. O filho de Quebá Soncó, Mamadu, bateu-me à porta, dá-me um beijinho, deixa-me uma carta e foge. Afinal, pede-me material escolar e quer ir comigo a Bafatá para eu lhe comprar livros de aventuras.
Oiço a voz alta do nosso médico no corredor, o nortenho Vidal Saraiva anda furioso, vai ser ouvido nos termos do art.º 130º do RDM, foi encontrado pela polícia militar uma noite em Bissau sem a boina na cabeça, arrisca uns dias de prisão, anda apavorado, desinibe-se com este vozeirão, é assim que ele afasta os maus presságios.
Saio em direcção à secretaria, tenho o Braima Mané à minha espera. Os médicos de Bissau conseguiram pôr o seu braço direito a mexer, mas de resto tudo lhe corre mal. Veio pedir-me cinco escudos para comprar arroz, está todo sujo do barro dos adobes, pois anda a fazer uma morança no Bambadincazinho, não quer viver em Finete onde o seu irmão mais velho lhe engravidou a mulher e depois escorraçou-o da tabanca.
Na secretaria tenho alguns autos à minha espera, afago a minha caneta Montblanc, que me chegou ontem pelo correio, oferta da minha Mãe quando eu fiz o 5º ano, deixei-a em Lisboa, a que ardeu em Missirá era uma Parker 21. Aliás, toda a correspondência que passei a enviar já tem a marca da tinta Quick, a Bic é sempre um último recurso. Chega o correio, recebo um aerograma do Chico Henriques da Silva, que está agora no Olossato, passa semanas isolado num destacamento chamado Ponta Maquê, parece-me, abro um sobrescrito e sai de lá a revista
O Tempo e o Modo, é um número dedicado a António Sérgio e vejo que há um artigo assinado pelo José Medeiros Ferreira (2), o Pina escreve a dizer que tem o dedo engessado e em breve regressa...
Alguém entra na sala e dá a notícia que o Pimbas, o primeiro comandante do BCAÇ 2852, já regressou a Lisboa, com o atestado de inapto... É nisto que entra de repelão o Gomes da messe, pede para me falar em particular, como sou o gerente venho imediatamente, pode haver alguma falta, afinal o motivo é outro, a queixa dos faxinas que nos limpam os quartos deixa-me embaraçado: o Cherno entrou com um balde e vassoura, vinha pronto a lavar-me o quarto, não aceitou que sejam outros a fazer a limpeza, houve discussão:
-Talvez seja melhor o meu alferes convencer esse tipo que diz que é seu guarda-costas a não voltar a aparecer aqui, ele tinha um olhar furioso, o que mais nos impressionou foi aquela quantidade de granadas de morteiro que ele trazia à volta do pescoço e na cintura, diz que é assim que anda consigo. Se aquilo rebentasse, estávamos feitos.
É assim que vivo em Bambadinca, penso que é normal na minha idade adaptar-me a isto tudo, onde eu estou a quebrar, a sentir diferenças brutais, é nas insónias, quando de manhã me levanto, depois de ouvir os camaradas a dormir bem, toda a luz do dia me magoa e me recorda o corpo moído, sem vontade de afrontar as idas à picada.
(ii) Em Fá Mandinga, o território do Jorge Cabral
Eu tinha as notas de uma ida a
Fá Mandinga, nas vésperas de partir para a operação
Punhal Resistente, que se realizou um pouco antes do Natal. Segundo o Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, ter-nos-emos conhecido em Julho, na tasca do Zé Maria (3). O 63, nessa altura, fazia de pau para toda a obra em Bambadinca, o que é hoje o nosso destino.
O Jorge Cabral recebeu-me há pouco tempo na Universidade Lusófona, onde conversámos sobre este patrulhamento a Mero e Santa Helena. Quando lhe perguntei se ele se lembrava de um ataque de abelhas que apanhámos na operação
Lua Nova, perto do rio Bissari, ele confirmou tudo com o seu sorriso maroto e manhoso. E lembrava-se perfeitamente do nosso mano-a-mano a partir de Fá Mandinga, ele descendo a bolanha até ficar em frente à aldeia do Cuor, eu patrulhando Santa Helena, Fá de Baixo e depois Mero, numa tentativa de enxotar os intrusos de Madina em direcção ao Geba estreito, onde seriam apanhados pelo 63 ou no caso de atravessarem a nado terem do outro lado à espera o Alves Correia, de Missirá [Pel Caç Nat 54]. Ajudou-me a reconstituir o quartel de Fá Mandinga, de que guardo uma imagem difusa, não tendo esquecido, no entanto, a boa qualidade das instalações, que eu sempre associara a um quartel destinado a uma companhia e que precedera, de facto, a construção do quartel de Bambadinca.
Quando se entrava em Fá, tinha-se a noção de que houvera ali um centro agrícola experimental, lojas coloniais, talvez um presídio. O Cabral tudo confirmou, Fá tivera importância noutros tempos (tal como Geba, era a ponta avançada da presença colonial, até ao séc. XIX), havia uma zona de instalações antigas que estavam vedadas à tropa (tinha mesmo um guarda civil do Governo da Província), possuía excelentes instalações para a tropa ficar acantonada (4) , o quartel tinha valas e não havia abrigos, toda aquela região do Joladu era calma, sabia-se da cambança da gente de Madina, em Bissaque havia muitas tensões, os patrulhamentos eram completamente infrutíferos, os apoios das populações aos rebeldes eram uma realidade, só que nós não sabíamos os códigos de entendimento.
O que fizemos foi mais um patrulhamento pelas bolanhas e uma acção psico entre Mero, Santa Helena e Fá Mandinga. Era pelo
bombolom que a gente de Madina chegava ao Joladu, mas nós naquele tempo nada sabíamos. E foi assim que passámos a tarde, a noite e a madrugada, entre as lamas e os mosquitos das férteis bolanhas da região de Fá, ouvindo sempre dizer que gente do mato nunca vinha à região... regressámos ao amanhecer a Bambadinca, informei os soldados que fossem dormir bem pois, a meio desta tarde iríamos partir durante dois ou três dias.
(iii) As andanças infernais da Punhal Resistente
Chegado ao quartel, fui logo falar com o major Sampaio para saber mais detalhes da batida prevista paras a
região do Buruntoni, a partir do Xime. Segundo o oficial de operações, haveria dois destacamentos, um com gente de Mansambo [, CART 2404,], outro com o 52 e a gente do Xime [, CART 2520].
-Esteja descansado, os guias são muito bons. Estarei amanhã sobre vós, procurarei acompanhar as vossas rotas, vocês vão cercar o Buruntoni por terra firme, escolhi a tropa mais experimentada que disponho.
No regresso, escrevi à Cristina:
“Saí do Xime de madrugada com mais três pelotões, fugimos sempre da estrada Xime-Ponta do Inglês, junto a Ponta Varela atravessámos a estrada em direcção Gundaguê Beafada, a ideia era ao princípio da manhã juntarmo-nos com as tropas do capitão Neves em Gundaguê Futa-Fula, e daí avançarmos para o Baio e depois o Buruntoni. Ao meio dia, o guia diz que já não sabe o caminho, os soldados da região avisam-me que estamos a avançar para a Ponta do Inglês, a avioneta não nos dá indicações. Do Buruntoni os rebeldes desataram a fazer fogo de morteiro, aperceberam-se da insistência da avioneta sobre aquela área que eles controlam completamente. Pelas 5h da tarde, o guia confessa-se perdido, justificando que o capim alto alterou todas as referências.
"Se na operação de Mansambo estava um frio de esfarelar os ossos, alí era uma humidade asfixiante. Sem saber como, acampámos a 200 metros das tropas do capitão Neves, pelo meio dia do dia seguinte chamámos outra vez a avioneta, não tínhamos apoio da carta, começavam a chegar as insolações, a tropa exausta por andar às voltas, fugindo dos itinerários que se suspeitavam minados.
"A meio da tarde a avioneta deu ordens de retirada, isto debaixo do fogo do Buruntoni. Ao anoitecer partimos do Xime para Bambadinca, sempre a picar a estrada até Almedalai. No dia seguinte, já em cima do Natal, coube-nos emboscada, escolta e reforço.
"A 24, de manhã, o pelotão dividido em três secções andou pela ponte de Udunduma, Nhabijões, Madina Bonco e Galomaro, a levar e a trazer pessoas e coisas, eu fiquei nas ferroadas burocráticas dos processos por ferimentos em combate. À tarde, começou a nossa semana na Ponto de Udunduma”.
Em conversas recentes com o Pires e o Queta, pedi-lhes que me ajudassem a recordar pormenores daquela malfadada
Punhal Resistente. O Pires foi sintético:
-Partimos a meio da tarde para o Xime, picámos tudo até ao quartel, naquele tempo, nada estava alcatroado. Fez-me muita confusão o fogo de obus, ao anoitecer e até sairmos para a operação. Recordo-me que andámos sem parar, desviámo-nos para junto do Corubal, ouvíamos os barcos no Geba, andámos na bolanha aos tombos, ao amanhecer houve discussão entre vários soldados e o guia, caminhámos à esquerda e à direita, a água dos cantis desapareceu rapidamente. Ou os guias não gostaram dos itinerários de aproximação e tudo fizeram para se afastar deles ou desconheciam o terreno, o capim estava muito crescido. O que interessa é que foi mais uma operação inútil, a juntar a tantas outras. Ficava-se sempre com a ideia de que inimigo era verdadeiramente inacessível.
Com Queta, natural da região, as memórias ainda estão em ebulição:
-Adulai Djaló, o Campino, ameaçou matar o guia que era de Madina, frente a Taibatá, de nome Samba. Estou certo que era um homem leal e não lhe deram as indicações mais certas. No meio da discussão, durante a manhã do primeiro dia, quando já estávamos perdidos, ele disse-me que procurava o trilho de Gundaguê Futa-Fula em direcção ao Buruntoni, mas que sabia que os sentinelas iriam certamente ver-nos na extensa bolanha à volta do Baio e do Buruntoni. Era o acampamento melhor situado naquela região do Corubal, todas as aproximações são difíceis, foi aqui que se instalou o PAIGC e logo começou a luta armada, a barraca deles ficava no mato fechado entre bolanhas. Ainda agora lembro a morte de Mário Adulai Camará, um dos nossos bazuqueiros, em 1967, nunca percebi por que é que não lhe deram uma condecoração, combateu mais de meia hora lançando fogo da bolanha para dentro da mata, nós não podíamos andar mais, tal o fogo dos morteiros 82. Aquela operação foi uma grande canseira, nosso alfero, nós não gostávamos daquelas correrias dentro da mata, era pena nunca perguntarem às pessoas da região, como eu, quais os sítios possíveis para se chegar lá. Quando atacámos Belel, em Março do ano seguinte, nosso alfero escolheu a pessoa certa, Cibo Indjai, ele escolheu o trilho possível, entrámos na barraca de Belel quando eles estavam a descansar ao almoço. Foi pena os oficiais brancos não quererem falar connosco antes das operações. Nós éramos fiéis à bandeira portuguesa, nunca pensavam em nós como gente interessada em acabar rapidamente com a guerra.
(iv) A semana Tennessee Williams
Não resisto a contar a história de um livro
Maigret em Nova York, de Georges Simenon. Levava sempre no camuflado um ou dois livros revestidos em plásticos, para aguentarem as águas da bolanha e as chuvadas. Levei para o Xime o n.º 111 da colecção Vampiro, uma leitura emocionante, Maigret já está reformado em Meung-sur-Loire é procurado pelo um jovem, Jean Maura, que lhe pede que vá a Nova Iorque ver que perigos corre o pai, ideia que é corroborada pelo notário da família.
Maigret viaja num paquete transatlântico, o jovem Jean Maura desaparece à chegada, o encontro com o pai, Little John, e o seu secretário é acidentado mas Maigret continua a investigar com auxílio de colegas norte-americanos e detectives recrutados. São deambulações mirabolantes, há recordações de artistas que se lembram de uma dupla de dois irmãos, em que um deles era Little John. Há momentos fulgurantes, mas nada tem a força com um telefonema que Maigret faz a Joseph Daumale, de Nova Iorque para Bourboule, é um interrogatório a cinco mil quilómetros de distância como nunca mais lerei nas obras de Simenon. Vou devorando aos bocados, todas as pausas disponíveis são boas para ler. Nas bolanhas de Ponta Varela entrei dentro de água até à barriga, quando saí o meu livro policial deformara-se. Gostei tanto dele, no entanto, que resolvi guardá-lo até hoje, uma homenagem às leituras emocionantes, em tempos tão difíceis.
Mas as leituras da semana centraram-se em Tennessee Williams. Primeiro, li um
Eléctrico Chamado Desejo, premiado com o Pulitzer. Vira a peça no teatro de São Luís, no dia dos meus anos, em 1966, na companhia do Carlos Sampaio, Eduardo Canto e Castro e José Nogueira Ramos. Mariana Rey Monteiro desempenhara Blanche DuBois, que no cinema dera a Vivien Leigh um Óscar. É um drama que nos fala da desambientação, da repressão sexual, da doença mental, as múltiplas mentiras a que por vezes nos entregamos na construção dos nossos sonhos. Blanche, que tem poses de aristocrata, vai viver para casa de Stella, a sua irmã, casada com o musculado e abrutado Stanley Kowalski. Numa atmosfera de permanente tensão, Blanche procura transmitir aos outros a ideia de um mundo refinado de onde provém, que se vem a descobrir ser fruto de uma imaginação delirante. Blanche é um caso único de mulher a caminho da meia idade que arquitecta situações amorosas, acantonada numa juventude inexistente. De ficção em ficção, Blanche irá ser internada, e a casa dos Kowalski voltará à normalidade.
A noite de Iguana que vi no filme de John Huston, com Ava Gardner, Richard Burton, Deborah Kerr e Sue Lyon nos principais protagonistas, é um outro drama de sexo reprimido, solteironas em fúria, um padre em sofrimento perseguido por uma adolescente, uma viúva sempre em festa, um avô poeta que vai recitar o seu mais belo poema e morre ao pé da sua neta tão amada. A iguana, um animal perseguido e acorrentado que o reverendo Shannon liberta naquela noite de todas as libertações, é o símbolo da verdade que se solta, da vida que é possível ser vivida. Gosto cada vez mais de Tennessee Williams e dos seus personagens em afrontamento, em que nada fica como dantes.
Aproxima-se o Natal, vivo o dissabor de não poder fazer uma festa, não tem sentido particularizar o evento no ambiente de um grande quartel. Entrego-me à pira das recordações, procuro compor uma exaltação ao Deus menino. E a 24 de Dezembro, já na noite escura, um pouco antes da nossa consoada na messe de Bambadinca os enfeites verbais conjugaram-se, todo o marulhar de saudações e saudades afluiu numa prosa poética. Afinal, o meu coração estava lá e cá, continuava a combater e, julgava eu, estava pronto a recomeçar uma vida onde se apagava a guerra da Guiné.
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Notas dos editores:
(1) Vd. o último poste desta série:
25 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969
(2) Vd. poste de 15 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira
(3) Vd. poste de 18 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)
(4) Vd. poste de 27 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)