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quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16493: (De)Caras (45): Conversa com Jerónimo de Sousa, Soldado Condutor Auto da Companhia Polícia Militar 2537 (Bissau, 1969/71) (Mário Beja Santos)


O nosso ex-camarada de armas (e hoje secretário-geral e deputado do PCP)  Jerónimo de Sousa foi capa da revista "Visão", na sua  edição nº 1216, de 22 de junho de 2016


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Quando li a reportagem sobre Jerónimo de Sousa e vi referência ao mato da Guiné, atirei-me à leitura. Havia para ali exageros inaceitáveis: a Bambadinca bombardeada, uma ida absolutamente incompreensível de uma seção reforçada da PM para Demba Tacobá, missão apresentada como num dos locais mais desolados da colónia, próximo da fronteira do Senegal.
Trocámos correspondência, gostei do desportivismo do secretário-geral do PCP, propôs uma conversa esclarecedora do que realmente se passara. Gostei daquela hora de convívio. Subsistem mistérios, um deles a natureza da missão, Demba Tacobá, para quem se recorda era uma tabanca em autodefesa num território em que naquele tempo ainda se circulava com absoluta segurança, sou testemunha, Jerónimo de Sousa nunca conseguiu apurar quem os atirou e porquê para castigo de abrir valas e pôr arame-farpado. Falámos da roupa aos pedaços, 47 dias com o mesmo fardamento, lembrei-lhe as micoses, as virilhas cortadas, enfim, rendi-me à versão que me deu.
Foi uma despedida cordial, por alguma razão somos camaradas da Guiné, e para sempre.

Um abraço do
Mário


Jerónimo de Sousa, Companhia da Polícia Militar 2537, 3.º Pelotão, Guiné

Beja Santos

A revista Visão, na sua última edição de Julho de 2016, publicou uma reportagem sobre o secretário-geral do PCP, referindo tratar-se de uma viagem, entre outras paragens, aos esteiros do Tejo, ao mato da Guiné, à infância em Pirescoxe e às primeiras gloriosas reuniões que os históricos do PCP. Interessou-me logo esta relação entre os matos da Guiné e o líder comunista. Li, e fiquei bem perplexo. O Soldado Condutor da Polícia Militar, Jerónimo de Sousa, fez comissão militar na Guiné entre 1969 e 1971. Depõe na entrevista que um dia o comandante o acordou de madrugada e o mandou apresentar no aeroporto com mais elementos de uma secção reforçada, foram 47 dias para um dos locais mais desolados da colónia, próximo da fronteira do Senegal. Reza o texto:  
“Aterraram em Bambadinca, recentemente arrasada por 80 morteiradas”.

Li emudecido, Bambadinca foi flagelada em finais de Maio de 1969, praticamente sem consequências, e num outro ataque, poucos anos mais tarde, os foguetões foram todos parar ao rio Geba. Teriam feito uma viagem num Dakota e em Bambadinca mandaram-nos para uma localidade Demba Tacobá, perto de Dulombi. Foi-lhes dito:

“O PAICG apanha aqui a malta à mão. Se querem dormir, cavem abrigos montem segurança. Se querem comida, comprem na aldeia mais próxima. De vez em quando passaremos por cá. Vocês são homens fortes, são da Polícia Militar, passem bem”.

Regressaram a Bissau mês e meio depois, com a mesma roupa que tinham levado, já desfeita, e um alferes enlouquecido.

Aturdido com esta baralha informativa, escrevi ao deputado Jerónimo de Sousa, tentei aclarar que povoação era aquela próxima do Senegal e junto a Bambadinca, que arrasamento fora aquele, como sobrevivera com a mesma roupa no pelo 47 dias a fio. Trocámos correspondência, o secretário-geral do PCP revelou-se bem-humorado e pronto a cavaquear. Marcou-me entrevista para a Soeiro Gomes, e durante uma hora voltámos à Guiné.

Ainda hoje não sabe os motivos que levaram o comandante a enviá-los à pressa para Demba Tacobá. Como se falava de Demba Tacobá, procurei esclarecer se não havia confusão com Demba Taco, perto de Amedalai e de Taibatá e Moricanhe, já a apontar para o Corubal. Não, era mesma Demba Tacobá, uma localidade em que tiveram de abrir valas, viver em moranças numa localidade que nem de arame-farpado dispunha. Lembrava-se de uma criança ramelosa, não tinham levado maqueiro mas havia um saco de primeiros-socorros, lavou os olhos à criança, removeu o pus, e horas depois a criança aparecia-lhe com uns ovinhos nas mãos, era o seu agradecimento. Tratou-se de uma experiência terrível, o alferes entrou em perturbação, dava tiros a despropósito, chegava junto dos militares e rasgava-lhes as cartas de jogar, apanharam paludismo, de Bambadinca o alferes foi transferido para o HM 241 e posteriormente evacuado. Regressaram e foram levados. O mais importante foi a seguir. Estabeleceu um pacto com aqueles homens com quem viveu em Demba Tacobá, tinham aprendido as vicissitudes do viver do mato, andar a angariar alimentos para a subsistência, nem rações de combate lhes deram, compraram um panela por 500 pesos, galinha, cabrito, arroz e alguns legumes, era tudo negociado na localidade. Tinham aprendido a dureza do isolamento.

O pacto era simples: a partir daquele dia não se iria lixar nem mais um soldado. Assim foi durante semanas, o comando não gostou dos relatórios, queria resultados, detenções de gente de bota mal engraxada, barba por fazer, camisa aberta, cabeça descoberta, ou havia resultados ou voltariam a ser metidos no mato. Não desarmaram, iniciaram caça a oficiais e sargentos com tal intensidade que o comando percebeu o fundo da questão.

Jerónimo de Sousa passou a ver de maneira muito diferente a condição militar e lembrou-me uma história. Um dia, a desoras, apanharam um oficial médico totalmente embriagado. Toca de começar um auto de detenção. O tenente-médico gritava:

- “Prendam-me! Prendam-me já! Prefiro a prisão a voltar para o hospital e cortar corpos, não vos passa pela cabeça o sofrimento que vai por aquelas salas de operações e também não vos passa pela cabeça que eu tinha acabado de montar consultório, que amo a minha mulher, que tenho filhos crianças, que um dia me convocaram e para aqui me atiraram. Prendam-me! Estou saturado da minha dor e do sofrimento que tenho que viver na sala de operações”.

Havia ainda um assunto na manga, os tais 47 dias com a roupa a desfazer-se, recordei-lhe brandamente que três dias com aquele roupinha suada, empoeirada e emporcalhada dava direito a feridas e comichões, respondeu que iam conseguindo umas lavagens de tempos a tempos, fingi que acreditava piamente em tudo quanto estava a ouvir, não há corpo humano que resista a tanta falta de higiene.

Tinha-se passado uma hora de conversa, Jerónimo de Sousa avisou-me que ia partir para a Madeira daí a pouco. Perguntei-lhe se tinha fotos daquele tempo, disse que tinha para ali uma foto mal-amanhada e que me ia mandar durante a tarde, o que aconteceu. Avisei-o que a conversa havida ia para o blogue e que ele ainda está a tempo de se inscrever. Sorriu com gentileza, a Guiné fica muito longe mas foi determinante para ele passar a ver a condição humana com outros olhos.

Jerónimo de Sousa na Guiné
Foto: © Jerónimo de Sousa / Mário Beja Santos (2016). Todos os direitos reservados 
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16430: (De)Caras (43): Os "periquitos" da Tabanca da Linha: almoço-convívio de 21 de julho de 2016, no restaurante "Caravela de Ouro", em Algés, Oeiras (Manuel Resende)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Belíssimma vista aérea da tabanca de Samba Juli, sendo visível o perimetro de arame farpado, as valas e os abrigos individuais > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos nharros da CCAÇ 12... Neste episódio, passado m Dezembro de 1969, Beja Santos refere a sua ida a Samba Juli, fazer um transporte de doentes, com o seu Pel Caç Nat 52, agora destacado em Bambadinca e morrendo de saudades de Missirá ... A lealdade dos fulas(ou a sua aliança política com os tugas contra o PAIGC) era paga com estes e outros serviços... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Capa (deteriorada) do livro de Georges Simenon, Maigret em Nova Iorque. Lisboa: Livros do Brasdil., s/d. (Colecção Vampiro, 111). Capa de Cândido Costa Pinto. "Luís, foi assim que ficou o Maigret quando cai em Ponta Varela. Cheira ainda a água da bolanha" (BS)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

Texto enviado, em 18 de Novembro de 2007, pelo nosso camarada e amigo Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Luis, aqui te entrego mais um texto, não sei porquê fora da medida habitual. Não te esqueças que já te enviei as ilustrações do Tennessee Williams, o livro do Simenon segue hoje pelo correio. Dou-te a notícia cheio de alegria: telefonou-me ontem o escritor Mário de Carvalho a dizer que aceita, na sessão de lançamento de Na Terrra dos Soncó apresentar o livro, com o general Lemos Pires. Tenho uma profunda admiração pela obra dele, sinto que ele está a crescer e se aproxima do Saramago e Lobo Antunes. Espero não fazer pausa até ao Natal, para depois fazer uma semana de férias. Recebe um abraço do Mário

2. Operalção Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVIII > OPERAÇÃO PUNHAL RESISTENTE
por Beja Santos

(i) Bambadinca, entreposto de encontros e desagravos


Já se passou um mês, Bambadinca entranhou-se finalmente na minha vida desde o cais até às tabancas próximas, desço com a toda a naturalidade até à povoação, vou palrando com militares e civis, estonteio-me com os cheiros do mercado, no cais olho ao fundo, com pudor, os palmares de Finete, subo a rampa para o quartel a conversar com Queta Baldé, Serifo Candé e Tunca Sanhá, vamos ver o estado das munições, convoco o pelotão para a revisão das armas, quero ver os carregadores dos apontadores de dilagrama, as granadas de bazuca e de morteiro.

Nisto, aproxima-se de mim o milícia Gibrilo Embaló, de Missirá, já tinha saudades deste excelente soldado, sempre amável e de uma compostura inexcedível. Olhando para o chão, pede-me para vir para o pelotão, conversamos sobre tal impossibilidade, se ele quer ser caçador nativo terá que se inscrever e depois fazer a recruta em Bolama, estou pronto a fazer uma declaração que refira as suas qualidades. Queta Baldé aproveita para lhe dizer que no seu tempo (isto é, 1966) a recruta e a especialidade eram 8 meses a fio, agora é menos, em seu entender isso é mau, reflecte-se na preparação das tropas...

Há quem esteja a ouvir a conversa e manifeste discordância, é malta da CCAÇ 12, Serifo manda calar os meninos, pergunta-lhes se eles já estiveram debaixo de fogo em Porto Gole, Enxalé, Bissá, se já subiram a Madina, se fizeram a estrada Xime-Ponta do Inglês, se entraram no Buruntoni, se sabem o que é uma emboscada de duas horas ou ver Missirá em chamas, a contar as balas, se sabem o que é ir todos os dias a Mato de Cão, depois a gritaria sobe de tom, insultam-se, vejo punhos ameaçadores, olhares chamejantes, é o momento exacto em que partimos para ver o estado das munições, eles ainda não sabem mas ao anoitecer partiremos para Fá Mandinga, daqui andaremos às voltas entre Fá de Baixo, Santa Helena e Mero, o pretexto é um recenseamento das populações, a verdade é que apareceu um grupo armado em Bricama, teme-se que tenham atravessado o Geba, um informador avançou mesmo que é gente que terá vindo através de Bucol, da base de Sinchã Jobel.

As munições estão em ordem, com uma secção ainda vamos buscar doentes a Samba Juli, chegou depois a hora do almoço. As refeições na messe, já constatei, podem ser litigiosas. O tenente Gilde apanhou dez dias de prisão por ter gritado com o major Sampaio, recordando-lhe que já se servira três vezes de leitão, havia oficiais que ainda não tinham comido, era o meu caso, que ouvi toda esta discussão aos berros na porta de vaivém, o tenente Gilde saiu aos palavrões, o major Sampaio perseguiu-o a gritar, comi o mais rapidamente que foi possível, agoniado por estas guerras da comida.

Sim, ao fim de um mês, quase esqueci os petromaxes de Missirá, o bingo a feijões na messe, as rondas de madrugada, tenho muitas saudades das conversas com o Lânsana, o gralhar das crianças, recordo agora o Natal passado, que vivemos tão intensamente. Pelo meio, o Moreira e o Abel, os meus camaradas de quarto, são muito tolerantes com os meus gostos musicais. O Moreira, no entanto, logo me advertiu:
-Pá, aquela gaja que canta em italiano e parece que está a morrer, ainda podes ouvir um bocadinho alto, não sei o que ela canta mas é bonito. Mas aquela outra gaja que está mais de vinte minutos aos berros e que consegue cantar mais alto que a música, por favor, ouve-a quando estiveres aqui sozinho.

O Moreira, afinal, gostava de La Bohème, de Puccini, e detestava o final da Salomé, de Strauss, cantada pela Inge Borkh. Até o correio aqui tem outro sabor. Recebo notícias do Fodé Dahaba, parece que a distância aumentou. O filho de Quebá Soncó, Mamadu, bateu-me à porta, dá-me um beijinho, deixa-me uma carta e foge. Afinal, pede-me material escolar e quer ir comigo a Bafatá para eu lhe comprar livros de aventuras.

Oiço a voz alta do nosso médico no corredor, o nortenho Vidal Saraiva anda furioso, vai ser ouvido nos termos do art.º 130º do RDM, foi encontrado pela polícia militar uma noite em Bissau sem a boina na cabeça, arrisca uns dias de prisão, anda apavorado, desinibe-se com este vozeirão, é assim que ele afasta os maus presságios.

Saio em direcção à secretaria, tenho o Braima Mané à minha espera. Os médicos de Bissau conseguiram pôr o seu braço direito a mexer, mas de resto tudo lhe corre mal. Veio pedir-me cinco escudos para comprar arroz, está todo sujo do barro dos adobes, pois anda a fazer uma morança no Bambadincazinho, não quer viver em Finete onde o seu irmão mais velho lhe engravidou a mulher e depois escorraçou-o da tabanca.

Na secretaria tenho alguns autos à minha espera, afago a minha caneta Montblanc, que me chegou ontem pelo correio, oferta da minha Mãe quando eu fiz o 5º ano, deixei-a em Lisboa, a que ardeu em Missirá era uma Parker 21. Aliás, toda a correspondência que passei a enviar já tem a marca da tinta Quick, a Bic é sempre um último recurso. Chega o correio, recebo um aerograma do Chico Henriques da Silva, que está agora no Olossato, passa semanas isolado num destacamento chamado Ponta Maquê, parece-me, abro um sobrescrito e sai de lá a revista O Tempo e o Modo, é um número dedicado a António Sérgio e vejo que há um artigo assinado pelo José Medeiros Ferreira (2), o Pina escreve a dizer que tem o dedo engessado e em breve regressa...

Alguém entra na sala e dá a notícia que o Pimbas, o primeiro comandante do BCAÇ 2852, já regressou a Lisboa, com o atestado de inapto... É nisto que entra de repelão o Gomes da messe, pede para me falar em particular, como sou o gerente venho imediatamente, pode haver alguma falta, afinal o motivo é outro, a queixa dos faxinas que nos limpam os quartos deixa-me embaraçado: o Cherno entrou com um balde e vassoura, vinha pronto a lavar-me o quarto, não aceitou que sejam outros a fazer a limpeza, houve discussão:
-Talvez seja melhor o meu alferes convencer esse tipo que diz que é seu guarda-costas a não voltar a aparecer aqui, ele tinha um olhar furioso, o que mais nos impressionou foi aquela quantidade de granadas de morteiro que ele trazia à volta do pescoço e na cintura, diz que é assim que anda consigo. Se aquilo rebentasse, estávamos feitos.

É assim que vivo em Bambadinca, penso que é normal na minha idade adaptar-me a isto tudo, onde eu estou a quebrar, a sentir diferenças brutais, é nas insónias, quando de manhã me levanto, depois de ouvir os camaradas a dormir bem, toda a luz do dia me magoa e me recorda o corpo moído, sem vontade de afrontar as idas à picada.

(ii) Em Fá Mandinga, o território do Jorge Cabral

Eu tinha as notas de uma ida a Fá Mandinga, nas vésperas de partir para a operação Punhal Resistente, que se realizou um pouco antes do Natal. Segundo o Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, ter-nos-emos conhecido em Julho, na tasca do Zé Maria (3). O 63, nessa altura, fazia de pau para toda a obra em Bambadinca, o que é hoje o nosso destino.

O Jorge Cabral recebeu-me há pouco tempo na Universidade Lusófona, onde conversámos sobre este patrulhamento a Mero e Santa Helena. Quando lhe perguntei se ele se lembrava de um ataque de abelhas que apanhámos na operação Lua Nova, perto do rio Bissari, ele confirmou tudo com o seu sorriso maroto e manhoso. E lembrava-se perfeitamente do nosso mano-a-mano a partir de Fá Mandinga, ele descendo a bolanha até ficar em frente à aldeia do Cuor, eu patrulhando Santa Helena, Fá de Baixo e depois Mero, numa tentativa de enxotar os intrusos de Madina em direcção ao Geba estreito, onde seriam apanhados pelo 63 ou no caso de atravessarem a nado terem do outro lado à espera o Alves Correia, de Missirá [Pel Caç Nat 54]. Ajudou-me a reconstituir o quartel de Fá Mandinga, de que guardo uma imagem difusa, não tendo esquecido, no entanto, a boa qualidade das instalações, que eu sempre associara a um quartel destinado a uma companhia e que precedera, de facto, a construção do quartel de Bambadinca.

Quando se entrava em Fá, tinha-se a noção de que houvera ali um centro agrícola experimental, lojas coloniais, talvez um presídio. O Cabral tudo confirmou, Fá tivera importância noutros tempos (tal como Geba, era a ponta avançada da presença colonial, até ao séc. XIX), havia uma zona de instalações antigas que estavam vedadas à tropa (tinha mesmo um guarda civil do Governo da Província), possuía excelentes instalações para a tropa ficar acantonada (4) , o quartel tinha valas e não havia abrigos, toda aquela região do Joladu era calma, sabia-se da cambança da gente de Madina, em Bissaque havia muitas tensões, os patrulhamentos eram completamente infrutíferos, os apoios das populações aos rebeldes eram uma realidade, só que nós não sabíamos os códigos de entendimento.

O que fizemos foi mais um patrulhamento pelas bolanhas e uma acção psico entre Mero, Santa Helena e Fá Mandinga. Era pelo bombolom que a gente de Madina chegava ao Joladu, mas nós naquele tempo nada sabíamos. E foi assim que passámos a tarde, a noite e a madrugada, entre as lamas e os mosquitos das férteis bolanhas da região de Fá, ouvindo sempre dizer que gente do mato nunca vinha à região... regressámos ao amanhecer a Bambadinca, informei os soldados que fossem dormir bem pois, a meio desta tarde iríamos partir durante dois ou três dias.

(iii) As andanças infernais da Punhal Resistente

Chegado ao quartel, fui logo falar com o major Sampaio para saber mais detalhes da batida prevista paras a região do Buruntoni, a partir do Xime. Segundo o oficial de operações, haveria dois destacamentos, um com gente de Mansambo [, CART 2404,], outro com o 52 e a gente do Xime [, CART 2520].
-Esteja descansado, os guias são muito bons. Estarei amanhã sobre vós, procurarei acompanhar as vossas rotas, vocês vão cercar o Buruntoni por terra firme, escolhi a tropa mais experimentada que disponho.

No regresso, escrevi à Cristina:

“Saí do Xime de madrugada com mais três pelotões, fugimos sempre da estrada Xime-Ponta do Inglês, junto a Ponta Varela atravessámos a estrada em direcção Gundaguê Beafada, a ideia era ao princípio da manhã juntarmo-nos com as tropas do capitão Neves em Gundaguê Futa-Fula, e daí avançarmos para o Baio e depois o Buruntoni. Ao meio dia, o guia diz que já não sabe o caminho, os soldados da região avisam-me que estamos a avançar para a Ponta do Inglês, a avioneta não nos dá indicações. Do Buruntoni os rebeldes desataram a fazer fogo de morteiro, aperceberam-se da insistência da avioneta sobre aquela área que eles controlam completamente. Pelas 5h da tarde, o guia confessa-se perdido, justificando que o capim alto alterou todas as referências.

"Se na operação de Mansambo estava um frio de esfarelar os ossos, alí era uma humidade asfixiante. Sem saber como, acampámos a 200 metros das tropas do capitão Neves, pelo meio dia do dia seguinte chamámos outra vez a avioneta, não tínhamos apoio da carta, começavam a chegar as insolações, a tropa exausta por andar às voltas, fugindo dos itinerários que se suspeitavam minados.

"A meio da tarde a avioneta deu ordens de retirada, isto debaixo do fogo do Buruntoni. Ao anoitecer partimos do Xime para Bambadinca, sempre a picar a estrada até Almedalai. No dia seguinte, já em cima do Natal, coube-nos emboscada, escolta e reforço.

"A 24, de manhã, o pelotão dividido em três secções andou pela ponte de Udunduma, Nhabijões, Madina Bonco e Galomaro, a levar e a trazer pessoas e coisas, eu fiquei nas ferroadas burocráticas dos processos por ferimentos em combate. À tarde, começou a nossa semana na Ponto de Udunduma”.


Em conversas recentes com o Pires e o Queta, pedi-lhes que me ajudassem a recordar pormenores daquela malfadada Punhal Resistente. O Pires foi sintético:
-Partimos a meio da tarde para o Xime, picámos tudo até ao quartel, naquele tempo, nada estava alcatroado. Fez-me muita confusão o fogo de obus, ao anoitecer e até sairmos para a operação. Recordo-me que andámos sem parar, desviámo-nos para junto do Corubal, ouvíamos os barcos no Geba, andámos na bolanha aos tombos, ao amanhecer houve discussão entre vários soldados e o guia, caminhámos à esquerda e à direita, a água dos cantis desapareceu rapidamente. Ou os guias não gostaram dos itinerários de aproximação e tudo fizeram para se afastar deles ou desconheciam o terreno, o capim estava muito crescido. O que interessa é que foi mais uma operação inútil, a juntar a tantas outras. Ficava-se sempre com a ideia de que inimigo era verdadeiramente inacessível.

Com Queta, natural da região, as memórias ainda estão em ebulição:
-Adulai Djaló, o Campino, ameaçou matar o guia que era de Madina, frente a Taibatá, de nome Samba. Estou certo que era um homem leal e não lhe deram as indicações mais certas. No meio da discussão, durante a manhã do primeiro dia, quando já estávamos perdidos, ele disse-me que procurava o trilho de Gundaguê Futa-Fula em direcção ao Buruntoni, mas que sabia que os sentinelas iriam certamente ver-nos na extensa bolanha à volta do Baio e do Buruntoni. Era o acampamento melhor situado naquela região do Corubal, todas as aproximações são difíceis, foi aqui que se instalou o PAIGC e logo começou a luta armada, a barraca deles ficava no mato fechado entre bolanhas. Ainda agora lembro a morte de Mário Adulai Camará, um dos nossos bazuqueiros, em 1967, nunca percebi por que é que não lhe deram uma condecoração, combateu mais de meia hora lançando fogo da bolanha para dentro da mata, nós não podíamos andar mais, tal o fogo dos morteiros 82. Aquela operação foi uma grande canseira, nosso alfero, nós não gostávamos daquelas correrias dentro da mata, era pena nunca perguntarem às pessoas da região, como eu, quais os sítios possíveis para se chegar lá. Quando atacámos Belel, em Março do ano seguinte, nosso alfero escolheu a pessoa certa, Cibo Indjai, ele escolheu o trilho possível, entrámos na barraca de Belel quando eles estavam a descansar ao almoço. Foi pena os oficiais brancos não quererem falar connosco antes das operações. Nós éramos fiéis à bandeira portuguesa, nunca pensavam em nós como gente interessada em acabar rapidamente com a guerra.


(iv) A semana Tennessee Williams

Não resisto a contar a história de um livro Maigret em Nova York, de Georges Simenon. Levava sempre no camuflado um ou dois livros revestidos em plásticos, para aguentarem as águas da bolanha e as chuvadas. Levei para o Xime o n.º 111 da colecção Vampiro, uma leitura emocionante, Maigret já está reformado em Meung-sur-Loire é procurado pelo um jovem, Jean Maura, que lhe pede que vá a Nova Iorque ver que perigos corre o pai, ideia que é corroborada pelo notário da família.

Maigret viaja num paquete transatlântico, o jovem Jean Maura desaparece à chegada, o encontro com o pai, Little John, e o seu secretário é acidentado mas Maigret continua a investigar com auxílio de colegas norte-americanos e detectives recrutados. São deambulações mirabolantes, há recordações de artistas que se lembram de uma dupla de dois irmãos, em que um deles era Little John. Há momentos fulgurantes, mas nada tem a força com um telefonema que Maigret faz a Joseph Daumale, de Nova Iorque para Bourboule, é um interrogatório a cinco mil quilómetros de distância como nunca mais lerei nas obras de Simenon. Vou devorando aos bocados, todas as pausas disponíveis são boas para ler. Nas bolanhas de Ponta Varela entrei dentro de água até à barriga, quando saí o meu livro policial deformara-se. Gostei tanto dele, no entanto, que resolvi guardá-lo até hoje, uma homenagem às leituras emocionantes, em tempos tão difíceis.

Mas as leituras da semana centraram-se em Tennessee Williams. Primeiro, li um Eléctrico Chamado Desejo, premiado com o Pulitzer. Vira a peça no teatro de São Luís, no dia dos meus anos, em 1966, na companhia do Carlos Sampaio, Eduardo Canto e Castro e José Nogueira Ramos. Mariana Rey Monteiro desempenhara Blanche DuBois, que no cinema dera a Vivien Leigh um Óscar. É um drama que nos fala da desambientação, da repressão sexual, da doença mental, as múltiplas mentiras a que por vezes nos entregamos na construção dos nossos sonhos. Blanche, que tem poses de aristocrata, vai viver para casa de Stella, a sua irmã, casada com o musculado e abrutado Stanley Kowalski. Numa atmosfera de permanente tensão, Blanche procura transmitir aos outros a ideia de um mundo refinado de onde provém, que se vem a descobrir ser fruto de uma imaginação delirante. Blanche é um caso único de mulher a caminho da meia idade que arquitecta situações amorosas, acantonada numa juventude inexistente. De ficção em ficção, Blanche irá ser internada, e a casa dos Kowalski voltará à normalidade.

A noite de Iguana que vi no filme de John Huston, com Ava Gardner, Richard Burton, Deborah Kerr e Sue Lyon nos principais protagonistas, é um outro drama de sexo reprimido, solteironas em fúria, um padre em sofrimento perseguido por uma adolescente, uma viúva sempre em festa, um avô poeta que vai recitar o seu mais belo poema e morre ao pé da sua neta tão amada. A iguana, um animal perseguido e acorrentado que o reverendo Shannon liberta naquela noite de todas as libertações, é o símbolo da verdade que se solta, da vida que é possível ser vivida. Gosto cada vez mais de Tennessee Williams e dos seus personagens em afrontamento, em que nada fica como dantes.

Aproxima-se o Natal, vivo o dissabor de não poder fazer uma festa, não tem sentido particularizar o evento no ambiente de um grande quartel. Entrego-me à pira das recordações, procuro compor uma exaltação ao Deus menino. E a 24 de Dezembro, já na noite escura, um pouco antes da nossa consoada na messe de Bambadinca os enfeites verbais conjugaram-se, todo o marulhar de saudações e saudades afluiu numa prosa poética. Afinal, o meu coração estava lá e cá, continuava a combater e, julgava eu, estava pronto a recomeçar uma vida onde se apagava a guerra da Guiné.
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Notas dos editores:

(1) Vd. o último poste desta série:

25 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

(2) Vd. poste de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(3) Vd. poste de 18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)

(4) Vd. poste de 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)